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FUNDAMENTOS

HISTÓRICOS E
FILOSÓFICOS DA
EDUCAÇÃO

Professor Me. Gilson da Costa Aguiar


Professor Me. Rodrigo Pedro Casteleira

GRADUAÇÃO

Unicesumar
Reitor
Wilson de Matos Silva
Vice-Reitor
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de Administração
Wilson de Matos Silva Filho
Pró-Reitor de EAD
William Victor Kendrick de Matos Silva
Presidente da Mantenedora
Cláudio Ferdinandi

NEAD - Núcleo de Educação a Distância


Direção Executiva de Ensino
Janes Fidélis Tomelin
Direção Operacional de Ensino
Kátia Coelho
Direção de Planejamento de Ensino
Fabrício Lazilha
Direção de Operações
Chrystiano Mincoff
Direção de Polos Próprios
James Prestes
Direção de Desenvolvimento
Dayane Almeida
Direção de Relacionamento
Alessandra Baron
Head de Produção de Conteúdos
Celso Luiz Braga de Souza Filho
Gerência de Produção de Conteúdo
Diogo Ribeiro Garcia
Gerência de Projetos Especiais
Daniel Fuverki Hey
Supervisão do Núcleo de Produção
de Materiais
Nádila Toledo
Supervisão Operacional de Ensino
Luiz Arthur Sanglard
Coordenador de Conteúdo
Priscilla Campiolo Manesco
C397 CENTRO UNIVERSITÁRIO DE MARINGÁ. Núcleo de Educação Qualidade Editorial e Textual
a Distância; AGUIAR, Gilson da Costa; CASTELEIRA, Rodrigo Daniel F. Hey, Hellyery Agda
Pedro. Design Educacional

Fundamentos Históricos e Filosóficos da Educação. Gilson Yasminn Talyta Tavares Zagonel
da Costa Aguiar; Rodrigo Pedro Casteleira.
Iconografia
Reimpressão
Maringá-Pr.: UniCesumar, 2018. Isabela Soares Silva
238 p. Projeto Gráfico
“Graduação - EaD”. Jaime de Marchi Junior

José Jhonny Coelho
1. História. 2. Filosofia . 3. Educação 4. EaD. I. Título.
Arte Capa
ISBN 978-85-459-0587-5 Arthur Cantareli Silva
CDD - 22 ed. 370
CIP - NBR 12899 - AACR/2 Editoração
Ana Carolina Martins Prado
Ficha catalográfica elaborada pelo bibliotecário Revisão Textual
João Vivaldo de Souza - CRB-8 - 6828 Talita Dias Tomé
Impresso por:: Ludiane Aparecida de Souza
Viver e trabalhar em uma sociedade global é um
grande desafio para todos os cidadãos. A busca
por tecnologia, informação, conhecimento de
qualidade, novas habilidades para liderança e so-
lução de problemas com eficiência tornou-se uma
questão de sobrevivência no mundo do trabalho.
Cada um de nós tem uma grande responsabilida-
de: as escolhas que fizermos por nós e pelos nos-
sos farão grande diferença no futuro.
Com essa visão, o Centro Universitário Cesumar
assume o compromisso de democratizar o conhe-
cimento por meio de alta tecnologia e contribuir
para o futuro dos brasileiros.
No cumprimento de sua missão – “promover a
educação de qualidade nas diferentes áreas do
conhecimento, formando profissionais cidadãos
que contribuam para o desenvolvimento de uma
sociedade justa e solidária” –, o Centro Universi-
tário Cesumar busca a integração do ensino-pes-
quisa-extensão com as demandas institucionais
e sociais; a realização de uma prática acadêmica
que contribua para o desenvolvimento da consci-
ência social e política e, por fim, a democratização
do conhecimento acadêmico com a articulação e
a integração com a sociedade.
Diante disso, o Centro Universitário Cesumar al-
meja ser reconhecido como uma instituição uni-
versitária de referência regional e nacional pela
qualidade e compromisso do corpo docente;
aquisição de competências institucionais para
o desenvolvimento de linhas de pesquisa; con-
solidação da extensão universitária; qualidade
da oferta dos ensinos presencial e a distância;
bem-estar e satisfação da comunidade interna;
qualidade da gestão acadêmica e administrati-
va; compromisso social de inclusão; processos de
cooperação e parceria com o mundo do trabalho,
como também pelo compromisso e relaciona-
mento permanente com os egressos, incentivan-
do a educação continuada.
Seja bem-vindo(a), caro(a) acadêmico(a)! Você está
iniciando um processo de transformação, pois quando
investimos em nossa formação, seja ela pessoal ou
profissional, nos transformamos e, consequentemente,
Diretoria de
transformamos também a sociedade na qual estamos
Planejamento de Ensino
inseridos. De que forma o fazemos? Criando oportu-
nidades e/ou estabelecendo mudanças capazes de
alcançar um nível de desenvolvimento compatível com
os desafios que surgem no mundo contemporâneo.
O Centro Universitário Cesumar mediante o Núcleo de
Educação a Distância, o(a) acompanhará durante todo
Diretoria Operacional
este processo, pois conforme Freire (1996): “Os homens
de Ensino
se educam juntos, na transformação do mundo”.
Os materiais produzidos oferecem linguagem dialógica
e encontram-se integrados à proposta pedagógica, con-
tribuindo no processo educacional, complementando
sua formação profissional, desenvolvendo competên-
cias e habilidades, e aplicando conceitos teóricos em
situação de realidade, de maneira a inseri-lo no mercado
de trabalho. Ou seja, estes materiais têm como principal
objetivo “provocar uma aproximação entre você e o
conteúdo”, desta forma possibilita o desenvolvimento
da autonomia em busca dos conhecimentos necessá-
rios para a sua formação pessoal e profissional.
Portanto, nossa distância nesse processo de cresci-
mento e construção do conhecimento deve ser apenas
geográfica. Utilize os diversos recursos pedagógicos
que o Centro Universitário Cesumar lhe possibilita. Ou
seja, acesse regularmente o AVA – Ambiente Virtual de
Aprendizagem, interaja nos fóruns e enquetes, assista
às aulas ao vivo e participe das discussões. Além dis-
so, lembre-se que existe uma equipe de professores
e tutores que se encontra disponível para sanar suas
dúvidas e auxiliá-lo(a) em seu processo de aprendiza-
gem, possibilitando-lhe trilhar com tranquilidade e
segurança sua trajetória acadêmica.
AUTORES

Professor Me. Gilson Costa de Aguiar


Possui mestrado em História e Sociedade pela Universidade Estadual Paulista
Júlio de Mesquita Filho (1999). Graduação em História pela Universidade
Estadual de Maringá (UEM/1991). Atualmente é professor titular do Centro
Universitário de Maringá e do Ensino a Distância do UniCesumar. Atua
nas áreas de Teoria das Ciências Sociais, Sociologia da Educação, Filosofia
da Educação e História da Educação e possui livros publicados nas Áreas
de Sociologia, Antropologia, Filosofia e História da Educação. Atua como
jornalista na rede CBN de rádio e é âncora e colunista na CBN Maringá e
Gazeta Maringá.

http://lattes.cnpq.br/3020130108890878

Professor Me. Rodrigo Pedro Casteleira


Possui mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM/2014). Graduação em Filosofia, pela Universidade Estadual de Maringá
(UEM/2006). Atualmente é professor de Filosofia da Rede Pública Paranaense,
lecionando, também, as disciplinas de Fundamentos Históricos e Filosóficos
da Educação para os cursos de licenciatura pelo Centro Universitário de
Maringá (UniCesumar).

http://lattes.cnpq.br/2234110887343110
APRESENTAÇÃO

FUNDAMENTOS HISTÓRICOS E FILOSÓFICOS


DA EDUCAÇÃO

SEJA BEM-VINDO(A)!
Saudações aluno(a), este trabalho é a realização de um objetivo e o começo de um de-
safio. Feito para garantir, a quem está cursando uma licenciatura, um entendimento das
origens do pensamento ocidental e, por consequência, de como está estruturada nossa
forma de compreender a contemporaneidade.
Este livro é fruto de uma insistência em compreender melhor o que somos para traçar
um caminho para o desenvolvimento do pensamento ocidental e da educação no Brasil.
É ainda um desafio quanto à função deste material qualificar quem educa, as pessoas
que terão em suas mãos a capacidade de preparar outras e lhes dar potencial para mu-
dar seu destino. Desejamos que cada pessoa, ao lê-lo, se permita mergulhar no universo
da curiosidade e pesquisa, a fim de alcançar saberes e conhecimentos cada vez mais
profundos.
Na Unidade I, trabalharemos os pensadores clássicos. Colocaremos em questão as pri-
meiras construções do pensamento ocidental com o homem grego. Resgataremos os
pré-socráticos e seus dramas da existência - drama que ainda hoje rodeia nossas vidas.
A partir da Unidade II, avançaremos para o pensamento moderno e contemporâneo. A
supremacia planetária da filosofia ocidental: as conquistas econômicas e sociais da so-
ciedade europeia se expressaram em sua compreensão do homem, na sua organização
política e, em especial, na formação dos estados nacionais. Assim, esta unidade ainda
contempla os grandes clássicos das ciências sociais: o positivismo de Comte, o estrutu-
ralismo de Durkheim, o materialismo de Marx e a história cultural de Weber. Mais que
isso, resgataremos os pensadores contemporâneos do existencialismo e os que resga-
taram por meio da fenomenologia a crise do indivíduo contemporâneo. Pelo fato de o
homem de hoje estar em crise, necessitamos analisar com profundidade os fatores que
a determinaram. Esse é um dos temas centrais da discussão desta unidade.
A Unidade III revelará o cenário brasileiro educacional desde a chegada dos jesuítas jun-
to da comitiva de colonização até a retirada do sistema educacional das mãos religiosas.
Nesta Unidade será possível perceber a lacuna deixada pelo Estado no âmbito educacio-
nal até o período da República.
Na Unidade IV, o período republicano não revelará um melhoramento no sistema edu-
cacional, apesar da laicidade adquirida e da absorção das ciências vindas da Europa. Na
prática, veremos que a educação ficará voltada à formação de mão de obra trabalhado-
ra.
A Unidade V é uma espécie de provocação frente a algumas questões contemporâneas
de discussão do corpo e da antropologia filosófica. Ao se pensar no corpo e como fo-
ram algumas de suas categorias pensadas na história e filosofia, é possível romper com
alguns paradigmas que o marcam como essencialidade inflexível, além de ser pensado
como múltiplo, ao mesmo tempo passível de respeitabilidade.
Procuraremos demonstrar o papel que o estado teve na ineficiência da educação pú-
blica ao longo de boa parte da história brasileira. Mesmo quando assumiu o papel de
APRESENTAÇÃO

propagar a educação, fez de forma quantitativa e não qualitativa. Mesmo hoje, os


resultados da educação do país, comparados com a de outros países, preocupam.
O desempenho dos nossos alunos do ensino público comparado com o privado
também é um dilema. A história é um importante instrumento para orientar nossa
análise sobre esses problemas.
Esperamos que o objetivo seja atingido. Sempre haverá algo a ser refeito. Sempre
teremos que repensar nossa forma de compreender o mundo, sempre descobrire-
mos imperfeições. A imperfeição é nossa característica mais importante, e o repen-
sar o nosso maior instrumento de superação - um trabalho que pedimos a ajuda dos
nossos leitores. Não rogamos a plenitude, quando educar implica em reconhecer
que se tem algo a aprender. Por isso, envie observações, faça e refaça também a sua
versão sobre o conteúdo desta obra, ela é feita para você e deve ser revista a partir
do momento em que você se relaciona com o conteúdo que está presente nela.
“Um homem não toma banho duas vezes no mesmo rio”, a frase de Heráclito nunca
deve ser esquecida. Enquanto autores, pensamos que este trabalho é como um rio,
não será visto por nós da mesma forma, assim como não seremos os mesmos após
tê-lo produzido. Espero que você também se transforme ao entrar em contato com
ele. Ele também irá mudar por tudo isto, com certeza. A mudança é uma necessida-
de, se a ciência puder promover as bases para que ela ocorra sem perder o sentido
que a vida tem para cada um de nós, preservando a convivência social e respeitan-
do-a, este trabalho terá cumprido o seu papel.
Desejamos a você um proveitoso estudo!
Gilson de Costa Aguiar
Rodrigo Pedro Casteleira
09
SUMÁRIO

UNIDADE I

A ORIGEM DA FILOSOFIA

15 Introdução

16 A Origem do Pensamento Filosófico: Dos Pré-Socráticos aos Clássicos Gregos

26 Além da Grécia: As Civilizações Que Herdaram O Pensamento Grego

35 O Pensamento Filosófico Medieval

45 O Nascimento do Islã

48 Cruzadas: a Palavra, a Espada e o Combate ao Califado

51 O Nascimento do Pensamento Ocidental Moderno

61 A Construção do Estado Nacional e a Ciência Política

69 O ‘Senhor’ do Pensamento Moderno

74 Do Racionalismo às Portas do Iluminismo

79 Considerações Finais

UNIDADE II

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO

91 Introdução

92 Iluminismo

101 Teorias do Mundo Contemporâneo

116 A Crise de Identidade Humana e as Teorias Contemporâneas

125 Considerações Finais


10
SUMÁRIO

UNIDADE III

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA

137 Introdução

138 Os Primeiros Tempos

145 Educação Laica, o Abandono

151 Da Colônia ao Império

163 Considerações Finais

UNIDADE IV

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA

175 Introdução

176 O Regime Republicano: Educação de saliva e papel

184 Eis Que Getúlio se Estabelece: O Modelo Imposto

191 O Regime Militar e a Educação Abaixo de Botas

198 Considerações Finais

UNIDADE V

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS

209 Introdução

210 O Chamado Período Moderno e algumas Interpretações

214 Algumas Questões para se pensar a Filosofia Atual


11
SUMÁRIO

216 A Filosofia da Linguagem

218 Corpos: Saberes que atravessam as Fronteiras

230 Considerações Finais

238 Conclusão
Professor Me. Gilson da Costa Aguiar
Professor Me Rodrigo Pedro Casteleira

I
UNIDADE
A ORIGEM DA FILOSOFIA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Entender os desdobramentos do pensamento filosófico ocidental na
Antiguidade, Grécia e Roma.
■■ Compreender a importância dos pensadores clássicos gregos – Sócrates,
Platão e Aristóteles – e seus princípios que se propagaram além da Grécia.
■■ Estabelecer a relação entre o desenvolvimento de uma filosofia clássica
com as mudanças que o mundo sofreu na passagem da Antiguidade para a
Idade Média.
■■ Compreender o pensamento moderno, derivado da lógica medieval cristã
e suas bases, para o racionalismo do Período Moderno.
■■ Entender a racionalidade ocidental como elemento fundamental para
o desenvolvimento da ciência e da tecnologia que promoveram o
desenvolvimento do Ocidente.
■■ Relacionar o desenvolvimento da ciência política e do papel do poder na
sociedade ocidental.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ A origem do pensamento filosófico: dos pré-socrático aos clássicos gregos
■■ Além da Grécia: as civilizações que herdaram o pensamento grego
■■ O pensamento filosófico medieval
■■ O nascimento do Islã
■■ Cruzadas: a palavra, a espada e o combate ao califado
■■ O nascimento do pensamento ocidental moderno
■■ A construção do estado nacional e a ciência política
■■ O ‘senhor’ do pensamento moderno
■■ Do racionalismo às portas do iluminismo
15

INTRODUÇÃO

Prezado(a) aluno(a), a importância da filosofia como base para a compreensão


do mundo, muitas vezes, é questionada. Sempre estamos à volta de que a reflexão
sobre o mundo que nos cerca é distante demais da realidade e de suas necessi-
dades. Pode haver uma verdade nisso. Se há uma verdade, ela está relacionada
à ignorância da necessidade de compreender o significado da vida humana, do
que um educador não pode abrir mão, mas que infelizmente muitos abrem.
Diante desta dúvida, procuramos apresentar em cinco unidades a trajetória
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

do pensamento ocidental. Em relatos resumidos, com relacionamento constante


com a contextualização histórica de cada pensador(a) e o contexto em que sua
obra foi produzida, buscamos desenvolver um texto com os pontos fundamen-
tais do histórico pessoal e os elementos fundamentais que sustentam sua teoria.
Esta unidade parte do pensamento clássico grego, demonstrando as teses
de Sócrates, Platão e Aristóteles como base do pensamento filosófico ociden-
tal. É possível perceber que esses autores são citados no decorrer da Unidade,
servindo de base para os demais filósofos, além de trazer pensamentos que per-
passam a Idade Média.
Teóricos como Santo Agostinho, Santo Anselmo, São Abelardo e São Thomaz
de Aquino demonstram a corrente de pensamento organizada dentro do discurso
católico. A relação direta entre o conhecimento de Deus e a verdade humana.
Por mais que superado na chamada “modernidade’, essa concepção dominou a
vida europeia.
Nesta Unidade, a principal sugestão é perceber quanto o pensamento clás-
sico (grego) e o pensamento religioso moldam o que se tornará a ética ocidental.
Ainda hoje temos instituições religiosas que estabelecem sua perspectiva de exis-
tência nas concepções que você vai estudar nesta Unidade.
Boa leitura!

Introdução
16 UNIDADE I

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A ORIGEM DO PENSAMENTO FILOSÓFICO: DOS PRÉ-
SOCRÁTICOS AOS CLÁSSICOS GREGOS

Platão nos traz Sócrates como figura emblemática em diversas de suas obras, na
forma de diálogo, uma vez que este nada escreveu. Em uma delas, relata o julga-
mento do pensador grego, considerado corruptor da juventude, mesmo sendo
avaliado como o maior dos filósofos, o “pai da filosofia”.
Nesse episódio, o julgamento foi resultado da denúncia de três moradores
de Atenas – Ânito, Meleto e Lícon.
O primeiro, Ânito, era um importante comerciante grego. Sua discórdia com
Sócrates foi o filho, um aprendiz do pensador. O comportamento questionador
do aprendiz irritou o pai. Dessa forma, juntou-se aos demais e fortaleceu a acu-
sação assinada por Meleto.
Meleto era um poeta pouco conhecido, mas segundo se levantou nas obras
escritas por pensadores gregos, teria se indisposto com Sócrates pela sua forma
de propagar ideias e de questionar o ganho de quem cobrava do ministério de
ensinar, assim como Lícon, um professor desconhecido, o prestígio de Sócrates
irritava. “A inveja também mata, tanto quanto a vaidade”.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
17

O PENSAMENTO SOCRÁTICO

Sócrates é um personagem controverso. Jamais deixou uma obra escrita, pelos


menos até o momento nunca foi encontrado nenhum manuscrito de sua auto-
ria. O que se sabe sobre ele vem de relatos de outros pensadores - discípulos,
como Platão ou inimigos e críticos, como Aristófanes.
Ele se negava aos manuscritos por considerar que a palavra escrita prenderia
a ideia e a colocaria limites, destruindo a capacidade de mudança e eternizando
os erros. Hoje, são exatamente estes erros escritos que nos faz reescrever o que
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

somos. Mas, em uma Grécia onde a oralidade era o elemento determinante para
a preservação da memória e repassar o saber, não havia o que julgar a postura.
Sua oposição aos sofistas, homens que percorriam as cidades discursando
sobre temas da natureza e da vida pública, lhe rendeu muitos inimigos. Sua crítica
direcionava-se à prática de discutir sem questionar, afinal os sofistas se prendiam
ao que não discutia a essência humana, mas apenas à manutenção da conduta ou
à complexidade de raciocínios que os afastavam dos homens comuns.
Oposto à vida dos sofistas, Sócrates era visto em meio ao povo, andava des-
calço. Segundo Platão, brincava com crianças e se apegava a pensar e refletir sobre
as questões profundas da existência humana. Jamais cobrou sobre suas palestras
e diálogos. É possível perceber em um dos diálogos descritos por Platão: “Disse
ele que o encontrara Sócrates, banhado e calçado com as sandálias, o que pou-
cas vezes fazia” (PLATÃO, 1972, p. 174).
A vida de filosofar e refletir sobre a existência humana e a capacidade de enten-
der o que nos cerca veio ainda na infância do pensador grego, quando sua mãe,
uma parteira, não de profissão, ao ajudar o nascimento de uma criança, desper-
tou em Sócrates o sentido da reflexão, o que ficou conhecido como “maiêutica”.
O papel de um filósofo, então, seria colaborar para despertar o nascimento
da reflexão, o que todo mundo tem como potencial dentro de si. Permitir que
essa capacidade se expresse e se mantenha constante ao entender os elementos
que dão sentido à vida humana.
Por isso, Sócrates não se considerava um denunciador da verdade, mas
alguém que tinha por propósito despertar a capacidade das pessoas de buscá-
-la. Para ele, mais importante do que propagar a certeza seria estimular a dúvida.

A Origem do Pensamento Filosófico: dos Pré-Socráticos aos Clássicos Gregos


18 UNIDADE I

Ficamos pensando se não seria essa a função dos educadores. Não só aque-
les que se formam hoje para a educação institucionalizada, como também os
que têm a capacidade de nos indagar sobre o que nos cerca, sobre o dia a dia e,
enfim, toda a nossa vida. Desvendar o sentido da existência é o verdadeiro sen-
tido de existir - de que adianta existir se não se tem a compreensão do porquê
se existe. Mas, como todo pensador que compreende além do senso comum o
sentido da vida, Sócrates pagou com a sua própria audácia de romper com o
esperado, de sair do controle, o que o conduziu a pagar com a vida, sendo obri-
gado a beber veneno.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Conta-se que atirou uma parte do veneno à maneira do que se fazia
num jogo que consistia em lançar o resto de um copo de vinho numa
bacia de metal, invocando o nome da pessoa amada; se o jato pro-
duzisse um som vibrante, era sinal de que o amor era correspondido
(GOTO, 2010, p. 110).

