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PM 2009 Rondon Almanaque Historico PDF
PM 2009 Rondon Almanaque Historico PDF
PRODUTORA CULTURAL
Abravideo M839a Morel, Cristina Massadar
Concepção e Texto Almanaque Histórico Rondon: a construção do Brasil e a
Cristina Massadar Morel causa indígena. / Cristina Massadar Morel e Marco Morel
Brasília : Abravideo, 2009.
Marco Morel
Suplemento: guia do professor
Coordenação Geral
ISBN 978-85-61467-07-4
Elizabete Braga
1. Cândido Rondon. 2. Linhas telegráficas. 3. História do
Coordenadores de Pesquisa
Brasil. 4. Indigenismo I. Morel, Marco. II. Título.
Carlos Augusto da Rocha Freire CDD 918.1
Denise Portugal Lasmar
N D O N D O
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Apresentação 4
1 Caminhos do Brasil 6
Ameaças à saúde 21
2 Índios no Brasil 28
3 Palavras e imagens 48
4 Homem público 64
Nação e cidadania 72
Cronologia 79
Bibliografia 80
APRESENTAÇÃO
Ao apresentar a trajetória de Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) na 12.ª
edição do Projeto Memória, a Fundação Banco do Brasil, em parceria com a Sociedade
de Amigos do Museu do Índio (SAMI), tem a oportunidade de oferecer aos professores
e a seus alunos importantes caminhos da história e da cultura do País. De certa ma-
neira, os passos desse marechal do Exército (que pregava o pacifismo e a defesa das
populações indígenas e que contribuiu de modo decisivo para a integração nacional)
nos ajudam a conhecer como foi construída a nação em que vivemos.
As atividades do Marechal Rondon oferecem elementos instigantes para o trabalho
em sala de aula. Sua vida longa e atuação intensa envolvem questões ligadas ao meio
ambiente, aos meios de comunicação, às inovações técnicas, à diversidade cultural e
à formação do Brasil. Ao fazer um levantamento de suas realizações, ele contabilizou
nada menos que 50 mil quilômetros (mais do que a circunferência da Terra) percorridos
em nosso território, com a criação de linhas telegráficas em plena selva e nos sertões,
além de incluir rios até então ausentes dos mapas e permitir o surgimento de estradas
e cidades. Ao mesmo tempo, sua presença teve dimensão científica: por onde passava,
colhia espécimes vegetais, minerais, animais e arqueológicos, muitos ainda desconhe-
cidos pelos registros escritos. E, nessa “descoberta” do Brasil, Rondon afirmava ter
encontrado nosso maior tesouro: as populações indígenas.
O Almanaque Histórico Marechal Rondon, portanto, está organizado a partir de qua-
tro eixos básicos relacionados ao personagem:
Caminhos do Brasil: regiões percorridas por ele e pelos indivíduos e grupos
que integraram suas equipes, o que nos leva a abordar os ecossistemas, a fauna e a
flora, a dimensão social da saúde e as invenções tecnológicas.
Índios no Brasil: populações com as quais entrou em contato nos levam a di-
mensionar a presença indígena na cultura e na sociedade brasileira, com as formas de
relação pacíficas ou violentas, além da riqueza cultural desses povos.
Palavras e imagens: as produções culturais surgidas em consequência de sua
atuação (ciências naturais, etnografia, fotografia, museus) e sua relação com os mo-
dernos meios de comunicação.
Homem público: a figura de Rondon em sua dimensão política, no sentido amplo, de
alguém que exerceu com intensidade sua cidadania e defendeu suas ideias, marcan-
do presença em episódios históricos importantes, inclusive em torno dos (ainda hoje)
disputados direitos dos índios e das ações destes em defesa de suas vidas e culturas.
Na aproximação entre passado e presente, entre o que conta a história e a nossa vida
atual, surgem palavras e trajetórias de vida que, entrelaçadas, mais uma vez nos abrem
a esperança de que o Brasil pode e deve continuar se transformando para melhor.
Foi justamente na região onde nasceu e passou a infância que o Marechal Ron-
don participou e dirigiu a Comissão Construtora de Linhas Telegráficas de Cuiabá ao
Araguaia (1890-1891). Essa seria a primeira de uma série de expedições pelo Norte e
Centro-Oeste do Brasil: Comissão Construtora de Linhas Telegráficas do Mato Grosso
(1900-1906) e Comissão Construtora de Linhas Telegráficas Estratégicas do Mato Gros-
so ao Amazonas (1907-1915) – esta última denominada Comissão Rondon.
No final do século XIX, a construção do telégrafo de Goiás (Araguaia) a Mato Grosso
(Cuiabá) visava ao fortalecimento militar do sul do Mato Grosso, ligando-o de maneira
direta ao Rio de Janeiro. Essa também era uma forma de promover o povoamento da
região. A vulnerabilidade da área de fronteira do Mato Grosso já tinha sido identificada
na época da Guerra do Paraguai (v. Capítulo 4). Em outras palavras: estava em jogo
garantir a integridade nacional e construir novos mecanismos para protegê-la. Rondon,
desse modo, teria importante presença nessas amplas e demoradas tarefas de ajudar
a consolidar a nação brasileira.
A Comissão Rondon, além de instalar as linhas telegráficas, possibilitou a construção
de estradas de ferro e de rodagem e a pesquisa em diversos campos da ciência.
Participavam com entusiasmo da Comissão oficiais especializados em Topografia,
Desenho e Astronomia, mas não era fácil arregimentar a maioria da mão-de-obra, com-
posta por civis e praças, tendo em vista o temor que as condições de vida e trabalho
da Comissão causavam. Muitas vezes, eram recrutados soldados considerados indis-
ciplinados, além de presos políticos e presos comuns. Em algumas ocasiões, os índios
também participaram da abertura de picadas e da instalação das linhas.
6
Picada aberta para instalação da linha telegráfica |
Acervo Museu do Índio/Funai
“Dei ao cacique uma corneta, que foi entregue a um índio por ele
designado para os toques, que, segundo combinamos, seriam dados do
modo que ele julgasse mais perceptível ao ouvido da sua gente. Fato
curioso. Aquele chefe indígena, querendo mostrar-se que havia con-
veniência em que fossem os seus toques dados à sua guisa, procurou
convencer-me de que a minha corneta falando braire (brasileiro), a
dele falaria bororo.”
