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Outros titalos da série: 0 QUEE SER ASTRONOMO ‘Mentonias Paomssionals 0 RONALDO MOURAO ADEFOIMENTO JORGE CALE © QUEESER DENTISTA eons Promsicnats oe GUALBERTO NOGUEIRA FILHO Bx DePONUEATO AGUSTINA RAMALHO © QUE £ SER DIRETOR DE CINEMA, ‘Meyonuas paonssionas De CACA DIEGUES EM DEPOMMENTO A ARUASILVIA CAMARGO © QUE £ SER FONOAUDIOLOGA ‘Meyonuas pnonssionats be GLORINHA BEUTTENMOLLER NC DEPOMAENTO AALEUDRE RAFOED 0 QUE E SER MAESTRO ‘Meoruas pnorissionwss br ISAAC KARABTCHEVSKY EM DEFOMMENTO AFATIMAVALENGA © QUEE SER MEDICO owéru4s rronssions o& PAULO NIEMEYER FILHO 6 QUE SER” ARQUITETO Memérias profissionais de Lelé (Joao Filqueiras Lima) emdepoimentoa Cynara Menezes ses EDITORA RECORD RIO DE JANEIRO * SAO PAULO 2004 CIP-Brsil Cotalogagto-na-fonte Sindicato Nacional dos Eeditorer de Livros, RJ. Lim, Joto Figure, 1933- Leste 6 gue & er anfuitetor memésan profisionas de 1é (oto Filgucins Lima); em depoimento Cynara Menezes. ~ Rio de Jancire: Record 2004 =O que é se) Inca bibliogratia. ISBN 8S01-06760-4 1, Lima, Joto Fgucias, 1933-2. Asquitetor ~ Breil = Biografia’3. Arquitetura. I, Menezes, Cynara. IL. Tito, HL Série. 03.0895 cpp -9272 (CDU—92911MA, JR Copyright © Jodo Filgueisas Lima e Cynara Menezes, 2004 (Capa: Marcexo Martinez, Projeto grifico: Porro + Mawawez, Direitos exclusivos desta edi¢fo reservados pela DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIGOS DE IMPRENSA SA. Rua Argentina 171 —Rio de Janeiro, RJ ~ 20921-380 — Tel: (21) 2585-2000 imprenono Bad = ISBN 85.01.06760-1 AN PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Sr Caixa Postal 23.052 = Rio de Janeico, RJ ~ 20922970 SUMARIO Apresentacio Parte 1— Profissiio: arquiteto Uma tritha de coincidéncias Entre o acordedo e a prancheta O aluno suburbano Afinidades Arte e técnica Arquitetura Bossa-Nova Océude Brasilia Buracos no caminho Osonho earealidade No prinefpio, eraa madeira Aopgio pelo cerrado Beleza também é fungi De Praga a Abadiania Por dentro da argamassa Com as préprias pernas Aluz do sol ¢ 0 ventinho agradavel O arquiteto inventor Maquiagem digital ‘Uma aventura ambiciosa Utopias frustragdes Asolugio Sarah Nem tudo sai do papel Digerindc as influéncias Da ocaa espagonave Maosa obra 5 © QUE & SER ARQUITETO a 16 20 23 30 32 36 40 43 45, 47 5st 59 66 a w@ 719 85 89 o 94 99 Comunista, sim. Ateu, também Nasalade aula Parte 2 — Questiio de ética Arquitetura para todos O fim da madeira Dr. Jekyll e Mr. Hyde Os valores de cada um Questionando os eédigos Os limites da ética Atentacao da incoeréncia Lista de obras Bibliografia Sites recomendados Instituigses de ensino 6 LELE (yoko Fitcuginas Lima) SS 104, 107 13 4, 8 123 125 327 129 133 137 139 143 APRESENTACAO Ouvi falar pela primeira vez de Joo Filgueiras Lima, o Lelé, em 19£6. Estava entao no inicio de minha atividade profissional como jornalista, ¢ cu acompanhava com curiosidade o projeto de Tecuperagio do centro hist6rico de Salvador, do qual ele partici- pava em colaboracao com Lina Bo Bardi. Infelizmente—vicissi- tudes de trabalhar com a politica, que Lelé conhece tio bem —, as idéias inovadoras que a dupla havia bolado acabaram sendo pos- tas de lado pelos sucessores. Nessa época também comecavam a aparecer as primeiras Passarelas coloridas para pedestres e 0 moderno prédio da pre- feitura da capital baiana, estruturas que sempre me fascinaram pelo inusitado de serem, como um Lego gigante, pecas que se encaixavam, que podiam ser montadase desmontadas. Em qual- quer lugar se poderiam fazer escolas, postos de satide, parques, equipamentos comunitarios. Era a "fébrica de cidades” com a qual Lelé sonhara e cujo fim 0 desapontou tanto. Conhecé-lo pessoalmente agora foi um prazer. Vi com satis- fagdo que, pelo menos nos hospitais da rede Sarah, ele pode con- cretizar seus ideais arquitetOnicos: muita luze ventilacio naturais, num pais tropical onde ambas sobram, e espagos mais humanos Para os pacientes, sem descuidar da beleza dos prédios. Dificil mesmo ¢discordar dele. Quem ira se opor, por exemplo, a sua de- fesa da redugio do uso da madeira, jé tao escassa? Como Lelé di- ria: €légivo. Gragas a feitura do livro, tive a oportunidade de entender melhor 0 processo de industrializagao da construgio, opgiio que, Para os dias de hoje, me parece das mais racionais. A argamas~ sa armada, tOnica de seu trabalho, foi destrinchada para que uma leiga como eu pudesse compreender como funciona e en- 1 © QUE E sER ARQUITETO xergar as intimeras vantagens da sua utilizagdo na arquitetura publica. Lelé ainda me apresentou a dois génios da arquitetura nér- dica, o finlandés Alvar Aalto e o dinamarqués Arne Jacobsen, influéncias fortes no seu trabalho —como eles, o arquiteto bra- sileiro é adepto da idéia de que os equipamentos devem se adap- tar aos edificios, endo o contrario. Concepgao que aplicana rede Sarah, onde é um pouco inventor: criou a maior parte dos equi- pamentos hospitalares, muitos deles extremamente sofisticados, € até objetos simples, como ventiladores. O que me deixou mais feliz no contato com Lelé, porém, foi sua simpatia. O arquiteto que quase se tornou misico mostrou- secapazde falar de assuntos téenicos de uma forma tio leve quan- to 08 projetos que executa, transformando nossas manhis de entrevista em Salvador, onde vive, em momentos pelos quais eu esperava ansiosamente, apesar de ser verao ea praia, uma tenta- 4014 fora. 6 nao concordo quando diz que sua vida profissional—no- vamente por causa da politica — 6 mareada por fracassos, ainda que seja reconhecido internacionalmente como um dos maiores arquitetos brasileiros: recebeu o Grande Prémio Latino-Ameri- cano de Arquitetura (99 Bienal Internacional de Arquitetura em Buenos Aires, 2001) ¢ foi premiado pelo conjunto da obra pela 3° Bienal Ibero-Americana de Arquiteturae Engenharia (Santia~ g0 do Chile, 2002), entre outras homenagens. Excesso de modés~ tia talvez seja mesmo o maior defeito de Lelé. Cynara Menezes 8 LELE (JoKo FircugrRas Lima) PARTE 1 PROFISSAO ARQUITETO UMA TRILHA DE COINCIDENCIAS Amirha é uma historia profissional das mais peculiares. Pode parecer incrivel, mas nao h nada no inicio da minha biografia indicando que um dia eu ia me tornararquiteto. Na verdade, qua- se cheguei a me tornar muisico. O que houve foram coincidén- cias ao longo dos anos que me ajudarama seguir certos caminhos, a melhorar, por pura casualidade. Por que fui para Brasilia? Por que fiquei amigo de Oscar Niemeyer’? Sao coincidéncias, nao si0 conquistas. Aconteceu comigo como poderiaacontecer com qual- quer outra pessoa. Se no fossem essas coincidéncias, nao teria feito nada do que fiz. Minha vida profissional se deve a uma su- cessao deacasos. Nasei no dia 10 de janeiro de 1932 no Rio de Janeiro, no su- burbio de Central do Brasil chamado Encantado, filho inico de um casal de classe média baixa, Joao e Maria Emilia, Nossa casa simples, de dois cémodos 86, volta e meia acomodaya outros membro da familia. Durante parte da infancia tive de dividir 0 quarto com minha avé materna, Maria Eugénia, ou com as duas filhas de uma tia que havia falecido de repente. E ainda havia um primo que ficava lé de vez em quando. Apesar disso, no considero que fossemos pobres. Tanto que tinbamos piano em casa. Alids, a tinica coisa que havia era o piano... Papai tinha sido nmisico profissionale herdado da mae o piano, que reluzia no meio de nossa sala, onde s6 existia, além dele, um sofa —lembro de ficar deitado vendo papai tocar, ¢ to- cava muito bem. Antes, para ganhar a vida, tocara piano em ci- nemas, fazendo ao vivo a trilha sonora dos filmes que estavam sendo exibidos. Ainda era a época do cinema mudo. $6 que a pro- ‘Nascido no Rio em 1907. Oscar Niemeyer formou-se em arquitetura em 1934. pela Escola Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro. © QUE — SER ARQUITETO fissdo demisico sempre foi assim, meio duvidosa. Naqueles tem- os, entio, era pior, nio era reconhecida. O miisico profissional vivia de fazer bicos, sempre. Mesmo sendo um bom pianista, papai acabou desistindo da mmisica quando se casoue, como nto tinha formagto, entrou para 08 Correios paraser postalista, uma profisstio que hoje nemexiste mais. O postalista trabalhava com cartas, fazia a sua distribuigao, separando-as para serem encaminhadas s diversas regiées da cidade. Ele se casou muito tarde, depois dos 40 anos, e eu jéo conheci postalista, mas tocava sempre para mim. Mamie era dona-de-casa ¢ cuidava de todos os assuntos relacionados a mi- nha educagiao. Eram ambos pessoas afaveis. Papai era brincalhio, estava sempre alegre. Mamie talvez fosse um pouco mais séria, intro~ vertida, mas também era muito carinhosa. Embora papai fosse uma pessoa muito rigida de cardter, de moral, aeducagdo que cles me deram ndo foi rfgida em excesso. Ele me passou essa questao dorigor, sempre conversava comigo sobre honestidade. Como fui aluno do Colégio Militar em regime semi-interno a partir dos 