Nasceu em uma família humilde em 469 a.C, e foi condenado em 399 a.C. Sua
origem humilde contracenou com grandes momentos da história grega em que
foi protagonista. Ele liderou tropas gregas na Guerra do Peloponeso (431 a.C a
404 a.C) e, ao ser derrotado, preferiu preservar a vida de seus homens a trazer
consigo os corpos dos mortos. Um crime para os gregos, mas se livrou da sen-
tença ao argumentar “que sem os vivos não se pode enterrar os mortos”. Mas,
por ter se tornado o pensador influente que percorria Atenas e “contaminava”
sua juventude, foi condenado em uma assembleia de 501 cidadãos.
O interesse dos juízes era que Sócrates se calasse, que fugisse para não ser
executado ou que tivesse a língua cortada. Ele preferiu morrer, considerava que
era um ganho diante das outras opções que demonstravam a perda de fazer o
que mais gostava.
Para ele, morrer teria duas possibilidades desconhecidas, uma delas seria um
sono eterno para quem morresse, seria o bom sono de uma única noite; a outra,
se caso existisse outra vida, seria de imortalidade e com homens bem melhores
do que ele deixava nesta vida.
Uma das críticas feitas pelos amigos ao pensador grego, entre sua condena-
ção e a execução (30 dias), era que ele não pensava nos filhos. Caso pensasse,
deveria fugir para preservar a integridade de sua família. Diante dessa questão,

A ORIGEM DA FILOSOFIA
19

ele dizia que os filhos deviam seguir seu destino. Da mesma forma que eles não
teriam que ser condenados pelo que o pai fez, não cabe ao pai fugir da conde-
nação por eles.

PLATÃO E A VERDADE UNIVERSAL, IR ALÉM


DE SI, DAS DEMAIS PESSOAS. ALCANÇAR O
ETERNO
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A principal crítica de Platão (427 a.C a 347 a.C) direcio-


nava-se ao que não se estabelece como verdade universal.
Por mais que exista a necessidade dos valores imedia-
tos da vida, temos que ter um sentido maior que norteia
nossa existência. Não é por acaso que ele é um discípulo
de Sócrates. O filósofo compara com o sol a relação de
verdade e de bem, considerando que o que se vê não é o
sol em si, mas permite que se veja cada coisa.
Confessa, então, que o que derrama a luz da verdade sobre os objetos
do conhecimento e proporciona ao indivíduo o poder de conhecer é a
ideia do bem. Podes concebê-la como objeto de conhecimento por ela
ser o princípio da ciência e da verdade, mas, por mais belas que sejam
estas duas coisas, a ciência e a verdade, não te equivocarás se pensares
que a ideia do bem é distinta delas e as ultrapassa em beleza. Como no
mundo visível se considera, e com razão, que a luz e a visão são seme-
lhantes ao Sol, mas se acredita, erroneamente, que são o Sol da mesma
forma no mundo inteligível é correta pensar que a cidade e a verdade
são, uma e outra, semelhantes ao bem, mas é errado julgar que uma ou
outra seja o bem; a natureza do bem deve ser considerada muito mais
preciosa (PLATÃO, 2000, p. 221).

Sua trajetória dentro da filosofia grega tentou consolidar o pensamento filosófico


e propagar a universalidade do conhecimento. Sua busca por orientar a forma-
ção de um governo justo, para ele, dirigido por um filósofo, o levou a Siracusa
em três momentos. Neles, tentou mudar o governo de Dionísio I e, depois, mais

A Origem do Pensamento Filosófico: dos Pré-Socráticos aos Clássicos Gregos


20 UNIDADE I

duas vezes, o governo de Dionísio II. Para Platão, o bom governo tem um pen-
sador à sua frente. A razão e a sabedoria são os melhores governantes.
Sua busca por propagar as ideias de justiça além das muralhas de Atenas lhe
custou ser vendido como escravo por Dionísio I. Foi resgatado por seus amigos
atenienses que o compraram e lhe devolveram a liberdade.
Entre suas idas e vindas da Magna Grécia (Sul da Itália) e de Siracusa, fun-
dou a Academia de Atenas. A primeira instituição acadêmica oficial do mundo
ocidental. Um modelo que se propagaria e daria os moldes ao conhecimento
desenvolvido pela civilização ocidental.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Uma das grandes contribuições de Platão (2002) foi a divisão da verdade em
dois elementos, o material e o imaterial. O primeiro se refere às coisas em si, às
que, pelos sentidos, percebemos em sua existência física. A outra, a imaterial, é
a que damos sentido, valor, aos elementos que nos cercam. O conceito moral, a
relevância social e o peso ético.
Da mesma forma que Sócrates, Platão considerava a sabedoria nata, ela
está em nós, mas precisa ser despertada. Vivemos em um mundo de sombras
que encobre a verdade sobre o que nos cerca. Antes de nascermos, vivíamos em
outro lugar, em um corpo celeste, onde tínhamos a sabedoria sobre as coisas da
Terra, porque a víamos com um saber superior. Ao nascermos, fomos jogados
no mundo material e perdemos a consciência sobre nossa sabedoria. Cabe a
nós, a busca pelo despertar do conhecimento e sairmos deste mundo de “som-
bras”, da ignorância.
Por isso, ele considerava que nascemos sem consciência do mundo, ao con-
vivermos com o que nos cerca, lhe damos sentido. Mas, a sabedoria repousa
dentro de nós. Essa capacidade de reconhecer as “coisas” e desvendá-las com um
conhecimento anterior, o qual aos poucos desperta, é chamada de anamnésia.
Essa capacidade de elucidação eleva a pessoa e lhe dá uma importância
maior diante das demais. Esses devem ter acesso ao comando social. São eles os
melhores elementos para conduzirem a vida de uma cidade, de uma comunidade.
É assim que Platão concebe o bom governo, o dos sábios. A ordem social
perfeita teria neles os elementos mais elevados. Seriam os membros de “ouro”

A ORIGEM DA FILOSOFIA
21

de uma sociedade ideal. Seriam seguidos pelos soldados, aqueles que garantem
a ordem e mantêm a unidade entre os elementos de uma mesma comunidade.
Essa camada social teria como principal virtude a coragem. Por fim, os elementos
inferiores seriam os da “temperança”, os servos e escravizados, os trabalhadores,
ligados às necessidades materiais constantes e necessárias.
Da mesma forma que o corpo social idealizado por Platão, a pessoa, segundo
ele, deveria seguir o mesmo modelo: uma relação em que a racionalidade deve
imperar, ainda que os desejos sejam características da alma (ROBINSON, 1998).
Dito de outro modo, Platão acredita que, como os sentidos são imprecisos, “para
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

atingir a verdade é necessário que a alma rompa tanto quanto lhe for possível a
união com o corpo, que a engana. O filosofar é uma forma de purificar a alma
dos vícios corporais” (NETO; DESTRO, 2009, p. 7). Entender a necessidade de
uma vida dirigida por valores superiores, integrar o corpo a um ideal maior
que conduzisse a coragem e agisse sobre as necessidades materiais concretas.
Essa relação entre corpo e alma é conhecida como dualismo psicofísico, como
Robinson chama a atenção:
Ao escrever dessa maneira, Platão está no limite extremo do dualismo
psicológico; em nenhum outro diálogo ele se expressa em termos tão
rígidos e firmes a respeito da relação entre corpo e alma. Até que pon-
to, no momento em que escreve o diálogo, ele próprio acreditou que
esse dualismo acentuado seria uma descrição autêntica dos fatos, ou
até que ponto tal dualismo serviu ao propósito dramático de explicar a
disposição de Sócrates em face da morte, nunca saberemos. Mas uma
coisa sabemos. No diálogo ao que tudo indica imediatamente posterior
ao Fédão, isto é, na República, ele já passou para uma descrição muito
mais sofisticada da relação alma-corpo (ROBINSON, 1998, p. 343).

Essa relação descrita pelo autor revela como a alma é compreendida na medida
em que está conectada ao conceito de racionalidade. Frente a isso, Platão des-
creve uma importante Alegoria que trata das relações com a forma: A Alegoria
da Caverna, ou Mito da Caverna. É na República que o filósofo grego traça um
diálogo entre Glauco e Sócrates delineando o Mito da Caverna.
Agora imagine a nossa natureza, segundo o grau de educação que ela
recebeu ou não, de acordo com o quadro que vou fazer. Imagine, pois,
homens que vivem em uma morada subterrânea em forma de caverna.
A entrada se abre para a luz em toda a largura da fachada. Os homens
estão no interior desde a infância, acorrentados pelas pernas e pelo pes-

A Origem do Pensamento Filosófico: dos Pré-Socráticos aos Clássicos Gregos


22 UNIDADE I

coço, de modo que não podem mudar de lugar nem voltar a cabeça
para ver algo que não esteja diante deles. A luz lhes vem de um fogo que
queima por trás deles, ao longe, no alto. Entre os prisioneiros e o fogo,
há um caminho que sobe. Imagine que esse caminho é cortado por um
pequeno muro, semelhante ao tapume que os exibidores de marionetes
dispõem entre eles e o público, acima do qual manobram as marionetes
e apresentam o espetáculo (REPÚBLICA, 514 a).

A sequência do diálogo leva tanto Glauco como quem lê a pensar em seres acor-
rentados que jamais viram o mundo externo, tendo contato apenas com sombras
projetadas na parede da caverna. A verdade, então, estaria fora da caverna, ou

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seja, existe uma relação entre as sombras, que seriam cópias, e o que está fora,
a verdade. Quando uma das pessoas presas consegue fugir, promove para si a
ruptura entre cópia e realidade, saindo das noções de senso comum para se apro-
ximar ao conhecimento.

ARISTÓTELES E A HISTÓRIA DA FILOSOFIA

Na Escola de Atenas, fundada por Platão, se destacou Aristóteles (384 a.C a 322
a.C), o mais completo dos filósofos, o de maior destaque. Contudo, não foi o
herdeiro oficial platônico. Vale lembrar que a crítica ao mestre foi uma marca
aristotélica. Mas, esta é outra história contada aqui aos poucos, enquanto enten-
demos o pensamento do preceptor (educador/professor) de Alexandre, o Grande.
Várias características do pensamento aristotélico fazem dele filósofo distinto.
Em primeiro lugar, a capacidade de compreensão de um mundo que vai além
da projeção de uma sociedade ideal. Diferente de seu mestre Platão, Aristóteles
na Política, por exemplo, considerava fundamental compreender a pessoa em
conjunto com os fenômenos que a cercam. A natureza e sua dinâmica foram
algumas das preocupações do pensador, tanto que associava as concepções de
cidade com a estrutura organizativa dos demais animais.
No pensamento aristotélico está o respeito à reconstrução de uma lógica his-
tórica, tanto que o filósofo escreve um tratado de lógica formal, por exemplo,
além de categorizar as espécies, como reino, filo e família. Aristóteles buscava

A ORIGEM DA FILOSOFIA
23

compreender os resultados das obras dos filósofos que o antecederam e contri-


buir para o avanço do conhecimento.
O perigo da obra aristotélica foi a generalização do que o antecedeu, a análise
particular de uma grande quantidade de obras com diversidade de posicionamen-
tos, nem sempre uma continuidade. Esse determinismo acabou por confundir
dois conceitos, o de resultado e princípio.
O conceito de resultado diz respeito à preocupação de que todo o pensa-
mento deve se prender a uma única busca, a semelhança entre os elementos
diferentes. Um exemplo é que há algo em comum entre o cérebro de um homem
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e do macaco, mas essa semelhança não pode ser o fator que determine que um
homem qualquer e o macaco sejam iguais, pois não são. Logo, não se aponta a
discordância com condição de se abordar um determinado conteúdo. Esta gene-
ralização ameaça as abordagens que se faz da sequência histórica que Aristóteles
propõe. Os princípios de verdade são, conforme Almeida (2008), uma estrutura
em que deve apontar para um fundamento que objetiva critérios de verdade.
Nesta equivalência encontra-se aquilo que se pode chamar de ‘princí-
pios de verdade’, os quais, segundo Aristóteles, são o fundamento úl-
timo (ou primeiro) de justificação para qualquer discurso declarativo
que se pretenda verdadeiro, sendo, por isso, também assumidos pelo
mestre do Liceu como critérios últimos para determinar a verdade ou
falsidade de qualquer discurso declarativo (ALMEIDA, 2008, p. 6).

Se fossemos pensar o que isso significaria na atualidade, seria admitir que


Aristóteles considera o conhecimento produzido uma continuidade direcio-
nada para um determinado fim. Não implicaria em uma dinâmica que pode
apontar para diferentes formas de compreensão da existência.
Se pensarmos no significado de nossa vida e considerarmos como chegamos
a um determinado ponto, nós temos a impressão de que todos os fatos que nos
antecederam conspiraram para estarmos aqui, vivendo o que estamos vivendo.
Isso seria incorreto. Somos um resultado, mas nem sempre de uma condição
desejada. As relações categóricas aristotélicas, para além disso, concedem uma
estreita relação entre linguagem e verdade, sem qualquer dualidade, prática
comum nos escritos platônicos, mas que se conecta com princípios lógicos que
fornecem estruturas para os argumentos.

A Origem do Pensamento Filosófico: dos Pré-Socráticos aos Clássicos Gregos


24 UNIDADE I

A PREOCUPAÇÃO COM OS QUE VIERAM ANTES

Como afirmado anteriormente, Aristóteles se preocupou em resgatar os pensa-


dores que o antecederam. Aqueles que deram origem ao pensamento filosófico,
diferenciando-os dos historiadores ou dos sofistas. Para ele, pensadores como
Tales (624-547 a.C) ou Parmênides (530-460 a.C) foram importantes iniciado-
res da construção de uma lógica complexa e de um entendimento superior sobre
a essência da natureza e da humanidade.
Tales, que viveu na Itália, não buscava nos elementos da natureza o princí-

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pio único de tudo o que nos cerca. Para ele, o saber deve ir além do princípio
moral, ou seja, se a água está em quase todas as coisas, e o Planeta é formado
em sua maioria por água, não significa que ela é a essência de tudo o que existe,
a sua natureza não é determinante sobre as demais.
O saber verdadeiro, segundo o próprio Aristóteles, não se prende a um
conceito moral ou ético, ele vai além, ele é eterno. Ou seja, ele independeria de
mudanças histórico-sociais.
O ser verdadeiro ou falso é, nas coisas (epì twn pragmatwn), o estar
reunido ou separado, de modo que diz a verdade (aletheúei) aquele que
crê (ho oiómenos) estar separado o que está separado e que crê estar
reunido o que está reunido; falseia, porém, aquele que se mantém con-
trariamente às coisas. Pois tu não és branco porque nós cremos (hoíes-
thai), verdadeiramente, que tu sejas branco, mas porque tu és branco é
que nós, que dizemos isso, dizemos a verdade (ARISTÓTELES, 1998,
p. 474).

A relação de verdade está na afirmação ou negação de determinada coisa. Desta


forma, ou afirmamos algo ou o negamos, o que não depende de subjetividades,
mas sim das relações entre o que se fala e do que se fala, o que implica em se
dizer que o saber verdadeiro o é segundo essa relação entre discurso e a coisa
discursada.
Heráclito (540-470 a.C) foi emblemático, sendo o responsável pela célebre
frase: “um homem não pode se banhar duas vezes no mesmo rio”. Ou seja, o mundo
vive um movimento constante. Tudo é mudança. Mas o que muda?
Um pioneiro nesse princípio foi Parmênides. Em sua série de poemas com
o título “Da Natureza”, ele considerava que o conhecimento era o saber dos

A ORIGEM DA FILOSOFIA
25

deuses. São eles que compreendem a lógica do que existe e sua função. A huma-
nidade nomina as coisas, mas não sabe sobre sua essência e o que ela é capaz
de determinar.
Aqui temos mais um aprendizado fundamental. O saber é eterno, os homens
não. Viver sem conhecer a importância da ciência, da essência de tudo, não é
viver. Ou, se é, é existir sem dar um sentido à existência.
Mas, como é possível conhecer as coisas se tudo está em constante mudança?
Esta é uma indagação que ainda hoje movimenta as teses filosóficas. Vivemos
um mundo em transformação, como seria possível conhecer sua lógica? Existiria
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um meio de compreender a permanência sem perder os elementos que expli-


cam as constantes mudanças?
Zenão (490-430 a.C), vindo de Eléia, a mesma cidade italiana de Parmênides,
condenava o movimento, assim como a diversidade, ele considerava que ambas
eram uma ilusão. Para o filósofo eleata “Tempo e a mudança são tidos como con-
ceitos contraditórios e relativos” (MODENESI, 2011, p. 2). Porém, a essência do
mundo também é importante para os pré-socráticos como elemento de compre-
ensão da natureza. Os elementos que formam a materialidade das coisas também
podem ser os elementos que formam a materialidade da alma.
Um dos antecessores de Sócrates que tratou do tema, por mais que com dis-
túrbios das análises de Zenão e Parmênides, foi Anaximandro. Pouco se sabe
sobre sua data de nascimento ou morte, mas foi um dos membros da escola de
Tales de Mileto. Ele considerava que o ar, e não a água, seria o elemento vital
para a manutenção da vida, inclusive da alma.
Mas, nem todos os pensadores comungaram com a ideia prática da filoso-
fia, do homem que deveria entender os elementos e interferir em sua existência.
Pitágoras nasceu na Grécia, em Samos, mas desenvolveu seus trabalhos e sua
“escola filosófica” no sul da Itália, em Crotona. Ele considerava que o papel do
filósofo era a contemplação. Comparava a existência aos jogos olímpicos, uns
vão para comprar e vender, os inferiores; outros vão para competir, os agentes
da política, os soldados, os que determinam a vida das instituições; por fim, os
que vão assistir e contemplar, estes são superiores, estes são os filósofos.

A Origem do Pensamento Filosófico: dos Pré-Socráticos aos Clássicos Gregos


26 UNIDADE I

ALÉM DA GRÉCIA: AS CIVILIZAÇÕES QUE


HERDARAM O PENSAMENTO GREGO

O que vimos aqui sobre o desenvolvimento do pensamento grego é apenas um


fragmento, uma pequena parte de uma discussão que tem uma “infinidade” de
possibilidades de entendimento. Mas, procuramos demonstrar que a forma de
compreender o mundo incomodou aqueles que foram os fundadores do pensa-
mento ocidental, a cultura helenística.
Para entendermos como este pensamento conseguiu ir além das fronteiras

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gregas, avançando ao longo da história e chegando aos nossos dias, é necessário
lembrar que os próprios gregos sempre foram além de si, fundando colônias e
mantendo relações mercantis com vários povos da antiguidade.
O momento inicial da expansão do pensamento grego, uma prévia do que
viria a ser a expansão do “ocidentalismo”, foi a conquista da Grécia pelos mace-
dônios, no Século IV. Após conquistar os gregos, o Império Macedônico adotou
a cultura grega como o princípio da cultura a ser levada na expansão territorial.
As vitórias macedônicas se consolidaram na Ásia Menor, no Egito e em
todo o Mediterrâneo oriental. Os povos que foram submetidos por Alexandre,
o Grande, foram subordinados não só a sua força militar, mas tiveram que con-
viver com a cultura grega. Instituições políticas e língua, por exemplo, passaram
a ser introduzidas nos “quatro cantos” do Império.
A influência não foi superficial como uma mancha em um tecido, ela se
aprofundou e passou a ser incorporada nas práticas comerciais, na vida pública,
na produção do conhecimento, a orientação filosófica dos pensadores gregos
ganhou novo sentido. Muitos desses conhecimentos, os ocidentais iriam reen-
contrar com as “Cruzadas” promovidas pelos cristãos contra os muçulmanos.
O próprio desenvolvimento científico e econômico dos árabes (séculos VI ao
XV) foi marcado pelas bases do pensamento grego. O Renascimento Cultural,
na Europa, permitiu a retomada das raízes filosóficas helenísticas.
O Império Macedônico não foi duradouro, na prática, sua decomposição
começou com a morte de Alexandre (323 a.C), o seu fundador. Dividido pelos
generais, foi aos poucos conquistado por romanos e árabes. Territórios foram
retomados pelos persas e os egípcios se libertaram da dominação macedônica,

A ORIGEM DA FILOSOFIA
27

mas a cultura grega ficou, deixou suas marcas e orientou o destino do conheci-
mento do universo em muitas regiões onde os macedônios percorreram.
O clima de insegurança em que o Império Macedônico se decompôs gerou
uma angústia que predominou também no pensamento filosófico do período.
Um pensador que expressa esse clima é Diógenes (404 a 323 a.C), discípulo de
Antístenes, seguidor de Sócrates, e que questionava a vida mundana, a sedução
pela matéria e buscava uma vida simples.
Segundo a lenda, Diógenes andava perambulando pelas ruas de Atenas e,
depois de ser expulso de sua casa, passou a viver em um barril e andava pelas
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ruas em plena luz do dia com uma lamparina. Ele afirmava que fazia aquilo por
estar à procura de um honesto.
Diógenes escolheu uma vida austera, demasiadamente simples, sem
luxo, sem casa, sem pátria; seu único objetivo era defender, como um
cão feroz, a sua filosofia de vida; contentava-se com o estritamente ne-
cessário à sua sobrevivência, desprezava a suntuosidade, tinha aversão
ao prazer, negligenciava as convenções sociais, considerava inútil o es-
tudo metafísico (DIAS, 2014, p. 131).

Sua atitude despertou a curiosidade do imperador Alexandre, que um dia quis


conhecê-lo. Quando o encontrou, ele estava deitado dentro do barril onde vivia.
O imperador teria dito que ele poderia fazer o pedido que quisesse e pronta-
mente seria atendido. Diógenes teria dito para que Alexandre saísse de sua frente
e parasse de roubar sua luz com a sombra. Encantado pela convicção do “anda-
rilho” filósofo, o imperador teria afirmado que se não fosse Alexandre, gostaria
de ter sido Diógenes.
Diógenes foi um dos adeptos do cinismo, uma corrente que associava a pes-
soa ao desprendimento das coisas materiais, e também a uma forma de crítica à
vida de excessos. O princípio dos homens, aqui pensados como pessoas do sexo
masculino, que seguiam esse pensamento, era ter autonomia diante do mundo.
Não depender daqueles que buscassem o enriquecimento na manipulação dos
indivíduos e na influência de seus interesses.
Uma afirmação de Diógenes que expressava a crítica ao mundo da materia-
lidade era a busca de influência, convivendo com pessoas de poder: “prefiro a
companhia dos corvos a dos bajuladores”. Valorizava, assim, a realidade em detri-
mento da falsidade, que o poder material e a influência política podiam nos dar.