(Cândido Mariano da Silva Rondon. Relatórios dos trabalhos realizados de 1900-1906.publicação 69-70)
NA PONTA DA LÍNGUA...
“Parece uma coisa à tôa / Mas tem muito que sabê; / Que não é qual-
quer pessoa / Que dança o cateretê.”
Rondon possuía, desde criança, familiaridade com a natureza. Nas várias expedições
de que participou, manteve contato com a diversidade da flora e fauna brasileira. Duran-
te essas explorações, realizou estudos com sua equipe, classificando plantas e animais
e estabelecendo a localização de acidentes geográficos até então não identificados nos
mapas. Segundo Amilcar Botelho de Magalhães, Rondon descobriu 15 rios no então
Estado do Mato Grosso. Na verdade, muitos acidentes geográficos já eram conhecidos
e até nomeados pelos índios (v. Capítulo 2).
Rondon relata a Esther de Viveiros:
“Tive inspiração de crismar o Caiamo-doguê-itugo-botuie (rio de ponta de flecha de
caiapó, em bororo) com o nome do Fundador da República, aproximando a majestosa
grandeza de ambos. Declarei solenemente perante os companheiros de construção,
entre os quais alguns índios: ‘quando a construção chegar a este rio, passará ele a
chamar-se Benjamin Constant’.”
Rondon percorreu ao todo 50 mil quilômetros nas instalações das linhas telegráficas
e na demarcação de fronteiras, segundo seus cálculos. Trata-se de extensão maior do
que a circunferência da Terra (40.075 quilômetros), na altura da Linha do Equador.
As áreas de atuação de Rondon incluíram grande parte dos atuais Estados do Mato
Grosso e do Mato Grosso do Sul – que têm por paisagem característica o Cerrado e o
Pantanal – e os Estados do Amazonas, de Rondônia, do Amapá e de Roraima, na região
Amazônica.
Rondon e expedicionários em acampamento do Porto de Cuiabá | Benjamin Rondon | Acervo Museu do Índio/Funai
CAATINGA
A M A Z Ô N I A MATA
P A N T A N A L ATLÂNTICA
C E R R A D O
PAMPA
TRAJETÓRIA DE RONDON
12
No Pantanal, o verão úmido e quente
contrasta com o inverno seco e frio. Fauna
e flora, ricas em diversidade, reúnem princi-
palmente espécies de outros biomas (regi-
ões com vegetação e clima semelhantes).
Característico da região é o alagamento
periódico dos rios, quando dois terços da
área ficam cobertos pelas águas. Apesar
da interferência humana, principalmente
por meio da caça, essa região ainda está
relativamente preservada.
Cerca de 45% das áreas originais de florestas tropicais do planeta já foram des-
truídas, a maior parte no último século. Até o fim de 2002, o desflorestamento atingiu
aproximadamente 12% da cobertura vegetal de origem da Amazônia. A destruição do
ecossistema pelo desmatamento, pela mineração (que contamina os rios), pelo avanço
da agricultura e da pecuária causa o desaparecimento de espécies, compromete a
qualidade de vida, as atividades de produção de alimentos, remédios e energia. Prevê-
se que, se o desmatamento continuar na mesma proporção de hoje, 42% da Floresta
Amazônica estará destruída em 2020.
A Amazônia tem sentido relevante para a vida no planeta: possui a maior rede de
rios e cursos d’água do mundo, representando um quinto do volume de água doce do
planeta e 80% da água disponível no território brasileiro.
A água é o elemento mais comum na superfície da Terra e a maior parte dela é salga-
da, ou seja, imprópria para o consumo do ser humano. A poluição, o crescimento po-
pulacional e as alterações no clima são os principais responsáveis pela crise da água,
tornando esse recurso, cada vez mais escasso, em foco de interesses internacionais e
de conflitos.
16
O “ar-refrigerado” do mundo. Ao contrário do que se costuma dizer, a
floresta não é o “pulmão do mundo”. O oxigênio que produz é con-
sumido por ela. Podemos dizer que a floresta é o “ar-refrigerado”
do planeta, pois é responsável pela absorção de carbono, diminuindo
assim o efeito estufa (que aumenta o aquecimento da Terra). A quantidade
de oxigênio produzida pela mata é, em sua maioria (90%), gasta dentro
dela mesma (com as próprias plantas, os animais e outros seres
vivos, todos eles aeróbios, ou seja, que necessitam do oxigênio para
viver). Na verdade, nós respiramos o oxigênio produzido pelos oceanos.
As algas marinhas unicelulares consomem pouco oxigênio em relação
ao que produzem. Daí que 90% do oxigênio da atmosfera provém dessas
algas.
Os índios guarani do Estado do Rio de Janeiro, segundo consta no livro Ara Reko –
memória e temporalidade guarani, utilizam as seguintes ervas:
Iuriraogui.................................................. erva para simpatia para o namorado
Iuiraro........................................................ erva para cólica
Capiá............................................................ semente Lágrima de Nossa Senhora
Mamangacá.................................................... erva para chá
Pipi.............................................................. erva para gripe, febre, dor-de-cabeça
Tapy pytã.................................................... erva para não ter mais filho
Yvaro............................................................ erva para dor-de-cabeça, febre, coceira
Antonio Luís Lisbôa Dutra, o Mano Velho, vacinando o menino Maekãyi, durante epidemia de gripe,
Pará,1982 | Eduardo Viveiros de Castro/ISA
Expedição do SPI ao Xingu, 1944 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai
Contatos de pacificação em Ribeirão dos Patos, São Paulo, 1912 | Acervo Museu do Índio/Funai 21
Noel Nutels observa índios fazendo radiografia | Acervo Museu do Índio/Funai
Ainda hoje, segundo dados da própria Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), ór-
gão governamental responsável pela saúde indígena, as condições de saúde dos ín-
dios no Brasil são precárias. As doenças mais frequentes são: infecções respiratórias
e gastrointestinais agudas, malária, tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis,
desnutrição e doenças preveníveis por vacina. A tuberculose é uma das doenças que
mais atinge as comunidades indígenas.
As ações governamentais ainda não conseguiram dar conta, de forma definitiva, do
desafio de assistir aos índios, respeitando seus valores e práticas relativas ao adoecer
e atendendo às necessidades de cuidado que foram sendo geradas a partir do contato
com os não índios. As mudanças no modo de vida, especialmente na alimentação,
trazem problemas como hipertensão arterial, diabetes, câncer, alcoolismo, depressão
e suicídio.
