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Coordenaeto editorial Carla Milano Benclowicz ~ Assistente editorial Martha Assis de Almeida Colaboradores José Roberto Miney (preparagio) Marcia T. Courtouké Menin (revisdo) Oscar A, F. Menin (revisao) Carlos Zanchetta de Oliveira (revisdo) Capa Colagem de Luise Weiss ‘Dados de Cetalogupio na Publoapko (CIP) Internacional (cémare Brealeira do Livre 82, Braet) to 18EN 96-235-0 2. Criangas nas cde 2 BspegoArquitesua) Titulo. I eerie. 5, Planesamenta ure 011806 opp7u.18 Indios para catdlogo sistemtice: Coriangae © cepago urbana : Aepector socials sonoma 71.13 neyumonto urbane + Aspesios alamo PIL 13, or» Plangjamento urban aie Urbaniama PILIS 5. Pianeyamenio urbane ® cnvangas : Asp 713 Mayumi Souza Lima A CIDADE E A CRIANGA 1989 Compreender que espacos so oferecidos as criancas e, por sua vez, co- ‘mo essas criancas percebem, captam e utilizam esses espagos é, para nés, uma necessidade cada vez mais intensa. Os textos que estamos apresentando sdo apenas os esbocos de um futuro ‘quadro de compreensio. Sao antes fragmentos colhidos no tempo, tais como 08 estudos gréficos utilizados na pintura. So observagdes que servem para introduzir a nossa vontade de questio- nar e de lancar o grito sussurrado de protesto pelas criangas das nossas cidades. Sao 0s registros de fatos observados, em diferentes momentos e lugares, sem os cuidados metodolégicos de pesquisa, apesar do grande niimero de criancas envolvidas. Por isso, todas as vezes que utilizamos frases como “a crianga mostrou””, ‘‘as criangas percebiam” etc., — referimo-nos Aquelas criancas especificas com quem mantivemos contato, nao pretendendo generalizacoes indevidas. Outra observacdo necesséria diz respeito ao comportamento autoritério ¢ repressivo detectado na organizagao e uso dos espagos nas escolas piiblicas examinadas. Tal comportamento nao pode ser interpretado como resultado de impulsos individuais que merecam alertas morais, porque ¢ produto do condicionamento que atinge todos os individuos, nesta sociedade baseada na produco ¢ na vinculagao de valores de troca. Nela, a protegio e 0 cuidado que se dispensa aos velhos e as criangas tornam- se, no dizer de E. Mandel, ‘‘mais e mais despersonalizados, andnimos e con- trolados burocraticamente””. Nesta sociedade, criangas e velhos tendem a ser considerados cada vez mais fardos intteis porque nao imediatamente produtivos. Mas seria outro erro justificar esse comportamento como simples deter- minagdo da sociedade contra a qual as pessoas — individual e coletivamente — no pudessem se colocar. Isso seria reforcar a ideologia de dominacao que pretende fazer crer que “‘quase ninguém ¢ capaz de determinar ou controlar suas proprias convicgdes, para ndo dizer seus atos, e todos so titeres mani- pulados por forcas misteriosas”’. Julho de 1988. 12 Espaco e ambiente ou espaco-ambiente Integrado as primeiras sensagdes do ser humano, 0 espaco ¢ o elemento material através do qual a crianga experimenta 0 calor, 0 frio, a luz, a cor, © som e, numa certa medida, a seguranca. nese meio que, ao estender as mos em busca do objeto, ela adquire a nogdo da distancia; é nele que a mae aparece e desaparece, desligada do seu corpo; é ainda nele que a crianga exercita o seu dominio, equilibra-se, caminha e corre.! ‘Nao ha espago vazio, nem de matéria nem de significado; nem hé espaco imu- tavel. Nada é mais dinamico do que o espaco por que ele vai sendo construido e destruido, permanentemente, seja pelo homem, seja pelas forcas da natureza, Também nada existe nem se articula fora dele. Justamente porque nin- ‘guém escapa A inevicabilidade de viver e de se relacionar