Além da Grécia: As Civilizações que Herdaram o Pensamento Grego


28 UNIDADE I

A crítica ao apego à vida material estava na forma como o homem se deforma


diante do desejo do prestígio adquirido com o enriquecimento. O que hoje é
uma condição que atinge grande parte dos seres humanos. Uma denúncia da
perda de princípios profundos que possam conduzir a sociedade a uma condi-
ção superior, justa.
O que Diógenes criticava era a demonstração da decadência da sociedade
de seu tempo. As cidades dominadas pelos macedônios eram voltadas aos inte-
resses particulares e desprezavam os temas de unidade política. A formação de
um império com uma diversidade considerável de povos acabaria por levar à

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destruição do que os unia e elevar o particularismo. Isso estava expresso tanto
na política quanto no comportamento de cada um.
O cinismo cresceu, mas acabou se deturpando. Passou a ganhar a conotação
de crítica, mas incorporado aos desejos de sucesso material. Porém, não havia a
preocupação da perda do enriquecimento pelo cínico. Ele estava mais preocupado
com seu imediatismo. Essa é uma linha do cinismo que chegou até nossos dias.
Viver o hoje sem se preocupar com o amanhã, uma “filosofia de vida” expressa
na propaganda dos cartões de crédito da atualidade.
Outra escola do período de crise macedônica foi o ceticismo. Apesar de já
ser um tema tratado pelos pré-socráticos, o “ser cético” cresceu no mundo helê-
nico e teve em Epicuro (342 a 270 a.C) sua maior expressão. Ateniense, suas teses
acabaram se desenvolvendo na Ásia menor, onde ficou encantado pelas teses de
Demócrito (um dos seguidores das teses céticas).
Epicuro elabora sua ética com base em três princípios fundamentais:
(a) a correta compreensão da natureza dos deuses e a consequente eli-
minação do seu temor; (b) a correta compreensão da natureza da morte
e a consequente eliminação do seu temor; (c) a correta compreensão da
natureza dos desejos e a sua consequente boa vivência (FILHO, 2009,
p. 13).

O pensamento de negar toda a verdade absoluta, defendida por ele, gerava a


necessidade de conduzir um homem a um eterno questionamento sobre os fun-
damentos de sua existência e questionar até mesmo as resposta que viesse a ter
a partir de suas dúvidas. A angústia como condutora e a crise como princípio
definiam o homem cético.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
29

Um contraponto ao cínico era que o cético considerava que os prazeres morais


deviam ser uma busca e um direito humano. A condição humana de estar rode-
ada de prazeres materiais não significava aboli-los, como se eles levassem a um
mal, mas se valer deles sem culpa.
Para os céticos, a mente deve buscar na razão do mundo o espírito elevado
da conduta, mas não deve se eximir da existência, ou seja, viver bem não impede
uma compreensão apurada da vida. Um contraponto que para muitos foi a solu-
ção para viver com satisfação material e transformar a angústia em um ritual
que não necessita se desfazer da realização do desejo.
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Nas teses de Epicuro, a pessoa não tem mais a sensação após a morte. A
separação entre o corpo e alma se dá quando o átomo da matéria se decompõe
se libertando dos sentimentos de prazer e dor. Desta forma, não há o que temer
na morte, e ela não nos aproxima dos deuses, os quais, por mais que tivessem
nos gerado, não determinam nosso destino. Nossa alma apenas se dispersa pelo
mundo, sem sentido. Por isso, não há o que temer na morte, ela nada significa
no mundo sensível.

O PENSAMENTO ROMANO: FUNCIONAL E MATERIAL

A formação do Império Romano é uma


demonstração da eficiência da organi-
zação do Estado e sua capacidade de
governar as diferenças constantes dos
povos que se domina. A dimensão do
Império, atingindo inúmeros povos,
demonstrou sua eficiência em condu-
zir o poder a lugares onde a cultura local
não se identificava com as instituições
clássicas latinas.
O pensamento romano foi expresso por pensadores como Zenão (340 a 264
a.C), o fundador do estoicismo valorizava a rigidez do caráter, a ação que expres-
sava os valores da moral incorruptível. Filho de comerciantes, apesar de ser de

Além da Grécia: As Civilizações que Herdaram o Pensamento Grego


30 UNIDADE I

origem fenícia, se erradicou no mundo grego e viveu a expansão romana. Uma


pessoa de valor é constante em seu comportamento, independente das condições
em que se vê obrigado a conviver. Mudança do mundo não significa despren-
dimento e mudança de valores. Estes eram princípios defendidos por Zenão.
A popularidade do estoicismo cresceu e atingiu mais adeptos do que o pen-
samento de Platão e Aristóteles em seu tempo. Um herdeiro do pensamento
socrático, Zenão acabou por influenciar a conduta de reis da antiguidade, ape-
gados ao comportamento “reto” como um princípio de governo. De certa forma,
era o que Sócrates esperava do bom governante, agir como um filósofo, ter prin-

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cípios rígidos.
Dessa forma, é fácil perceber como a ação ganha força e passa a ser determi-
nante do caráter humano. É preciso dar praticidade ao comportamento, ir além
da reflexão, promover a ação. O conhecimento passa a ser um valor impregnado,
que se expressa no comportamento. Até mesmo o valor divino, os deuses, estão
dentro dos seres humanos, nas condutas que determinam sua proximidade ou
não com um sentido superior da vida.
Mas se as leis mudam, o homem não muda seus valores? Essa talvez seja a
principal crítica ao estoicismo. Não é possível ser eternamente detentor de prin-
cípios, mas não podemos ser flexíveis o tempo todo. Ou seja, não podemos ser
uma mudança constante e transformar os conceitos sobre o mundo numa super-
ficialidade momentânea. Zenão considerava que a perda de bens materiais pode
ser reparada, se não no todo ou em partes. Já a dignidade humana, uma vez per-
dida, o desumaniza e condena.

CONTRADIÇÕES NO PENSAMENTO ROMANO

A história romana está recheada de uma glória à conduta e de contradições de


quem deveria expressá-la. Os personagens que apelam no discurso e na estética
pública uma conduta moral rígida são, em regra, os mesmos que têm, em sua
privacidade, uma vida mundana.
Um destes exemplos de contradição entre o público e o privado é Sêneca
(4 a.C. a 65), o senador romano, famoso por sua defesa à moral, discípulo de

A ORIGEM DA FILOSOFIA
31

Zenão. Foi um crítico da perda moral romana. Exigindo de seus governantes um


comportamento a “altura” de seu posto. Ele mesmo não obedeceu a este critério.
Em uma de suas críticas à mulher do imperador Cláudio, acabou sendo
banido de Roma, mas retornou quando as práticas da imperatriz foram desco-
bertas. Ele mesmo tinha uma conduta que dava espaço a críticas como cobrar
impostos abusivos de súditos britânicos, quando o Império Romano se esten-
dia até a Bretanha. Ele mesmo foi convidado a cometer suicídio após uma série
de atos corruptos que o envolviam.
Na atualidade, as práticas de corrupção continuam tomando conta do Estado.
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E como no tempo de Sêneca, o discurso de alguns dos adeptos do abuso é a con-


duta reta. O que na retórica prega princípios e faz alusão ao comportamento
que não se deixa abater ou seduzir pelos excessos não corresponde à realidade.
Podemos considerar que o abuso de quem assume o poder acaba por se contra-
dizer com o discurso.
Outro estóico foi Epicteto (60 a 100), escravo, como o seu próprio nome sugere
(adquirido), foi liberto e passou a ministrar aulas em Roma. Mesmo sofrendo
de doenças constantes, fruto de seu tempo de sofrimento como escravo, jamais
abandonou o ofício da educação e da crítica. A segunda lhe gerou a persegui-
ção por parte do Imperador Nicópolis, um corrupto. Acabou por buscar exílio
na Grécia, onde viveu até o fim dos seus dias.

Uma das grandes escolas filosóficas do período helenista, assim chamada


pelo pórtico pintado (Stoá poikílé) onde foi fundada, por volta de 300 a.C,
por Zenão de Cício. Os principais mestres dessa escola foram, além de Ze-
não, Cleante de Axo e Crisipo de Soles. Com as escolas da mesma época,
epicurismo e ceticismo, compartilhou a afirmação do primado da questão
moral sobre as teorias e o conceito de filosofia como vida contemplativa
acima das ocupações, das preocupações e das emoções da vida comum.
Seu ideal, portanto, é de ataraxia ou apatia.
Fonte: Abbagnano (2007, p. 375).

Além da Grécia: As Civilizações que Herdaram o Pensamento Grego


32 UNIDADE I

Sua principal crítica era a conduta desonrosa do poder. Considerava que o


governo justo não se corrompe. Se obrigados a aceitar as instituições públicas,
elas devem cumprir com suas funções. Para ele, o dever do governante está acima
de seus interesses privados. Ele não pode transformar o poder em um instru-
mento de suas particularidades.
O mais ilustre dos estóicos foi Marco Aurélio (121 a 180), imperador romano.
Ele buscou documentar sua vida no Império e seguir os princípios de fidelidade
à Roma e suas instituições. Dedicado a manter o poder em um império que já
sofria as invasões dos povos vizinhos (chamados de bárbaros) e convivia constan-

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temente com revoltas internas, Marco Aurélio buscou preservar Roma, garantir
sua integridade, tanto na força física como no discurso moral.
Ter perseguido os cristãos, em seu período, não foi uma tradição ou hábito,
foi a forma de garantir a religiosidade romana e a lógica de sua autoridade a qual
os cristãos incitavam levantes. Para o imperador filósofo, era necessário que o
homem público cumprisse o seu papel. Ele necessitava executar o seu dever
dentro do organismo social. Nesse ponto, Aurélio se aproxima da concepção de
Platão sobre a ordem perfeita da sociedade, em que cada um dos seus elemen-
tos deve cumprir o seu papel de forma eficaz e se subordinar a ele.
A própria formação do Império Romano foi marcada pela ação violenta e
conquista. O domínio constante possibilitou a incorporação de inúmeros povos
e a implantação de uma estrutura militarizada em todo o território dominado
pelos romanos.
O sucesso da expansão romana se deu sobre povos organizados das mais dife-
rentes formas. As fronteiras romanas foram os rios Danúbio e Reno, ao Norte,
ao Leste, o deserto da Arábia e o Rio Eufrates, ao sul, o deserto do Saara e, ao
Oeste, o Atlântico. Em todo esse território, ocorreu a integração e implantação
de uma administração bem-sucedida. Ela alcançou seu tempo de paz nos pri-
meiros séculos da Era Cristã.
O legado romano também influenciou o nosso tempo. Assim como os gregos,
também deixou marcas que se mantiveram e chegaram até nós: as instituições
jurídicas, a produção cultural, a concepção do Estado e o cristianismo. Contudo,
os romanos tiveram na cultura grega a medida para tudo o que fizeram. Podemos
considerar que foi nas estruturas de Roma que a cultura grega se alicerçou no ocidente.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
33

No oriente, o legado grego se manteve subordinado à cultura predominante


dos povos que conquistaram as terras do Império Romano, principalmente os
muçulmanos. Nem por isso deixamos de reconhecer que a cultura grega tam-
bém foi redescoberta pelo ocidente quando da conquista da Península Ibérica
pelos muçulmanos (século VIII), sendo necessário também mencionar o con-
tato que o ocidente teve com estes povos. O que já comentamos anteriormente.

ATRAVESSAMENTOS CRISTÃOS E O PENSAMENTO FILOSÓFICO


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MEDIEVAL

O cristianismo foi criado por Roma e sobreviveu à sua decadência. Fez-se e refez
aos moldes do tempo e sobrevive até nossos dias. Podemos considerar, dadas as
devidas proporções, que o Ocidente é “cristão”. Se não mais pela crença, a qual
ele não é obrigado a professar, pela carga cultural de compreensão do mundo
que o cristianismo construiu e permitiu durante a expansão que a civilização
ocidental promoveu.
O ponto de encontro entre o cristianismo e a filosofia grega foi Alexandria,
localizada dentro do território egípcio. A cidade, que continha o principal porto da
África durante o período romano e ainda hoje é destaque na orla do Mediterrâneo,
foi o centro de uma cultura que nasceu de muitos caldos culturais e permitiu a
concepção cristã que o ocidente disseminou.
As ideias de maior expressão que se difundiram em Alexandria têm autoria
de Plotino (204 a 270). O jovem egípcio estudou em Alexandria e manteve-se
na cidade até 243, quando fugiu após uma campanha desastrosa do imperador
romano na África. Em Roma, cidade onde propagou seus estudos e difundiu suas
ideias, Plotino plantou o pensamento que viria a se impor sobre todo o territó-
rio europeu ocidental e, mais tarde, sobre boa parte do Planeta.
Suas ideias, pela carga de misticismo, já demonstravam um desprendimento
com a realidade e a despreocupação em se ter uma conduta política fundada na
racionalidade do estado. O contexto de decadência do Império Romano, no qual
viveu, demonstrava a dificuldade de se entender de forma racional a crise que se
atravessava. O cristianismo nasce da sobrevivência diante da crise.

Além da Grécia: As Civilizações que Herdaram o Pensamento Grego


34 UNIDADE I

Em nosso tempo não é diferente a forma como o pensamento se desprende


da necessidade de ação. Se observarmos, ao longo da história, o pensamento
ganha conotações metafísicas diante das dificuldades que as instituições racio-
nais atravessam. Hoje, em pleno desenvolvimento de uma estrutura tecnológica,
que é fruto do desenvolvimento científico, nos apegamos aos misticismos dege-
nerativos da consciência, infantilizamos o pensamento do homem. Calculo que
seja medo de enfrentar com a razão e sentir sobre os ombros o peso da existên-
cia que nos faz agir assim.
Plotino concebe que a vida é fruto de um encontro entre a “trindade”, aqui,

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diferente daquela que concebem os cristãos da atualidade. Na trindade de Plotino,
há um elemento único que integra, o “Uno”. Esse primeiro elemento conduz a
força criadora do “Nous” (espírito), o segundo, propagador da vida. Por fim, a
“Alma” é o terceiro elemento, o qual dá vida à toda criação. As bases desse pen-
samento são gregas, e são uma releitura da dialética platônica e de Demóstenes
sobre os elementos da criação.
Claro que o pensamento de Plotino não deu origem imediata ao pensamento
cristão que conhecemos. Sobre esse tema trataremos no próximo capítulo. O
que temos que ter claro é que o desenvolvimento da civilização ocidental se deu
com a construção de um legado grego. Nossa busca incessante por respostas, o
desejo de encontrar uma lógica determinante para a existência e de dominar a
natureza que nos cerca através da compreensão das leis que a regem são, sem
dúvida, legados gregos.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
35

O PENSAMENTO FILOSÓFICO MEDIEVAL

A construção do mundo medieval foi o resultado da destruição do Império


Romano, onde as invasões bárbaras não foram só um fator determinante, mas
resultado de outros fatores.
A decadência está relacionada à crise escravista, à falta de trabalhadores nas
áreas agrícolas e à constante tributação para manter a imensidão do império. A
falta de trabalhadores gerou uma queda de produtividade dentro das terras do
Império. A tributação, por consequência, caiu e a ineficiência do estado romano
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se ressaltou.
Um governo imperial, tão eficiente para integrar as províncias, não foi capaz
de administrar as crises que tiveram origem em diversos territórios, muitos por
problemas locais. A imposição centralizadora sempre foi a saída romana, seja
pelas tropas, seja pelas instituições. De problemas locais, uma crise geral se alas-
trou. Foi nesse contexto que as invasões bárbaras se disseminaram. Muitos dos
líderes estrangeiros serviram a Roma, aprenderam a combater com ela e a des-
truí-la com o conhecimento que adquiriram.
Mesmo antes da decadência do Império, os cristãos já não eram mais perse-
guidos e a religião havia se oficializado. No governo de Constantino e Teodósio,
a Igreja Cristã formou a estrutura administrativa que acompanharia a sua exis-
tência por séculos.
Com o surgimento de uma estrutura de poder romana associada à Igreja
Católica, um novo personagem de poder assume a função da administração dos
homens ocidentais, o Papa. A construção de uma cúpula de comando da Igreja
(Clero) permitiu a consolidação de uma instituição política com forte influên-
cia sobre os demais povos que viriam a habitar os territórios que um dia foram
do Império Romano.
A conversão dos bárbaros por membros do clero e a construção de institui-
ções que propagavam o cristianismo foi uma prática constante na decadência
romana e ascensão do medievalismo. Muitos pensadores se dedicaram a difundir
a fé cristã e aprimorar o pensamento religioso fundado na Bíblia, o documento
sagrado dos cristãos que foi compilado e produzido na decadência do Império
sob a égide dos últimos imperadores romanos.

O Pensamento Filosófico Medieval


36 UNIDADE I

O termo bárbaro é uma herança grega, mas que o povo egípcio já chama-
va toda pessoa que falava uma língua diferente. Na Grécia, por exemplo, o
termo estava ligado a quem não falava o grego, mas que parecia apenas
dizer coisas incompreensíveis, e não “compartilhava nem os costumes nem
a civilização dos helenos.
Fonte: Guerra (1987, p. 5).

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Uns dos princípios fundamentais da nova concepção que se estabelecia com o
desenvolvimento do cristianismo foi a separação entre o comando do Papa – da
igreja de uma forma geral – e dos imperadores, monarcas europeus. Enquanto
o primeiro deveria governar a alma dos homens, o segundo deveria adminis-
trar a matéria.
Esta separação se constitui de um elemento importante até nossos dias.
A questão da propriedade do corpo e a condução da vida. Até onde o homem
comanda sua existência, pela sua consciência, até onde ela não lhe pertence e
deve obedecer às regras estabelecidas por uma legislação. De certa forma, a perda
de uma liberdade a qual os gregos jamais se submeteram.
A concepção do mundo se organizava dentro das instituições organizadas
pela Igreja Católica. Nelas, a filosofia se oficializa independente do império que
se estabelece. Seja nas monarquias dos francos, germanos, godos ou visigodos,
o cristianismo orienta a concepção de homem e garante a supremacia de suas
ideias por toda a Europa. Chegou, por consequência, a justificar o próprio poder
dos monarcas. O que só foi questionado com o advento da Reforma Protestante,
no Século XVI.
A supremacia dos cristãos acaba por ser também uma contradição em relação
aos judeus, religião da qual são dissidentes. No início, o cristianismo se colocava
como um desdobramento do judaísmo, sem lhe causar rompimento e reconhe-
cendo sua validade. Mas com a ascensão dos cristãos ao poder em Roma, os judeus
passaram a ser vistos como negadores de Cristo, o filho de Deus. A perseguição
aos judeus se acentuou. Ironicamente passaram a ser perseguidos por quem tinha
sofrido perseguição.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
37

Uma das formas de romper com o judaísmo e iniciar sua perseguição foi
o gnosticismo, um encontro entre o cristianismo e o helenismo. Sua principal
expressão foi Paulo de Tarso (5 a 67), um judeu helenizado e cristão. Ele construiu
os elementos necessários de universalização do cristianismo. Um desdobramento
do gnosticismo foi construído a partir das ideias de Tarso. Nela, Iavé é o cria-
dor das coisas materiais, uma divindade inferior ao “supremo criador”. Ele, Iavé,
criou as coisas materiais e deturpou o seu significado, fugindo ao propósito de
Deus (o criador universal). Diante disso, a divindade suprema se materializa para
poder colocar ordem no mundo, Cristo. Nessa construção, Deus é perseguido em
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sua materialidade e rompe com qualquer tipo de elaboração teológica judaica.


Na construção do ideário religioso judeu-cristão, a perseguição é um ele-
mento vital. Presente como um meio de unir os fiéis e garantir o direito de reagir.
Em muitos casos, são os verdadeiros agressores, mas o discurso de serem per-
seguidos eternamente os inocenta. Por isso que, tanto na defesa do território de
Israel pelos judeus, ou no discurso de supremacia dos cristãos sobre o Mundo,
o discurso de serem perseguidos justifica o ato de perseguir.
Um dos importantes pensadores cristãos do primitivismo foi Orígenes de
Cesaréia (I185 a 253). Sua obra está relacionada à definição da vida espiritual.
Ele concebe a existência do espírito separado da matéria, sendo que, ao se jun-
tar com o corpo, lhe dá vida no nascimento. A ideia de eternizar a existência
antes e depois de a vida lhe dar a autoria de um dos principais elementos que
se consolidava no ideário cristão, a eternidade da alma e sua relação com Deus.
Para Orígenes, uma existência em essência espiritual, livre de toda for-
ma e substância, só se deve a Deus; o homem, mesmo o eleito que se
estabelece no estado deificado não pode confundir-se, amalgamar-se a
Deus mesmo, ou seja, estabelecer-se em uma condição de panteísmo,
pois o ser humano é por essência diferente do Criador, e mesmo se a
natureza de sua matéria corporal ver-se limpa e purificada, “feita total-
mente espiritual”, ela não poderá unir-se consubstancialmente a Deus,
pois o Criador participa de um estado de perfeição próprio (AMARAL,
2009, p. 11).