10 anos, a disciplina veio mais da escola, da coisa militar. Cresci durante o primeiro governo de Getilio Vargas*. Quan- do acabou, depois da guerra, eu ja tinha 13 anos. Ou seja, nasci na ditadurae convivio tempo inteiro comela. Emeupai foi muito simpatico aquela coisa do nacionalismo. Esses valores patristi- cos, 0 Hino Nacional, a bandeira brasileira, eram muito exacer- bados nesse perfodo, e fui impregnado disso. Tinha que ouvir 0 Hino Nacional na escola priméria, eantévamos todo dia. Erauma “Getdlio Dornelles Vargas (1883-1954), natural de Sto Borja (RS), governouo Bra silde 19301937 como chefe de governo provisérioe presidente cleito pelo Com sreseo. Nofinal de seu governo,instaloua ditadurado Estado Novo, que sia duray Site anos. Em.1951 volta ao poder pelas urnas: cleito presidente, fca no cargo ate 1954, quando se suicida com um tiro uo peito, a2 LELE (JoA0 Fincueinas Lima) ee coisameio fascista, mas ser patriota era importante. Até hoje, de vezem quando toco no teclado o Hino Nacional. Houve um perio- do derejeigio ao hino durante o regime militar, todo mundo di- zia que era horrivel. Eu acho bonito. Quando era pequeno, ao ouvir papai tocando, logo fiquei in- teressado. Aos 5 anos de idade, comeceia tocar piano assim, com cle. Pepai tocava de ouvido, nio sabia misica. Quando percebeu que eu tinha vocagto, disse que precisévamos arranjar uma pro- fessora para me dar aulas. Mas ela se comportoude uma maneira muito rude comigo, ¢ eunao quis continuar. Foi logo no primei- to dia: cheguci na casa da professora para aaulaeairma dela me Pediu para tocar alguma coisa. Tinha aprendido umas coisinhas de ouvido que papai me ensinara, entao sentei ao piano e toquel. A professora viu aquilo ¢ disse, muito zangada, que me proibia de tocar de ouvido, que nao podia. Fiquei tio chocado que nunca mais apareci por lé. $6 fui aprender miisica mesmo aos 17 anos, quando jé tocava acordeto em bailes e senti necessidade de es- tudar. Espontancamente, tomeia iniciativa de procuraruma pro- fessora para aprender a tooar por partitura. Mas acho que por causa desse trauma de inféncia nunca pude dominar a leitura de miisica, Vivitoda a fase de formagio no subtirbio. Fui crianga no En- genho Novo, que, como todos os bairros cortados pelas linhas da Central, nfo tinha nada a ver com a Zona Sul. O Rio de Janeiro sempre foi dois, principalmente nesse periodo, quando havia a maior dificuldade de passar de um lado para o outro. Nao havia muitos tineis encurtando os caminhos. Agora é diferente, voce pode morar na Barra da Tijuca que tem a Linha Amarela, facili- ‘Wisexpressa com ag km de extensio que reduziu a menos de meia hora opercur- $9 de automével entre a Barrada Tijuca ea Baixada Fluminense. Ligaa Zova cate Zona Norte da cidade do Rio, 3 © QUE £ SER ARQUITETO tou muito. Antes, no; havia uma diferenga enorme. Isso foi muito marcado para mim: o suburbano de um lado e, do outro, a elite que morava em Botafogo, no Flamengo, em Copacabana. Eu pertencia ao primeiro grupo. Era uma crianga saudavel, bastante alta em comparagao com as outras. Cresci rapidamente e praticava muitos esportes. Tive uma vida eugénica, digamos assim: atlética, ao ar livre. Brincava como um menino tipico do subtizbio, com pido, bolinha de gude. Filhos “inicos normalmente se ressentem muito de terem tido uma vida enclausurada, mas eu nfo fui assim, ndio. Nunca fui tra~ tado como filho nico. Brincava na rua, tinha muitos amigos. Depois do Engenho Novo, fomos para Lins de Vasconcelos, ou- tro subtirbio da Central, ede la, aos 12 anos, para Iha do Gover- nador, onde permanecemos por muito tempo. Jé havia morado na Ilha uma vez, aos dois ou trés anos de idade, quando mamie teve um problema de satide e os médicos haviam recomendado praia para ela. Allha do Governador era o paraiso para mim e meus amigos. Inventavamos de sair para o mar nas condigbes mais precérias: de barco, de balsa, qualquer coisa. Isso gerava uma preocupagio constante nas familias. Houve dias em que no pude voltar por- que fiquei preso pelo mau tempo, lanchas eram convocadas para me procurar. Mamie ficava indignada. Como se nao bastasse, ti- nhamos uma brincadeira terrivel, superperigosa. Na Ihao rele- vo € muito acidentado, entio as praias acabam sempre numa clevagdo. Nés moravamos em uma praia exatamente assim. Cons- truimos um carrinho, ¢ com dois pedagos de madeira improvi- samos um trilho, que besuntévamos com bastante lama para fazer aquilo escorregar de la de cima do morro. Embaixo, para parar a geringonca, faziamos outra elevagdo que obrigavao carrinho a frear. Mas, as vezes, vinhamos com tal -velocidade que nao conseguiamos parar, e o carrinho despenca- Mu LEL# (JoAO FILGUEIRAS LIMA) va lé para haixo da ribanceira. Aquela era outra brincadeira que enlouquecia mamae. Eu nunca quebrei nada, mas um garoto da ‘turma, sim. Numa dessas ocasides, a gente tinha feito um carri nho tio pesado e posto tanta lama no trilho que o carrinho subiu naquela elevagao, voou sobre uma escada que havia embaixo entrou pela janela de uma casa. Meu amigo foi parar na sala de alguém, caido de umaaltura de uns dez metros, ¢ quebroua per- na. De vezem quando acontecia. Quando entrei para o Colégio Militar, em Sao Crist6vao, um semi-internato, passava o dia por lé e s6 voltava para dormir. Isso muda muito a relagio em casa, porque vocé fica o dia in- teiro junto com os amigos — 6 como crianga que fica em creche hoje em dia. Meu apelido vem das peladas que organizavamos no colégio. Eu jogava na mesma posigao de um fdolo do Vasco da Gama nes- sa época, artilheiro do campeonato carioca de 1945, que se cha- mava Lelé*. Fazia parte da brincadeira: cada jogador do time era chamado pelo nome de algum famoso que atuava na mesma po- sigdo. Se fosse goleiro, talvez tivesse me tornado Barbosa, como © goleiro da selegio brasileira de 1950. Como jogava de meia~ direita, ficou Lelé. E pegou. Nessa época, a gente usava um cas- quete, uma espécie de boné que fazia parte do uniforme, e um. amigo escreveu ali: Lelé. Nunca mais consegui me livrar disso. ‘Ninguém me chama pelo nome, é uma coisa terrivel. Nunca es- timulei, mas 0 que vou fazer? E engragado, dizem que o apelido pega quando vocé nio aceita. Pois eu deixava, n4o tinha nenhum problema com isso, e ficou do mesmo jeito. Poucas pessoas me chamam de Joao, inclusive profissionalmente. Quando telefono, digo: “Aqui€ o Lelé.” ‘Manuel Peseinb, o Lelé, foi meia-direita do Vasco entre 1943 © 1948. 5 © QUE £ SER ARQUITETO ENTRE © ACORDEAO E A PRANCHETA F no final da adolescéncia que a arquitetura vai aparecer na minha vida, de forma inteiramente casual, um acidente. As pes- soas, sobretudo da familia, davam muitos palpites sobre meu fu- turo profissional. Diziam que eu tinha de ser médico, advogado, engenheiro, mas nada disso me emocionava. A tmica coisa que me emocionava de verdade era a misica. Tinha essa ligagio com ‘papai, tocava piano com ele, e dai havia passado para o acordedo, um instrumento que estava mais oumenosna moda. Rapidamen- te comegaria a me profissionalizar. Aos 1g anos jé tocava em bailes. O mtisico, porém, eraum tan~ to desprestigiado na época do radio. Como advento da televisio, jé bem no final da década de 1950, € que comega a melhorar um pouco. O radio tornava os miisicos conhecidos, principalmente 08 cantores, mas nao dava dinheiro. O miisico vivia mesmo de tocar em bailes. Havia um lugar no Centro do Rio, perto da Praga Tiradentes, que era o ponto dos mtsicos. A gente chegava li e perguntava: tem algum baile para fazer? Os mtisicos trabalhavam muito assim: iam aos bailes e ganhavam um caché que lhes per- mitia uma sobrevivéncia bem modesta. Nunea cheguei a ser um mnisico famoso, apesar de ter feito muitos bailes. Paralelamente, vivia um impasse: do Colégio Mi- litar os alunos normalmente iam direto para a Escola Militar para ser oficiais, mas eu nao aceitava aquele negécio. Fiz esse cami- nho durante um ano, até chegar 4 conclusio de que tudo aquilo de caserna, de Exército, nto era para mim. Acabei desistindo mesmo, papai concordou, masa familia toda me olhou com des- confianga. Para cles, ter um filho que ia ser militar representava uma seguranga, uma estabilidade financeira garantida. Porisso, a familia inteira ficou ourigada quando sai, como se aquela tivesse 16 LEL# (sOA0 FILGUEIRAS LIMA) sido um: oportunidade desperdicada. Diziam: "Esse da vai para a boémia, como sempre quis.” Meu destino era esse, ninguém acreditava que eu fosse recupersvel. Surpreendentemente, me recuperei. Mas, antes disso, vivia tio desacreditado nessa vida bo¢mia de tocar em bailes que papai decidiu que eu tinha de comecar a trabalhar de qualquer maneira. Quando deixei a Escola Militar, 0s 18 anos, consegui enfim um emprego de escrevente, datil6~ grafo, com meu tio, que era da Marinha, no servigo da Reserva ‘Naval. Li, como sempre gostei de desenhar, aproveitava as horas livres para fazer caricaturas. E foi um subtenente da Marinha chamado