com pessoas e obje- tos num espaco material e concreto, carregado de significado, é que 0 espago se mascara na rotina familiar e passa desapercebido da maioria das pessoas. E num espago fisico que a crianga estabelece a relacdo com o mundo ¢ ‘com as pessoas; ¢ ao fazé-lo esse espaco material se qualifica. Ela deixa de ser apenas um material construido ou organizado para se embeber da atmos- fera que as relacdes ajudam a estabelecer. Por isso, 0 espago em que se vive, ou 0 espaco que a meméria preserva, funde em si tanto o calor do ambiente e a cor das paredes quanto a alegria € a seguranca que nele se sente. espaco material é, pois, um pano de fundo, a moldura, sobre o qual as sensagdes se revelam ¢ produzem marcas profundas que permanecem, mes- mo quando as pessoas deixam de ser criangas. E através dessa qualificagdo que 0 espago fisico adquire nova condicao: a de ambiente. 1, Piaget mostra que numa cranga muito jovem o procesto cognitive depende basicamente da percepgto para, graatvamene, cingular a caaciade de elaboraretuturas mental que peta pens A respeto de aspectos meis complexes, como tempo, espaco e causalidade. Adguire primeio aca ‘dade de situar seu proprio corpo no espago, para Sepoiscolocar-se no higar do outro. 13 Paréce-nos importante insistir em que espaco, entendido apenas enquan- to clemento neutro organizado ou construido por pecas ou componentes ma- teriais, é um ente que, apesar da sua concretude, paradoxalmente sé existe na abstracdo, quando ele passa a ser ou um objeto-mercadoria ou um objeto- estudo. Em qualquer outra situacao, 0 espaco organizado ou construido é mediado, qualificado, completado ou alterado pela relacao que nele estabe- lece 0 individuo consigo préprio ou com outros individuos. espaco, portanto, existe sempre conjugado a um ambiente, assim co- mo 0 ambiente nao existe sem estar ligado a um espaco. Contudo nao é uma relagio linear ¢ biunivoca: um mesmo espaco pode resultar em ambientes di- ferentes, assim como ambientes similares nao significam espacos iguais. O ambiente significa a fustio da atmosfera, e se define na relagdo que os homens estabelecem entre si, ou do homem consigo mesmo, com o espaco construido ou organizado. ‘As casas, os caminhos, as cidades so espacos da crianea que transcen- dem as suas dimensdes fisicas e se transformam nos entes ¢ locais de alegria, de medo, de seguranca, de curiosidade, de descoberta. Em Bachelard, esse componente subjetivo do espaco se amplia: “Come- anna casa, enquanto recinto habitado, ¢ abraca o universo, através da prote- a0, amparo e calor humano que ela é capaz. de transmitir, ‘contra os pode- res hostis’. E ele, o espaco da casa, que ‘mantém o homem erguido através de todas as tempestades do oéu eda vida’ e acima de tudo ‘Ihe permite entregar- ~ se aos sonhos da fantasia’ ”.? Mas 0 espaco néo € apenas o lugar da imaginagao poética: ele é também fruto de conhecimentos objetivos, lugar de relagdes vitais e sociais concretas, ¢ determinado por elementos materiais que modificam a sua natureza € qualidade, espaco tem a dimenso do préprio homem e por isso ninguém que te- nha lido Dostoievski deixara de se lembrar das cenas do interior das casas russas do século XIX, onde as sombras se confundem com o pensamento e © corpo das pessoas. Nelas esto sempre presentes a luz que transmite inse- guranga e frieza interna, mesmo que ela venha dos raios do sol, iluminando a imagem de alguém ou de algum objeto, numa sala igualmente fria. Algumas das cenas mais dramaticas dos romances de Dostoievski passam-se nesse tipo de espaco-ambiente, reproduzindo fragmentos e cenas da casa e da infancia do autor. 