Todos estes pensamentos foram incorporados à Igreja Cristã Católica com o


governo do imperador Constantino. Nele se organizou a estrutura dos dogmas
católicos e o princípio administrativo do clero. A centralização da administração

O Pensamento Filosófico Medieval


38 UNIDADE I

clerical foi fundamental para, mais tarde, quando da decadência do Império


Romano, o cristianismo prevalecer não só como culto, mas como instituição de
poder político com forte centralização administrativa em torno da figura do Papa.
Um dos fatores importantes para o fortalecimento da autoridade papal, ainda
durante o Império Romano, foi o discurso de defesa dos pobres proferido por
uma Igreja voltada aos humildes. Eles, que se sentiam distantes e desamparados
por parte de uma administração centralizada, de caráter religioso, agregaram-se
às obras do clero católico e se tornaram sua principal base de sustentação social.
Não seria por acaso que a Igreja Católica estaria preocupada, mais tarde, com

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a organização das ordens religiosas que deveriam converter a população. Também,
parte dessas obras estava para ações missionárias de ajuda à população carente,
servindo-lhe de abrigo e massa de manobra para o exercício do poder clerical.
O Concílio do Nicéia (325) foi fundamental para a organização dos dogmas
católicos. Nele se organizou a doutrinação dos fiéis e os princípios que deveriam
nortear o poder papal. Naquele momento, a Igreja Católica combatia o arianismo,
doutrina cristã fundada no pensamento de Ário (256 a 336).
Mas o pensamento cristão que se propagou no “mundo medieval” se deve
principalmente a quatro grandes pensadores: Ambrósio (340 a 397), Jerônimo
(347 a 420), Santo Agostinho (354 a 430) e ao Papa Gregório (540 a 604). Foram
eles que instituíram o pensamento predominante do cristianismo que se cons-
tituiu através da fé católica, e que também lançou bases para o protestantismo
após a Reforma Protestante.
Ambrósio está ligado diretamente à supremacia do poder papal sobre o
estado. Filho de uma família de nobres romanos, ele recebeu educação requintada
para atuar na administração do estado romano. Contudo, acabou na adminis-
tração do Bispado de Milão, na época, a sede do Império Romano do Ocidente.
Durante seu bispado, assumiu a responsabilidade de preservar o poder da
igreja sobre os senadores e, até mesmo, sobre o imperador. Enfrentou a oposição
dos arianos, cristãos que seguiam as palavras de Ário, como já chegamos a analisar.
Ambrósio conseguiu submeter às autoridades e, até mesmo, obter um pedido
de perdão do imperador Teodósio, quando este ordenou o Massacre de Tessalônica
(388). Em função desse episódio, o imperador foi a Abadia de Milão e pediu per-
dão pelo ato.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
39

Dessa forma, Ambrósio é lembrado pela sua capacidade de argumentar e


agir em favor dos interesses do clero, mantendo o poder da Igreja diante da deca-
dência do Império Romano. Santo Agostinho o admirava pela capacidade de
argumentação, fator fundamental que contribuiu para sua permanência diante
dos cargos de administração do clero dentro da estrutura de poder do Império.
Mas, foi na produção documental da Igreja Católica que sobreviveu o instru-
mento vital para a pregação da fé: a construção da Bíblia em latim.
Este feito de tradução e organização do principal documento sacro foi obra
de Jerônimo. Nascido no Egito, mas com a sua vida dedicada aos estudos em
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Roma, acabou se desentendendo com autoridades da Igreja Católica. Jerônimo


produziu documentos de condução ética e princípios morais do cristão.
Sua postura doutrinária acabou por se traduzir nos estudos dos documentos
que formaram a interpretação do Velho Testamento e organização dos documentos
do Evangelho. Em função de sua expulsão da Itália, por desentendimento com líde-
res religiosos, acabou por formar um mosteiro em Jerusalém. Assim, ele inaugurou
uma das formas de organização dos estudos do período medieval, o clero regular.
A originalidade dos documentos sacros acabou, mais tarde, dividindo a cris-
tandade, permitindo aos católicos eliminarem interpretações que fugissem aos
interesses do clero estabelecido em toda a Europa medieval.
O terceiro grande pensador cristão foi Santo Agostinho. Filho de nobres, ele
nasceu no Norte da África, na cidade de Cartago. Sua vida foi marcada por rom-
pimentos entre uma formação religiosa familiar e sua vida mundana durante a
juventude. Por causa desta última, se mudou para Roma, trazendo consigo sua
concubina e o filho que teve com ela.

[...] ao contrário, nada passa, tudo é presente, ao passo que o tempo nunca
é todo presente. Esse tal, verá que o passado é impelido pelo futuro e que
todo o futuro está precedido dum passado, e todo o passado e futuro são
criados e dimanam d’Aquele que sempre é presente.
(Santo Agostinho).

O Pensamento Filosófico Medieval


40 UNIDADE I

Criticado pela mãe, uma cristã ortodoxa, Agostinho viveu a culpa do pecado, o
que sempre lhe guiou em seus pensamentos acerca da religiosidade. Ele foi um
dos principais responsáveis por traduzir o pecado como um problema de con-
duta do indivíduo e não da condição em sociedade.
Outro elemento importante nas teses de Agostinho é a predestinação. A busca
de entender a vida na Terra como um reflexo da vontade de Deus. A existência
humana expressa aquilo que está designado, logo, a própria conduta do homem
não lhe permitirá se salvar se esta não for a vontade de Deus. Logo, o homem
arrasta a culpa, a fé pode lhe aproximar de Deus, mas somente a vontade divina

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pode salvá-lo. Por isso, a importância dos sinais divinos como guia do caminho
de desvendar seu destino, expresso no pensamento de Santo Agostinho.
Ao aceitarmos a condição que Deus criou na Terra, estabelecemos uma rela-
ção de fé sem questionamento da origem dos elementos materiais que nos cercam.
Estes são, para Agostinho, uma condição criada por Deus sem que tenhamos o
direito ou a capacidade de questioná-la. Temos que aceitar, por exemplo, que a
criação de todo o Universo foi feita a partir do “nada”, da inexistência de qual-
quer elemento anterior. Assim, Deus fez o tempo, fez a matéria. Ele cria a partir
do nada e assim é, sem questionamento, acreditava Agostinho.
Deus quis criar todas as coisas, mas não se deve buscar esta causa na
vontade de Deus, pois Ele é causa única das coisas, e sendo a causa de
tudo, não tem causa. Deste modo, toda criação surgiu da Palavra Cria-
dora, o Verbo (CARDOSO, 2010, p. 84).

Esse pensamento coloca a condição de existência como dádiva e não con-


quista. Ou seja, o homem na terra é uma concessão divina. Sua existência está
sequestrada por um destino que não lhe pertence construir, apenas seguir os
desígnios divinos, conforme descreve o próprio filósofo.
[...] a vontade de Deus não é uma criatura; está antes de toda a criatura,
pois nada seria criado se antes não existisse a vontade do Criador. Essa
vontade pertence à própria substância de Deus. Se alguma coisa sur-
gisse na substância de Deus que antes lá não estivesse, não podíamos,
com verdade, chamar a essa substância eterna. Mas, se desde toda a
eternidade é vontade de Deus que existam criaturas, por que razão não
são criaturas eternas? (AGOSTINHO, 1981, p. 300-301).

A ORIGEM DA FILOSOFIA
41

O Papa Gregório I foi o propagador da fé católica, sua intenção de converter


os pagãos, principalmente os bárbaros, levou-o a organizar expedições formadas
por monges beneditinos. Foi o caso da conversão dos anglo-saxões na Bretanha,
que viria a se chamar Inglaterra pelos invasores bárbaros.
Sua contribuição mais significativa foi a construção da identidade Papal, o
“servo dos servos de Deus”, segundo ele mesmo, ou sumo pontífice. Sua autori-
dade seria aceita por todo o território europeu, fundando o legado de comando
sobre diversas nações do Ocidente europeu. Uma centralização que seria seguida
e mantida como elemento de poder por todo o medievalismo.
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É importante considerar que as ordens religiosas acabariam por propagar o


sentido de poder teológico que justificou o poder papal e o fez ser compreendido
por toda a população europeia. Em um continente marcado pelo analfabetismo
da maioria da população, imersa em uma ignorância sobre o mundo, seria a
Igreja Católica que daria o sentido de existência, a sua imagem e semelhança.
A relação de diplomacia da Igreja Católica com as invasões bárbaras explica
por que, mesmo com a queda de Roma, a instituição prevaleceu. Sua doutrina se
estabeleceu sobre toda a Europa se associando aos reis que assumiram o poder
em diversas partes do antigo Império Romano. Em poucos lugares do Império,
quando as invasões bárbaras se estabeleceram, houve uma resistência da Igreja
à presença do invasor. Em muitos casos, ela se transformou em instrumento da
manutenção do poder.
Muitos líderes bárbaros acabaram por incorporar o cristianismo como a reli-
gião do monarca, mesmo sem afetar a liberdade de culto. Foi o caso de Teodorico,
herdeiro de Teodósio, o conquistador ostrogodo, que era ariano e permitiu o
culto livre em suas terras.
A vida monástica foi, sem dúvida, um elemento importante na permanência
do cristianismo papal como principal religiosidade na Europa e, depois, como
elemento de poder. Ao Papa Bento se deve a propagação dos mosteiros pelos
territórios dominados pelos reinos bárbaros.
São Bento de Núrsia (480 a 547) é apontado como o pontífice que propagou
os mosteiros a partir da ordem que ele mesmo criou, Beneditina. O mais famoso
mosteiro, fundado pelo próprio Bento, foi o de Monte Cassino. Lá, o fundador

O Pensamento Filosófico Medieval


42 UNIDADE I

dos monastérios acabou por encerrar sua vida. Mas antes disso, foi Papa. O que
lhe permitiu dar aos mosteiros a função de interpretação dos desígnios divinos
e propagar a fé.
Nesta vida de reclusão, boa parte dos membros do clero mantiveram-se dis-
tantes dos conflitos que se desenvolveram na Europa entre os reinos bárbaros.
Dentro do ambiente do monastério, a regra que determinava a vida dos mon-
ges permitiu a execução de práticas ligada às comunidades onde os mosteiros se
instalaram, como também a preservação da cultura clássica, permitindo o desen-
volvimento do pensamento cristão. Os principais pensadores que se destacariam

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através da construção da “escolástica” vieram das ordens religiosas.

ESCOLÁSTICA MEDIEVAL

Pensadores como Santo Agostinho são apontados como fundadores do pensa-


mento cristão europeu, contudo, ligados profundamente à particularização da
relação do homem com Deus através da fé. A Escolástica vai além, ela é abran-
gente ao ponto de pensar o papel da razão sem abandonar a crença do elemento
Criador.
Nascido dentro dos mosteiros cristãos, o pensamento escolástico buscou
aprofundar a tese de Aristóteles na relação da fé e a conduta humana. Fugindo
da imposição pura e simples de crer sobre qualquer fenômeno da vida humana.
Nem tudo o que se vive é resultado exclusivo do “plano de Deus”. Há na exis-
tência uma responsabilidade dos homens pelos seus atos e a construção de um
destino através das escolhas individuais.
O principal autor da escolástica é, sem dúvida, São Tomás de Aquino (1225
a 1274). Filho de uma nobreza italiana de ascendência germânica, Aquino estu-
dou em Nápoles e em Monte Cassino, mosteiro beneditino. Contudo, acabou
ingressando na Ordem Dominicana, contrariando a vontade da família que o
queria um beneditino como o tio.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
43

Um seguidor do pensamento aristotélico, Tomás de Aquino (1979) rom-


peu com a perspectiva de submissão absoluta do homem e incentivou a capacidade
de racionalidade do mundo. Para ele, a razão não é incompatível com a fé. Para
chegar a Deus é preciso dois caminhos que se complementam, ou seja, a teolo-
gia e a filosofia. Enquanto a primeira aprimora a relação do homem com Deus, a
segunda aproxima o homem da verdade de si e das coisas que Deus criou, entre
elas, o próprio homem, sua maior obra, segundo Aquino.
Sob a influência da escolástica tomista, a Igreja Católica viu proliferar o
número de universidades com a função de desenvolver a razão sintonizada com
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os preceitos da fé. Vale lembrar que o estudo desenvolvido nas instituições cató-
licas exalta o livre-arbítrio e permite a compreensão do mundo sobre uma ótica
fundada na racionalidade particular, na busca de um conhecimento reflexivo.
Mas nunca deixou de atender as decisões que a Igreja e seus aliados tomaram
ao longo das conquistas ocidentais.
A escolástica se transformou, ao longo da história do mundo medieval, no
método dominante para o desenvolvimento do pensamento cristão. As institui-
ções religiosas passaram a contribuir para a construção de teses que serviriam
de argumento doutrinário que justificou, até mesmo, os atos políticos da Igreja
Católica.
O próprio Tomás de Aquino organizou teses sobre a conduta dos gover-
nantes europeus influenciados pelas Sagradas Escrituras. Ele buscava orientar o
poder dos monarcas no sentido de contribuir com a autoridade papal, mais que
isso, da própria Igreja.
Vale lembrar que a sobrevivência da Igreja Católica enquanto instituição está
relacionada diretamente às alianças organizadas na Europa com a consolidação
dos reinos cristãos. A associação do cristianismo com o poder dos governantes
bárbaros foi uma associação gradativa, mas nenhuma delas foi mais eficiente do
que a que uniu o Papa e o Império Franco.
Os seguidores de Clóvis, primeiro imperador dos francos, instituíram no
centro da Europa o mais duradouro reino medieval. Sua formação se deu ainda
dentro do Império Romano, por volta do Século V, através dos federatus, quando
os francos se rebelaram contra a autoridade do imperador.

O Pensamento Filosófico Medieval


44 UNIDADE I

A primeira dinástica franca não foi simpática à causa católica, mas acabou
por cair na indolência, eram os merovíngios. Incapazes de governar seu próprio
reino, devido à desobediência da nobreza, os reis acabaram por ser submetidos
pelo majordomus (século VIII).
O mordomo do paço se estabeleceu como rei durante o governo de Pepino,
o Breve, filho de Carlos Martel. Pepino foi pai de Carlos Magno, o maior dos reis
carolíngios. Vale lembrar que cada um ao seu tempo, todos os reis da dinastia
carolíngia eram fiéis à Igreja Católica e foi deles que o Papa teve o reconheci-
mento de sua autoridade e recebeu as terras do centro da Península Itálica como

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terras da Igreja, o “patrimônio de São Pedro”.
O reconhecimento da autoridade papal foi acompanhado da nomeação dos
reis pelo Papa e da associação do poder administrativo do estado franco com
a estrutura hierárquica do clero. Assim, a nobreza passou a governar associada
aos membros da Igreja. O Papa era senhor do poder “eterno”, enquanto o rei era
senhor do poder “temporal”,
A divisão do homem entre alma e corpo estaria integrada pela unidade que,
separadas, retira do homem a vida. Dessa forma, como a própria escolástica tra-
duz, era preciso aliar fé e razão. O desenvolvimento das instituições clericais
associou o patrimônio do poder do estado aos da Igreja, mais tarde, essa asso-
ciação seria fundamental para a formação das monarquias nacionais ou para a
resistência a ela.
João Escoto (810 a 877) foi um dos expoentes da força de um membro do
clero dentro da corte de um monarca. Em plena corte do imperador franco
Carlos, o calvo (845), Escoto desenvolveu as teses de vinculação da criação do
mundo com a existência de Deus. O princípio da origem de todas as coisas que
regem a vida. Existirá, para ele, uma lei que determina a vida dos homens e todo
o universo que o cerca.
Escoto acabou perseguido por suas obras que tentaram resgatar o pensa-
mento grego clássico e aliá-lo ao cristianismo. Em sua principal obra, Divisão
Natural, ele buscou a compreensão da ordem do mundo pela razão que, para
o pensador irlandês, seria o elemento que levaria a Deus. Logo, a lógica divina
estaria nos elementos naturais, o próprio Deus seria a natureza. Sua compreen-
são lhe custou a condenação e perseguição pela censura clerical.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
45

O casamento entre a racionalidade e a religiosidade perseguiu a maioria dos


pensadores durante a história da formação do pensamento ocidental. A filoso-
fia se deparou com os limites que a teologia lhe impôs. A associação do poder
divino com o poder político dos monarcas está por trás desse debate. Seria o
poder dos monarcas uma determinação de Deus? O rei e seus atos são uma mani-
festação divina? O monarca governa pelo livre-arbítrio, por isso deve seguir a
doutrina religiosa?
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O NASCIMENTO DO ISLÃ

O Ocidente não permaneceria o mesmo após o nascimento da Religião Islâmica.


Uma religião construída nas mesmas bases que o cristianismo, mas que repre-
sentou uma nova interpretação do papel das divindades.
O islã nasceu da ação de Maomé (570 a 632), o fundador da religião islâmica.
O profeta iniciou sua pregação após, segundo a crença islâmica, ter recebido a
visita do Anjo Gabriel, que lhe entregou poemas enviados por Deus e a mensa-
gem era de que ele era o último dos profetas. Sua função seria a de unir o povo
em torno da verdadeira religião. Os combatentes do profeta “conquistaram ter-
ritório e obtiveram um reino, que, por fim, se estendia do Turquestão até a
Espanha” (STORING, 2008, p. 207).
Em 622, Maomé foi expulso de Meca e se refugiou em Medina (Yatreb),
onde iniciou a comunidade muçulmana. Desse núcleo se propagou o Islã, con-
quistando os árabes unidos ainda por Maomé. Posteriormente, os herdeiros e
as dinastias que lideraram os muçulmanos propagaram o império da Pérsia à
Península Ibérica. Todas essas conquistas se deram de 622 a 753. Em pouco mais
de cem anos, o Oriente Médio, o Norte da África e a Península Ibérica compu-
seram o Império Muçulmano.
Enquanto o centro religioso desse mundo permanecia em Meca, a terra
natal de Maomé, com seu antiquíssimo santuário, a Caaba, formavam-
-se nos territórios limítrofes do mundo islâmico, um bem afastado do
outro, dois brilhantes centros culturais; um ao leste, na corte dos califas
de Bagdá, que promoviam a arte e a ciência [...], o outro ao oeste, na
Espanha, que foi conquistada no século VIII (STORING, 2008, p. 207).

O Nascimento do Islã
46 UNIDADE I

Alguns fatores contaram para a conquista rápida efetuada pelos islâmicos: a conde-
nação das imagens, a austeridade religiosa, a reinterpretação do papel dos judeus
e do cristianismo como religiosidades que antecederam o islamismo. Outro fator
foi o enfraquecimento militar dos impérios dominados pelos árabes. Muitos se
encontravam em guerras civis constantes, o que promoveu uma instabilidade
social e a facilidade de um invasor subordinar a população.
É possível considerar que os árabes se interessavam mais em saquear os
territórios dominados do que em subordiná-los e transformá-los em um impé-
rio. Por isso, os califas acabaram por se tornar os governantes ideais das terras

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subordinadas, misturando a liderança militar com a religiosidade, no início
eram eleitos, depois o poder passou a ser hereditário. O desenvolvimento por
causa da relação de acúmulo de riquezas transformou, por exemplo, a Espanha
islâmica, no século X, como o “país mais rico e populoso da Europa Ocidental”
(STORING, 2008, p. 207).
O mundo árabe viveu três momentos dinásticos em sua liderança. Os “esco-
lhidos”, que foram os herdeiros do profeta; os Omíadas, família militar sediada
em Damasco; e os Abássidas, que transferiram o poder para Bagdá. Quando os
Omíadas tomaram o poder, se instalou a cisão entre a religiosidade islâmica.
Os xiitas, que mantiveram a adoração aos herdeiros de Maomé, os aiatolás; e os
sunitas, que seguiam a palavra, mas não se subordinavam politicamente, estes
eram liderados pelos califas.
A cultura islâmica poderia ter se mantido simplificada nos princípios reli-
giosos fundados por Maomé, mas cresceu e se difundiu. Uniu-se a princípios
filosóficos gregos, bizantinos e persas. Inclusive, foi neste último, no Império Persa,
que se estabeleceu um dos centros culturais islâmicos, o outro foi a Península
Ibérica.
Um dos maiores califas da Dinastia Abássida foi Harun Al Rashid (766 a
809), que conseguiu estabilizar o poder entre os califados árabes. Como uma
construção híbrida do mundo persa, indiano e árabe, o florescimento da cultura
muçulmana alcançou uma identidade própria. Uma das maiores expressões lite-
rárias deste tempo foi a obra “Mil e Uma Noites” .

A ORIGEM DA FILOSOFIA
47

O islamismo teve expressões culturais relevantes ao longo de sua história.


Alguns dos conhecimentos desenvolvidos pelos árabes acabaram por atingir o
mundo ocidental. O mais conhecido foi o algarismo arábico, o desenvolvimento
da álgebra e também a química.
Entre os intelectuais mais conhecidos do mundo árabe se destacam Avicena
(980 a 1037) e Averróis (1126 a 1198). O primeiro foi, sem dúvida, o mais
importante pensador árabe. Seus conhecimentos sobre medicina influenciaram
universidades francesas. Áreas de conhecimento como a física e a matemática
também foram influenciadas.
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No conjunto da harmonia das ciências, Ibn Sina orquestra sua com-


posição iniciando pela Lógica, seguida da Física, da Matemática e, por
fim, da Metafísica, consumada com um estudo sobre a moral, último
livro da obra. A ordem nada tem de aleatório e indica, dentre outras
coisas, circularidade e interpenetração das disciplinas. Assim, desenha-
-se pela mão do mestre uma estrutura e um projeto de ciência próprios.
Apesar disso, algumas respostas só são possíveis na trilha da tradição
da qual é herdeiro (ATTIE FILHO, 2007, p. 52).

O segundo, Averróis, se destacou como a maior fonte de análise de Aristóteles


para o pensamento europeu. Mesmo sendo um muçulmano, seus escritos che-
garam na Europa e influenciaram as universidades europeias. Muito do que se
estudou de Aristóteles na Europa Medieval vem dos estudos de Averróis, que
resgatou, por exemplo o De Anima, de Aristóteles, como tentativa de responder
o que o grego não havia conseguido (ATTIE FILHO, 2007).
Os séculos X a XII foram de apogeu para o mundo muçulmano. Além de
um grandioso império territorial, a cultura desenvolvida nos centros culturais
como Damasco (Síria), Teerã (Pérsia) e Córdoba e Sevilha (Espanha) foram
frutos de uma ampla cadeia comercial que integrou estas regiões por meio da
religiosidade islâmica.
Contudo, o desenvolvimento islâmico afrontou o cristianismo. A ameaça que
a expansão muçulmana representou sobre os reinos europeus levou a organiza-
ção militar cristã a combater o “perigo” do expansionismo árabe. Nessa busca de
unidade, a figura papal mais uma vez se sobressai e se consolida. Mas no apogeu
do exercício de sua força, o Papa iniciaria sua trajetória de decadência.

O Nascimento do Islã
48 UNIDADE I

CRUZADAS: A PALAVRA, A ESPADA


E O COMBATE AO CALIFADO

Cercado por todos os lados, os cristãos se viram na necessidade de combater a


expansão dos califas, principalmente os que dominaram a Península Ibérica. O
rei Franco, Carlos Martel, enfrentou o Califa de Córdoba na batalha de Poitiers
(732). Essa batalha é considerada o marco de resistência dos cristãos evitando a
tomada da Europa ocidental pelos muçulmanos. Mesmo com a garantia de sobre-
viver às conquistas islâmicas, o mundo cristão europeu se viu cercado pelo islã.