Gast4o, que trabalhava em uma mesa perto da minha, quem deua idéia: "Vocé tem jeito para desenho, por que no vai estudar arquitetura?” Eu nem sabia o que era arquitetura, quala diferenga exata entre ela e a engenharia, mas achei que podia ser uma sada para mim. Nao dava mesmo para sobreviver com 0 acordedo. Gastto me explicou basicamente como eu poderia fazer para entrar na faculdade: disse que tinha um concurso, e mais deta- hes nao deu. Me inscrevi para o vestibular na antiga Universi- dade do Brasil’, no Rio, ¢ fui fazer o concurso absolutamente despreparado. Tinha que levar uma régua-té, um instrumento enorme, do tamanho de uma prancheta, eo que levei foi uma ré- gua em formato de T minisculo. Quando cheguei li, todo mundo riu de mim, foi ridfculo. Acabaram arrumando uma régua-té maior, ura sujeito me emprestou. Passei nessa prova com o mi- nimo posstvel. A Escola Militar era muito puxada, sabia matem4- SInicialmente denominada Universidade do Rio de Janeiro, passou a se chamar Universidace do Brasil em 1937. Em 1965, nova mudanga de nome, para Univer- ssidade Federal do Rio de Janeiro. Em 3000, reouperou na ustiga o diseito de uti- lizar a denominasio Universidade do Brasil/UFRJ. y © QUE £ SER ARQUITETO tica ¢ estava bem preparado, mas no para fazer um vestibular especifico como o de arquitetura. Todo mundo tinha feito um cursinho preparatorio e eu nio tinha passado por nenhum. Quando chegouna prova de desenho figurado, outra avaliagiio climinatéria, aconteceualgo mais interessante ainda. O pintor Ubi Bava, muito respeitado na época, era um dos examinadores. Ele passou ao lado da minha prancheta, olhou o que estava fazendo e disse que eu ia ser reprovado se continuasse como estava indo. Nao scio que viuem mim, porqueresolveume dar outro papelembran- ‘coe comegouameensinar. Davaa volta, passava denovo, dizia que euestava indo bem. Acabei passando com um 7, uma nota fantas- tica para quem no sabia nada. E foi ele quem me ajudou. Para as outras disciplinas euestava preparado, eacabeisendoaprovadoem 25° lugar entre uns 80; niio foi tio ruim. Mastudo isso mostra como aminha ida para a arquitetura nfo foi nada planejada. Comegou a faculdade, e o caminho para a aposentadoria do acordexo também. Quando fui para Brasflia, em 1957, larguei de uma vez; tive que escolher, embora oeasionalmente ainda tocas- se por la. E mesmo durante 0 periodo em que estava na faculda- de, fui obrigado a optar, porque tinha que estudar e trabalhar. Precisava continuar trabalhando como escrevente, porque meu pai morreu e me tornei arrimo de familia — alids, acho até en- gragado que, nessa época, eu ganhasse um salirio minimo e com esse dinheiro pudesse manter mamie e a mim. O poder aquisi~ tivo do salario minimo era muito mais alto, nao é como hoje, que quem ganha est na miséria... Papai teve céncer no pulmao aos 57 anos. Foi uma morte repentina, em dois meses ele morreu. Lembro-me, no entanto, de ainda té-lo visto feliz, por eu ter en- 0 santista Ubi Bava (1925-1988) foi pintor, desenhista, arquiteto e professor. Sua pintura absteata se caracteriea pelas formas geométricase pelouso de efeitos éti- cos obtidos com a utilisagio de espelhos. 38 LEL# (JOA FILGUEIRAS LIMA) trado para a faculdade de arquitetura e me livrado do destino de boémio que ele vislumbrava. Usavea barea para ir faculdade, que na época ficava no Centro do Rio de Janeiro. Jé existia a ponte, que foi construida durante a guerra, mas o desenvolvimento da IIhado Governadoraconteceuem torno da ligagao coma barea, que é do outro lado de onde fica a pon- te. Eeu sempre preferi ir de barca porque era mais fécil. Tinha que sairtodosos diasas 4h3o da manha decasaes6 chegavaas 10 danoite, ‘erauma parada. Houve também um perfodo em que morava na Iha, |j4 trabalhava e passava a semana na casa de uma prima muito que- rida, Celina, no Grajati, Ela e seu marido, José, foram sempre cari nhosissimos comigo. Dormia no canto de um quarto em cima da gavage, que abrigava também uma biblioteca grande, do Emilio, ‘irmao de José. As vezes, viravaanoite lendo. Isso durowuns ito anos; 86 passei a morar sozinho quando fui para Brasilia. Nos fins de semana, ainda fazia os bailes com o acordefo para ganharum dinheirinho extra. Havia muitos bailesno Rio de Janeiro nos anos go, €1165 montamos um conjunto musical, o Gente Nossa. Hoje o nome me parece meie brega, mas acho que tudo era brega naquela época. Naohavia superartistas como hoje, grandesastros da MPB que vivessem sé da vendagem de discos. Lembro de acompa- nhar muitas vezes até mesmo grandes nomes da "Era do Radio”, como Angela Maria, Orlando Silva, Nelson Gongalves, Cauby Pei- xoto, porque esse pessoal também tinha que fazer biscate. Antes da ‘TV, ommisico profissional, mesmo o cantor, dependia do rédio, dis- co era ums coisa muito precria, nem todo mundo tinha. Dependia também ds pequenos shows, nao eram grandes espetaculos, como hoje. Viviam no subérbio, passavam de um lado para outro 0 tempo todo. Eram shows bem mais simples do que as produgdes atuais: 0 paleo, a orquestra, o cantor, nao muito mais do que isso. Existia um clube na Ilha do Governador chamado Jequia, onde ‘tocavamos com frequéncia. Atuévamos como amadores, sem co- 19 © QUE & SER ARQUITETO ‘rar caché. Mas pegivamos uns bailes como profissionais, aqui cali. Cheguei a tocar em Botafogo, nos clubes finos do bairro. No Copacabana Palace, nao, Deus me livre, aquilo era coisaparaaalta elite. Alguns miisicos contemporaneos nossos, como Joo Do- nato, de fato ja tocavam 1a quando deixei o acordedo. Quando Donato estava comegando, eu estava trocando definitivamente 0 instrumento pela prancheta. Tinha comegado muito cedo, antes da Bossa Nova. Quando a Bossa Nova surgiu, eu ja tinha saido do conjunto, nao tocava mais. O ALUNO SUBURBANO Desde o primeiro ano na universidade assumi aquilo, ea ar- quitetura comegoua me interessar, embora minha formagio cul- tural, meu conhecimento, tenham sido tardios. Como minha convivencia era com pessoas de um lugar de pouca informagio, ni tinha acesso a um patamar cultural mais elevado. Era bronco mesmo. Tive que aprender muita coisa; a formagio artistica veio quando jé estava bem mais velho. Foi um processo. Se essa formacio intelectual n4o ocorre na hora certa, h4 sempre uma deficiéncia. Isso acontece em todas as areas do co- nhecimento. Na misica, por exemplo: Tchaikovsky’, que come- gowa fazer misica depois de maduro, nunca foi um compositor do nivel de Mozart®, treinado pelo pai a partir dos cinco anos. A ‘Piotr Tehaikoveky (1840-1898), compositor russo, ora filho de um engenheiro, e durante muitos anos foi obrigado pela familia adividir seu tempo entreamisi- cacodireito, ‘Wolfgang Amadeus Mozart (1756-1791), compositor austriaco, era filho de um vviolinista e compositor profissional. Foi iniciado na miisica pelo pai, e aos cinco anos de idade jé compunha minuetos. 20 LEL& (yoAo FILGUEIRAS LIMA) q : 2.3 1. Fantasiado de cigano (ou seré de pirata?), no carnaval de 1935, 2. Eu, meus pais, Maria Emilia ¢ Joio (sentados), € uma amiga da familia, Gertrudes, em frente a nossa casa, no subitrb:o do Rio, onde passei minha infancia pu pose Argo peal 3. A masica era boa companhia na solitléo do acampamento em Brasilia, que, em 1957, ainda se preparava para nascer 4,. Fiz de tudo um pouco durante a construgio da nova capital. Na foto, inspeciono um tubulao na Superquadra 108 Sul, em 1957 5. O acordeao sempre foi meu companheiro. No acampamento em. Brasilia, uma pequena apresentagio para seleta platéia. Desta- que para o presidente do Instituto dos Bancérios, Sadock de S4 (@ esquerds) ee peal Arqiva psa Gonos Natal Hono G. Em 1963 estive nos paises do Leste Europeu, ainda sob dominio soviético, para pesquisar, pela recém-criada Uni- versidade de Brasilia, os sistemas construtivos utilizados por 1a, Sabino Barroso, da equipe de Oscar Niemeyer, posa comi- go em Leningrado ‘J. Entre meus trabalhos mais recentes esto as Bases de Apoio Comunitirio (BACs), equipadas com creche e biblioteca, todas construidas pela Fabrica de Equi pamentos Comunitarios de Ribeirao Preto, 2002. ~ Arquivo peso “pu pal Bruin de rte 8. A igreja do Centro Administrative da Bahia (CAB) na época de sua construgio, em 1975. Apesar de ser um projeto que me deu 10.} muita alegria, infelizmente hoje se encontra descaracterizado. Q. Fue Oscar Niemeyer, de quem sou amigo ha quase 50 anos e que exereeu uma enorme influéncia na minha carreira pro- fissional. Continua sendo meu mestre 10. Sede do Tribu- nal de Contas da Unido no Mato Grosso, construido em con- vénio com o CTRS (Centro de Tecnologia da Rede Sarah), uti- lizando 03 pré-fabricados em 1997. 11. Com Mario Kertésr, prefeito de Salvador, em apre- sentagdo do projeto da Central de Delegacias, em 1979. Co- laborei com Mario em diversas ocasides como governante, além de sermos amigos pessoais 12. Em 2003, inaugnra- ‘mos 0 Centro Internacional de Neurociéncias e Reabilita~ ‘cao da Rede Sarah, as margens do Lago Paranod, em Brasi- lia. Como em quase todos os hospitais Sarah, aproveitamos aventilagao e a luz naturais para o bem-estar dos pacientes. 