2. BACHELARD, F., La Poétea del Espacio, Madrid, Blume, 1984, 4 Através da fala de Aliocha Karamazov, sente-se a atmosfera reinante na casa: “Uma tarde, uma silenciosa tarde de verdo, uma janela aberta. Os ja esvaidos raios do por-do-sol, uma imagem ao canto da sala, com uma lam- parina junto dela |...]. Minha mde, ajoelhada, rezava, chorando"’.3 E sob a mesma luz trémula da vela de sebo que Raskolnikov vé 0 rosto sinistro da senhora Marmeladov pela primeira vez, na sala abafada e de pa- redes timidas, o mesmo local onde se daria 0 assassinato de Crime e Castigo 0u 0 suicidio de Kirilov, em Os Possessos, Repetidamente, voltava a reconstruir, em suas obras, os mesmos espagos- ambientes presentes na sua vida familiar, junto do pai tiranico e alcodlico, da mae dominada, exageradamente sensivel, e dos irmaos e criados. O espaco-ambiente do escritor € 0 anexo do Hospital Marinsky, com seu longo e escuro corredor pintado de pardo, cujo trecho final, sem janelas ou aberturas, fora transformado em aposento de Dostoievski e seu irmao até 0s treze anos; é a sala dividida por tabiques separando ainda a passagem € © quarto dos pais.t Nao sera também através da descri¢do do espaco que se percebe a calma que se introduz na casa de Pavel, apés a morte do pai, em A Mae, de Gorki? E aparentemente uma descricdo meramente fisica, mas carregada de vida € de particularidade das pessoas que nela vivem. Diz Gorki: “A habitacdo ficava situada no final da rua principal, perto de uma calgada curta, mas ingreme, que termina num charco. Um terco da casa era ocupado rela cozinha ¢ por um quartinho, separado por um tapa- mento improvisadc, onde dormia a mae. O resto era uma sala quadrada to- da branca, com duas janelas; a um canto, a cama de Pavel, no outro, uma mesa e dois bancos, Algumas cadeiras, uma cémoda, com um mintisculo pelho em cima, um relgio na parede e dois icones num canto. Era tudo” Se estendermosa vista para outras dreas, a marca do espaco-ambiente es- 14 presente em varias passagens da autobiografia de F. L. Wright, que des- creve a amplidao dos campos nevados por onde cortia quando crianca, leva- do pelo tio John até a tinta metalizada que cobria os painéis do Palacio de Exposi¢dio do Centendrio de Filadélfia.® Marie Jaoul, er entrevista a Francois Barre, em 1973, define a casa de 3. DOSTOIEVSKI, Floder, Os Jrmdos Karamazov, Rio de Janeiro, Ediouro, 1982. 4. MAGARSHACK, Davd, Dostoievski, Lisboa, Aster, s. d. 5. GORKI, Maximo, A’ Mae, Lisboa, Europa América, sd 5: WRIGHT, Frank’T., Jo e Parchitertura, vol. 1, Mondadori, 1985, 15 sua infncia, projetada por Le Corbusier: “Essa casa, sempre a achei muito triste, muito bela, bela ¢ triste como um museu. E a casa feita pela lei. O lugar de cada coisa estava pré-designado, antes mesmo da sua existéncia. O mesmo acontecia com o lugar das pessoas. Nela, era dificil de ser alguém com la. Nos, lé, moramos como esculturas”.” ‘Como as criancas que vivem nas cidades do Estado de Sao Paulo perce- bem esse objetivo-subjetivo do espaco? Entre 1968 ¢ 1976, acompanhamos o crescimento de 27 criangas, mora- doras em apartamentos da zona sul da cidade. Bram criancas que estavam, em 1968, na faixa de 3 a 5 anos ¢ costumavam brincar nos patios dos prédios ¢/ou no Clube Pinheiros. As primeiras anotagdes nos revelaram que elas jé tinham idéia qualitativa, de velocidade, distdncia e tempo. Isso ficou evidente nas respostas & pergunta: ““Vocé no tem medo de correr tanto na calgada e nao conseguir parar na esquina?”” As respostas sempre faziam referéncia a, no minimo, dois dos trés ele- mentos: * “Eu vou dando uma brecada, quando estou chegando mais perto da esquina.”” ‘+ ‘Ah! mas eu nfo corro até a esquina; eu