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Porém o gigantismo do império muçulmano pagou seu preço. Aquilo que
recai sobre qualquer grande império, uma crise de governabilidade. Internamente,
a unidade começou a ruir com as guerras constantes entre califas pelo predo-
mínio regional. Povos buscaram sua autonomia em territórios como o Egito e a
Síria. Mesmo na Pérsia, a unidade se enfraqueceu e as guerras internas eclodiram.
Para os cristãos, o conflito interno entre os árabes deu a oportunidade para
atacar o império islâmico, uma vez que o interesse cristão mirava o domínio
sobre a Palestina e a conquista de Jerusalém. Em seu exercício de autoridade, o
Papa Urbano II (1042-1099) uniu os cristãos na “Guerra Santa” e iniciou o pro-
cesso de expansão ocidental fundado no discurso religioso. Um discurso que
acompanhou, de certa forma, as diversas incursões dos cristãos sobre o mundo.
Essa preocupação em justificar a conquista ocidental por meio de um homem
que devia a obrigação de sua existência à vontade divina estava em debate na
Europa, ao mesmo tempo em que as Cruzadas se desdobraram no Oriente Médio
e no ocidente, na Península Ibérica.
As Cruzadas para o Oriente ocorreram entre 1096 e 1272, e foram nove ao
todo. Tiveram as mais diferentes composições e destinos. Na primeira, a popu-
lação mendicante foi em busca de pagamento de seus pecados. Miseráveis, sem
recursos para seguir em combate para o Oriente Médio, o grupo de maltrapi-
lhos foi liderado por Pedro, o Eremita. O bando saqueou cidades germânicas e
tinha como principal alvo o ataque aos judeus. Milhares foram mortos para que
se obtivesse recurso para a viagem a Jerusalém.
A maioria dos movimentos cruzadistas tinha como combatentes cavalei-
ros seguindo um monarca europeu ou pertencentes a ordens religiosas. As duas

A ORIGEM DA FILOSOFIA
49

mais famosas ordens cruzadistas foi a dos Hospitalários e a dos Templários. As


ordens, mais uma vez, desempenham um papel fundamental na justificativa do
poder papal e também como um braço de sua ação. Os cavaleiros monges pas-
saram a representar a força militar da Igreja que mediu forças com os reis que
conquistaram terras no Oriente.
Ao mesmo tempo em que os embates militares ocorreram entre cristãos e
muçulmanos, a Europa passou a receber a influência do mundo oriental, seja
na forma de produtos ou do legado cultural. A riqueza do mundo árabe encan-
tava os Europeus. Os comerciantes italianos foram os grandes interessados em
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desbravar o território muçulmano a procura de mercadorias (especiarias) que


iriam mudar o destino da Europa cristã.
Não por acaso, a própria Itália se transformou no berço da economia mer-
cantil europeia a partir do Século XI, como também no centro cultural que gerou
a Renascença (séculos XIV a XVI), a revolução cultural que mudou decisiva-
mente os rumos do ocidente cristão.
No contexto em que as cruzadas se desdobraram no Oriente Médio e tam-
bém na Península Ibérica, os pensadores europeus se aprofundaram na relação
entre o homem, a razão e Deus.
Ao mesmo tempo em que a Igreja Católica consolidava seu poder e se impu-
nha como instituição, os pensadores cristãos reavaliavam o papel do homem
na Terra e a influência da formação divina e a razão como condutor das ações
humanas.
O crescimento populacional europeu, o desenvolvimento das práticas mer-
cantis e o renascimento da vida urbana, aos poucos, davam um novo contorno a
Europa, prenunciando aquilo que seria o mundo moderno. Em nenhuma outra
instituição o pensamento foi mais trabalhado, o conhecimento aprimorado, do
que nas universidades europeias.
Dois pensadores ganham destaque neste contexto, Anselmo (1033 a 1109)
e Abelardo (1049 a 1142), considerados como a maior expressão da escolás-
tica na busca de justificar a existência de Deus dentro da razão filosófica. Um
dos principais argumentos desses pensadores era a questão dos universais,
ou seja, daquilo que está em tudo, dá sentido a tudo, mas só se percebe na
particularidade.

Cruzadas: a Palavra, a Espadae o Combate ao Califado


50 UNIDADE I

Anselmo (1979), por exemplo, desenvolveu a razão da existência de todas


as coisas em Deus. Ele seria o princípio que justifica tudo, mas não necessita ser
justificado. Dessa forma, a fé é o elemento que desvenda a verdade do Universo.
Contudo, para ele, há uma razão para tudo o que existe, ela deve ser buscada
pelo conhecimento do homem.
Já para Abelardo, o homem usa da particularidade para dar sentido aos valo-
res universais. Segundo ele, não há outra forma de se constituir uma verdade
se não for transformada em palavra. Desta forma, o conhecimento universal só
existe na medida em que o ser humano consegue lhe dar um sentido, mas não

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significa que o domine, apenas o desvenda e lhe conceitua.
É preciso, para que fique claro ao leitor, entender que a busca de um conhe-
cimento universal vai orientar a vida do homem ocidental ao longo de sua
existência até nossos dias. Por meio do conhecimento que produzimos, procu-
ramos um sentido, é o desejo de universalizar o saber. Um saber que vá além
da subjetividade de quem o desvendou. Chegar ao movimento do universo, de
certa forma, chegar a Deus.
Em suas defesas, São Tomás de Aquino considerava que Deus é um cons-
trutor do Universo com uma inteligência, com uma intenção. Diferente de
Aristóteles que considerava a criação do universo como uma obra do acaso, de
uma divindade desinteressada em suas consequências ou sem se preocupar com
seus resultados finais.
Tomás de Aquino se insere nessas discussões tomando a seguinte posição:
que é demonstrável a criação do mundo por Deus, mas que é indemonstrável
se o mundo possui duração eterna ou a partir de um princípio (MONTEIRO,
2009, p. 38).
Desta forma, para o homem ocidental, o universo tem uma razão lógica e
um sentido comum, por mais que marcado por contradições entre a existência
particular e coletiva. Por mais que marcado pela universalidade que se expressa
na individualidade, ou se contrapõe a ela, a busca de entender a lógica do uni-
verso por meio da experimentação sensorial particular é fundamental. Estamos
vivos, e a vida tem que ter um sentido para todos, este é o paradigma do ocidente.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
51

O NASCIMENTO DO PENSAMENTO OCIDENTAL


MODERNO

Podemos apontar diversos fatores como responsáveis pelo nascimento do pen-


samento moderno, contudo, antes de qualquer um, destacam-se as mudanças
ocorridas nas relações que as pessoas estabeleceram ao longo de sua história e
que construíram na Europa os elementos que geraram a bases da racionalidade
científica de nossos dias.
A razão ter se sobressaído sobre a fé foi o resultado de uma longa jornada. Não
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foi a construção de um pensador específico, mas o resultado de diversos deles e


de um contexto histórico que gerou o ambiente necessário para esta construção.
Se dentro dos mosteiros e universidades europeias do Período Medieval
foi gestada a lógica de entender a universalidade da humanidade, dentro deste
ambiente se resgatou o conhecimento de Platão e Aristóteles, se aprofundou a
visão do universo e da capacidade humana de compreendê-lo. Esta compreen-
são influenciada pelo paradigma cristão.
O cristianismo serviu não apenas como um condutor do pensamento medie-
val, mas também como um sentido do que viria a ser os elementos filosóficos e
científicos que o negariam sem perder os modelos que ele gerou. A filosofia oci-
dental deve muito ao pensamento cristão forjado desde o Império Romano e,
principalmente, à escolástica medieval.
Mas as mudanças na ordem econômica, social e política da Europa foram
um campo fértil para o desenvolvimento do pensamento moderno. As transfor-
mações pelas quais a Europa passou entre os séculos XI a XVI abriram espaço
para a emergência de novas forças sociais.

O Nascimento do Pensamento Ocidental Moderno


52 UNIDADE I

As bases de sustentação do poder econômico e político, por exemplo, dei-


xaram de ser exclusivamente a posse da terra e a interpretação religiosa sobre a
existência do homem. A economia mercantil fez emergir os mercadores e suas
cidades, onde a cultura floresceu sustentada na dinâmica da vida terrena e não
na busca de uma salvação. A expressão “o mundo antes da morte ficou mais
interessante” traduz bem a relação entre vida terrena e a pós-morte. O desejo
de concentração da riqueza passou a ser relevante para uma parte da sociedade.
Os interesses dos governantes europeus, em especial os monarcas e príncipes
que tinham certa ascendência sobre determinados territórios, já não se sustenta-

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vam apenas no controle de relações de vassalagem sobre um grupo de senhores
feudais (nobres em alguns casos).
Em sua obra “Política como Vocação”, Max Weber descreve com detalhes
a importância da transferência da autoridade dos senhores para os príncipes.
A transição de poder das regiões feudais, dos condados, para o estado nacional
centralizado em torno do rei:
Em toda parte, o desenvolvimento do Estado moderno é iniciado
através da ação do príncipe. Ele abre o caminho para a expropriação
dos portadores autônomos e “privados” do poder executivo que estão
ao seu lado, daqueles que possuem meios de administração próprios,
meios de guerra e organização financeira, assim como os bens poli-
ticamente usáveis, de todos os tipos. A totalidade do processo é um
paralelo complexo ao desenvolvimento da empresa capitalista através
da expropriação gradativa dos produtores independentes. Por fim, o
Estado moderno controla os meios totais de organização política, que
na realidade se agrupam sob um chefe único. Nenhuma autoridade iso-
lada possui o dinheiro que paga, ou os edifícios, armazéns, ferramentas
e máquinas de guerra que controla. No “Estado” contemporâneo – e
isso é essencial ao conceito de Estado – a “separação” entre o quadro
administrativo, os funcionários administrativos e os trabalhadores, em
relação aos meios materiais de organização administrativa, é completa
(WEBER, 1982, p. 102-103).

Um dos fatores fundamentais dessa formação do estado nacional se deu pela


influência das atividades mercantis e da emergência de uma racionalidade ligada
à existência da vida em coletividade.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
53

O isolamento dos mosteiros se rompeu com a circulação dos homens dentro


do território feudal. As atividades mercantis se intensificaram com as cruzadas.
A guerra com o oriente não movimentou apenas tropas, mais produtos e inte-
lectuais. Todo o conflito trouxe refugiados.
Mesmo sendo combates em terras do Oriente Médio, os cristãos trouxeram
para a Europa uma compreensão diferente da existência. Precisamos nos lembrar
que os “ocidentais” construíram reinos católicos em Edessa, Chipre e Palestina.
Formaram núcleos cristãos em terras muçulmanas. A religiosidade cristã não
livrou o homem europeu de ser influenciado pela vida oriental. As cruzadas
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foram um confronto, mas também uma troca.

A RAZÃO EMPÍRICA E A VIDA MONETÁRIA

O desenvolvimento de uma economia mercantil, a agitação do mundo urbano


e o contato com um legado cultural cada vez mais intenso geraram na Europa
uma nova compreensão do papel que o homem exerce na vida. Sua forma de
compreender sua existência levava a questionar a imposição da fé sobre o conhe-
cimento racional. Até onde iria a compreensão da verdade universal divina e a
existência particular e perecível do ser humano.
Vamos considerar que o desenvolvimento da vida material na Europa levou
à busca de uma compreensão desta vida material dentro da lógica científica,
eficiente para dar respostas ao que as necessidades materiais impunham. Não
podemos negar que o desenvolvimento material da humanidade foi resultado de
um conhecimento científico que jamais cessou na Europa, desde a Renascença.
Um contemporâneo de Tomás de Aquino e que expressa essa mudança de
pensamento é Roger Bacon (1214 a 1294). Sua compreensão sobre a existência
humana e a experimentação como um campo distinto da teologia em relação
à filosofia marcaria a cisão entre fé e razão. Crer não implica em não pensar. O
livre pensamento não leva ao campo da existência divina.
A relação entre razão e fé é outro ponto de divergências entre eles. Para
Boaventura razão e fé só podem coexistir se numa perspectiva que po-
nha a razão como coadjuvante em relação à fé. Bacon, por sua vez, vê

O Nascimento do Pensamento Ocidental Moderno


54 UNIDADE I

a aliança entre fé e razão como instrumento de salvação espiritual e


temporal da cristandade, como condição de possibilidade para que se
realizem completamente os elementos da revelação que iluminaram os
patriarcas, profetas e filósofos (LACERDA, 2009, p. 37).

Como franciscano, Bacon desenvolve a ideia de que para entender as coisas da


natureza não se deve subordinar a razão a uma crença que lhe imponha limites
na busca da verdade. Para ele, se constituímos uma análise e buscamos com-
prová-la e se, dessa comprovação, se detecta uma lei sobre a natureza, estamos
apenas desvendando o que, de certa forma, é uma criação divina.
O que determina, em seu pensamento, uma compreensão básica do que

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seria o conhecimento contemporâneo é a matemática. O conhecimento cientí-
fico que parte da lógica dos números (o que foi tão caro a Bacon). Ele acabou
preso e permaneceu por 15 anos em cárcere, morreu dois anos depois de sua
libertação (1294).
Essa valorização da capacidade de racionalização do homem, da construção
de uma lógica fundada em suas experiências, ganhou terreno. Mesmo dentro
da ordem franciscana, a qual Bacon pertencia, outros pensadores desenvolve-
ram as teses da racionalidade. Uma humanização do saber universal que serviu
de matéria-prima para o Renascimento Cultural.
Não podemos jamais deixar de considerar que o desenvolvimento mercantil,
que teve na Itália o seu centro entre os séculos XI a XV, estimulou a necessidade de
dar ao conhecimento científico uma ação prática. As descobertas da astronomia,
física, química e biologia, durante a Renascença, permitiram o desenvolvimento
dos meios pelos quais a civilização ocidental se impôs sobre o mundo.
Aqui podemos voltar à ideia de universalidade que predominou no ocidente
medieval, sendo utilizada para o aprimoramento científico que deu aos euro-
peus a capacidade de domínio sobre o planeta.
As descobertas de Copérnico deram forma ao mundo, desenharam um uni-
verso com uma mecânica compreendida pela razão humana e colocou Deus em
uma fronteira além. O modelo geocêntrico, em que se acreditava que a Terra estava
parada e os corpos celestes giravam ao seu redor, foi questionado por Copérnico.
O grande feito do alemão Nicolau Copérnico [...] foi destruir esse sistema
artificial e susbtituí-lo por outro sistema de pensamento claro e coerente, partindo

A ORIGEM DA FILOSOFIA
55

da suposição de que a Terra é um corpo que se move em torno do Sol, ao mesmo


tempo que gira em torno do seu próprio eixo (STORING, 2008, p. 243).
A humanidade avançou, assim, sobre a natureza e passou a lhe impor um
domínio sem igual, partindo de pressupostos racionais. As grandes conquistas
marítimas estão ligadas diretamente a esta capacidade de compreender cienti-
ficamente o mundo.
O rompimento com a submissão da autoridade divina sobre o pensamento
humano também atingiu a cristandade. A Igreja Católica foi abalada por um
cisma que já se desenhava na Europa no século XV, com os chamados pré-re-
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formistas como John Huss, Wycliff e Erasmo de Roterdã.


Huss (1369 a 1415) nasceu na Boêmia e desenvolveu sua vida dentro do
clero católico, por mais que fosse um crítico da atuação da Igreja em relação
aos fiéis. Sua principal crítica se dava pela forma como a dominação da dinastia
Habsburgo se dava sobre os povos do leste europeu. Uma dominação respaldada
pelo clero católico, o qual ele criticava.
Suas pregações contrárias à dominação administrativa do clero encantaram
a nobreza que discordava da dominação papal e de seus representantes sobre as
terras da República Tcheca. As teses do precursor luterano condenavam a concen-
tração das terras nas mãos da Igreja Católica, assim como a venda de indulgências
promovida para poder pagar os conflitos militares na Itália.
Huss era seguidor de John Wycliff (1320 a 1384), o mais importante pen-
sador pré-reformista da Europa. Inglês, originário de família de nobres e com
grande quantidade de terras na região de Yorkshire, sua vida dentro do clero foi
de crítica ao poder do clero e à influência que este exercia no poder monárquico.
Wycliff, assim como Huss, pregou a religiosidade em língua nacional. Foi um
dos primeiros tradutores da Bíblia em língua inglesa. O pensador inglês defen-
deu a transferência da autoridade papal para os monarcas, por isso é considerado
um precursor das teses do anglicanismo.
Mesmo dentro da Igreja e sem sofrer as perseguições que Wycliff e Huss
sofreram, Erasmo de Roterdã acabou por se transformar no “pai do humanismo”.
Um expoente da reforma protestante sem sair do catolicismo, mais que isso, um
dos pensadores básicos do Renascimento Cultural.

O Nascimento do Pensamento Ocidental Moderno


56 UNIDADE I

Roterdã (1466 a 1536), o autor de “O elogio à loucura”, condenava a imposição


clerical e a construção de um pensamento complexo para entender a existência
humana como uma obra divina. Para ele, o homem comum pode e tem o direito
de ter acesso direto ao pensamento de Deus por meio do Evangelho e das pala-
vras do pensamento do apóstolo Paulo.
Para Roterdã, esses documentos bíblicos são a base do cristianismo que fun-
damentam a relação de Deus com os homens e os documentos necessários para
a compreensão da existência do homem em contato com o Criador.
Com esse pensamento, Erasmo de Roterdã desafiou o poder Papa e clerical,

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o qual achava desnecessário. Criticou a escolástica tomista ao considerar que a
fé é o determinante da salvação, assim como a ação humana é uma expressão
da vontade de Deus. O homem por si se salva, através de sua busca por Deus.
A compreensão de Roterdã influenciou o pensamento luterano, discordando
apenas da predestinação defendida por Lutero. Assim como Wycliff, ele conde-
nava a transubstanciação na eucaristia ou nas imagens dos santos e pregava a
necessidade de uma reforma na Igreja Católica.
Por viver na Holanda, um país com uma liberdade imensa de convivência
entre diferentes facções de pensamento religioso, Roterdã não foi perseguido
como seus antecessores. Ele viajou por diversos países europeus e chegou a deba-
ter com Lutero, seu contemporâneo.
Uma das principais defesas de Roterdã era a educação que, para ele, deveria
se constituir como um interesse de todos, mas a educação requintada apenas para
os homens de governo. Ao povo, segundo ele, a educação deveria ser compreen-
dida como uma iniciação à religiosidade, ao conhecimento da universalidade.
Mesmo assim, o pensador holandês criticava o monopólio do conhecimento
pelos membros do clero. Considerava que o aprendizado é direito de todos. Para
ele, o saber racional deve ser livre. A especulação humana deve ir além da simples
retórica repetitiva imposta pela Igreja Católica em sua época. O livre pensamento
é uma de suas mais importantes defesas.
Se a religiosidade tradicional católica é questionada, se a determinação de
Deus sobre a vida dos homens ganha uma conotação libertária, essa condição está
associada diretamente ao desenvolvimento de uma ciência que se estabelece sobre
as leis do Universo e sobre a mecânica dos corpos – a física, química e biologia.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
57

Impossível deixar de entender o que Copérnico, Galileu e Kepler significa-


ram para o mundo moderno. Os três grandes astrofísicos mudaram o destino da
humanidade, descobriram o mundo
para os seres humanos e geraram as
possibilidades de um conhecimento
que está em todo o nosso cotidiano.
As transformações que assisti-
mos nos últimos seis séculos em que
a Europa conquistou o planeta e lhe
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impôs uma integração mercantil e cul-


tural tem no conhecimento científico
o instrumento fundamental. Todas as
coisas que nos cercam, os bens mate-
riais e serviços que adquirimos e com os quais nos relacionamos são fruto de
um saber científico fundado por esses pensadores.
Nicolau Copérnico (1473 a 1543), polonês, formado em medicina e direito,
dedicou-se ao estudo dos astros. Sua principal contribuição foi a teoria helio-
cêntrica, em que descobre a rotação da terra e os demais planetas em torno do
Sol. Para Copérnico, os movimentos dos corpos celestes acabam por revelar que
a Terra não era o centro , mas o próprio Sol:
[…] o primeiro lugar, abaixo do firmamento ou da esfera das estrelas
fixas, coube à esfera de Saturno, dentro desta está contida a esfera de
Júpiter, depois a de Marte; o Sol é circundado pela esfera de Mercúrio,
em seguida Venus, de modo tal que os centros das esferas dos cinco
planetas se encontram na proximidade do Sol [...] o globo terrestre não
diversamente dos outros corpos planetários tem movimentos próprios
entre eles (COPÉRNICO, 1979, p. 780-81).

Membro do clero, Copérnico viveu entre os estudos de medicina, lógica e astro-


nomia e a vida clerical. Acabou por viajar para a França e Itália na busca de
aperfeiçoar seus conhecimentos sobre a mecânica do Universo. Suas descober-
tas acabaram por demorar a serem publicadas pelo temor do próprio cientista
sobre a reação que a Igreja Católica teria de suas descobertas. Sobre o que, de
certa forma, Copérnico tinha razão.

O Nascimento do Pensamento Ocidental Moderno


58 UNIDADE I

A ideia sobre os movimentos dos corpos, firmado pela Igreja Católica, era a
de que a Terra estava parada e as demais estrelas e corpos celestes giravam
à sua volta, teoria conhecida como geocentrismo. Com as observações de
Copérnico, por exemplo, que refutavam o modelo aristotélico-ptolomaico,
o paradigma passa a ser o heliocêntrico, em que o Sol é o centro de um
sistema.
Fonte: Storing (2008, p. 242-243).