13. Hagar Graeff, arquiteto e te6rico que desenvolveu um trabalho académico muito bom, me convidou para lecionar na Universidade Catélica de Goiés (UGG) no final dos anos 1970 144+ 0 Hospital da Rede Sarah em Belo Horizonte, inaugucado em 1997, € um dos poueos verticais, ¢ por isso o GTRS (Centro de Tecnologia da Rede Sarah) desenvolven ele- vadores apropriados para a locomogao dos pacientes, F 3 i ie 15,- Inaugurado em 1994, 0 Sarah de Salvador aproveita a bri- sa marinha para a ventilagio de suas estruturas internas. So- mente poucas areas, como 0 centro cirrgico ¢ a sala de raios X, utilizam ar-condicionado. ‘om Eduardo Kertéss. (irmao de Mario) ¢ José Apareci- do de Oliveira em 1996. Eduardo, economista e engenheiro, colaborou comigo ¢ com Aloysio Campos da Paz na criagio da Rede Sarah L'7. Sarah de Fortaleza, inaugurado em 2001 18.. Na foto, o artista plistico Athos Bulcao, ladeado por mim e pelo caleulista Roberto Vitorino, Meu amigo Athos é 0 autor das portas coloridas, equipamentos, azulejos ¢ painéis de praticamente todas as minhas obras 1). Prédio do Tri- >bunal de Contas da Unio em Alagoas, estrutura de ago eleva~ da sobre pilotis, 21.} ZO. Visita a Licio Costa, ao lado de sua filha Maria Elisa. Dou- tor Licio foi uma espécie de mentor intelectual da geragio mo- dernista do Brasil, que teve inicio com a construgio do prédio do Ministério da Educagao ¢ Saide Publica, no Rio,em 1936 2.1. Plataformas do Centro Administrative da Bahia (CAB), 1975, {22. 22. Sede do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia, em 1997. ~ Foe de Fas Acqua puto Breuie de Pitas 23.} 23. No teclado, uma de minhas paixées, ao lado de ami- gos como Gelso Brando, Sérgio Brandao e José Carlos Corréa, na casa de Luiz Carlos Toledo, filho do arquiteto € artista plastico Aldari Toledo, outra grande influéncia no meu erescimento pessoal e profissional 2,4,- Sede do Tri- bunal de Contas da Unitio na Bahia, 1995. A cobertura do tipo shed, que propicia mais luz e ventilagio naturais, é uma das marcas do meu trabalho. 25. Batendo papo com dois grandes amigos, Darcy Ribeiro e Aloysio Campos da Paz, em 1996. Falvamos do "beijédromo” da Fundagio Darey Ribeiro, que nunca saiu do papel... Darcy morre- ria no ano seguinte 26, Uma das escolas pré-fabricadas produ- zidas pela Fabrica de Equipamentos Comunitarios de Salvador, cujo fechamento me causou muita decepgao e até um infarto. Ari pessoal 2/7. Com minhas filhas Sonia e Adriana, e a mie delas, Alda Rabello Cunha, também arquiteta. 28. Corujando dois dos meus trés netos, Gustavo e Jodo, filhos de Adriana. Em 2003, Sonia deu a luz Paulinho, 2Q. Altar da Capela de Sao José de Ribamar, no Maranhao, emg97, também construido em convénio com o CTRS (Cen- tro de Tecnologia da Rede Sarah). miisica dele nao tem a mesma forga, o romantismo dele é muito criticado, tardio, ao passo que Mozart estava bem inseridoem sua €poca. Eclaro que atualmente, coma facilidade dese informar, a pessoa consegue se recuperar, mas no é a mesma coisa que re- ccber essas informagdes desde a infancia. Na faculdade, me sentia até meio deslocado no princfpio. Ti- nhao grupo dossuburbanos, quese isolava um pouco, e, domes- mo modo que geograficamente, do outro lado havia aquela elite ‘mais sabida, coma qual eu tinha certo medo de conviver porque nnio sabia nada. Mas como possufa alguns dotes, uma certa faci- lidade para o desenho, uma formagio boa em matemética e em ciéncias que vinha da Escola Militar, comeceia me destacar como um bom estudante. Aiaelite me apadrinhoue fui absorvido gra- dualmente pelo outro grupo, passando a circular nos dois. acordedo também dava uma forcinha, porque era convidado para tocar nas festas da Zona Sul, um contato para o qual eu ndo estava nem um pouco preparado. Lembro-me deter ficado amigo do filho de um sujeito muito bem situado financeiramente, que morava no Flamengo e era representante da Hollerith? no Brasil, Valentim Bougas. Para dar umaidéia da importancia do homem, basta saber quea Hollerith. foi uma espécie de embriao dos computadores de hoje em dia: tinha um sistema de perfuracdes no papel que permitia fazer mecanicamente trabalhos das empresas, como a folha de paga- ‘mentos —daf que o contracheque foi conhecido durante muito tempo como “holerite”, ainda é sinénimo. Esse Valentim Bougas era muito importante, inclusive poli- ticamente: era amigo de Getilio Vargas. Bo filho dele, Luiz Carlos ‘Onome da empresa fazreferénciaao norte-americano Herman Hollerith (1860- 1929); inventor do sistemade processamento de dados que utiliza cartées perfu- rados 2 © QUE & SER ARQUITETO “Antony, ficou meu amigo ¢ me convidou para jantar em sua casa. ‘Nunca tinha ido a um jantar formal. Ao ver aquela mesa enorme, ‘com os pratos perfilados, os talheres arrumados, os copos gran- des e pequenos, tomei um susto danado. Quando veio a empre- sada toda uniformizada, com a travessa na mao para me servir, pegueia travessa ¢ fiquei segurando, praticamentetomei da mao dela, eelaeducadamente, soltou. Todo mundo me olhava, eucom aquele trogo na mio. Aja mae dele resolveu tomar uma atitude e me disse: "Nao, pode deixar com ela, que ela serve.” Eu devolvi, ‘mas foi uma coisa horrorosa. Eum episédio que mostra como eu era pouco informado a respeito de quase tudo fora do meumun- dinko suburbano. Logo, porém, comegaria a tomar conhecimento dessas pe~ quenas coisas ¢ de outras, muito mais importantes: comegaria a me informar sobre a arquitetura no mundo. Oscar Niemeyer jé havia despontado como um grande arquiteto brasileiro. Tinka participado do projeto do Ministério da Educagao ¢ Satide Pai- blica’, ao lado de Le Corbusier", em 1936, feito o Conjunto da Pampulha, em Belo Horizonte, queé de 1940, ese projetava como um grande arquiteto. Aos 40 e poucos anos, Oscar ja era a maior referéncia da arquitetura brasileira, ¢ 0 ideal de todo mundo na faculdade era ser um Niemeyer. "Bim 1936, a convite de Lito Costa, o arquiteto franco-suigo Le Corbusier vem. 0 Brasil paraatuar como consultor no projeto do prédio do Ministério da Educa ‘Glo Satide Publica, no Ria, hoje chamado Palécio Gustavo Capanema. Aequipe de arquitetos que atuava no projeto era formada por Carlos Leto, Affonso Reidy, Oscar Niemeyer, Jorge Moreira e Ernani Vasconcelos. 0 prédio €consideradoum, ‘marco internacional da arquitetura moderna. Le Corbusier ¢ 0 poeudénima do francés nascido na Suiga Charles-Edouard, Jeanneret-Gris (1887-1963), a mais influente figura da arquitetura do século XX. Suas concepydes inspiraram profundamente a geragio de arquitetos brasileiros, ‘ntitulada modernista, Bsteve aqui pela primeira vezem 1929, quando fez uma sé- rede conferéncias em Sto Paulo e no Rio. Voltou em1936 e novamente em1962, ‘quando visitou Brasilia, 22 LELE (soko FILGUEINAS LIMA) Essa é, alias, a ambicio mais va que um estudante pode ter. E ‘omesmo que nascer querendo ser Mozart. Oscar éum génio, pro- -vavelmente nao vai aparecer outro no nosso século. E um talento incrivel em arquitetura, sei lé de quanto em quanto tempo pode surgir uma pessoa como ele, O profissional que entrar na escola achando que sera igual a Oscar estaré equivocado. Também nao pode imit4-lo de uma forma ordinaria, como uma caricatura. O prircipal é entendera mensagem, o que ele propée, essaéa gran- de influéncia que pode exercer. Na minha relago com Oscar, sempre procurei fazer isso, entender sua arquitetura, absorven- do essas influéncias que sio importantes, mas mantendo minhas limitagbes. Um arquiteto pode sobreviver dignamente sem pre~ cisarse transformar num Le Corbusier cunum Oscar Niemeyer. Elessao tinicos. AFINIDADES Os amigos foram muito importantes na minha vida. Tive e tenko muitos. Sto pessoas que aparecem, desaparecem e de re- pente voltam, afinidades que se criam e ficam. Desde a faculda- de, ¢ também, do meu ponto de vista, de maneira absolutamente casual, foi se tecendo ao meu redor uma rede de amigos que tem uma influéncia fundamental na minha carreira. Quando estudava, quem me influenciou bastante nao foi um professor, mas o arquiteto e pintor Aldari Toledo™, que me foi 0 pintor earquiteto AldariToledo (Rio. 1915-1998) ft dise{pulode Portinari,com ‘quemeetudou entre 1932 e1935. Mais tarde, iia ee dedicar com maior empenho & arquitetura. Com Osear Niemeyer, Franeiseo Bolonha e Edgar do Vale, fara varios [projetos modernistas na cidade de Cataguases (MC) durante a década de 1950. 