paro antes.” + “Dé tempo de frear antes da esquina.”” Somente duas entre elas, uma de 4 ¢ outra de 5 anos, envolveram na res- posta a questo da vontade pessoal e 0 controle sobre um objeto, com o qual, no momento, elas se identificavam: ‘* ““Eu faco parar, porque 0 meu carro é bom." * “O motor é bom e me obedece; ele para quando eu mando.” Ainda dentro desse mesmo conjunto de percepedo do espaco, as criancas citadas mostraram também a capacidade de perceber a distancia relativa de carros na rua, durante o dia. As perguntas: “Onde serd que aquele carro est4?”; ‘Sera que da tempo de atravessarmos?””, receberam respostas do tipo: ‘+ “Ele est longe e esté andando devagar; da tempo, sim." + “Ele vai demorar para chegar.””. * “Nao vai dar; ele ja esta ai.”” erro de precisao era sempre para mais, isto é, as criancas tendiam a 7. JAOUL, Marie, em entrevista a Frangois Bare, “La Maison Jaoul", in Architecture d’Aujourd hui, 208, 16 aumentar a velocidade dos carros ou diminuir a distancia, mais do que Ihe permitiria cruzar a rua, mas sempre relacionando a sua velocidade de cami- nhar e a velocidade de chegada do carro. Jé a noite, essa nogao pareceu diluida, pois a percepedo de fardis era sempre seguida da resposta negativa & possibilidade de atravessar a rua. Sea nocao de distancia, tempo e velocidade tende a ser mais afinada com © crescimento etdrio e com a visibilidade, é a experiéncia de cada crianca, no viver urbano, que pode alteré-la. De fato, criancas moradoras em bairros com alta densidade de carros apre- sentaram preciso muito maior do que outras criancas maiores, moradoras ‘em bairros menos densos. Estas tendiam a avancar ou a aguardar sem uma relacdo real da distancia em que se encontravam os carros. Interessante foi acompanhar a evolugdo de trés grupos de irméos, cada um com diferenca de um ano e meio a dois anos. © acompanhamento teve inicio quando estavam na faixa de 3 a S anos ¢ durou até completarem 9 ¢ 11 anos. Da nogao de distdncia, velocidade e tempo, primeiro das préprias pernas e depois dos carros, chegaram a prever 0 tempo que uma bola levaria para cair do 1° andar ao térreo ou imaginar 0 que acontecia se a mesma bola fosse largada no 5° ou no 112 andar. No entanto, mesmo as criancas que jd freqtientaram 0 4° ¢ 5° anos escolares ndo conseguiram ligar a distancia dada pela duragdo ou pela dimensao comparativa (“igual ao da casa do meu avi"; “é como daqui ao jornaleiro”’) aos padrdes métricos. Jé quando um grupo de criancas, na mesma faixa etéria, teve a oportuni- dade de brincar em espacos com dimensGes métricas visualmente explicita- das, essa ligacdo foi feita naturalmente. Essa constatacao péde ser feita com as criangas de uma classe do 12 ano, em uma escola cujo patio de recreio tinha desenhado uma trena gigante, nos sentidos horizontal e vertical, que servia de guia para jogos de saltar, de medir etc.’ 8. Referimo-nos & Escola Martin Luther King, das muitas que existem nos EUA com esse nome; esta, em particular, situa-se em Atlanta e destna-se a criangasnegras da dea central. O préio, um antigo «asardo adaptado, tem um galpfo de reereio onde essa trena est pintada, Ela brincam nesse local, Utlizando a trena como euis, As eriangas, com idade entre Se 10 anos, mostraram, no contato que ‘mantivemos, o perfeto dominio da dimensto e da medida, sendo capazes de telacionar distancias ‘medidas, horizontas e verticals, com facildade. Consultados os trés profesores responséveis pelos trupos de alunos, eles no indicaram nenhum tratamento especial sobre oassunto em classe, Também ‘concordaram que, em outrasescolas, as eriangasnéo tém essa mesma faclidade de relacionar distan- ‘ase