Ao mesmo tempo, o conhecimento indígena da utilização de plantas tem sido apro-
veitado pelas empresas farmacêuticas multinacionais e por grupos estrangeiros que
22 pesquisam as espécies vegetais usadas pelos índios.
HISTÓRIAS DE VIDA... Noel Nutels. No grupo que atuava em torno
de Rondon, estava o médico sanitarista Noel Nutels (1913-1973). Ele
tornou-se figura lendária por seu desprendimento e empenho na defesa
da saúde das populações indígenas brasileiras, tratando e prevenindo
doenças e epidemias causadas pelo contato com os não índios. Nascido
na Ucrânia, Noel veio com a família para o Brasil aos oito anos de
idade, fugindo da I Guerra Mundial. Foi médico da expedição Ronca-
dor-Xingu (1943-1951), na Amazônia, do SPI e do Serviço Nacional de
Tuberculose. Durante três décadas, atuou em áreas indígenas, criando
um órgão de atendimento médico que incluía também populações inte-
rioranas: o Serviço de Unidades Sanitárias Aéreas (SUSA), que per-
mitiu a esses habitantes da Amazônia o acesso aos serviços de saúde
pública. Participou, com Darcy Ribeiro e com os irmãos Villas Bôas,
da criação do Parque Indígena do Xingu. Fez 34 filmes registrando
cenas impressionantes de miséria e desnutrição dos índios. Carlos
Drummond de Andrade, em versos, assinalou em Noel Nutels “esse signo
de amor compreensivo e ardente / que foi a tua vida sertaneja, / a
tua vida iluminada, / e tua generosa decepção”.
Estação Telegráfica de Utiariti, em Mato Grosso | José Louro | Acervo Museu Histórico do Exército
Antiga sala de transmissão da estação telegráfica de Pimenta Bueno, em Rondônia | José Louro |
Acervo Museu do Índio/Funai
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Uma das mensagens mais usadas era: ... — ..., que significava SOS, ou código inter-
nacional de pedido de socorro. O primeiro SOS em Morse emitido por um navio foi em
1909, pelo Arapaohe. Exatos 90 anos depois, o uso da telegrafia Morse foi oficialmente
abandonado pelos serviços de comunicações marítimas.
Os telegramas podiam ser claros, cifrados ou urgentes. A historiadora Laura Antunes
Maciel nos conta que, com a senha “Segue vendaval!”, os telegrafistas da Central do
Brasil teriam comunicado a partida no trem do então engenheiro diretor Francisco Perei-
ra Passos. Ele teria respondido na mesma linguagem: “Desce tempestade!”, punindo,
em seguida, os responsáveis por irregularidades encontradas na linha.
Rondon e índio Pianokotó, em cena do filme Parima - Luiz Thomaz Reis | Luiz Thomaz Reis | Acervo Museu do Índio/Funai
Rondon apresenta um relógio aos índios Kahyana, em cena do filme Parima - Luiz Thomaz Reis | Acervo Museu do
Índio/Funai
2 ÍNDIOS NO BRASIL
28
MARECHAL RONDON
bisavó paterna
(guaná, espanhol,
português)
bisavó materna
(bororo, terena)
31
NA PONTA DA LÍNGUA... Descobrimento? É frequente nas escolas,
em livros de história, em músicas ou na televisão, o uso da palavra
descobrimento para nomear a chegada, no século XVI, dos europeus
no território hoje brasileiro. “Cabral descobriu o Brasil” é lugar-
comum que nos habituamos a escutar desde a infância. No entanto,
a palavra traz uma conotação de dominação. Trata-se de um ponto de
vista europeu e colonizador. Se alguém, por exemplo, chegar pela
primeira vez numa residência habitada por várias pessoas, seria
correto falar em “descobrimento” dessa casa? O que para uns pode
ser novidade, para outros já é bem conhecido. Será correto falar
em Descoberta do Brasil em 1500 ou em outra data semelhante? Não
existia, naquela época, um Brasil, isto é, uma nação organizada
em Estado Nacional. Havia, sim, sociedades variadas e complexas,
com diferentes culturas, saberes, guerras e alianças. E usar,
nesses casos, o verbo descobrir significa desvalorizar a vida e
o conhecimento dos habitantes que aqui existiam, como se fossem
objetos a serem encontrados ou como se as terras em que viviam
estivessem vazias de moradores. Os povos chamados indígenas estavam,
por sua vez, descobrindo os europeus – encontro que teria trágicas
consequências em suas vidas e nas de seus descendentes.
Meninas da etnia Tapirapé, participando da nona edição dos Jogos dos Povos Indígenas | Valter Campanato/ABr 33
Aliás, no fundo, quando se fala do índio, pode-se estar cometendo equívocos. Não
existe um “índio geral”: as culturas chamadas indígenas são muito diferentes entre si.
Entre um Guarani Mbyá e um Kayapó, a distância linguística e cultural é tão grande
quanto a que existe entre um russo e um brasileiro, por exemplo. O que não impede,
é claro, que haja trocas entre grupos distintos. Mas a ideia de um índio padronizado é
uma herança deixada pela visão dos colonizadores, que pretendiam assim descaracte-
rizar as identidades daquelas populações.
O sol, que cobre a todos os povos, é nomeado de maneiras diferentes.
Kayapó myt
Xavante bââdâ
Galibí weiu
Wayâna xixi
Warekena kamoi
Apurinã atukatxi
Tupi kuaracy
Krenak tepó
Mulheres Kamaiurá trabalhando a mandioca, Xingu, 1944 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai
37
Pelo menos algumas delas certamente são conhecidas por nós. Outras fazem parte
de nosso dia-a-dia. Quantas delas nos são familiares? Veja suas classificações na ta-
bela. Esta é, aliás, uma oportunidade para fazermos uma pesquisa a partir de nossos
próprios conhecimentos e verificarmos, na prática, as heranças indígenas em nossas
vidas.
Não apenas quando falamos, mas também quando ingerimos, a marca indígena se
faz presente. Uma boa farofa vem da mandioca. O modo de preparar e usar a sua fari-
nha e sua raiz, tão comum entre os indígenas, é uma forte característica que herdamos
deles. Da mesma forma, o hábito de tomar mate ou guaraná, consumidos pelos povos
anteriores à chegada de Pedro Álvares Cabral, é uma marca indígena ainda bastante
presente. Algumas dessas iguarias, inicialmente aproveitadas em escala regional, como
o açaí, acabaram incorporando-se ao consumo nacional e até sendo industrializadas.