23 © que & SER ARQUITETO apresentado por um primo dele em segundo grau, Milton Villar, amigo meu do subiirbio. Passei a frequentar sistematicamente ‘sua casa, em Copacabana, uma vez por semana. Aldari me mos- trava a arquitetura nos livros, ficdvamos noites inteiras conver- sando. Foi uma pessoa que me ajudou muito, durante o periodo da escola, a descobrir a arquitetura como arte. Foi uma coisa muito rapida: entrei na faculdade um imbeeil completo e de repente tive acessoa Aldari Toledo, uma pessoa da elite, que nao tinha nada a ver com 0 subirbio, por uma coinci- dencia, porque meu amigo brega era contraparente dele. O con- tato com Aldari me proporeionou, por sua vez, 0 encontro com outro amigo, o antropélogo Darey Ribeiro®, que conheci em seu escritério, em 1951. Aldari tinha feito 0 projeto do Museu do {n- dio, no Rio, e Darey apareceu naquele dia para ver a proposta. Darey era uma pessoa exuberante, comuma formagao intelectual incrivel e com uma forma de se exprimir, eloquentemente, ra- pidamente, que deixava a gente quase asfixiado, tonto. Eu, aos 20 e poucos anos, tomei um susto quando vi aquela figura. Mas, ao mesmo tempo, simpatizamos de imediato. Esse foiapenasum primeiro encontro, uma referéncia. Quase dez anos depois, quando Darey soube que eu estava em Brasilia, na mes- ma hora quis me atrair para a universidade que estava fundando 14, a UnB (Universidade de Brasilia). Mas eusé iria por intermé- dio de Oscar Niemeyer, jé estava comprometido com ele. Fiquei esperando que Oscar se decidisse a assumir a Faculdade de Ar- quitetura da universidade, Darey Ribeiro (2922-1997), antrop6logo e educador, nasceu em Montes Claros ‘QUG). Atuou como indigenistae dedicou-se & educagio primériae superior. Em 1962 fundou a Universidade de Brasilia, da qual foio primeiro reitor. Foi minis- to da Edueagio e ministro-chefe da Casa Civil (2964), vice-governador do Rio (ag82) e senador (de 991 até cua morte). 24 LELE (JoAO FILGUEINAS LIMA) i Inicialmente, um arquiteto que atuava em Brasilia, muito bom e culto, Aleides da Rocha Miranda, estava cogitado para as~ sumir o cargo. Ele havia feito o primeiro projeto arquiteténico da UnB, 0 auditério Dois Candangos. $6 que era um prédio ainda diesociado do contexto da universidade que estava nascendo. Mais tarde ¢ que foi desenvolvido o projeto deurbanismo da UnB; Oscar passou entio a atuar e eu entrei em sua equipe. Com Darcy Ribeiro como reitor. Vivi muitas hist6rias engragadas com Darcy. Era uma figura ¢ tanto. Numa ocasiao, comprou um casario lé em Montes Cla~ ros, Minas, sua terra natal: uma demoligao, e queria que eu fizesse a casa dele em Brasilia com aqueles destrogos. Me vi envolvido numa confusdo enorme, tinha que numerar as pegas de madei- 1a, era wm quebra-cabega. Acabei nto fazendo, porque, quando a gente ia comecar a construgio da casa, veio o golpe militar de 1964, € 0 exilio para Darcy. Fizemos varios outros projetos juntos. O ditimo que fiz, em 1996, umano antes de ele morrer, foio projeto da Fundagio Darcy Ribeiro, em Brasilia, que também nunca chegoua ser construfda. Foi num periodo em que ele estava muito frégil, fazendo qui- micterapia, estava internado no Sarah e queria fazer o projeto de qualquer maneira. Disse para Aloysio Campos da Paz", outro ami- g0, que dirige o hospital: “Tenho que falar com Lelé.” Tudo por conta dessa generosidade maravillosa de Oscar. Nés éramos dois profissionais que trabalhavamos sempre para Darey— Niemeyer, claro, com projetos muito mais importantes do que eu—, mas de repente Oscar dizia: "Faz isso, Lelé.” Sem nenbuma rivalidade. Foi assim com a Fundacio. Depois, Oscar pegou o projeto e ele pro- pric apresentou no jornal, elogiando, fez a apresentagdo. “Aloysio Camposda Paz Junior écirurgito-chefe efundadorda Rede Sarah de Hos- pitaisdo Aparelho Locomator, 25 © QUE £ SER AnQuITETO Mas, nessa ocasifio, Darcy quase nto falava, estava com di- ficuldade de se exprimir ¢ Aloysio 0 colocou na sala de videocon- feréncia do Hospital Sarah de Brasilia para ele poderse comunicar ‘comigo no Sarah de Salvador. Foi muito engragado, porque Darey falou para mim: “Olha, quero um beijédromo.” E comegouaex- plicar mais ou menos o que tinha em mente: "E para botar as minhas coisas, minha biblioteca.” Tivemos que inventar juntos oconceito de beijédromo. Seria um espago ao arlivre, na grama, nos degraus — um espaco bem ao gosto de Brasflia, em que se podia fazer seresta, as pessoas poderiam estar em volta se bei- jando, namorando. Para uso noturno, principalmente. Pena que no se concretizou. Oscar, Darey ¢ eu sempre tivemos uma relacio muito boa. Oscar, que conheci na época da construgio de Brasilia, é para mim um exemplo de ser humano, em todos os aspectos. f cla- ro, a gente acaba admirando os amigos, mas o considero uma pessoa excepcional. E capaz de renunciar a qualquer coisa para ajudar os amigos, preza essa questo da solidariedade. No trato pessoal, Oscar ¢ completamente diferente de Darey. Darcy era extrovertido ¢ ele, nao. Mas é uma pessoa que tem seus amigos de muitos anos, que valoriza suas amizades, nem sempre inte- lectuais — sio pessoas até bastante simples algumas vezes, nio obrigatoriamente arquitetos. Sempre fomos amigos, apesar da diferenga grande de idade entre nés—ag anos. Oscar sempre teve essa capacidade de esta belecer relagdes de amizade com pessoas de idades diferentes. Hoje em dia esta muito amigo do José Carlos Sussekind, também meu amigo, um calculista que trabalhou com ele, mais jovem, como eu—saiuaté um livro de cartas trocadas entre os dois. Acho isso sadio, é possivel conseguir uma identificago muito boa en- tre pessoas deidades diferentes. Eu vezes mesinto umacrian- ‘ga. Gosto de dangar, o que deixa meu neto mais velho (sto dois e 26 LELE (JOA0 FILGUEIRAS LIMA) um terceiro esti a caminho), de 6 anos, absolutamente envergo- nbado. Ele pensa que um velho como eu nao pode dangar, que é co:sa de outra idade. Mas as idades sao relativas. Foi outra coincidéncia que me levou ao médico Aloysio (Campos da Paz. Em 1963, ewe minha mulher, a também arqui- teta Alda Rabello Cunha, tinhamos ido de carro para o Rio, e, navolta, sofrido um acidente horrivel. Foi no meio do pereur- 50, ¢ 56 consegui levar a Alda, que quase morreu, com a bacia fraturada e perfuracio do pulmio, para o hospital de Brasilia— fiquei mal também, mas nada muito grave. O local do acidente ere perto da cidade do Israel Pinheiro’s, em Minas Gerais. Ar- ranjamos uma ambulaneia, que enguigouno meio do caminho. Enfim, o acidente ocorreu as oito horas da noite e s6 fomos che- gara Brasilia as trés da manha. Nessa ocasiao, Aloysio tinka vindo da Inglaterra e dirigia 0 servico de ortopedia. Fui atendido por ele, e comecamos a con- versar muito a noite. Ele tocava pistom, passamosa tocar juntos, ‘essa coisa da miisica. Estabelecemos uma relagdo que depois se transformou numa relagao profissional. Aloysio temuma forma- ‘ac s6lida, vé a medicina como um instrumento de cura de cada individuo, até escreveu um livro sobre isso: cada paciente é um paciente. Essa generalizagio da medicina, de tratartodos de modo igual, é complicada.As vezes, acura para determinado sujeito nfo 6 amesma para aquele outro, dependendo até da vida que leva. Principalmente na questio da recuperagio motora. Eele temessa visio de que o mais importante é o ser humano — dai essa iden- tidade que se estabeleceu entre n6s. "0 engenheiro Israel Pinheiro (1896-1978) presidiu a empresa responsivel pela construsdo de Brasilia, a Novacap. Figura polémica, de trato dificil, chegou a se comportar durante o processo, segundo Niemeyer, quase comoum “seuhor deen geno” az © QUE & SER ARQUITETO Comessa visa, pude vir trabalhar no Sarah: ade que o ser humano tem de ser tratado de uma forma geral abrangente, niio como reflexo de uma aplicagao teenolégica de tltima ge- ragdo. Essa amizade perdurou ao longo dos anos, tornei-me padrinho do filho dele, Aloysinho. H4 muito tempo nao éuma relagdo s6 profissional — na verdade, so duas relagbes distin- ‘as. Profissionalmente, hi uma identidade que permite a opor- tunidade de trabalho que eu tive no Sarah, a melhor da minha vida. Jéarelagao como antropélogo baiano Roberto Pinho também ‘comegouna Universidade de Brasilia, onde fomos colegas. Roberto ‘éumrealizador, inteligente, muito preparado culturalmente, eaca~ ‘pou se tornando uma espécie de planejador na area piblica— atualmente € assessor especial do ministro da Cultura, Gilberto Gil’, As oportunidades que tive com ele foram muitas; ele gostade fazer coisas em qualquer rea. Roberto Pinho sempre foi um aventureiro no sentido de in- ventar projetos e, depois de ter sido afastado da UnB conosco, como golpe militar, voltou paraa Bahia para atuar no governo 20 Jado de seu amigo, o entio secretrio estadual de Planejamento Mario Kertész”. Junto com o designer Alex Chacon, Roberto ti- nha feito um trabalho na cidade hist6rica de Cachoeira, no Re- cOncavo Baiano. Os dois me convidaram para trabalhar aqui na Bahia, fizeramacabega do Mario parame trazer. Isso foi em1973, quando fiz o projeto do Centro Administrativo da Bahia. Depois, quando houve a construgio do Sarahe tive que montar uma equi- 0 eantore compositor Gilberto Gi, mascido em Salvador em 942, foipresidente dda Fandagto Gregorio de Mattos (1987-1988) e vereador na capital baiama(1989~ 2999) " Mario Kertéez ft seretisio de Planejamento do governo da Bahia entre 197 1976, prefeito nomeado de Salvadorentre 19781981, eprefeitoleito de i985 1988. 