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Muitos consideram as descobertas de Copérnico o maior símbolo científico do que
foi a Renascença enquanto movimento cultural. O despertar do homem ocidental
para uma nova forma de compreender o Universo que o cerca e a própria Terra.
Galileu (1564-1642), o italiano, também foi estudante de medicina, mas
acabou por se interessar por astronomia e matemática, ao que se dedicou pelo
resto de sua vida. Uma de suas principais teses foi o desenvolvimento da física
e o movimento dos corpos.
Por meio de observações, estudou o movimento dos planetas e reafirmou
as teses de Copérnico sobre o sistema solar e o movimento rotativo da Terra.
Ele também desenvolveu o conhecimento sobre o movimento dos corpos e a
cinemática. Foram essas teses que lhe fizeram discordar de Aristóteles sobre a
velocidade de queda dos corpos. Sua lei da gravidade ficou famosa, lhe rendeu
títulos universitários na Itália, mas sua defesa das teses de Copérnico gerou sua
perseguição. Acabou tendo que negar suas descobertas e defesas.
Johannes Kepler (1571 a 1630) nasceu na Alemanha e foi matemático. Suas
teses se desenvolvem em torno dos movimentos dos astros, a que se dedica a
observar e a buscar entender a força que os atrai. Ele descobre que o movimento
dos astros, devido à atração que as massas dos planetas provocam, é elíptico e
não circular como se acreditava.
Como Copérnico e Galileu, com quem se correspondeu, Kepler foi perseguido
pelos protestantes alemães, tendo que se mudar para Praga para poder continuar
suas pesquisas. A ciência parecia incomodar os católicos e protestantes. As teses

A ORIGEM DA FILOSOFIA
59

desenvolvidas pelos pensadores renascentistas, que ironicamente eram religiosos,


despertavam o temor do fanatismo sustentado em verdades absolutas e inquestio-
náveis. Os administradores religiosos demonstram ignorância no trato da ciência
Enquanto o poder científico conduziu o homem europeu para descobertas e
conquistas, movimentadas pela busca do enriquecimento que o comércio europeu
centralizava desde sua experiência com as cruzadas e o contato com as especia-
rias do oriente, as monarquias nacionais se sobressaíam sobre o poder papal. A
Reforma Protestante foi o golpe fatal no poder do sumo pontífice.
Os movimentos protestantes nasceram das discordâncias e críticas à con-
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duta do clero católico, dos Papas interessados e voltados apenas para o poder. Os
excessos materiais da Igreja Católica e seu abuso de autoridade já tinham sido
questionados no passado, os pré-reformistas, dos quais tratamos aqui, já tinham
se pronunciado e demonstrado o caminho que a conduta do clero católico leva-
ria à cisma entre os cristãos no ocidente.
Essa cisão da cristandade tem em suas bases os mesmos princípios que teve
o Renascimento Cultural em sua origem, os elementos que determinaram as
descobertas científicas, o humanismo. A busca de valorizar o homem acima das
crenças e dogmas impostos, como a escolástica exigia.
Em vez do homem introspectivo, o que se desejava era um homem especu-
lativo, que busca conhecer-se ao conhecer o mundo que o cerca, sem limites de
moral ou crença que impeça de ir além do que se é.
Neste sentido, da mesma forma que a física foi fruto da especulação, a reinter-
pretação das palavras divinas e a busca de uma relação direta com Deus também
seguiu a liberdade, mas apenas a princípio. Posteriormente, o temor das desco-
bertas científicas abalou também as igrejas que nasceram da Reforma.
Não podemos deixar de mencionar o papel que a Igreja Católica teve nos
primeiros anos da Renascença. Papas, cardeais e bispos foram financiadores dos
renascentistas. Obras como as de Da Vinci, Michelangelo e Donatello foram
dedicadas, em grande parte, a Igreja Católica. Claro que, diante de uma remu-
neração. Talvez aí esteja um segredo de conduta, até que ponto se age pela fé ou
pela materialidade.
Contudo, mais tarde, a própria Igreja viria a condenar os artistas da
Renascença, considerando-os uma ameaça. Censurando suas obras e descobertas.

O Nascimento do Pensamento Ocidental Moderno


60 UNIDADE I

Foi o caso de Da Vinci, de Galileu e Copérnico. Mas nada disso impediria a pro-
pagação do conhecimento que o Renascimento gerou. O movimento humanista
cresceu em um ambiente onde a autoridade papal estava decadente, a burgue-
sia mercantil emergia e a nobreza feudal enfraquecida se agarrava nos direitos
hereditários subsidiados por uma monarquia nacional que lhe sugava o poder
político e militar. Os mesmos monarcas que recebiam dos empresários mercan-
tis os tributos para ampliar poder territorial e consolidar a autoridade.
A força dos monarcas garantiu em muitos reinos europeus a cultura renascentista,
a qual, contudo, também foi perseguidas por eles. Um exemplo desta instabilidade

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ocorreu na Península Ibérica que, carregada de religiosidade, soube usar o desen-
volvimento da ciência náutica como nenhuma outra nação da Europa. Os monarcas
Ibéricos que se constituíram como guardiões do poder papal, cobraram caro para pro-
teger a Igreja Católica, transferiram o poder do vaticano para os interesses do trono.
Se observarmos as grandes navegações, vamos entender por que o discurso
religioso norteia as conquistas ibéricas. A cruz estampada nas velas dos navios
portugueses e espanhóis, o prestígio que a religiosidade católica tinha ao orien-
tar a conquista dos territórios e catequizar, por exemplo, e os gentis americanos
são exemplos da influência do ideário cristão.
Vários pensadores se dedicaram a entender as conquistas náuticas e o papel
da Igreja na conversão dos povos indígenas na América. A ordem inaciana merece
destaque neste papel de conversora. Nascida dentro da Contra-Reforma, ou que
alguns chamam de Reforma Católica, no Século XVI, o seu fundador, Inácio
de Loyola, aliou a hierarquia militar à constituição de uma ordem religiosa que
tivesse como função o papel de converter e educar. Disciplinados, os jesuítas se
destacaram na conversão dos nativos americanos.
Na Europa, a Ordem Jesuíta passou a administrar inúmeras universidades
católicas. Gerando um retrocesso em centros culturais cristãos. Um retrocesso
que custou caro ao clero em alguns países europeus, como a Alemanha, Holanda
e, até mesmo, na França.
Foram os inacianos os responsáveis pelo desenvolvimento do Barroco, a arte
oficial da Igreja Católica, que se apoderou das técnicas renascentistas e carregou
de uma religiosidade fantasiosa e desmedida os templos do período moderno.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
61

Inácio de Loyola teve a incumbência de estruturar uma espécie de exército


jesuítico, a Companhia de Jesus, que tinham por intuito não apenas letrar
os homens que desembarcaram nas novas terras, mas também as pessoas
nativas encontradas, carregando as palavras de salvação para toda e qual-
quer criatura.
Fonte: Saviani (2013, p. 40-42).
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Uma peculiaridade da Companhia de Jesus foi seu papel importante na educação


das terras coloniais da América. Ao mesmo tempo em que se responsabilizaram
pela conversão dos nativos, os inacianos se destacaram na formação de semi-
nários e nas artes.

A CONSTRUÇÃO DO ESTADO NACIONAL E A CIÊNCIA


POLÍTICA

Na reorganização do poder na Europa, a formação do Estado Nacional tem um


papel relevante. As monarquias nacionais conseguiram deslocar as forças sociais,
culturais e econômicas para a modernização da sociedade ocidental e para a con-
quista planetária que adveio da organização do poder nacional.
Podemos considerar que os últimos 600 anos foram construídos pela rela-
ção entre as nações. O modelo de governo que emergiu no ocidente cristão entre
1100 a 1800 escreveu a história da humanidade e refez o mapa do Mundo. Um
mapa político recortado por estados nações.
O estabelecimento do poder monárquico nacional se deu com a unidade
entre os condados feudais e com o deslocamento do poder papal para a figura do
rei. Um processo longo e que, em alguns casos, levou à ruptura entre o monarca
e a Igreja Católica.

A Construção do Estado Nacional e a Ciência Política


62 UNIDADE I

O exercício de poder em que o monarca fortaleceu sua autoridade foi deter-


minado pela imposição da autoridade sobre os súditos que habitavam o território
nacional. Mas, para isso, era necessário o reconhecimento da hierarquia estabe-
lecida a partir do rei e da burocracia que o servia.
A unidade territorial em torno do monarca não se deu de forma linear, foi
diferente em cada território da Europa cristã. Não obedeceram às mesmas for-
ças econômicas e políticas, muito menos teve como fator de unidade os mesmos
elementos.
Se observarmos os países ibéricos, a unidade nacional contou com o ingre-

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diente de expulsão dos muçulmanos da Península Ibérica, o que convencionamos
chamar de “reconquista”. Esse processo de expulsão reuniu nobres católicos na
luta contra os califas. Portugal nasceu primeiro, no século XII, sob a liderança de
Henrique de Borgonha, um nobre francês que expulsou os mouros de Portucale
e, posteriormente, seu herdeiro, Dom Afonso Henriques de Borgonha conquis-
tou Alcobaça e Santarém.
Na unidade espanhola, os chamados “reinos católicos” (Leão, Castela, Aragão
e Navarra) se reúnem para expulsar os mouros. A luta se deu por mais de seis
séculos e culminou com a Batalha de Andaluzia (1492), quando os reinos se uni-
ram em torno de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, formando a Espanha.
Se a unidade ibérica foi tutelada pela Igreja Católica, nos países ao norte
da Europa a unidade foi uma guerra, muitas vezes, contra a própria Igreja. A
Inglaterra tem o caso mais emblemático, a criação da Igreja Anglicana (Igreja
Nacional Inglesa) com Henrique VIII de Tudor, no século XVI.
No mesmo século XVI, Na França, a unidade nacional foi obtida por meio de
uma guerra constante entre os nobres, os quais estavam divididos pelos interes-
ses regionais e tentando impor sua autoridade sobre o território nacional. Depois
de uma longa batalha entre as famílias Guise, Valois e Bourbon, foi esta última
que conseguiu se sobressair com apoio dos mercadores da Região de Navarra e
Normandia. Contudo, Henrique de Bourbon era protestante, calvinistas hugue-
note e teve que se converter ao catolicismo para poder governar.
Aqui podemos entender a importância que a unidade nacional teve no futuro
da Europa. As grandes navegações, o que chamamos de “Expansão Marítima”,
não poderiam ter ocorrido sem a orientação dos estados nacionais absolutistas.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
63

Foi com a autoridade de seus monarcas que nações como Portugal, Espanha,
Inglaterra, França e, posteriormente, e de forma singular, a Holanda promove-
ram as navegações.
Foi nesse ambiente de ebulição das monarquias nacionais que o pensamento
político ganhou as bases para o desenvolvimento de uma ciência que discutisse e
transformasse o poder em tema. Um dos principais expoentes deste pensamento
foi Nicolau Maquiavel, Florentino, cuja obra mais conhecida é “O Príncipe”.
As teses de Maquiavel (1997) partem da análise dos governantes da anti-
guidade e do período medieval, em uma análise dos sucessos e insucessos dos
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homens que buscaram o poder. Dessa análise, o florentino busca entender os


princípios fundamentais de onde o poder se sustenta. Uma tentativa de enten-
der a lógica das forças sociais, econômicas e culturais que permitem o controle
do Estado e a manutenção do governo.
O interesse de Maquiavel nessa obra, que é uma receita das experiências de
governantes do passado, é dar a Lourenço de Médici (Príncipe de Florença) os
ingredientes para poder unir a Península Ibérica e garantir o desenvolvimento
italiano à altura do que os países ibéricos promoviam naquele tempo. Ou seja,
“O Príncipe apresenta um conciso compêndio de conselhos e recomendações
sobre modos de ação política aos príncipes da época” (GONÇALVES, 2010, p.
8). O estado nacional português e espanhol eram senhores dos mares, mesmo
não tendo a riqueza e a experiência náutica dos italianos.
O destaque da obra “O Príncipe” é a sua racionalidade em relação ao poder.
Sua capacidade de projetar o governo se impondo sobre forças até então dominan-
tes à supremacia do rei. A ciência política tem em Maquiavel (1997) seu precursor.
Sua capacidade de elaborar regras para atingir a estabilidade do governo ainda
hoje é base dos estudos da ciência política.
Hoje, o preconceito recai sobre a obra do autor italiano e lhe associa a quem
utiliza de meios vis para chegar ao poder. Como se aquele que busca manter-se
no governo estivesse livre para todos os atos que achasse necessário para impor
a dominação. O que não é uma verdade.
A obra estabelece o papel do governante como determinante para o equilíbrio
de forças que, até então, se encontravam dispersas. Canalizar esta “força” para o
interesse comum que o rei representa é o objetivo da obra de Nicolau Maquiavel.

A Construção do Estado Nacional e a Ciência Política


64 UNIDADE I

Para ele, o Rei que se traduzir neste equilíbrio e nesta força se mantém no poder.
Aquele que chega ao principado com a ajuda dos grandes mantém
com mais dificuldade do que aquele que se torna príncipe com a aju-
da do povo, porque tem ao seu redor muitos cidadãos que pensam
ser seus iguais, e, por isso, não os pode comandar nem governar a
seu modo. Mas aquele que chega ao principado com o favor popular,
se encontra sozinho e tem em torno de si ninguém ou pouquíssimos
que não estejam prontos a obedecer (MAQUIAVEL, 1997, LIVRO
IX, §2).

Como se pode notar, a todo momento Maquiavel traz os elementos positivos

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e negativos das tomadas de decisões elaboradas no passado, o que remete ao
conceito de poder e Estado Civil como uma análise temporal. As noções políti-
cas dispostas em sua obra refletem uma escrita analisada sem vinculação com a
valoração moral, como se a obra estivesse apartada dessas relações. Esse apara-
mento, por exemplo, concede à escrita esse caráter de ‘manual’, como a descrição
de Roma, a que ele constantemente chama de principado para depois vir a ser
uma república.
São os conflitos religiosos associados ao desenvolvimento do comércio as
principais forças que os monarcas europeus têm que administrar para a manu-
tenção do poder. Não podemos deixar de considerar que a religiosidade não é
meramente uma escolha particular, é um instrumento de unidade e de reconhe-
cimento do homem em relação às demais e em relação ao poder.
Um dos exemplos da relação entre o desenvolvimento do comércio e a reli-
giosidade está na obra “Ética Protestante e o Espírito Capitalista”, de Max Weber.
Nela, o autor alemão apresenta o papel que a mentalidade econômica protes-
tante desempenhou para o sucesso da economia capitalista nos países europeus,
como também nos Estados Unidos. A mentalidade católica, segundo o autor, foi
um entrave para a modernização das relações econômicas.
O que se deve levar em consideração é que o desenvolvimento mercantil
fez surgir a necessidade do aprimoramento científico. As conquistas efetuadas
pelas nações europeias nas grandes navegações, as atividades econômicas que
foram desenvolvidas na Europa, a partir do período moderno, e as condições
em que os estados nacionais se desenvolveram foram exigindo um aprimora-
mento da ciência.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
65

O RENASCIMENTO DA CIÊNCIA A SERVIÇO DO MUNDO DOS


NEGÓCIOS

Os artistas da Renascença foram os que mais expressaram a importância das


descobertas científicas. Inicialmente para atender à produção de uma arte que
buscava a perfeição de suas obras, depois para a construção de um conhecimento
necessário para os interesses de expansão que a sociedade ocidental viveu a par-
tir do Século XV.
As descobertas territoriais, durante as grandes navegações, efetuadas pelas
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nações europeias, foram impulsionadas pelo conhecimento científico e pela


tecnologia. A Reforma Protestante também é um elemento importante para se
pensar no desenvolvimento científico moderno. Vale lembrar que as descobertas
também foram um campo fértil para o desenvolvimento da ciência. O encontro
com novas civilizações, novos espaços geográficos, novas espécies de plantas e
animais mudaram a compreensão do homem ocidental sobre si mesmo e sobre
o mundo. Contudo, vale lembrar que o discurso de supremacia se sobressaiu.
Seria da Europa que emanaria toda a compreensão e registro das grandes
descobertas e de seus efeitos. O olhar do homem ocidental determina o con-
ceito, julgou e executou os povos “não ocidentais”.
O discurso de supremacia europeia se apoderou de parte do saber produzido,
trazendo o caráter de cientificidade e racionalidade sobre as coisas humanas. Mesmo
Deus, uma entidade metafísica, passa a ser visto como um “grande arquiteto mate-
mático” que procurou construir os elementos vivos com o modelo de perfeição.
O mais importante personagem dessa transformação pela qual a Europa pas-
sou foi, sem dúvida, Nicolau Copérnico. Sua teoria heliocêntrica se transformou
em um marco na concepção de universo. Rompeu com as teses predominantes
até o Século XVI da teoria de Ptolomeu e deslocou a Terra do centro do Universo
para um sistema solar.
As teses de Copérnico foram combatidas pela cristandade quase como um
todo. Contudo, o desenvolvimento científico do que ele apresentou foi mais
intenso nos países protestantes pela limitação da igreja diante da autoridade dos
reis. A Igreja Católica continuou, em alguns países, exercendo uma forte influ-
ência na vida política e interferindo na produção científica.

A Construção do Estado Nacional e a Ciência Política


66 UNIDADE I

Importante ressaltar que a ciência colocava a figura humana em condição


de criar e transformar. O conhecimento científico significava o poder humano
sobre a natureza. A capacidade de transformá-la em busca de interesses terre-
nos e não divinos vai mudar o curso da história.
Os complementos das teses de Copérnico foram feitos por Kepler e Galileu.
Enquanto o primeiro desenvolveu as teses de movimentação dos corpos celes-
tes através de um movimento elíptico e não circular como previa Copérnico, o
segundo desenvolveu a tese do movimento dos corpos, a dinâmica.
Dessa forma, o estudo da matemática e da física ganhou um papel central. A

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partir da busca da compreensão das chamadas “leis naturais”, aquelas que aprende-
mos nos “bancos das escolas”, passando por Galileu, por Newton e posteriormente
Einstein, deram-se as bases para as ciências naturais como conhecemos hoje.
Destaque, no pensamento racionalista, para Francis Bacon (1561 a 1626). O
teórico inglês que tem participação no parlamento britânico, indutivo. Nele, ao
partir de premissas estabelecidas e das diferenças entre os elementos, procura
se chegar à classificação e compreensão comparativa.
Segundo o pensador inglês, a função da ciência é servir ao homem, lhe dar
condições de dominação sobre as leis naturais e garantir a transformação do
mundo para a satisfação humana. Dessa forma, o homem tem um poder natu-
ral sobre as coisas, mas para exercê-lo deve desenvolver o seu conhecimento e
sua racionalidade sobre o mundo. Se livrar dos “ídolos”, segundo Bacon.
Para ele, os “ídolos” têm uma classificação diversificada, vão desde o senso
comum ao idealismo exagerado, por mais que racional. Dessa forma, só deve-se
crer naquilo que se entende pela racionalidade científica, deve-se compreender
as “leis gerais”, mas conhecer as particularidades que as justificam. Bacon quer
que a humanidade chegue à verdade, mas se faz necessário que se desvincule de
tudo aquilo que possa impor ídolos (imagens) que são obstáculos para tal inten-
ção. Para isso, ele estabelece um método pontual para atingir seus fins.
Nosso método, contudo, é tão fácil de ser apresentado quanto difícil de
se aplicar. Consiste no estabelecer os graus de certeza, determinar o al-
cance exato dos sentidos e rejeitar, na maior parte dos casos, o labor da
mente, calcado muito de perto sobre aqueles, abrindo e promovendo,
assim, a nova e certa via da mente, que, de resto, provém das próprias
percepções sensíveis. Foi, sem dúvida, o que também divisaram os que
tanto concederam à dialética (BACON, 2000, p.27-28).

A ORIGEM DA FILOSOFIA
67

O problema do método perpassa consideravelmente a história da filosofia, uma


vez que se constitui como um caminho a guiar quem pesquisa, como veremos
mais adiante. Da mesma forma, ao se projetar para o universo da educação, o
método, o erro, a certeza, temos discussões não apenas filosóficas, mas também
pedagógicas. Bacon (2000, p. 35), alinhava a linguagem à noção de conheci-
mento, ora, o “silogismo consta de proposições, as proposições de palavras,
as palavras são o signo das noções”. Falar da verdade, ou do que se quer como
verdade, só seria possível se livrando dos pré-conceitos, como os ídolos men-
cionados pelo filósofo.
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Envolvido com o governo inglês em profunda transformação, é sempre bom


lembrar que o pensamento de Bacon se desenvolveu em uma Inglaterra marcada
pelas mudanças das primeiras revoluções liberais. Os primeiros momentos em
que a o poder monárquico se limitava diante da força do Parlamento. O próprio
Bacon foi membro da Câmara dos Comuns.
Na política, mas sustentado na racionalidade, Thomas Hobbes (1588 a 1679)
foi uma das expressões políticas e filosóficas que mudou a concepção de poder
através da racionalidade. Nesse aspecto, ele comunga com Maquiavel, autor que
já trabalhamos. O princípio de Hobbes está na função do poder monárquico, o
rei é uma autoridade necessária diante da impossibilidade do acordo entre os
homens com uma natureza de constante conflito.
Assim como Bacon, mas o superando, Hobbes foi um empirista e defensor
da matemática, dedicando-se aos estudos da dedução. Assim como os pensado-
res de seu tempo, estava à procura de uma lei natural que pudesse ser o elemento
impulsionador da existência de todas as coisas.
A trajetória de Hobbes como pensador lhe colocou no destino da política. O
jovem inglês perdeu o pai cedo e foi criado pelo tio. Estudando lógica e se dedi-
cando ao estudo da conduta humana, o pensador foi tutor de diversos nobres
ingleses. Acabou por viajar para toda a Europa, conhecendo Galileu em suas
viagens (1636).
Sua principal obra é “O Leviatã”, o grande monstro eleito pelos homens com
plenos poderes e capaz de se impor pela ambição, que é da natureza humana, e
pela necessidade de convivência entre os indivíduos, o que é fundamental para
o desenvolvimento da sociedade. O monarca, dessa forma, não é senhor por

A Construção do Estado Nacional e a Ciência Política


68 UNIDADE I

virtude de Deus ou de si, mas foi eleito pelos homens para conter a ganância
que reina em cada um de nós.
Dessa concepção de Hobbes, é possível definir a necessidade do poder, que
em nossos dias ainda é discutida. Para movimentos políticos ideológicos como o
Anarquismo, ou mesmo para pensadores materialistas históricos, o estado repre-
senta o repressor, qualquer forma de autoridade atende a interesses de classes
ou grupos privilegiados na sociedade. Mas, para os seguidores de Hobbes, ele é
necessário. O poder garante a ordem entre os homens, segundo ele.
Todo homem é opaco aos olhos de seu semelhante – eu não sei o que o outro

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deseja, e por isso tenho que fazer uma suposição de qual será a sua atitude mais
prudente, mais razoável. Como ele também não sabe o que quero, também é for-
çado a supor o que farei. Dessas suposições recíprocas, decorre que geralmente o
mais razoável para cada um é atacar o outro, ou para vencê-lo, ou simplesmente
para evitar um ataque possível: assim a guerra se generaliza entre os homens
Outra característica do pensamento do filósofo inglês é o experimentalismo,
o que estará presente em diversos teóricos de seu tempo: considerar apenas aquilo
que é possível ser observado e através da observação constituir as leis naturais
que regem a vida humana. Por isso, era também um simpatizante da matemática.
Hobbes foi um ativista político e buscou influenciar o poder da sua época.
Na França, lançou “O Leviatã” à procura de esclarecimento acerca da função
do poder, como foi citado anteriormente, mas sua concepção acabou recebendo
críticas tanto de monarquistas como de republicanos. Dos primeiros por não
reconhecer a origem divina do rei, dos segundos por considerar que o homem
necessita de uma autoridade absoluta sobre ele. Dentro dessa obra, o filósofo
descreve acerca das paixões da alma, o que nos remete a pensar não apenas na
posição política do autor, mas em que medida esses atributos conduzem a huma-
nidade a escolher determinada postura.
Conforme descreve Hobbes, a primeira ‘provocação’ seria por causa dos sen-
tidos, “pois não há concepção no espírito do homem que primeiro não tenha
sido originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos” (HOBBES, 2003,
p.15). Decorre que dele surgem as imaginações, que podem ser declínios das ações
humanas. Se as coisas conhecidas o são pelos sentidos, e esses conduzem a imagi-
nação, ela pode provocar apetites e aversões que levam a uma determinada ação.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
69

apetites e aversões, esperanças e medos, relativamente a uma mesma


coisa; [que] quando passam sucessivamente pelo pensamento as diver-
sas consequências boas ou más de praticar ou abster-se de praticar a
coisa proposta, de modo tal que às vezes se sente um apetite em rela-
ção a ela, e às vezes uma aversão, às vezes a esperança de ser capaz de
praticar, e às vezes o desespero ou medo de a empreender, toda a soma
de desejos, aversões, esperanças e medos, que se vão desenrolando até
que a ação seja praticada, ou considerada impossível, leva o nome de
deliberação (HOBBES, 2003, p. 55).