O milho, que gera tantas receitas e aproveitamentos, é outra herança indígena bastante
utilizada.
Os falares característicos de algumas localidades, como o interior do Estado de São
Paulo ou a cidade de Manaus (AM), têm sotaques modulados pelas maneiras de falar
dos índios que habitavam a região e estiveram presentes, ainda nos séculos XVIII e XIX,
como o mais expressivo contingente linguístico. Em São Paulo, somente no século XVIII
o português passou a ser falado pela maioria da população. No Amazonas e no Pará,
foi a partir de meados do século seguinte.
Deitar numa rede, hábito ainda hoje indispensável para milhões de brasileiros, é fazer
com que nossos corpos se embalem no mesmo ritmo das populações indígenas.
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Escola Parintintin, Área Indígena Nove de Janeiro (AM),1993 | Paulo Porto
No raiar do século XX, havia três grandes linhas propondo definir a relação entre a
nação brasileira e os índios:
• Uma representava a tradicional catequese praticada por missionários cristãos e que
buscava, por meio da pregação religiosa e da coerção escolar ou dos aldeamentos,
controlar e despojar os índios de suas culturas.
• Outra, baseada numa curiosa mistura de racismo de argumentos científicos com os
interesses dos colonos situados nas frentes de expansão, julgava que os índios eram
incapazes e incompatíveis com a civilização moderna e o progresso, e que, portanto,
deveriam ser descartados ou exterminados. O diretor do Museu Paulista, Von Ihering,
defendeu abertamente essa posição.
“(...) parece que não há outro meio, de que se possa lançar mão,
senão seu extermínio”.
(Von Ihering, sobre os índios do Brasil em 1910, Revista do Museu Paulista, VII, p. 215)
40
Reunião na sala do Conselho Nacional de Proteção aos Índios, 1946 | Heinz Forthmann | Acervo Museu do Índio/Funai
Cacique Vegnon, Kaingang do Paraná, Intérprete na pacificação dos Kaingang de São Paulo | Acervo Museu do
Índio/Funai
Rondon toma nota enquanto os índios ouvem música | Emanuel Silvestre do Amarante | Acervo Museu do Índio/Funai
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Como era, afinal, a atitude que Rondon praticava e que ficou conhecida como pacifi-
cação? É interessante compreender passo a passo como ocorria tal procedimento. Ele
era implantado onde aparecia um conflito aberto entre índios e a sociedade regional.
De início, eram recrutados para compor a equipe trabalhadores locais ou mesmo índios
falantes da mesma língua que a tribo em foco e já habituados ao convívio com os não
índios. Em seguida, erguia-se o Posto de Atração numa área além da última moradia
regional existente e mais próxima da aldeia, mas sem se acercar demais. Plantava-se
uma roça para servir à equipe, permitindo também aos índios que colhessem. Eram
depositados brindes em pontos estratégicos, à espera de que fossem recolhidos pelos
indígenas. Os ataques dos índios eram frequentes, mas nunca respondidos à bala. Era
um processo que durava meses, e até anos, batizado de “namoro”: longas esperas,
altos e baixos, momentos delicados e tensos, até que se dava o encontro e o convívio.
Um dos casos mais dramáticos ocorreu nas tentativas de atração dos Xavante, em
1941. Marcados por constantes atos de violência e traição por parte dos não índios, os
Xavante apresentavam disposição hostil e guerreira. Em meio ao processo de pacifica-
ção, ocorreu um ataque dos índios ao Posto de Atração no qual toda a equipe do SPI foi
exterminada. Temendo que houvesse reação violenta de seus comandados, o inspetor
Genésio Pimentel Barbosa trancara as armas num armário. Seu corpo foi encontrado
com a pistola guardada no coldre, levando ao extremo o lema de Rondon, de que era
preferível morrer a matar índios. Esse era o inverso da afirmação do General George
Custer, que, na expansão nacional norte-americana rumo ao Oeste, garantia que índio
bom era índio morto. Rondon, por sua vez, nunca matou um índio, porém contaria mais
de 650 mortes entre os integrantes de suas expedições ao longo das décadas e dos mi-
lhares de quilômetros percorridos, causadas por motivos variados: doenças, acidentes
e ataques de índios.
A missão de contatar os Xavante prosseguiu com outro inspetor do SPI, o então
jovem Francisco Meirelles, que cinco anos depois conseguiria estabelecer o contato
permanente, com o apoio do cacique Apowen, que se tornou seu amigo e interlocutor.
O momento do contato foi registrado em fotos e filme documentário. Meirelles daria a
seu filho, que nasceu no Posto de Atração, o prenome do cacique. Apoena seguiu a
mesma trilha do pai, tornando-se sertanista e, por um breve período, presidente da Fun-
dação Nacional do Índio (FUNAI). Após ter feito a pacificação de tribos consideradas
perigosas, como os Kren Akarore e Wamiri Atroari, Apoena Meirelles faleceu vítima de
um assalto a banco em Rondônia, em 2004.
44
Índios Xavante no primeiro contato com a equipe do sertanista Francisco Meirelles, 1946 | Heinz Forthmann |
Acervo Museu do Índio/Funai
Ainda hoje, porém, a aproximação entre índios e a sociedade nacional não está con-
cluída. Permanecem no Brasil pequenos grupos isolados que recusam ou evitam o con-
tato. Há 46 referências a casos desse tipo. A Coordenação Geral de Índios Isolados
(CGII), da FUNAI, já confirmou a existência de 20 grupos. É pouco provável que sejam
índios que nunca tenham visto um homem “branco”. Ao contrário, supõe-se que sabem
do que ou de quem estão fugindo. As informações sobre tais situações são precárias.
Alguns grupos estão razoavelmente identificados e vivem em terras indígenas demarca-
das para eles, como os Hi-Merimã, no Amazonas. Há os que vivem em terras indígenas
associadas a outros grupos, como os Kampa, no Acre. Em Rondônia (Estado assim
batizado em homenagem ao Marechal Rondon), existem grupos identificados apenas
pelo nome dos rios ou de localidades, sem que saibamos sua etnia, como na região do
rio Karipuninha.