medidas, considerando que, possivelmente, na Martin Luther King, as brincaderas permitiam © desenvolvimento dessa percepao em particular 18 As criangas com 6 ou 7 anos eram capazes de desenhar o apartamento em que moravam a partir da planta baixa, embora quase todas apresentas- sem, também, duas das paredes no mesmo plano da planta, isto é, rebatidas. Duas das criangas, cuja experiéncia familiar oferecia outros cédigos de Tepresentacdo, apresentaram cortes e elevacdes, embora sem qualquer iden- tidade com as proporgdes ou elementos reais. Sacadas com jardineiras ine- xistentes no apartamento foram acrescentadas por essas criangas, através de representacdes graficas muito proximas das utilizadas pelos pais arquitetos. fato de aparecerem plantas e elevagdes em jornais, revistas ou em tele- visdo marcou pouco a priitica de representaco grafica das criangas em geral. Elas continuavam a representar a sua casa, geralmente, como um apartamento em planta ¢ as paredes correspondendo as de casas térreas ou assobradadas comuns. Uma das criangas apresentou 0 desenho de um prédio composto de cinco casas, uma sobre a outra, cada uma com a sua cobertura. Mesmo 0s apartamentos exatamente iguais foram representados segundo a percep¢4o ea importancia reletiva que cada crianca dava aos ambientes. Assim, crian- ¢as moradoras em um mesmo prédio representaram apartamentos diversos, {anto no tamanho quanto no niimero de aposentos, mostrando que 0 espaco existe para elas na medida das suas ligagdes afetivas. © quarto da empregada, por exemplo, era geralmente pouco detalhado ‘ou mesmo esquecido. Enquanto para algumas a sala ocupava a maior parte da planta, para outras era o seu proprio quarto o ambiente maior e mais bem representado. Essa mesma experiéncia, realizada em 1978, com duas populagées infan- tis diversas, com idade entre 7 € 10 anos, também revelou a tendéncia notada nas criancas dos apartamentos da zona sul. Os espacos que se relacionam com experiéncias geralmente positivas das criangas sdo superdimensionados, ocupando um lugar importante na folha do desenho. Uma das criangas dos Campos Eliseos, bairro deteriorado do centro de ‘Sao Paulo, desenhou a escada fora da planta do apartamento, embora ela estivesse no seu interior, descrevendo-a como um lugar muito gostoso de brin- car. Sua érea de jogar bola, de brincar com carrinho e com o irmao menor era debaixo da escada. A importéncia dada a esse espaco no desenho falava do espaco-ambiente, caloroso, alegre, iluminado e amplo, contrastando com © espaco fisico acanhado, escuro e estreito da realidade. 454 as casas deserhadas pelas criangas da Granja Vianna, um dos intime- ros bairros formades pelos chamados “‘loteamentos ecol6gicos”” da Grande 19 (O meu apartamento, Cétia, 8 anos, 1975 cozinna sea senvigo me. A planta do apartament “Oprédioem quemoro”: Pinheiros. Paulo 6 anos; 1967 (ee ae et \eee -fi4 Granja Vianna, Fabio, 11 anos, 1978 Granja Vianna, Silvio, 1 anos, 1978 24 Granja Vianna. Stephan, 11 anos, 1984 Sao Paulo, apontaram para o grau de informacdo que essa populacdo infan- til atingira, no que se refere & representacdo codificada dos edificios. Quase sem excegéio desenharam plantas com razoavel aproximagéo na composigao € proporcao dos ambientes, freqtientemente completando-os com dados nu- méricos ou escritos que identificavam os aposentos ‘Nessas plantas apareciam também os espagos complementares & casa, co- mo a piscina, a churrasqueira, a cocheira ¢ 0 quarto ou a casa dos empregados. Curiosamente, na descrigdo oral sobre as pessoas que “‘viviam junto com a crianga””, os empregados nao apareciam ou apareciam apés insisténcia na pergunta. ‘A resposta sobre