Apesar das pontuações bem delineadas sobre sociedade civil, estado e governo,
e seu contato com os monarcas ingleses, jamais foi um influente no destino do
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governo inglês. Suas obras ficaram mais conhecidas fora do reino britânico.

O ‘SENHOR’ DO PENSAMENTO MODERNO

Uma das maiores influências no pensamento moderno foi a de René Descartes


(1596 a 1650). Sua obra marcou profundamente os fundamentos da ciência, a
análise do conhecimento e as estruturas filosóficas que foram construídas em
seu tempo. Podemos considerar Descartes um pensador completo.
O emblemático nesse autor francês, de formação conservadora, é que pas-
sou sua vida em busca de entender a natureza e o homem. Chegou a se alistar
em exércitos para ter tempo de se dedicar aos estudos por meio de viagens pela
Europa. Foi durante sua vida militar que produziu a obra “O discurso do método”.
Apesar de francês, passou parte considerável de sua vida na Holanda, onde
desenvolveu a maioria de suas obras, que buscavam em Copérnico e Galileu uma
referência. Em especial no estudo do movimento do universo. Ele também era
um defensor da matemática. Quando Galileu foi julgado, Descartes não divul-
gou parte de seus trabalhos temendo as controvérsias que poderiam gerar, pois
não gostava de perder tempo com embates que considerava desnecessários.
Algum dos princípios fundamentais do pensamento de Descartes está em
não ser considerado uma verdade científica aquilo que não fosse claro e distinto.

O ‘Senhor’ do Pensamento Moderno


70 UNIDADE I

Para ele, todo o problema deve ser dividido em partes até que seja compreendido
todo o seu funcionamento e compreendida a lógica de seu funcionamento. Por
isso, ao observarmos uma questão, deve-se partir do simples para o complexo,
sempre nesta ordem. Quando a ordem não existir, deve-se estabelecer uma. Por
isso, sem um método é impossível entender uma questão. Apesar de descrever
em sua obra, o “Discurso do Método”, que não quer propor um método para as
pessoas, mas revela qual foi o seu, acaba por conceder um caminho para guiar
o conhecimento e chegar a alguma verdade.
Assim, meu propósito não é ensinar aqui o método que cada um deve

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seguir para bem conduzir sua razão, mas somente mostrar de que modo
procurei conduzir a minha. Aqueles que se metem a dar preceitos de-
vem achar-se mais hábeis do que aquelas a quem os dão; e, se falham na
menor coisa, são por isso censuráveis (DESCARTES, 1996, p.7).

A ideia de Descartes é revelar como estruturou um método a fim de se afastar de


tudo o que seja duvidoso, além de esboçar como diversos conhecimentos herda-
dos desde a infância acabaram por prejudicar o alcance da verdade:
assim que terminei todo esse ciclo de estudos, no termo do qual se cos-
tuma ser acolhido nas fileiras dos doutos, mudei inteiramente de opi-
nião. Pois me encontrava enredado em tantas dúvidas e erros, que me
parecia não ter tirado outro proveito, ao procurar instruir-me, senão
o de ter descoberto cada vez mais minha ignorância (DESCARTES,
1996, p.8).

Apesar de ser um filósofo que marca um período de forma emblemática, na sua


vida pessoal, Descartes era um conservador. Talvez o brilhantismo intelectual
veio acompanhado de um temor de fugir de uma vida segura agindo de forma
conservadora e sem colocar a vida em risco.
Católico fervoroso, jamais se meteu em embates que ameaçassem a sua exis-
tência. Descartes defendeu manter-se no caminho, evitar os jogos da incerteza.
A mudança só pode ser feita se comprovada sua verdadeira necessidade. Como
o pensador francês era um homem recluso, pouco se sabe do que ele realmente
defendeu e manteve como uma verdade em sua vida.
Quem usava de alternativas para fugir das perseguições era Spinoza (1632
a 1677), pensador holandês, filho de família judaica e origem portuguesa. Ele
desenvolveu suas teses por meio da reinterpretação da Bíblia e dos documentos

A ORIGEM DA FILOSOFIA
71

religiosos judaicos. Foi estudioso dos filósofos clássicos. Sua postura crítica em
relação à essência divina lhe deu a excomunhão da religião dos judeus. Acabou
por ficar recluso a uma vida simples como polidor de lentes, vivendo na casa de
famílias que admiravam seu trabalho.
Mas a admiração pelo trabalho do Spinoza foi muito além dos Países Baixos
onde viveu. Foi convidado a ser professor na Alemanha, em Heidelberg, mas recu-
sou diante de ter sua liberdade de pensamento limitada. Até mesmo o Rei Luís
XIV o convidou para fazer parte de sua corte e receber uma pensão em troca de
escrever uma obra dedicada a ele. Spinoza se recusou.
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A base do pensamento do autor holandês está na busca de associar a essência


divina à natureza. Para ele, Deus e a natureza eram o mesmo elemento. Sua tese
provocou rejeição tanto de judeus como de cristãos. Por isso, sua sobrevivência
com pensador esteve associada a sua reclusão, ficar imóvel para poder pensar.
Outro elemento importante no pensamento de Spinoza é a individualidade
como capacidade de compreensão do mundo. A liberdade de pensamento que
deve ser respeitada e que não tem limite. Para ele, se há o temor com o que se
pensa, temos que lembrar que esse é o preço que se paga pela busca da verdade.
Esse conceito de individualidade e liberdade irá nortear o pensamento ociden-
tal a partir do Século XVIII, em especial, o pensamento liberal.
A busca pela realização pessoal diante do mundo será uma orientação neces-
sária para se efetivar a liberdade política do estado liberal iluminista que iniciou
sua trajetória de implantação na Europa a partir das Revoluções Inglesas. Vale
lembrar que a Holanda de Spinoza já era um exemplo de estado liberal com
ampla liberdade aos seus habitantes.
Para encerrarmos os pensadores que anteciparam as teses liberais e defini-
ram as bases metodológicas da ciência contemporânea, vamos falar de Leibniz,
o germânico que travou debates com Newton (2010) e questionou suas teses
matemáticas. Sua contribuição está na lógica e na política. Ele busca dar às leis
naturais uma fragmentação, levando em consideração as condições específicas
para cada nova descoberta observada. Dessa forma, considera que há uma infi-
nita gama de acontecimentos que não devem ser julgados sob a ótica de uma
lógica universal determinante. Estes elementos se agrupam por uma lógica inte-
ligível e cabe entender suas partes.

O ‘Senhor’ do Pensamento Moderno


72 UNIDADE I

São algumas das obras de Leibniz: “Discurso da metafísica”; “Discurso sobre a


teologia natural dos chineses”; “Filosofia para princesas”; “A profissão de fé do filó-
sofo”; “Monadologia” e “Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano”. Esta última
estabelece o que seriam as ideias, como já o fizeram Descartes, por exemplo. Para
Leibniz elas estão tanto na alma como são provenientes da experiência corpórea.
Assim, podem denominar-se idéias essas expressões concebidas ou não,
existentes na nossa alma, mas aquelas que se concebem ou formam po-
dem denominar-se noções, conceptus (LEIBNIZ, 1988, p. 143).

O autor, então, trabalha tanto com o conceito de inatismo, em que um ser meta-

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físico imprime na alma diversas ideias, como também defende que só se pode
conhecer utilizando os sentidos. Os sentidos precisam estar atentos para que pos-
sam captar o universo empírico, o que sempre traz à tona, na filosofia, a relação
entre alma, conhecimento e sentidos.
basta, porém, que possamos descobri-los em nós em virtude da aten-
ção, sendo que a ocasião é fornecida pelos sentidos, e a sequência das
experiências serve ainda como confirmação à razão, mais ou menos
como as provas servem na aritmética para melhor evitar o erro do cál-
culo quando o raciocínio é longo (LEIBNIZ, 1988, p. 5).

A carga teórica ligada a estes pensadores demonstra o quanto a ciência avançou,


e o quanto esteve ligada diretamente à política. A compreensão dos fenômenos
naturais levou ao questionamento da própria existência humana, de suas fina-
lidades e de seus interesses. Não é por acaso que, mesmo tentando se esquivar
dos debates políticos, como foi o caso de Descartes e Spinoza, os grandes pen-
sadores jamais puderam deixar de transformar suas obras em instrumentos de
mudança do poder.
Podemos até considerar que exista uma distância entre a produção inte-
lectual e ação, mas é impossível negar que uma não pode se manifestar sem a
outra. Os pensadores que discutimos até agora contribuíram para a construção
de uma capacidade nova de estabelecer a relação do homem com a natureza, o
que já estava em andamento com o advento da sociedade mercantil. A mesma
sociedade que possibilitou o advento da indústria e o aprimoramento das téc-
nicas de produção. Os intelectuais que analisamos produziram o que expressou
essas mudanças como, também, orientou-as.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
73

As principais mudanças na história do ocidente ainda estavam para ser


traçadas pelo desenvolvimento de uma economia cada vez mais integrada mun-
dialmente. Pelo desenvolvimento da eficiência do estado nacional que se traduziu
em uma representação constante das forças sociais na vida pública. Também, por
isso, acabou direcionando suas ações para atender a determinados interesses de
parcela da sociedade através do aprimoramento do conhecimento científico. A
ciência serviu a civilização ocidental como um instrumento de conquista, mas
também refez o papel desta humanidade diante da natureza e de sua existência.
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O ‘Senhor’ do Pensamento Moderno


74 UNIDADE I

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DO RACIONALISMO ÀS PORTAS DO ILUMINISMO

Dois países podem ser considerados o berço do racionalismo que permitiu o


desenvolvimento do liberalismo: a Holanda e a Inglaterra. Enquanto no primeiro
as guerras religiosas foram uma constante, levando à interferência de diversos
países na Holanda, no segundo, o desenvolvimento das ideias liberais foi conse-
quência da fraqueza das questões religiosas diante das necessidades do estado.
Nos dois, a pressão dos mercadores emergentes contra os privilégios do Estado
teve um efeito de crítica e busca de rompimento com o absolutismo monárquico.
Não é por acaso que foi exatamente na Inglaterra e Holanda que pioneiramente
se implantaram os estados liberais.
É importante ressaltar que um fator teve ligação direta com essa onda liberal.
Enquanto nos países católicos da Europa a resistência da Igreja se dava dentro do
estado monárquico, muitas vezes promovendo perseguições a pensadores racio-
nalistas, nos países protestantes, as religiões necessitavam da concessão do poder
para poderem existir. Vale lembrar, também, que as teses luteranas e calvinistas
acabavam por valorizar individualidade, elemento importante no liberalismo.
John Locke foi a expressão entre essas duas nações. Sua vida se deu se deslo-
cando, em parte, de uma para outra. Aproveitando-se da tolerância à liberdade
religiosa da Holanda quando a Inglaterra se viu à volta de uma guerra civil fun-
dada no movimento puritano.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
75

Um dos fatores que levou Locke a ser perseguido foi sua postura contrá-
ria ao governo dos Stuarts, dinastia reinante na Inglaterra. Ele considerava que
o poder não tem interferência divina é uma obra dos homens. O poder é uma
construção de um contrato social estabelecido pela sociedade.
Parte de sua vida Locke dedicou à vida no Parlamento, foi secretário do Lorde
Shaftesbury, membro da Câmara dos Lordes e presidente do Conselho Privado,
uma figura ilustre dentro do governo britânico, opositor dos Stuarts. Quando o
Lorde foi deposto, Locke fugiu da Inglaterra e passou a dedicar-se aos seus tra-
tados sobre política.
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Entre suas principais defesas estava a liberdade de conduta do homem.


Defende a natureza da propriedade e o direito à liberdade e também estabelece
os princípios da igualdade dos homens perante a natureza. Segundo ele, todo
homem nasce capaz ao conhecimento. Cada homem é uma página em branco
que pode ser preenchida com o conteúdo da experiência e da reflexão.
Na relação entre o cidadão e o estado, cabe ao segundo respeitar os direitos
naturais dos primeiros, caso isso não ocorra é legítimo que se destitua o gover-
nante. Mas a formação de uma estrutura civil só se efetivo primeiro com a noção
de liberdade de cada indivíduo. Considerando o filósofo a existência de Deus e a
criação da humanidade e racionalidade graças a ele, a humanidade se vê obrigada
a instituir um corpo artificial e mantê-lo, dando legitimidade à gênese do Estado.
Se concluir que Deus fez a ele e a todos os homens numa condição na qual
não podem subsistir sem a sociedade, e dotou-os de raciocínio para discernir
o que é capaz de perseverar e manter tal sociedade, resta-lhe outra alternativa
senão concluir que ele está obrigado, e que Deus exige que obedeça às normas
que conduzem à perseveração da sociedade? (LOCKE, 1998, p.50-51).
Desta forma, Locke considera que o papel do Estado é expressar a vontade
coletiva e os direitos naturais dos homens. Contudo, ele considerava necessá-
rio garantir a permanência das instituições como forma de garantir a unidade
social, vital para a liberdade humana.
Locke foi um defensor da propriedade privada, mas sempre a considerando
com um fim ao interesse social. Para ele, ao se apoderar de uma parte da natureza
e transformar esta parte em um bem privado, se direcionado ao interesse coletivo

Do Racionalismo às Portas do Iluminismo


76 UNIDADE I

e ao progresso social, é justa a posse. Dessa forma, em locais onde a propriedade


já está estabelecida e integrada à vida social, tomar o que é do outro é um crime.
Ele também se dedicou à educação. Considerava que o exemplo e a repeti-
ção são meios fundamentais na formação do homem educado. Para ele, todos
devem estar comprometidos para a formação de um homem ético, mas que tivesse
para isso o pleno domínio do corpo. É necessário que o educador, assim como
os pais e, se possível, um preceptor, se dediquem a moldar as ações. Um homem
que controle seus instintos e saiba domesticar o corpo é um homem civilizado.
O final da vida do pensador inglês foi marcado pelo retorno à Inglaterra,

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depois de um longo período de refúgio na Holanda. A volta foi possível com o
governo de Guilherme de Orange, um holandês, que foi coroado pelo parlamento
britânico após a queda de Jaime II de Stuart, inimigo de Locke.
Em sua volta, o pensador inglês se dedicou ao desenvolvimento de sua obra
e à construção dos princípios que iriam consolidar o liberalismo como teo-
ria. Das suas teses seriam estabelecidas as bases que levaram o iluminismo a se
espalhar pela Europa, em especial pela França. Voltaire, que analisaremos ainda
nesta unidade, pensador iluminista francês, considerava que se devia a Locke o
legado da liberdade.

O LIBERALISMO CHEGA À FRANÇA: UMA IDEIA IMPORTADA

No final do Século XVII, as teses liberais já estavam estabelecidas na França, mas


de uma forma discreta, dentro dos círculos acadêmicos. Ela tomaria as ruas na
segunda metade do Século XVIII, respaldaria as principais mudanças ocorridas
no país, mas seria mais uma base teórica dos acadêmicos do que um espírito de
liberdade construído pelos franceses. O país nunca teve uma tradição libertária
para ter gerado uma revolução a partir desses princípios.
O estado absolutista francês atravessava uma crise política e econômica que
se traduzia na instabilidade social desde meados do Século XVII. O reinado de
Luís XIV foi marcado de glória, mas também foi o precursor do caos. O rei fran-
cês consolidou o absolutismo e aproximou as decisões do estado da eficiência

A ORIGEM DA FILOSOFIA
77

das práticas mercantis. Colbert, ministro da economia de Luís XIV, foi peça
fundamental no desenvolvimento da economia mercantilista. Contudo, o endi-
vidamento da máquina pública era marcado por uma carga tributária excessiva.
A política de privilégios na França contrastava com a produtividade dos que
pagavam tributos. Uma sociedade dividida entre nobres e plebeus, sendo que
os empresários emergentes estavam entre os que não tinham direitos políticos
e pagavam a maioria dos tributos. O descontentamento ganhou um clima tenso
quando as classes populares começaram a sentir as mudanças econômicas e o
peso da carga tributária.
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O absolutismo francês caiu pelo autoritarismo e incapacidade da monar-


quia em se adequar às mudanças. Aquela falta de tolerância da qual falamos
anteriormente. Ela promoveu a tensão entre a sociedade e o estado, uniu os inte-
resses dos emergentes empresários burgueses, descontentes com a tributação, e
uma classe popular empobrecida, miserável, sem direitos e decepcionada com
a figura do monarca.
Segundo Anderson (1998), o absolutismo francês provocou diversas mudan-
ças não vistas, por exemplo, na Espanha, mas o que podemos considerar é que a
expansão comercial força o processo de urbanização, tanto que “houve uma onda
de novas construções nas cidades e, pelo final do século, as cidades provinciais da
França ainda suplantavam as da Inglaterra em número e tamanho” (ANDERSON,
1998, p. 109). Com esses crescimentos todos, a nova classe surgida, a burguesa,
crescia, junto a juristas e jornalistas, fortemente influenciados pela ideias ilumi-
nistas, contudo, era um crescimento “fora do âmbito do Estado, com resultados
inevitáveis para a autonomia política da classe burguesa” (ANDERSON, 1998,
p. 109). Como resultado dessa equação toda, a monarquia não acompanhava as
mudanças e foi incapaz de proteger os interesses burgueses, ainda que, por vezes,
eram os mesmos que os do absolutismo.
A impossibilidade da manutenção de um sistema monárquico e absoluto e
os impostos cada vez mais altos, conduziram a própria monarquia desesperada
à dissolução, que retoma seu posto graças à comoção de classes proprietárias,
mas que não suportou o ataque efetivo da aristocracia que alinhavou a revolu-
ção burguesa que acabaria por derrubar em definitivo.

Do Racionalismo às Portas do Iluminismo


78 UNIDADE I

A Alemanha foi outro exemplo do iluminismo, o que se convencionou cha-


mar de esclarecimento. No território germânico, um fato marcou a trajetória da
sociedade, a Guerra dos Trinta Anos (1618 a 1648). Fruto inicialmente do con-
flito entre católicos e protestantes, sobre territórios da boêmia (atual República
Checa), acabou por se transformar em uma guerra generalizada entre os prín-
cipes germânicos divididos pelo catolicismo e protestantismo, assim como pela
interferência de nações europeias interessadas em destruir o poder do Sacro
Império Romano-Germânico.
O resultado desse conflito foi a perda da unidade germânica e a influência

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da cultura francesa. A busca por encontrar uma identidade intelectual para os
alemães levou ao desenvolvimento do “esclarecimento” e, aliado a ele, por meio
do movimento cultural denominado Romantismo, o nacionalismo.
Mas o Romantismo, enquanto movimento intelectual, produziu diferentes
tendências. Algumas exaltavam a racionalidade e consideravam a necessidade
do homem que busca da racionalidade para resolver seus embates. A ideia de
que todo o homem educado pela racionalidade estaria mais próximo de resol-
ver os seus problemas inspirou teses como o materialismo histórico.
O existencialismo seria o exemplo do oposto, de se libertar da racionali-
dade com a emotividade e da inconstância do sentido da existência. Uma vida
pode ter no homem sua compreensão diante de suas necessidades e desejos, nem
sempre dominados pela racionalidade. Essa foi uma forma de fugir do mundo
industrial que passava a dominar o cotidiano da maioria dos indivíduos. Uma
repetição de atos previsíveis e de uma constante social estética da qual a chamada
classe média, ou pequena burguesia, foi a maior expressão. A maior expressão
do romantismo foi Lorde Byron (1788 a 1824), o poeta inglês que produziu inú-
meros poemas que inspiram literários europeus até hoje. Sua vida excêntrica foi
marcada por desafios à autoridade e romances tórridos e proibidos, o maior deles
foi com sua própria irmã.