Vemos, assim, que o resultado dessa longa história dos contatos entre índios e não
índios gerou (e ainda gera) encontros e desencontros, misturas e separações, amizades
e ódios, vidas e mortes. Nossos olhares sobre os povos indígenas recebem antigas in-
fluências, como um verdadeiro caleidoscópio. Para uns, o índio representa o homem em
estado natural, um bom selvagem ainda não corrompido pela civilização. Para outros,
ao contrário, é modelo de preguiça e atraso, primitivo, inferior, incapaz. Triste e natural-
mente melancólico para alguns, que nem sempre questionam os motivos de eventual
tristeza. Brutal, bárbaro, violento e desonesto, de acordo com determinados estereóti-
pos. Nobre, guerreiro e corajoso. Naturalmente místico. Ou, quem sabe, sinônimo de
licenciosidade, liberação de comportamentos e sexualidade exacerbada, por andar nu?
Quanto melhor se conhece, menos se idealiza. As visões pré-concebidas se multiplicam,
mas vão também sendo substituídas por percepções mais humanizadas, à medida que
somos capazes de re-conhecer a presença histórica das populações indígenas.
Rondon, que conviveu de perto com os índios, empolgado com sua missão patriótica
de levar o progresso a todos os recantos do Brasil, não vacilou em afirmar: “O índio é a
maior preciosidade que encontramos na Marcha para o Oeste”.
Rondon, ao centro da foto, com Roquette-Pinto e Heloísa Alberto Torres à sua direita | Acervo Museu Nacional
As expedições lideradas por Rondon foram também uma oportunidade para realizar
explorações científicas nas áreas de Botânica, Zoologia, Geologia, Cartografia, Antro-
pologia e Etnografia.
Os cientistas, vários deles do Museu Nacional, coletaram e classificaram o material
encontrado, elaboraram relatórios científicos e textos de divulgação e participaram de
conferências, apresentando inclusive espécies de animais e de plantas até então desco-
nhecidas. A partir das explorações, foram publicados 70 volumes de trabalhos técnicos
e científicos. Rondon e sua equipe mapearam 247 grupos indígenas, coletaram diversos
vocabulários e elaboraram uma classificação linguística dos grupos indígenas. No pe-
ríodo de 1907 a 1915, foram entregues pelas equipes de Rondon, ao Museu Nacional,
48 23.107 exemplares de Botânica, Zoologia, Mineralogia, Geologia e Antropologia.
Rondon, de pé, realiza observações técnicas | Alberto Brand | Acervo Museu do Índio/Funai
O Museu Nacional, criado por D. João VI, no Rio de Janeiro, é o maior museu de his-
tória natural e antropológica da América Latina e a mais antiga instituição científica do
Brasil. Recebeu várias denominações: Museu Real (1818); Museu Imperial e Nacional
(1824); Museu Nacional (1890). Atualmente integra a estrutura acadêmica da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vinculada ao Ministério da Educação. Seus
laboratórios de pesquisa e cursos de pós-graduação tornaram-se centros de referência.
As peças (cerca de 3 mil atualmente) das exposições abertas ao público são parte dos
20 milhões de itens das coleções científicas conservadas e estudadas pelos Departa-
mentos de Antropologia, Botânica, Entomologia, Invertebrados, Vertebrados, Geologia
e Paleontologia.
Como são classificados cientificamente os seres vivos? O processo de classificação
de um organismo inclui nomeá-lo de modo que possa ser reconhecido pela comunidade
científica de qualquer parte do mundo. Para isso, foram criadas algumas regras, como,
por exemplo, a de que o nome científico deve ser escrito em latim, estar composto por
duas palavras e ser apresentado em itálico, negrito ou sublinhado. A primeira palavra
se refere ao gênero e tem sempre a inicial maiúscula; a segunda, é o nome específico
50 e está em letra minúscula.
Museu Nacional | Elizabete Braga
Um dia, ela teve um lindo filho, a quem deu o nome de Mani. O caci-
que, rendido aos encantos da criança, ia visitá-la e esqueceu os
rancores. Mas, aos três anos de idade, Mani morreu misteriosamente,
sem nenhuma doença. Foi enterrado no meio da oca (cabana). Ao ama-
nhecer, sua mãe, que chorou a noite inteira no local, viu brotar
da terra molhada pelas lágrimas uma plantinha, que foi crescendo,
crescendo, furou o teto da oca, floriu e deu fruto. Os passarinhos
comeram os frutos e saíram semeando os grãos. Os parentes cavaram a
terra e viram que a planta saía do ouvido de Mani e gritavam, en-
cantados: Mani iua (árvore). A planta, cuja raiz parecia um chifre
(aca), passou a se chamar maniuaca (mandioca).
História Natural era como se denominava a área de estudo que abrangia os conheci-
mentos hoje contidos em ciências como Biologia e Geologia, bem como em suas sub-
divisões. Esse corpo de conhecimentos estuda a diversidade do mundo vivo e mineral e
suas interações com o homem. Compreende como essa diversidade se construiu e qual
a sua dinâmica. Envolve ações de observar, nomear, classificar, descrever, comparar,
interpretar e reconstituir a história geológica e a origem e evolução da vida.
Processo semelhante ocorre quando aprendemos. É a partir da observação e da
distinção entre os elementos que nos rodeiam que podemos começar a estabelecer
52 relações e interpretar os fenômenos, construindo conhecimentos sobre eles.
Lançamento do livro Índios do Brasil | Acervo Museu Histórico do Exército
A fotografia teria por função registrar os fatos para conservar sua memória e auxiliar
a ciência na compreensão da realidade. Na Comissão Rondon, era exatamente essa a
função que exercia, documentando e valorizando as expedições realizadas. Mas seria
a fotografia uma simples cópia da realidade? Com o tempo, foi-se compreendendo que
ela é uma forma de abordar a realidade. A análise de seus vários elementos, como o
tema enfocado, o enquadramento escolhido e o tipo de luz, nos permite compreender
o olhar de quem fotografou.
As equipes de Rondon enfrentaram muitas dificuldades para levar as ‘lembranças’ da
Comissão das selvas e dos sertões para as cidades:
Assim como as “chapas de vidro” a que Rondon se refere são, para nós, algo do
passado, levar as imagens gravadas no filme fotográfico (os negativos) para revelar
também está se tornando obsoleto. Nas câmeras digitais, as imagens são transferidas
para o computador, podendo ser enviadas para qualquer lugar, embora possamos tam-
bém preferir revelá-las em papel. As câmeras digitais não usam filme. As imagens são
54 registradas em pixels, que são minúsculos quadrados eletrônicos.