essa auséncia subentendia a relacdo social de desigual- dade “‘patréo x empregado”’: “Ela mora, mas nao vive com a gente"; “Ela no vive com a gente; ela trabalha na casa’. ‘A ordem em que as pessoas aparecem também sugere alguma interpreta- a0. Todas as criancas do bairro dos Campos Eliseos ¢ da Granja Vianna ¢, mais tarde, em 1984, do Jardim Ikeda, em Suzano, ¢ do Capao do Embira (zona leste) seguiram a mesma ordenagao: “Eu, minha mae, meu pai (quan- do ele é figura presente na familia), meus irmaos, os parentes (avés ¢ tios, por exemplo) ¢ os bichos” (cavalos, gatos, cachorros, papagaios, tartarugas até macacos). Quase sempre a localizacao dos bichos nos desenhos ¢ mais precisa, indicando possivelmente maior atengao. Nos bairros populares centrais e em cidades do interior, talvez pela escas- sez de espaco e por ele ser dividido por muitos, ninguém foi esquecido. To- dos os moradores comparecem, complementando a lista dos parentes com ‘outras pessoas que eventualmente sublocam a casa: ‘“Trés mogas que moram com a gente”; ‘“O marido da minha prima”; ‘*O irmao da minha avo”. Nos bairros centrais, diminufa a freqiiéncia em que os avés compareciam na lista dos moradores da mesma casa, aumentando a de estranhos, referi- dos como moga, senhor, dona. De qualquer maneira, numa composigao gré- fica de ocupagao de espacos, essas pessoas sdo todas lembradas. ‘Comparar o desenho das casas ou dos apartamentos, isto é, dos espacos- moradias, com o de espaco-bairro ou cidade, revela outro aspecto que des- perta curiosidade. ‘A mesma crianga que desenhou o seu prédio, composto de casas sobre- postas, representou o seu bairro através da silhueta nao de casas, mas de pr dios. O bairro ndo apresenta caminhos e o quadro é uma vista da rua, colo- cada no plano bidimensional. 28 Talvez se possa entender pelo desenho que, para aquela crianca, moradia era a casa no sentido dado por Bachelard, enquanto o mesmo prédio, como parte da cidade, passava a ser um objeto concreto que se antepunha a visio. Interessante notar ainda duas particularidades na percepcdo do espaco da moradi: primeira ¢ a constancia com que o espaco ideal da moradia apa- rece como “‘casa”, com flores e arvores, independente das condigdes reais de habitacdo da crianca entrevistada; a segunda é o condicionamento sobre ‘© mimero de ambientes ou da organizacao dos ambientes que a experiéncia real de moradia da crianga traz. Nos desenhos das criancas pequenas que mo- ravam em corticos ou em kitchenettes, uma ‘‘casa maior’ era somente um desenho maior de um tinico ambiente, semelhante ao de suas habitag6es. Ja as criancas da zona rural (Paulinea, Itapeva e Parelheiros) desenha- vam 0 bairro cheio ce caminhos que ligam uma casa a outra. A descrigao do bairro é uma sucessao de fatos e elementos constantes dos caminhos: ‘A. casa da dona Cida, aquela azul, que fica no fim da rua do eucalipto”’; “O meu bairro chega até a biquinha, perto da pedra grande que a gente vé lé de cima do caminho para a casa do Aleméo”’; “‘Tem aquele pedaco de rua que o caminhio do seu Zé afundou e que 0 Jodo teve de puxar de trator ¢ vai indo pela cerca até chegar na porteira do sitio da cachoeira””. O espago, enquanto distancia, tem relacdo direta com 0 cansaco ou antes com a frustra¢ao ou o desprazer da viagem. Uma crianca de 9 anos, de Gua- ratingueta, fez o percurso do sitio onde morava até a cidade, distante 4 km, em companhia do pai, para comprar um vestido e uma boneca. Ao chegar cidade, perguntada sobre a distancia, a sua resposta foi bastante curta: “Logo af, um tempinho s6”. Lamentavelmente, ja a tarde, o pai nao pudera comprar a boneca por ser muito cara, Feito 0 comentario