28 LELE& (jOA0 FILCUEINAS LIMA) socom pe, levei-os para Brasilia, etrabalharam em meu escritério de ar- qquitetura. Em 1978, Kertész se tornou prefeito nomeado, e me convo- ‘cou novamente a Salvador. Nesse periodo, Roberto dirigia 0 EquipHos, érgio responsavel pela produgdo de equipamentos do Sarah de Brasilia, e viemos juntos para a Bahia. Trabalhamosem colaboracdo mais uma vez em 1985, quando Mario Kertész foi eleito prefeito de Salvador e Roberto passara a ser seu secretirio de Governo. Agora, com os projetos que estou realizando em Ri- heirio Preto, voltow a parceria com Roberto, que foi quem idea lizou as intervengoes urbanas planejadas. Outro amigo que conheci em Brasilia, na época da universi- dade, foi o artista pléstico Athos Buledo", meu parceiro em imi meros trabalhos nos iltimos 40 anos. Ficamos muito amigos, ¢ sempre que pegava uma obra eu 0 convidava, embora na época tivesse poucos projetos. Nossa parceria se intensificou de uns tempos para c4, e, nessas fébricas todas, sto dele os painéis e as, portas coloridas. Nosso trabalho ficou muito interligado. Athos esti com mal de Parkinson atualmente, mas continua produzin- do, apesar de ter a capacidade limitada. Como est doente, agora eu mesmo fa¢o alguns trabalhos. Na fébrica de equipamentos de Ribeirdo Preto fiz tudo, até a parte plastica. E claro que se ele fi- zess¢ seria muito melhor, mas como no podia envolvé-lo num trabelho 14, eu fiz. Hentifico todas essas amizades, t4o importantes para mim, ‘como casualidades. Ter tido contato com Aldari Toledo foi uma coisa que aconteceu, nao sai atrés. Depois, 0 acaso de ter me tor- nade amigo e discipulo de Oscar Niemeyer, uma pessoa com ""Naseido no Rio em2910, odecorador, decenbista,pintor eprofessor Athos Buledo Adedicz-se desde 1955 atrabalhos de integracio arquitetOniea,criando obras com- plementares para prédiosprojetados por nomescomo Niemeyer, Sérgio Bernards eLelé.entze outros. 29 o QUE £ SER ARQUITETO quem me identifico no campo ideolégico, na maneira de pensar. Paralelamente, houve outros episédios, como o.caso do Darcy, de Aloysio ou de Roberto Pinho. Tudo isso aconteceu de maneira fortuita. ARIE E TECNICA No periodo em que estudei, a faculdade era muito técnica. O professor de concreto armado, Aderson Moreira da Rocha, por exemplo, cra dos mais exigentes. Nossa formagio era mais vol- tada para parte técnica do que para aartistica, 0 que se cobrava erao desenvolvimento técnico do estudante, com a parte artisti~ cacorrendo paralela:a gente tinha quese virar por conta propria. resultado positivo disso é que fiquei com uma étima forma~ do técnica. Como ainda por cima tinha uma formagio cientffica preparatézia forte, da Escola Militar, isso foi me condurindo para ‘uma técnica um pouco mais esmerada do que se podia esperar de uma faculdade de arquitetura. Reconhego que a parte técnica foi muito mais eficiente do quea artistica dentro da faculdade. EAldari Toledo me ajudou, felizmente, a comecar a explorar essa outra parte, foi uma pessoa fundamental para que eu tenha podido entender a arquitetura nessa fase. Aldari trabalhava no projeto da Cidade Universitaria do Rio, que estava sendo cons- trufda, junto com Jorge Moreira’, outro arquiteto importante, "Jorge Machado Moreira (1904-1992), arquiteto e professor, éumdospioneiros aquisitivo da populacio. Lina Bo Bardi tinha estado em Salvador em outras oportuni- dades, dando aulas. Foi ela quem reformou o Solar do Unhao®, em 1959. Lina também tinha uma visto muito especial da capital baiana do ponto de vista cultural, criou o Museu de Arte Moder- na ne Solar, mas se propunha naquele momento, com a Faec, a fazer principalmente a recuperagio do patrimOnio. Minha atri- buigdo era o resto da cidade. O projeto feito para o centro hist6- rico é dela, ajudei um pouquinho. Eu ja conhecia Lina, Darcy alevara para conhecer o centro de planejamento da UnB, no inicio da década de 1960. Erauma pes- soasensacional. Ficamos amigos, havia uma identidade, esentia que ela gostava de mim, era reciproco. Na primeira vez que esti- ve em Salvador, em.1976, nos cruzamos novamente, fui conver- sar comelaarespeito do Solar do Unhao. Somente nesse perfodo da Face, porém, tivemos uma relagio mais préxima. No projeto de revitalizagao do centro hist6rico, colaborei na tecnologia. Chegamos a fazer juntos a Ladeira da Miseric6rdia Consirugio do século XVIII em Salvador, adaptada por Lina Bo Bardi para sero Museude Arte Popular, hoje Museu de Arte Moderna da Bahia. & © QUE £ SER ARQUITETO (a987). toda a recuperagio dos prédios. ACasa do Benin, do mes mo ano, também foi feita em parceria comigo. Era um projeto da Lina que eu executava por intermédio da Faec. A argamassa ar- mada era utilizada para reforgar aestrutura interior dos edificios, mas também aparecia por fora, como uma espécie de costura para estabilizar os prédios que estavam caindo. Naarquitetura colonial, os prédios so todos colados uns nos outros, ea estabilidade depende muito do prédio vizinho. Quando se tira um, 0 outro se desestabiliza. Ea Lina teve uma idéia muito bonita de criar um elemento estrutural na argamassa armada que ia costurando inclusive os vazios, onde ndo havia prédios. Suacon- cepséo, altamente correta, era de que ¢ fécil fazer um pastiche da arquitetura colonial, uma maquiagem, e descaracterizar comple~ tamente, mas est desinformando, ndo esté resgatando meméria coisa nenhuma. Ela buscava essa autenticidade através de um ato de construgio até novo. Essa é uma visto que hoje esta sendo mais, difundida, mas em 1986, quando projetei em ago o prédio do Pa- lacio Tomé de Souza, no centro de Salvador, isto foi visto de uma forma muito ruim, como um acinte. Euachava importantea prefeitura retomar oseulugarnocen- tro dacidade, para ela prépria dar o exemplo e mostrar que queria rresgatar o valor do centro hist6rico. Asede da administragao mu- nicipal estava no bairro de Brotas, ¢ 0 centro se deteriorava cada vez mais. O antigo prédio da prefeitura era o Palacio Rio Branco, quetinha sido entregueao governo do Estadoe transformado numa espécie de museu. Nao havia como recuperar, era preciso criarum. espago para a prefeitura. E, em frente ao palécio, havia um espago vazio, que o povo apelidou de "Cemitério de Sucupira"®, em cima da garagem subterranea da Camara dos Vereadores. PReferénciajocosaa cidade fictiia de Sueupira, da novela"O Bem-Amado” (1973), eDias Gomes, cujoprefeito, Odorico Paraguagu, tem como meta priortériadesua administragio & construgiode um cemitério. 83, LEL£ (joKO FILevEIRAS LIMA) ‘Uma das idéias era construir um prédio ali. Mas como nao se podia destruir a garagem, que estava funcionando, o projeto ti- aha de ser baixo, criando um didlogo como Palicio Rio Branco e recuperando uma linguagem que existiu naquela praga outrora, até a década de 1970, quando havia no local uma biblioteca pé- blica, que também nao era um prédio bonito. Porque isso de di- aer que o velho era bonito nao éverdade. Ovelho também era feio, existiam bons e maus trabalhos. De qualquer maneira, minha intengdo era recuperar aquela linguagem com um prédio que, por ter uma garagem embaixo, estava fadado a ter uma qualidade técnica funcional muito limi- tada, Eu nfo podia fazer nada mais especial, tinba de levar em conta os pilares que estavam la, essa coisa toda. Por isso achei que se tinha de fazer um prédio transitério, nao porque achasse que avolumetriaestivesse errada, esim porque, no futuro, de repente se poderia destruir essa garagem sem nenhum valor hist6rico ¢ criaruma outra edificagdo que pudesse atender melhor a prefei- tura do ponto de vista funcional. O prédio acabou ficando, mas pode ser desmontado. Esse prédio, até por uma propaganda negativa que fazem, ndo ébenquisto aqui na cidade. Numa ocasio, o entio prefeito, An- tonio Imbassahy, me chamou e, no meio da conversa, cheio de dedos, falow da transitoriedade do edificio, que era todo apara- fusado etal. Disse que estava coma idéia de tirar o prédio porque tinha um projeto novo. E queria pedir minha opinio, fazer uma delicadeza comigo. Eu falei que nfo, que nao queria ver o projeto, que o profis- sional era muito competente e nto cabia a mim fazer essa critica. Disse: “Acho que o projeto deve ser feito, o prédio deve ser des- parafusado; se a sua idéia ¢ substituir, faga, nio tem nenhum empecilho.” Af aconteceu o seguinte. Nesse periodo, o PFLele- gera no Rio Luiz Paulo Conde, que também estava fazendo um 83 © QUE £ SER ARQUITETO trabalho de recuperagao do centro hist6rico e havia contratado dois arquitetos importantes nessa 4rea, o portugués Nuno Por- tase o espanhol Oriol Bohigas. Vieram dar consultoria, prin- cipalmente no aspecto histérico, e Imbassahy chamou os dois para opinar sobre essa questo da mudanga do prédio. Eles fo- ram radicalmente contra. O prefeito desistiu, resolveu