COMUNICAÇÕES NO BRASIL
O PA I Z
O BRASIL
1 2 3 4 5 6
7 8 9 10 11 12
13 14 15 16 17 18
19 20 21 22 23 24
25 26 27 28 29 30
31
ABRIL
1 Dia da mentira
2 Dia Internacional do Livro Infantil, em homenagem ao escritor dinamarquês
Hans Christian Andersen, autor de O patinho feio e O soldadinho de chum-
bo, dentre outras obras
7 Dia Mundial da Saúde,
18 Dia Nacional do Livro Infantil, em homenagem ao escritor Monteiro Lobato
(homenageado no Projeto Memória de 1998, da Fundação Banco do Brasil)
19 Dia do Exército Brasileiro, Dia do Índio
21 Tiradentes
22 Chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil
57
Dança dos índios Kayapó, em comemoração ao Dia do Índio. Aldeia Metuktire (MT), 2008 | Ednilson Aguiar/Secom-MT
Pelo menos nos últimos dois séculos, os índios e suas culturas foram vistos como
objetos de museu. Mas tal visão tem mudado. Atualmente, grupos indígenas concebem
criar seu próprio museu. Exemplo dessa iniciativa veio dos Ticuna, ao mostrarem que os
índios podem ser donos de suas próprias imagens, história e memória, como revela o
pesquisador José Ribamar Bessa Freire. Não fazem apenas objetos curiosos, nem são
eles mesmos objetos de curiosidade. A experiência de museus etnográficos organiza-
dos pelas próprias tribos já existe em outras localidades, como no Canadá.
58
No Brasil, foi inaugurado, em 1991, o Museu Magüta, justamente no município de
Benjamin Constant (AM), com 15 mil habitantes, próximo à fronteira com Peru e Colôm-
bia, na confluência dos rios Javari e Solimões. São vários encontros. O nome do municí-
pio foi sugerido por Rondon, quando por lá passou na década de 1930, em homenagem
a seu mestre e um dos fundadores da República no Brasil. Os Ticuna, que Rondon
também conheceu, são o povo indígena mais numeroso do Amazonas, com cerca de
30 mil habitantes, espalhados em uma centena de aldeias.
Os trabalhos de organização do Museu Magüta começaram em 1988, com a par-
ticipação ativa de índios e de suas lideranças, apoiados por assessores não índios
especialistas em Museologia. Naquele ano, houve, contra essa etnia, um massacre
executado por pistoleiros a mando de fazendeiros da região: 14 foram mortos, 10 de-
sapareceram e 23 ficaram feridos, entre homens, mulheres e crianças. Havia crescente
hostilidade da população urbana contra esses índios, inclusive por parte de autoridades
locais. Afirmar sua cultura e sua história significava, portanto, marcar posição e tentar
garantir a sobrevivência do grupo, quando suas terras e vidas estavam ameaçadas.
O Museu Magüta conta com cerca de 500 peças enviadas das aldeias ticuna para
o acervo, todas catalogadas pelos índios envolvidos na organização, além de mapas,
imagens antigas das tribos e outras informações sobre a vida e a história desse povo.
O Museu, mesmo passando por crises e dificuldades, serviu para aplacar a hostilidade
da população urbana e tornou-se polo de atração, visitado por turistas e moradores da
região, índios e não índios.
59
A força dos meios de comunicação
Rondon valorizou e soube utilizar os espaços dos meios de comunicação de massa.
Tratava-se de uma novidade nas primeiras décadas do século XX: os veículos impres-
sos já existentes (jornais e revistas) ampliavam-se em escala industrial e empresarial,
assim como o cinema. E surgiram outros meios, como o rádio, e, mais tarde, a televisão.
Consciente da importância de tais veículos para o fortalecimento de suas atividades,
Rondon e suas equipes foram, ao mesmo tempo, criadores de filmes, fotografias, livros
e artigos, bem como atuaram nos meios de comunicação para divulgar suas ações e
ganhar apoio e reconhecimento da sociedade e das autoridades.
HISTÓRIAS DE VIDA...
Edgard Roquette-Pinto (1884-1954) foi um dos companheiros de Rondon
que mais contribuiu para a difusão e o surgimento dos modernos meios
de comunicação no Brasil, especialmente o rádio. Destacando-se como
antropólogo e educador, formado em Medicina, suas atividades foram
múltiplas: geógrafo, linguista, folclorista, arqueólogo, botânico,
zoólogo, etnógrafo, sociólogo, farmacêutico, legista e fotógrafo.
Distinguiu-se por ter criado a primeira estação de rádio no Brasil,
em 1923: a Sociedade Rádio do Rio de Janeiro. Roquette-Pinto acompa-
nhou Rondon em expedição à Serra do Norte, em 1912, travando contato
com os Nhambiquara. Filmava, fotografava e fazia anotações em seus
cadernos de campo. Publicou o livro Rondônia – Antropologia etno-
gráfica, considerado então um clássico da antropologia brasileira.
A ideia de, em 1956, batizar de Rondônia (em homenagem a Rondon) o
Território Federal do Guaporé foi inspirada por Roquette-Pinto. Di-
retor do Museu Nacional em 1926, organizou na instituição uma pio-
neira coleção de filmes etnográficos. Participou ativamente de insti-
60 tuições científicas e culturais brasileiras e internacionais.
A relação com a mídia ocorreu em várias ocasiões. Uma delas ficou famosa. “O caso
Fawcett, verdadeiramente, começou comigo”, afirmou Rondon. Num exemplo da im-
portância que atribuía aos meios de comunicação de massa, o velho sertanista referia-
se ao episódio de repercussão internacional que foi o desaparecimento do explorador
inglês Percy Harrison Fawcett, nas selvas do Xingu, em 1925. Coronel da Guarda Real
Britânica e membro da Sociedade Real de Geografia, em Londres, Fawcett veio ao
Brasil por motivos controversos. Ele próprio afirmava pretender realizar uma expedição
científica em busca de uma suposta civilização perdida. Mas algumas de suas atitudes
e alguns testemunhos da época, bem como pesquisas posteriores, indicam que ele
poderia estar buscando jazidas de riquezas minerais e, até, uma mítica cidade de ouro
oculta no meio da floresta.