da distdncia de volta a percorrer, a mesma crianga disse-nos que ‘Minha casa ¢ muito, muito longe; nado da nem pra imaginar’’. Essa crianga tinha o habito de fazer 0 mesmo percurso todos os domin- ‘208, de modo que a distancia para ela era suficientemente conhecida para dar uma resposta mais préxima do real, seja na primeira, seja na segunda vez. ‘Outras criancas, de Suzano, deram-nos uma idéia mais clara da relagao entre proximidade/tempo/prazer: entre 0 micleo do Jardim Ikeda e a escola rural que freqiientavam, em 1983, havia uma distancia de 3 km, margeando a ferrovia e um acude. Atingia-se a escola através de dois caminhos alternati- ‘vos, um passando por um riacho, utilizado na época das chuvas, que dificul- 29 tava 0 caminho junto ao acude; outro, mais curto, que aproveitava o recuo das aguas do acude no perfodo das secas. © grupo de criancas consultadas preferia unanimemente o caminho do riacho. Explicavam: “E muito mais curto, tia: a gente vai brincando no cér- rego, jogando dgua e pedra e chega Id na escola num instantinho; o caminho do-agude é longe e nao tem graca, porque é perigoso; a gente nao pode brin- car na gua porque j4 morreu crianga afogada”’, A diferenca entre os dois caminhos era de cerca de 800 metros, o suficien- te para fazer sentido a escolha do mais curto. As observacdes sugerem, portanto, que 0 espago fisico isolado do am- biente sé existe na cabeca dos adultos para medi-lo, para vendé-lo, para guardé- lo. Para a crianca existe 0 espaco-alegria, o espaco-medo, 0 espaco-protecdo, © espaco-mistério, 0 espaco-descoberta, enfim, os espacos da liberdade ou da opressao. 30 Espaco e poder “‘Geracdo apés geraco e desde sempre’, diz Mendel, “‘os adultos se en- carregam de projetar a sombra da sociedade sobre o desenvolver da infancia, agregando a culpabilidade inevitavel da crianga em crescimento a supercul- pabilidade social.’”! © esquema adotado é, pois, de: ‘*Seja obediente. Isto nao Ihe diz respeito porque é coisa dos mais velhos. Se vocé for desobedien- te, nds 0 puniremos” ou “nés deixaremos de amé-lo”. A negacdo do conflito também esi presente no cotidiano das criancas, na valorizagao da harmonia familiar, mesmo quando ela nao pode existir. Ou ainda pela propria idéia de que a existéncia de conflitos — esta sim natu- ral — significa uma desarmonia familiar. Dai sua ocultacao ¢ manipulacdo, cada vez mais dificil para os préprios adultos, em face do progressivo des- condicionamento dos homens com relacao a autoridade construida em cima de mitos, deuses, chefes ou dos mais velhos. Quanto mais nos afastamos no tempo, o dominio dos mais velhos sobre a vontade dos novos é mais evidente. Recorrendo novamente ao exemplo da infancia de Dostoievski, conta seu irmao Andrei: “Os meus irmaos nao ou- savam sentar-se nem sequer encostar-se 4 mesa. Permaneciam de pé, como estatuas, declinando (as palavras latinas), um de cada vez. Os meus irmaos aterrorizavam-se com aquelas ligdes, realizadas a noite, porque o pai — afi- nal em virtude do todo 0 amor que nos devotava — era extremamente severo ¢ impaciente. Ao menor erro, enfurecia-se, descontrolava-se comegava a berrar, chamando os meus irmaos de preguicosos, vadios e estipidos. Pior ainda: em algumas ocasides, chegava a abandonar a sala sem acabar a lico, (© que era considerado por todos como o castigo mais grave””.? ‘O relato chama nossa aten¢do nao apenas sobre o uso do terror conjuga- do ao desamparo, mas também como ambos se completam no condiciona- 1. MENDEL, Gerard, La Descolonizacién del Ni, Barcelona, Arie, 1974 2. MAGARSCHACK, David, Dasioievsti, Lisboa, Aster, 1957, 31

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