dar uma pinturano prédio, mas foi por influéncia desses dois arquitetos. O fato € que até hoje o prédio nao aparece nos cartdes-pos- tais, todo mundo esconde, tem vergonha. Bu gosto, ¢ interna- cionalmente também gostam dele. Agora mesmo, num estudo que estdo fazendo do centro hist6rico na Alemanha, pediram 0 projeto da prefeitura, consideram uma referéneia. Saiu na re- vista francesa L’Architecture D’aujourd’hui com uma impor- tancia enorme, avalia-se que é uma forma de didlogo correta centre o velho e o novo. Essa convivéncia tem de ser respeitada através de uma visto urbanistica e volumétrica do espago, endo da imitagao de um prédio neocléssico. Pelo contrario, assim se estaria criando uma forma mentirosa de rever aquele espago. Como o Centro Georges Pompidou, em Paris. Cidade mais con- servadora do que Paris, ¢ aceita o Pompidou, a piramide do Museu do Louvre. projeto de recuperagio do centro hist6rico que Lina idea~ lizou, e como qual colaborei, era muito abrangente, mas foi aban- donado na administragio seguinte e nada foi aproveitado nessa revitalizagdo que foi feita. Fizeram de outra maneira, a recupe- ragio toda baseada na manutengio das fachadas, ¢ ainda assim sem manter de uma forma auténtica. Na Alfama, centro histéri- enfuno Portas (4933), arquitetoe tebrico portugués, tem atuado como consultor de diversos governos na irea de planejamento urbano. ‘José Oriol Bohigas Guardiola (1925), espanhol de Barcelona, 60 mentor de vi- ras geragtes de arquitetos cataltes. Ezcritore eritico, também atua como con- sultor na 4rea urbanistica 84, LEL# (JoA0 FILCUEIRAS LIMA) co de Lisboa, que tem uma arquitetura parecida com o Pelou- rrinho, todos os prédios sto clarinhos, branquinhos. Existia alguma cor sempre, prineipalmente nas fazendas—o rosa-colonial, o azul-colonial —, mas eram cores esmaccidas, porque ndo havia tecnologia para fixar as cores. As cores eram& base de cal, eram corantes que sol destrufa rapidamente. O as- pecto da arquitetura dessa época, ea Alfama mantém isso, é qua~ se tudo braneo. Aquelas cores suvinil que fizeram no Pelourinho nunca existiram. UTOPIAS E FRUSTRACOES ‘Tenho tendéncia a achar, a0 contrario de todo mundo, que minha vida profissional é toda pontuada por fracassos. Eo pior momento foi justamente esse da Faec, em Salvador, que me le~ you até a um infarto. Tinhamos muitos operérios, havia um tra balho enorme, eo fracasso foi mais contundente porque a gente ndo esperava que viesse com tanta rapidez. Todos os operérios foram demitidos sem receber indenizacao, nada, fechou-se a fa- brica. A gente tinha a expectativa de que o radialista Fernando José, prefeito que sucedeua Mério Kertész, continuasse 0 traba~ Iho, mas isso no aconteceu. Foi um sofrimento. Fernando José nao queria mais; dizia: “Nao tenho mais dinheiro, se vira.” Safa feito um desesperado, tinha de ir a Brasilia, ao Ministério da Educagdo arranjar verba para fazer escola, tudo isso era eu quem acabava fazendo. Cons- truiamos escolas onde quer que fosse, Brasil afora, pelo menos para poder fazer a fabrica sobreviver aqui. Fizemos muitas. Ti- nhamos quatro mil operérios, eparamanté-los era um deus-nos- 85 © QUE £ SER ARQUITETO acuda, No final, conseguimos ir pagando aos poucos, demitin- do. Nio tinha outro jeito. Eu tinha uma relagéo com o presidente José Sarney* que vi- nha do Hospital Sarah Kubitschek —ambos somos conselheiros da Fundagio Pioneiras Sociais, que mantém a rede. Fui até ele, que disse: "Vamos ver o que a gente pode fazer.” Mas havia um conflito de interesses muito ruim. Waldir Pires* era governador ce Sarney era ligado a AntOnio Carlos Magalies (ACM), opositor ferrenho de Waldir, havia sempre essa dificuldade, Mario Kertész também era brigado com ACM, a gente fazia muitas obras parao governo de Waldir, era uma confusio, e no final Sarney nao pode ajudar. A Faee durou exatamente seis meses durante a administra~ gio de Fernando José, ¢ foi af que tive o infarto. Fuiinternado no infcio de 1990. Implantaram quatro safenase uma maméria, qua~ se morri, ninguém acreditava que fosse me salvar. Fiquei 1g dias, infartado, trés deles em Brasilia, ¢ Aloysio Campos da Paz con- seguiu me transferir para o Incor (Instituto do Coracao), em Séo Paulo. O cardiologista Adib Jatene me atendeu c falou que eues- tava numa situagio dificil, tinhamos de esperar uma mudanga de quadro antes de operar. Foi feita uma angioplastia, uma peque- na desobstrugdo, e pude ir a mesa de cirurgia. Mas fiquei uns 30 dias internado. Ahist6ria dos Giacs do governo Collor comegou nesse perio do dificil. Cheguei a falar para Darcy: "Estou todo borocox6, voct vai me botar numa encrenca dessa?” Acabamos montando um eseritério aqui na Bahia para fazer o projeto dos Ciacs, quando euaindaestava me recuperando. Efoi outro fracasso. Até me deu oportunidade de pesquisar mais, porque era muito maior. Para ‘José Sarney (80) foi presidente da Repiblica de 19851990. ‘Waldir Pires (1926) foi overnador da Bahia entre 1987 € 1989. 86 LEL£ (soKO FILGUEIRAS LIMA) ‘meu enriquecimento pessoal, profissional, foi importante, mas tem que se pensar em termos de Brasil, ¢ desse ponto de vista foi um desastre. A prépria experiéncia no Rio foi um fracasso, porque todo o investimento que agente fez, quando Moreira Franco entrou para substituir Brizola no governo, em 1987, ele destruiu tudo. Nao s6 nossa fabrica, os Cieps, tudo que tinha sido feito. Ele passou uma borracha, tinha de ser apagado. A politica € assim, € 0 lado duro de se trabalhar com ela: troca’o partido no governo € 0 sujeito entra para destruiro que foi feito pelo antecessor, paradeixaruma marea sua. Por incrivel que parega, acho que meu maior sucesso profis- sional foi nessa cidadezinha de Goiés, Abadiania, porque houve umenvolvimento total das pessoas. Abadiania era uma cidade tao primitiva, tao pobre, que nem havia operérios. Eu tinha de fazer uma espécie de cartilha para ensinar as pessoas a trabalhar. Pri- meiro a gente comegou fazendo pecas industrializadas em ma~ deira, a tinica forma de envolver a populagio era fazendo coisas bem simples. Mas a madeira, embora desse uma resposta ripi- da, era perecivel. E ali nao tinha escola rural, nao tinha nada. Acxperiéncia fica muito rica a medida que se comeca a en- volver as pessoas, ver a solidariedade humana, que ¢ 0 que resta para a gente. O motorista era o cara mais esperto que havia 1 porque viajara para varios lugares, e virou mestre-de-obras por- que nao havia outro para a fungao. De repente, aquela comuni- dade, que via na televisdo aquelas coisas inacessiveis, estava se envolvendo com uma tecnologia de ponta, feita ali. As pessoas ficaram num entusiasmo enorme. Agora, eu sofri o diabo. Tudo tinha de ser improvisado: a be- toneira era movida a gasolina, a casa onde eu ficava — a cha- carazinha de um agrénomo amigo meu, Joao Benko — nfo tinha nem luz. Alideranga filos6fica era do frei Mateus Rocha, provin- 87 © QUE £ SER ARQUITETO cial dos dominicanos que tinha substitufdo Darey na reitoria da UnB antes da revolugao, em 1962, e fazia parte do conselho da UCG. Frei Mateus era um homem muito culto, ¢ foi importante paraauniversidade e para todos que conviveram com ele. Erauma espécie de guru para mim. Embora nao fosse catélico, nao vinha 0 caso, conviviamos numa boa. Avida da gente é assim, cheia de frustragdes. Adoro mtisica e gostaria muito de saber leruma partitura. Leio muito mal—e olha que estudei flauta durante quase seis anos com uma flautista fa~ mosa, Odette Ernest Dias, mas nao consegui. f uma burrice, uma burrice tao grande, sou burro para partitura. Em arquitetura, tem essas utopias de fazer 0 mundo melhor, as casas melhores, a8 ci dades melhores, o que também causa frustragao, mesmo saben- do que essas coisas sdo irrealizéveis. Sabemos que séo utopias, mas As vezes a gente se entu- siasma, como foi o caso de Abadiania, uma aventura roman- tica. A gente vive um pouco de sonhos, ¢ 0 que pude fazer aquilo que faco melhor. Admiro Osear Niemeyer, acho um arquiteto maravilhoso, a capacidade criativa, a coisa da forma que cle domina, uma arquitetura em que os espagos interio- res sio lindos, mas é claro que nao conseguiria fazer a arqui- tetura que ele faz. Isso nto me causa frustragdo, tenho de me contentar em fazer o que sou capaz. O que me causa frustra- do € nao ler partitura. ‘Tem gente analfabeta que sabe ¢ eu nao? Leio, da parao gas- to, para meuuso, mas é claro que esse tipo de coisa frustraa gen- te: 0 fato de que nao consegui entender, que tive de viver sem entender. A ignorancia é a maior das frustragdes, em todas as reas posstveis ¢ imaginaveis. Em arquitetura, na arte, na mtisi- a, emtudo. 