O último registro de Fawcett, de seu filho Jack e do acompanhante Raleigh Rimmel
ocorreu na tribo dos Kalapalo, na área onde hoje é o Parque do Xingu. Outras expedi-
ções, nacionais e internacionais, seguiram o rastro do britânico, tentando localizar seu
paradeiro. Entre elas, duas foram organizadas pelos Diários Associados: a primeira, em
1943, sob a coordenação do jornalista Edmar Morel, integrada por profissionais de fil-
magem, fotografia e fonografia do SPI, quando pela primeira vez uma equipe jornalística
brasileira penetrou na região do Xingu; a outra, com o jornalista Antonio Callado e os
irmãos Villas Bôas, em 1952.
61
Rondon conversou várias vezes com
Fawcett logo que este chegou ao Brasil e,
a princípio, opôs-se abertamente a que o
expedicionário inglês viajasse pelas sel-
vas, alegando precariedade de condições
e defesa da soberania nacional. Diante das
pressões da diplomacia britânica, Rondon
então reivindicou que uma comitiva de mi-
litares brasileiros acompanhasse o inglês,
proposta rejeitada pelo Governo Federal.
Depois dessa oposição, Rondon ainda en-
controu por acaso Fawcett nas selvas do
Mato Grosso, quando este enfrentava difi-
culdades para prosseguir no trajeto.
As palavras e imagens geradas por
Rondon e suas equipes mostram o poder
dos símbolos. Elas não apenas registram,
refletem e informam, mas também atuam,
criando e preservando memórias e trans-
formando a realidade. Signos marcantes
daqueles tempos pertencem também ao
tempo atual, na medida em que nos esti-
mulam a expressar e visualizar criticamen-
te nossa própria sociedade.
Tudo que está ao nosso redor sempre foi assim e não mudará nunca? Os hospitais,
as escolas, os museus, os locais de trabalho, os sindicatos, os governos, os meios de
comunicação, enfim, as instituições que usamos e que envolvem boa parte de nossa
vida seriam eternas e imutáveis? Às vezes, é difícil compreender que tais instituições
são, em último caso, resultado de nossas vontades e ações. É o que mostra a trajetória
de Cândido Mariano da Silva Rondon. Como homem público, teve intensa capacidade
de atuar na realidade, no intuito de transformá-la.
Mortes na Guerra
do Paraguai
Paraguai 300.000
Brasil 50.000
Argentina 18.000
Uruguai 3.120
Total 371.120
Fonte: Francisco Doratioto. Maldita Guerra. Nova história da Guerra do
Paraguai. São Paulo: Cia. das Letras, 2002, p. 456-462..
Iniciando suas ações apenas 20 anos depois do fim da Guerra do Paraguai, Rondon
teve trajetória militar e política marcada pelas trágicas lembranças do episódio e por
desafios para o futuro das nações envolvidas. Desse modo, sua atuação militar não era
voltada para fazer a guerra, mas, sim, organizar a sociedade em tempos de paz. Apeli-
dos como “Marechal da Paz” e “Marechal Humanista”, aplicados a Rondon, explicam-
se pela opção que ele fez, dentro daquela situação histórica, de definir a presença das
Forças Armadas numa sociedade nacional, não pelo poder da violência das armas, mas
por ações integradoras das populações e do território.
Ligado aos estudos e ao trabalho desde jovem, Rondon sentia em sua própria vida
que as obrigações tomavam mais tempo do que o lazer, como ele próprio recorda: “Ali-
ás, não tinha eu muito tempo para brincar. Quando não estava agarrado aos livros, ia
ajudar o tio na venda – venda de roça, onde de tudo se vendia, inclusive peixe frito que,
com farinha, constituía a alimentação dos trabalhadores.” (Esther de Viveiros. Rondon
conta sua vida)
A presença de Rondon envolve episódios marcantes na História do Brasil, dos quais
participou diretamente. A começar pela Proclamação da República, na qual o jovem ca-
dete da Escola Militar, aos 24 anos, teve um papel estratégico, envolvido na conspiração
que derrubou a Monarquia. Na madrugada de 15 de novembro de 1889, ele recebeu de
seu professor Benjamin Constant de Magalhães a tarefa de levar uma carta ao ministro
da Marinha, almirante Wandenkolk. Rondon partiu a cavalo, em disparada, para cumprir
a missão. Ao inteirar-se das movimentações do Exército, o almirante tomou iniciativas
para mobilizar a Marinha e, horas depois, era anunciado o fim da Monarquia no Brasil.
Rondon integrou a guarda pessoal de Constant naquele dia e participou da prisão dos
ministros do governo deposto de D. Pedro II. O nascimento da República marcou, as-
66 sim, a entrada de Rondon na vida pública.
Mas, se nesse episódio inaugural o jovem Rondon aceitou, ainda que sob o comando
de seus professores e oficiais superiores, quebrar a hierarquia e a legalidade existentes
para instaurar uma nova ordem política, que também se basearia em outras leis e na
hierarquia, o mesmo não se daria em ocasiões seguintes. Durante oito meses (de outu-
bro de 1924 a junho do ano seguinte), Rondon foi designado para combater os rebeldes
da Coluna Prestes, que acabara de deflagrar um movimento armado de oposição. Mes-
mo dizendo-se constrangido por aceitar uma missão de guerra, e não de paz, Rondon
enfrentou e cercou os revolucionários no Paraná, levando-os a se deslocarem para Mato
Grosso – onde também articulou o mesmo cerco político e militar aos combatentes li-
derados por Luiz Carlos Prestes. Com a saída dos revoltosos de sua área de atuação,
Rondon encerrou sua participação no episódio. A Coluna Prestes foi um movimento
contra as oligarquias dominantes na política da Primeira República e contra a corrupção
política: seus integrantes percorreram, entre idas e vindas, cerca de 33 mil quilômetros
pelo interior do Brasil, sendo considerada a maior marcha política da história mundial.
A marca fundamental que definiu todas as bases da atuação de Rondon foi sua ade-
são ao Positivismo, sob influência de seu mestre Benjamin Constant de Magalhães, con-
siderado o principal propagador dessas ideias no País. O lema “Ordem e Progresso”,
incorporado à Bandeira do Brasil veio do Positivismo, embora tal doutrina não se tenha
tornado a ideologia oficial com a Proclamação da República. Foi por meio da ação in-
digenista de Rondon que o Positivismo deixou sua principal marca no Estado Nacional
brasileiro.
69
1956-1961
O governo de Juscelino Kubitschek distinguiu-se pelo
Plano de Metas, destinado a desenvolver seis setores
estratégicos (energia, transportes, alimentação, indústria
básica, educação e a construção da nova capital federal).
| Arquivo Histórico do Museu da República
1930-1934
1934-1937 Entre 1930 e 1945, Getúlio Vargas foi chefe do segundo
1926-1930
O governo de Washington Luiz foi recebido com grande
otimismo, embora tivesse recusado anistia aos revolto-
sos de 1922 e de 1924.
A Revolução de 1930 pôs fim ao seu governo e à deno-
minada Primeira República.
| Arquivo Histórico do Museu da República
1919-1922
O governo de Epitácio Pessoa caracterizou-se pela ins-
tabilidade política. A nomeação de civis para as Pastas
militares provocou a reação de setores do Exército,
exemplificada pelo movimento tenentista.
| Arquivo Histórico do Museu da República
1909-1910
Durante o governo Nilo Peçanha, foi concedido grande
impulso ao ensino técnico-profissional, reorganizado o
Ministério da Agricultura e criado o Serviço de Proteção
ao Índio.
| Arquivo Histórico do Museu da República
1906-1909
O governo de Afonso Pena caracterizou-se pelos
esforços de colonização e saneamento do interior do
País, tendo à frente o Marechal Rondon, pela expansão
da malha ferroviária e pela pesquisa e exploração de
recursos minerais.
70 | Arquivo Histórico do Museu da República
NA PONTA DA LÍNGUA... Positivismo.
Doutrina criada pelo filósofo francês Au-
guste Comte (1798-1857), afirma a fé numa
Religião da Humanidade baseada em princí-
pios científicos e racionais. De tendência
pacifista e evolucionista, criticava o uso
de armas, guerras, rebeliões e revoluções,
afirmando a existência de leis universais e
naturais que levariam as sociedades huma-
nas ao progresso.
“O Amor vem por princípio, a Ordem por base e o Progresso por fim.”
(Lema Positivista)
Fato marcante foi a eleição do prefeito Pedro Garcia (Tariana) e do vice André Baniwa
(Baniwa) em São Gabriel da Cachoeira (AM), em 2008, com 51% (12 mil) dos votos
locais. Esse município tornou-se o primeiro no Brasil a adotar oficialmente três línguas
além do português: Nheengatu, Tukano e Baniwa (v. 2. Os índios no Brasil).
Além disso, São Gabriel da Cachoeira, situado na fronteira com Venezuela e Colôm-
bia, é considerado Área de Segurança Nacional pela Lei Federal 5.449. Na localidade,
estão instaladas duas unidades do Exército brasileiro: a 2.ª Brigada de Infantaria da
Selva e o 5.º Batalhão de Infantaria da Selva, o que demonstra que a presença indígena,
com suas identidades peculiares, é uma garantia para a integridade territorial brasileira,
na medida em que tais terras pertencem à União. Rondon, aliás, considerava os índios
como “vigilantes das fronteiras” nacionais.
72
O índio exercendo o poder de voto
| Lila Sardinha
O trabalho das equipes coordenadas por Cândido Mariano da Silva Rondon gerou
uma nova etapa na relação entre o Estado Nacional brasileiro e as populações indí-
genas. Rondon realizou pessoalmente parte importante desse trabalho e simbolizou,
graças à sua figura marcante, essa atitude que caracterizou uma época, limitada por
determinadas condições históricas. Por um lado, evitava-se o uso da violência armada
contra os índios, ao mesmo tempo em que se denunciavam e combatiam aqueles que
pretendiam exterminá-los e ocupar suas terras, buscando garantir a posse de uma par-
cela dessas áreas aos mesmos indígenas. Por outro lado, pregava-se a incorporação
dessas populações aos costumes ocidentais e ao trabalho produtivo, facilitando, assim,
que considerável porção dos territórios tradicionais fosse incorporada como proprieda-
de privada e que algumas de suas referências culturais fossem desarticuladas – e não
impedindo totalmente que eles sofressem diversas formas de violência, inclusive roubos
e assassinatos. Com um pé em cada mundo, isto é, nas selvas e nos sertões com os
índios e, ao mesmo tempo, nas instituições públicas e científicas e no contato com as
autoridades, Rondon buscava, sob a perspectiva de proteção, intermediar essa relação
tradicionalmente violenta e desvantajosa para os povos indígenas.
73
Darcy Ribeiro, 1995 | Carlos Eduardo/CB/D.A Press
“Marechal da Paz
Marechal do Humanismo
Protetor dos Índios.”
(Darcy Ribeiro, em discurso no enterro do Marechal Rondon, 20 de janeiro de 1958)
76
“Morrer se for preciso, matar nunca.”
(Marechal Cândido Rondon)
Uma das preocupações de Cândido Rondon se reflete nesta afirmação: “Nós que os
fomos procurar no fundo das florestas para pedir-lhes que depusessem o arco vingador,
nós, sim, estamos em dívida para com eles, porque ainda neste momento não lhes de-
mos o apoio da lei que visávamos, com a nossa intervenção, substituísse ao das armas,
para assegurar-lhes a propriedade da terra em que assentam suas malocas e as suas
lavouras, e onde procedem as suas caçadas”.
Desde então, os índios têm adquirido novos direitos, graças às suas próprias mobi-
lizações sociais e políticas e, também, ao apoio de aliados na sociedade brasileira, o
que tem gerado transformações no Estado Nacional. Dois artigos da atual Constituição
Federal brasileira expressam essa tendência:
“São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, cren-
ças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocu-
pam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus
bens.” (Art. 231);
CRONOLOGIA
5 de maio de 1865 Nasce em Mimoso, na Província de Mato Grosso.
1884 Matricula-se na Escola Militar.
1890 Recebe os títulos de Engenheiro Militar e Bacharel em Matemática e
Ciências Físicas e Naturais.
Sítios na Internet:
CONSTITUIÇÃO. Constituições do Brasil, de outros estados brasileiros e países. http://www.presidencia.gov.br/legislacao/cons-
tituicao/
IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. www.ibge.gov.br
ISA. Instituto Socioambiental (Povos Indígenas no Brasil). http://pib.socioambiental.org/pt
ISA. Instituto Socioambiental (Povos Indígenas Mirim) http://pibmirim.socioambiental.org/
Museu do índio. www.museudoindio.org.br
Museu Villa Lobos. www.museuvillalobos.org.br
Muséum national d’Histoire naturelle. www.mnhn.fr
Revista Ciência Hoje das Crianças. http://cienciahoje.uol.com.br/view/418
ISBN 978-85-61467-07-4
9 788561 467074