88 LELE (JOXO FILGUEIRAS LIMA) ASOLUCAO SARAH No perfodo da Faec, a rede Sarah de Hospitais do Aparelho Locomotor jé havia sido criada, mas ainda ndo existia nenhum hospital-satélite — s6 0 primeiro, de Brasilia, que projetei em 1976. Era preciso crié-los para ampliar o atendimento a outras regides do pafs. O diretor do hospital, Aloysio Campos da Paz, convenceu o presidente Sarney de que era preciso comegara fa~ zera rede. Sarney, membro do conselho do Sarah como eu, fa~ lot: "Vamos fazer trés hospitais.” Um em Sao Luis, terra dele, ‘outro em Salvador, e outro em Curitiba. E a Faee poderia cons- truir, por meio de convénio. Quando a fabrica fechou, o primeiro hospital a ser iniciado rao de Salvador, ¢ jé tinha uma porgio de pegas de argamassa produzidas. Foi uma situagdo complicada fazer um acerto de con- tascom a prefeitura, pegaressas pegas, 0s moldes metilicos. caros com aquele abacaxi. O de Sto Luis nao tinha comegado ainda, fizeram uma concorréncia e acabou mal construido, uma adaptagao da tecnologia sem muito critério. ‘Aqui, Aloysio queria fazer de forma diferente, porque apressa eras6 em relagio ao de Sao Luis. Decidimos pegar essas pegas produzidas e fazer outro projeto: usar parte em argamassa, outra emmetélica. As pecas acabaram sendo todas aproveitadas. Esse casamento do ago coma argamassa, ja utilizado nas passarelas de Salvador, foi explorado mesmo nesse hospital. Como tinha de fazer a rede, Aloysio ficou entusiasmado: "Vamos fazer logo um. centro, produzir os equipamentos todos aqui.” Assim nasceu 0 CTRS, que eu coordeno. A nossa idéia era construir hospitais Sarah no pais inteiro, mas hoje fica cada vez mais dificil que isso se concretize, porque © conceito da rede ¢ que ela dependa unicamente do Ministério 89 © quE £ SER AnQuirETo da Satide, que nao tenha outra fonte de renda. E é um hospital onde as pessoas tém horério integral, nto ¢ como outro hospi- talpiblico, Parase manter, precisa deum orgamento anual, apro- -vado pela Camara dos Deputados. Comas dificuldades financeiras por que passa o pais, os investimentos tém de ser reduzidos, nao 86 para construir novos hospitais como para manter a rede fun cionando. O hospital de Fortaleza, 0 altimo que fizemos, custou R¢ go milhes. Es6 paramanter o de Salvador funcionando custa R$ 30 milhées por ano, quase 0 prego do outro. O hospital de Sao Luis custou inicialmente R$ so milhdes sem equipamentos; depois, para equipar, ficou em R$ 7g milhdes. O daqui custou, j4 equipa- do, R$ 36 milhses, e a fabrica, outros Ré 17 milhses. Ou seja, com ‘um hospital que nés fizemos —0 de Salvador—o CTRS foi pago, ¢ com uma qualidade muito melhor do que o de Sto Lufs. ‘As modificagoes arquitetOnicas feitas nos edificiosdaredeem fungio da locomogio e do bem-estar dos pacientes sto frutos de tecnologias que o Sarah vem desenvolvendo, e sto radicais. Por exemplo, no ambulatério o atendimento 6 em equipe, nunca € isolado. Nao tem, como no hospital convencional, um consulté- rio onde o médico fica estitico A espera do doente. Omédico vem andando até ele. Isso facilita muito para o paciente, porque tem 0 ortopedista, o cirurgiso plistico, o dermatologista, todos exa- minando simultaneamente. Um paciente que teve um problema traumético qualquer nunca é um caso 86 de ortopedia, tem outras complicagées. ‘paraplégico precisa do urologista, de uma série de especialistas, porque tem varios problemas. Aliés, o problema ortopédico é 0 menos importante nesse momento, porque ainda niio se desco- briu como resolver a fratura de medula. Entio, tudo isso pen- sado junto. O Sarah 6 uma experiencia multidiseiplinar, no és6 arquitetura. uma experiéncia em que as equipes participam, e, 90 LEL£ (JoXO FILCUEIRAS LIMA) como tudo evolui, a gente sempre vai aprimorando ¢ diminuin- doos erros. Vamos consertando de um hospital para 0 outro, até na pr6pria flexibilidade que ele oferece vamos melhorando. (O Sarah de Salvador ¢ totalmente horizontal. Os hospitais de Belo Horizonte ¢ de Fortaleza sio verticais, mas desenvolvemos elevadores proprios paraceles. As rampas também sto utilizadas, ‘mesmo nas estruturas horizontais. A tOnica do hospital é essa, ter maior maleabilidade para o paciente. Se ele tiver autonomia, faz oque querno hospital. Nao existem barreiras fisicas; escadas, 56 para os médicos. NEM TUDO SAI DO PAPEL Ocstudante deve terna cabega desde 0 infcio que muitos pro- jetos seus nunca vio sair do papel. Mais de 30% de nossa produ- ‘do nao se concretiza. No meu caso tem sido assim, ficam apenas as propostas. Vale a pena a gente guardar alguns como meméria, porque sao uma referéncia de uma fase do trabalho. Outros até esquego; no deu certo, paciéncia. Porque agentes6 pode carac- terizar um trabalho arquitetonico quando ele fica pronto. E um percurso muito dificil. Hé uma série de fatores que interferem, que fazem até mudar completamente o proceso. arquiteto faz um anteprojeto, que, naturalmente, tem que ser discutido pelo cliente —no poder piblico, no meu caso, em forma de programa. Uma vez definido isso, comega a trabalhar no desenvolvimento do projeto. Af j4 interferem fatores de cus- to, porque muitas vezes h4 um orgamento, ¢as coisas comegama ser modificadas em fungio dos custos: o projeto jé comega aso- freruma censura grave na base da economia. No decorrer da obra, o © QUE £ SER ARQUITETO se tem uma empresa capaz de executar esse projeto, ele vai obe- decer mais ao que o arquiteto imaginou. Se nao tem, as vezes vai ser completamente diferente. Mais tarde ainda, a ocupagdo, que pode ser também totalmente diversa do imaginado inicialmen- te. Hé casos até em que a fungio do prédio muda. O arquiteto faz ‘um cinema e ele vira uma igreja evangélica, coisa muito comum hoje em dia. Houve 0 caso de um prédio em que sai muito frustrado por ilo ter feito: a sede da Bletrobris no Rio, porque era uma idéia ‘que tinha certa inovagio e um impacto grande na solugao do pro- blema da ocupagao do solo. A idéia de gabarito era fazer um pré- dio de 28 pavimentos, na Urea, no local da antiga Faculdade de ‘Medicina. Ia agredir muito a paisagem, um prédio alto ia preju- dicar a vista daquele primeiro morro, de onde sai o bondinho do Pio de Agiicar. Felizmente, isso nunca foi feito. (Chamado para dar uma solugao melhor, minha propostaini- cial era muito grande, o terreno no dava. Pensei, entdo, num projeto bem compacto e horizontal. Ao mesmo tempo, o prédio ficava todo solto, criando uma praca embaixo, um espa¢o utili- zével, com auditérios pendurados, esgotava todas as possibilida- des da tecnologia, com vaos enormes. Mas mudou a politica, entraram novos dirigentes no gover- noe na Bletrobras, e o plano foi deixado de lado. E muito comum, varias propostas falham. Desenvolvi um projeto de setor cultural em Brasilia que chegowatéo fim, nfo foi ‘uma fase de anteprojeto, jé era o projeto conereto. $6 que cada governante que entra apresenta seu proprio oramento, entra com um novo programa e muda tudo. O projeto de setor cultural nunea chegoua ser realizado. (O que mais frustra.a gente, porém, é 0 uso incorreto do espa ‘90, ver o prédio se deteriorar, a mé utilizagao. No projeto que fiz para prefeitura de Salvador, uma das coisas inteligentes €0 sis- ry LEL# (JOAO FILCUEIRAS LIMA) tema de ar-condicionado, correndo no tubo amarelo localizado emcima do edificio, no sentido longitudinal. Numa ocasiao, uma das maquinas teve um problema e, em vez de eles corrigirem, usaram um novo sistema, colocando aparelhos de ar-condicio- nado por baixo do edificio. Eles ficam l4 pendurados, aparecen- co. Uma coisa horrivel. E foi até um arquiteto quem fez aquilo. Isso frustra muito, porque a idéia bésica eraade que aquele tubo distribuisse o ar, como foi mantido durante o periodo de Mario Kertész. Outro exemplo: as passarclas de pedestres que idealizei para serem colocadas nas grandes avenidas. Pois toda hora surge uma ‘proposta de fazer uma passarela errada. Essas passarelas tém sido utilizadas no Brasil inteiro, nao dé para eu ficar de policial a de~ fender a idéia. As de Brasilia sao horriveis. Eles tém capacidade de produzir em escala industrial e fazem uma coisa daquclas. No Rio também séo mal implantadas. Toda vez que vio implantar outra, tento ficar em cima para que fagam aimplantagio correta. As passarelas foram feitas para serem conectadas as paradas de dnibus. Excepeionalmente, podem nio ser, mas basicamente sto os lugares onde o pedestre salta do énibus para atravessar a va. Entfo, colocar uma passarela sem conectar a parada ja é algo ‘equivocado. As vezes, na prépria implantagio ha uma linguagem urbana que tem de ser respeitada. Por exemplo, me incomoda muito uma passarela da Avenida Paralela, em Salvador, que de Tepente desce alguns niveis e ninguém sabe o porqué. A pintura, tudo bem, quando desbota és6 passaruma outra mio, mas quan- do implanta errado, nao tem conserto. Essas frustrag6es fazem parte de nossa profissio. f preciso encarar isso como uma coisa normal. Qualquer profissional, em qualquer profissio, vai ter sempre que lutar, brigar, no pode se acomodar. No caso da arquitetura, como essas etapas de traba- Iho sio distintas, sto oportunidades diferentes, vai ter que pegar 93 © QUE £ SER ARQUITETO

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