A ORIGEM DA FILOSOFIA
79

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), nesta unidade percebermos que o resgate do pensamento filo-


sófico ocidental em sua origem, na Grécia Antiga, está relacionado à formação
de uma compreensão da natureza e à forma de como atuar diante dela. Também,
com a mesma racionalidade, busca-se compreender a organização da sociedade
e de sua função, assim como direcionar nossos atos em busca de um futuro que
supere as dificuldades da vida em sociedade e a angústia de cada pessoa.
Nessa linha do tempo, a humanidade da antiguidade começa a definir um
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papel da natureza em sua vida, da busca por uma ‘ordem’, de uma explicação
da gênese de todas as coisas. Mas, é possível concluir a importância que o pen-
samento grego determinará na Europa, mesmo durante a formação do mundo
medieval, quando a teologia cristã se soma ao pensamento helênico.
Essa dimensão de pensamento helênico perpassa a História europeia, atraves-
sando o tempo e o espaço, na mesma medida em que se conecta com a educação
e a ciência. A ciência recebe influência, assim como a política e sua noção de
poder e a unidade nacional; a economia e as relações contratualistas; a cisão
entre fé e razão e que despontará como o desenvolvimento de outros saberes e
conhecimentos. O que fica patente é a elaboração do conceito de racionalidade
europeia que influenciará sobremaneira os demais pensamentos, sem se esque-
cer que a ocidentalidade também fora atravessada pelos saberes orientais. Além
disso, a educação, como pôde ser notado, detinha um recorte pontual: não era
destinada a todas as pessoas. Quando o era, havia uma distinção ao se ensinar
para a grande população e para a elite.
O pensamento filosófico, então, ajudou a determinar o desenvolvimento
educacional no mundo ocidental, como o conhecimento se constituiu, quais ins-
trumentos do pensar, como a ciência se molda e os pilares do que conhecemos
da governabilidade contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
80

1. A filosofia surge na Grécia Antiga, com os chamados primeiros filósofos. Ain-


da que muitos outros pensadores tenham colaborado para o desenvolvimento
desta área do conhecimento, algumas características lhe são permanentes. As-
sinale a alternativa correta que melhor defina esta atividade racional:
a. O pensamento filosófico é, tão somente, uma atividade racional voltada à
discussão.
b. A filosofia é um sistema acabado fechado em si mesmo.
c. A reflexão filosófica deve ser de conjunto, radical e rigorosa.
d. O sistema filosófico é uma reflexão das coisas que nos circundam e nada
além disso.
e. A filosofia é oriunda de uma miríade de relações puramente religiosas.
2. Sócrates desenvolve seu pensamento por meio daquilo que conhecemos como
método socrático, o qual consiste, basicamente, em duas partes: ironia e maiêutica.
Sobre estes termos, dentro do pensamento socrático é correto afirmar que:
I. Em todos os livros escritos por Sócrates, ao tratar do termo maiêutica reme-
te-se a sua mãe que era parteira. Assim como sua mãe, Sócrates pretendia
dar luz às ideias, por meio da reflexão.
II. A ironia consiste em dizer o contrário daquilo que se pretende. A famosa
frase socrática “só sei que nada sei” pode ser exemplo de sua ironia, já que
quer dizer o oposto daquilo que afirma.
III. A maiêutica ocorre quando o interlocutor de Sócrates consegue encontrar,
por meio do diálogo e da reflexão, a resposta para o questionamento ini-
cial.
IV. Sócrates e seu discípulo Platão nada têm em comum, tanto é que nas obras
platônicas, este pensador ridiculariza seu mestre por andar descalço e pe-
rambular pelas ruas.
V. A ironia e a maiêutica são partes de um mesmo método, empregado por
Sócrates nas ruas e praças públicas, visando levar os homens a conhece-
rem-se a si mesmos.
81

Assinale a alternativa correta:


a. Somente I, IV e V estão corretas.
b. Somente II, III, IV e V estão corretas.
c. Somente I, III e V estão corretas.
d. Somente II, III e V estão corretas.
e. Somente III e IV estão corretas.
3. A maiêutica é uma teoria conceituada por Sócrates sobre como o conhecimen-
to seria atingido por todas as pessoas, uma forma ‘pedagógica’ de suscitar as
respostas. Explique o que seria esse processo conhecido como maiêutica.
4. Contemporâneo a Tomás de Aquino, Roger Bacon reflete sobre a ciência mo-
derna, sobre a cisão entre o pensamento teológico e filosófico, científico. Leia
as afirmativas abaixo e assinale a alternativa correta:
a. Para Bacon, o livre pensamento leva ao campo da existência divina, conse-
quente não há ruptura entre fé e razão.
b. Para Bacon, para entender as coisas da natureza não se deve subordinar a
razão a uma crença.
c. Para Bacon, a ciência poderia comprovar uma lei sobre a natureza, o que
implicaria na não existência de Deus, já que o homem se impõe à criação.
d. Para Bacon, a teologia e a filosofia não devem separar-se. Fazer ciência é
também fazer teologia.
e. Ambos acreditavam nas mesmas teorias, tanto que trabalharam juntos por
força do processo religioso da época.
5. René Descartes é considerado o ‘pai’ da modernidade, pois inaugura investiga-
ções pautadas na dúvida hiperbólica, que não se trata de uma conduta cética,
mas um instrumento investigativo. Dentro dessas relações, o filósofo pontua
alguns princípios fundamentais sobre como investigar um problema, frente a
isso, disserte sobre esses princípios investigativos.
82

O que seria o método para Descartes e Spinoza? Qual o papel da dúvida


nesse processo todo? O texto nos faz refletir as comparações entre esses dois
filósofos de modo que Spinoza aponta suas objeções.

DESCARTES E A ANÁLISE
Descartes vai tomar como ponto de partida em sua obra maior, as Médita-
tions Metaphysiques, o conhecimento de um efeito que vai sendo metodi-
camente desenvolvido e ampliado até atingir o conhecimento de sua causa.
Este movimento do efeito em direção a sua causa é duplo: vai da dúvida,
enquanto ato do pensamento, à sua causa (o sujeito que tem os atos do pen-
samento); e vai deste sujeito, enquanto efeito, à sua causa: Deus. O primeiro,
enquanto movimento interno ao pensamento, corresponde a um solipsis-
mo; o segundo, enquanto movimento externo ao entendimento, em direção
a Deus, corresponde à saída deste solipsismo.
O movimento solipsista, ou o primeiro movimento do efeito à causa, ocor-
re em dois momentos distintos, sendo ambos perpassados pela dúvida. No
primeiro momento, o conhecimento do qual parte o cartesianismo é expres-
so pela dúvida, enquanto ato do pensamento de um sujeito do qual inicial-
mente só se pode afirmar, de forma confusa, que é o autor do próprio ato
de pensar, ou a causa da dúvida. Este é o tema da Primeira Meditação. 17
No segundo momento, esta mesma dúvida, agora enquanto método tem a
finalidade de nos libertar “[...] de toda sorte de prejuízos e nos prepara um
caminho muito fácil para acostumar nosso espírito [esprit] a desligar–se dos
sentidos, [...]”,18 visando desenvolver até à radicalização este conhecimento
inicial, ainda confuso, possibilitando assim extrair a primeira verdade (ainda
que temporária), o primeiro conhecimento claro e distinto do sistema, aque-
le que vai inaugurar a longa cadeia de razões do cartesianismo, o cogito: “Eu
sou, eu existo”.19 Entretanto, o cogito, por ser um efeito, não é a verdade
mais importante do sistema cartesiano; ele é apenas a primeira. A verdade
mais importante do cartesianismo, aquela que vai ser o suporte da teoria do
conhecimento de Descartes, por ser causa, é a idéia de Deus. Mas, mesmo
sendo causa primeira, ela só será desenvolvida na Terceira Meditação; 20 é
o segundo movimento do efeito (o cogito) em direção a sua causa (Deus),
é o movimento de saída do solipsismo cartesiano. Esta ordem de entrada
ou disposição dos temas tratados nas Méditations é determinada, de forma
geral, pela ordem geométrica, e de forma mais específica, pela ordem ana-
lítica. É determinada pela ordem geométrica, enquanto dispõe “[...] que as
coisas que são propostas primeiro devem ser conhecidas sem a ajuda das
83

seguintes, e que as seguintes devem ser dispostas de tal forma que elas se-
jam demonstradas unicamente pelas coisas que as precedem [...]”,21 numa
ordenação das razões, cuja direção dirige–se unicamente para a compreensão
das próprias razões, conforme elas vão sendo ordenadas pelo entendimento.
É determinada pela ordem analítica, pela via da análise, enquanto dispõe o
efeito e somente depois, a causa, conforme aos preceitos do procedimento
analítico: examinam–se antes os efeitos para depois examinar–se as causas;
ou melhor, a ordem é rigorosa: parte–se do conhecimento dos efeitos, em di-
reção ao conhecimento das causas. O contrário, em termos direcionais desta
ordem analítica seria a ordem sintética: parte–se do conhecimento das cau-
sas, em direção ao conhecimento dos efeitos. É justamente esta que será utili-
zada por Benedictus de Spinoza em sua obra maior, a Ética.
Fonte: Fragoso (2006).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Discurso do método
René Descartes
Editora: Textos Filosóficos
Sinopse: a obra prima pela reunião do pensamento moderno de
René Descartes em que o exercício da razão se faz necessário para
que se atinja a verdade. Além disso a organização do pensamento
estrutura um método a que o filósofo chama de seu, mas que
orienta os pensamentos que o sucedem.

O enigma de Kaspar Hause (1974)


Sinopse: um jovem chamado Kaspar Hauser (Bruno S.) surge
repentinamente na cidade de Nuremberg em 1828, com
dificuldades na fala ou mesmo em andar, portando um estranho
bilhete. Sua presença não fica incógnita, virando atração e
mistério da cidade, sobretudo por ter passado boa parte de sua
vida trancado em um cativeiro. Ao ser solto nas ruas sem motivo,
a comunidade decide ajudá-lo a se integrar na sociedade, mas
rapidamente Kaspar se transforma em uma atração popular.
Comentário: Por que assistir? Porque mostra como a linguagem
media o que conhecemos do mundo, além de revelar a relação
assimétrica em que os saberes ‘cultos’ tentam se sobrepor aos
saberes ‘menores’. Kaspar percebe que precisa dela para aprender a conhecer, o que nos faz
pensar como o conhecimento sobre o que nos rodeia está intimamente ligado à linguagem e
experiências.

A fim de explicar de outro modo o Mito da Caverna, a filósofa Viviane Mosé, apresentadora do
quadro ‘Ser ou Não Ser’, nos revela didaticamente a busca pela verdade pensada por Platão. Acesse
e confira!

Web: <https://www.youtube.com/watch?v=ei-kSPL4Lg4>.
85
REFERÊNCIAS

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espiritual-material na existência bem-aventurada. Revista Fênix. Julho/Agosto/Se-
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87
GABARITO

1. C.
2. D.
3. Esse processo, segundo o filósofo, é similar ao parto, ou seja, todas as respostas
estão dentro de todas as pessoas, no entanto, se faz necessário parir cada uma
delas. Como sua mãe era parteira, Sócrates acabou por receber essa influência
toda, o que o ajudou a elaborar uma espécie de inatismo das ideias.
4. B.
5. A resposta é subjetiva, mas espera-se que você possa compreender que os prin-
cípios fundamentais do pensamento cartesiano está em não ser considerada
uma verdade científica aquilo que não possa ser claro e distinto. Para o filósofo,
todo o problema deve ser dividido em partes até que seja compreendido todo
o seu funcionamento e compreendida a lógica de seu funcionamento. Ao ana-
lisarmos uma questão, devemos partir do simples para o complexo, seguindo
sempre esta ordem. Quando a ordem não existir, devemos elaborar uma. Por
isso, sem um método é impossível entender uma questão.
Professor Me. Gilson Aguiar
Professor Me. Rodrigo Pedro Casteleira

II
DO PENSAMENTO

UNIDADE
ILUMINISTA AO
CONTEMPORÂNEO

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender a relação entre o pensamento racional e o
desenvolvimento da economia e da política liberal.
■■ Analisar a influência do desenvolvimento da economia capitalista e
a associação com a reformulação do sentido de humanidade. Assim
como entender os questionamentos sobre a ordem econômica com
a emergência da classe operária e o pragmatismo estruturalista ou
capitalista.
■■ Considerar as tendências de compreensão da individualidade, a
necessidade de uma lógica que posicione a pessoa em uma condição
determinante na vida social.
■■ Destacar o momento que estamos vivendo diante da crise de
identidade e a emergência do individualismo exaltado por uma
lógica egocêntrica.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Iluminismo
■■ Teorias do mundo contemporâneo
■■ Crise de identidade humana e as teorias contemporâneas
91

INTRODUÇÃO

Prezado(a) aluno(a), o que vimos na unidade anterior foi o desenvolvimento do


pensamento racionalista e uma nova concepção de humanidade ocidental par-
tindo de uma ruptura com a mentalidade teocêntrica. Nesta Unidade, vamos
trabalhar o desdobramento do pensamento racional e a constituição das teses
iluministas que acompanharam as mudanças na Europa ocidental. O libera-
lismo foi a proposta política e econômica que se desdobrou da “teoria das luzes”.
Unindo uma contextualização do período revolucionário, século XVIII,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

colocamos os/as autores/as desse período em uma ordem de orientação que


possibilita entender as diferentes concepções de humanidade, ou pessoa, e de
sociedade diante das mudanças que a Europa viveu.
Mas, o momento mais importante desta unidade está nos conceitos elabora-
dos nos séculos XIX e XX. Por isso, destacamos o estudo sobre as teses de Comte,
Marx, Durkheim e Weber, considerados clássicos das ciências sociais. Neles se
sustenta a construção de toda a estrutura metodológica contemporânea. Muito
do que discutimos hoje como proposta para a docência, como orientação polí-
tica e ideológica da educação, passa por esses pensadores.
Por fim, também com uma importância significativa, está o drama da socie-
dade contemporânea. Na parte final desta Unidade, destacaremos pensadores
como Pavlov, Freud, Sartre, Hannah Arendt, Baudrillard, Bruckner e Enzensberger.
Uma coletânea de teorias que discutem o comportamento humano em sociedade.
Nas teorias da segunda metade do século XX e início deste século, procuramos
salientar a angústia da existência individual, o drama da existência em um sen-
tido político mais amplo.
Portanto, nossa expectativa é a de que os estudos desta Unidade possam con-
tribuir para uma ressignificação de cada pessoa frente à sociedade, uma vez que
os conteúdos trazem apontamentos para que possamos analisar nossas ações
individuais e coletivas.
Boa leitura!

Introdução
92 UNIDADE II

ILUMINISMO

O iluminismo enquanto um termo filosófico está ligado diretamente à defesa


de ideias liberais fundadas na razão científica. A obra que marcou a corrente
iluminista foi a “Enciclopédia”. Ela contém a reunião de inúmeros intelectuais
que reuniram alguns de seus principais textos. Neles, diversos temas tratavam
da humanidade e de sua relação com a natureza, com a religião e com a política.
Entre os “enciclopedistas”, como acabariam sendo chamados, pode-se res-
saltar D’Alambert (1717 a 1783). Autor da introdução da obra, o matemático se

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destacou pelos estudos em álgebra e também em física (vibração). Seu conheci-
mento foi reconhecido em Paris, onde passou a fazer parte da Academia Francesa,
da qual se transformou secretário perpétuo. Era um crítico do estado autoritá-
rio absoluto e defensor da representatividade liberal e um racionalista convicto.
Diderot (1713 a 1784) foi o responsável pela maior parte das obras contidas
na “Enciclopédia”. Seu trabalho abrangeu diversos temas ligados à política e reli-
gião - criticava a religiosidade institucionalizada, era um ateu. Escritor de peças
teatrais e utilizando de um humor britânico, apesar de ser francês, ele acabou
tendo problemas com a Igreja Católica e com o Estado, mas nada que levasse ao
extremo. Foi preso por um curto período após escrever a obra “Cartas sobre os
cego para o uso por aqueles que sabem ler”.
Uma peça de sua autoria, “A Religiosa”, foi acusada por muito tempo de ser
um instrumento de inspiração das atrocidades que foram feitas a clérigos durante
a Revolução Francesa (1789), o que nunca se comprovou. Sua tendência era a
de buscar a crítica direta, expondo de forma irônica suas considerações, o que
desagradava os alvos de sua crítica.
Se a religiosidade foi o alvo da crítica de Diderot, foi também de Voltaire
(1694 a 1778), um dos mais conhecidos teóricos iluministas do Século XVIII.
Sua obra se transformou em um clássico na crítica à Igreja e aos privilégios do
Clero. Ele foi o autor da célebre frase em que relaciona a criação de Deus pelo
homem e do homem a Deus.
Apesar dessas afirmações, Voltaire, diferente de Diderot, não era um ateu.
Ele condenava a religiosidade institucional, mas considerava a existência de Deus
da mesma forma que Spinoza, Ele era a natureza.

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


93

Aqui, apenas de passagem, já que trabalharemos essa questão mais à frente,


está a obra “O homem máquina”, de La Mettrie. O pensador materialista fran-
cês condenava a existência cartesiana de dois mundos, o da matéria e da alma.
Para ele, somente a matéria existe sem a necessidade de um entendimento do
que lhe deu vida, o acaso dos elementos para La Mattrie.
Para esse pensador francês, a religião era apenas um instrumento que trazia
benefícios a quem governava a sociedade beneficiando determinados elementos
em detrimento de outros. De certa forma, um pioneiro das teses de Karl Marx que
considerava a Igreja o ópio do povo, um instrumento de poder para submeter e
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alienar a classe operária, mas também um ‘suporte’ para aliviar seus sofrimentos.
O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer, quando as con-
dições práticas das atividades cotidianas do homem representem, nor-
malmente, relações racionais claras entre os homens e entre estes e a
natureza. A estrutura [...] do processo da produção material, só pode
desprender-se do seu véu nebuloso e místico, no dia em que for obra de
homens livremente associados, submetida a seu controle consciente e
planejado (MARX, 1980, p. 88).

Tanto para Marx como para Engels, seu parceiro em muitas escritas, as relações
de produção, comércio e espiritualidade se conectam enquanto comportamento
material, como se uma emanasse da outra, o mesmo aconteceria “a produção
espiritual, tal como aparece na linguagem da política, das leis, da moral, da reli-
gião, da metafísica, etc., de um povo” (MARX; ENGELS, 2006, p. 51).
Conhecido como um dos mais importantes iluministas de sua época,
Jean-Jacques Rousseau (1712 a 1778) merece destaque como um exemplo do
romantismo. Mesmo tendo importantes tratados sobre o governo, “Contrato
Social”, sua autobiografia, “Confissões”, acabou por ganhar mérito.
Embora tenha tido uma vida pessoal marcada por atos de moral duvidosa,
Rousseau se destacou como um dos principais teóricos do iluminismo. Sua obra
maior foi o “Contrato Social”. Nele, estabeleceu os princípios da liberdade indi-
vidual limitada pela relação contratual com o estado. Ao submeter a liberdade
individual ao estado, os homens entregam a sua liberdade e a limita. Mas devem
ter preservados os seus direitos naturais, o que para Rousseau eram poucos, visto
que a tirania do estado poderia anulá-los.

Iluminismo
94 UNIDADE II

Instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam


obrigados a conformar-se, que não abram exceção para ninguém e que,
submetendo igualmente a deveres mútuos o poderoso e o fraco, repa-
rem de certo modo os caprichos da fortuna. Em uma palavra, em lugar
de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-nos num poder
supremo que nos governe segundo sábias leis, que protejam e defen-
dam todos os membros da associação, expulsem os inimigos comuns e
nos mantenham em concórdia eterna (ROUSSEAU, 1973, p. 275).

Para Rousseau (1964), a forma de se manter seguro é a renúncia de um estado de


liberdade que vivia na natureza e instituir um contrato, o que substitui as noções
de instinto pelas de justiça. A base da democracia de Rousseau estava muito

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mais sustentada no seu romantismo do que na racionalidade. Ele mesmo foi
uma expressão romântica do liberalismo. Sua racionalidade limitava-se quando
tendia a colocar na emoção o sentido da existência individual, tanto que acre-
ditava que ensinar a noção de amor poderia ser o que moveria a humanidade:
“ensinando-lhe a experiência ser o amor ao bem estar o único móvel
das ações humanas, encontrou-se em situação de distinguir as situa-
ções raras em que o interesse comum poderia fazê-lo contar com a de-
sistência de seus semelhantes” (ROUSSEAU, 1973, p .267).

Considerava que os homens corriam riscos ao delegarem ao estado os seus direi-


tos. A sociedade civilizada corrompe a pessoa. Ser civilizado é estar em estado
de infelicidade constante, por isso a necessidade dos contratos entre os indiví-
duos e o estado. Para ele, a pessoa selvagem é feliz e boa, a sociedade civilizada
corrompe.
Ainda envolto em seu romantismo, Rousseau escreve “Emílio ou da edu-
cação”, em que retrata o papel formativo da educação considerando sua época
e seu projeto educativo para a formação de uma pessoa. O personagem Emílio
representaria a pessoa como fenômeno natural e que precisaria ser ‘lapidado’ por
intermédio da educação. Segundo o filósofo, naturalmente há a aspiração para o
que ele chama de ‘estado de homem’, mas que a necessidade educativa se cumpra.
Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum
é o estado de homem; e quem quer seja bem educado para esses, não
pode desempenhar-se mal dos que com esse se relacionam. Que se des-
tine meu aluno à carreira militar, à eclesiástica ou à advocacia pouco me
importa. Antes da vocação dos pais, a natureza chama-o para a vida hu-
mana. Viver é o ofício que lhe quero ensinar (ROUSSEAU, 1973a, p. 15).

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


95

Para o autor, não é possível educar alguém para ser cidadão e depois estabelecer
a formação enquanto humana, nem mesmo o contrário. Rousseau (1973a) con-
sidera que tal projeto só seja possível concomitante, ou seja, educar para que a
pessoa seja um ser ativo na sociedade, considerando que a formação atue for-
mando-lhe o coração, o espírito e o juízo (ROUSSEAU, 1994).

A REVOLUÇÃO E AS MUDANÇAS NA EUROPA


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Em 1789, a Revolução Francesa eclodiu


e trouxe consigo uma onda de mudanças
que assolou a Europa. Dentro da França,
o movimento teve diversas fases. De um
movimento constitucional que durou
até 1792, passou para uma fase radical
que se estabeleceu até 1795, o chamado
“terror jacobino”. Nessa fase, os revolu-
cionários passaram a eliminar todos que
eram considerados inimigos da “revo-
lução”. Para exemplificar a insanidade
que o movimento francês atingiu, a exe-
cução de Lavoisier é significativa. O pai
da química moderna foi executado por ter sido cobrador de impostos durante
a monarquia dos Bourbon. Quando argumentaram em defesa do químico, sua
inteligência científica, os “revolucionários” afirmaram que “a Revolução não pre-
cisa de cientistas”.
Enquanto a Revolução se processou dentro da França, também se des-
dobrou pelos países vizinhos. Inicialmente, os franceses se defenderam da
tentativa de sufocar a Revolução, as “Coligações Antifrancesas”. Depois os
revolucionários passaram ao ataque e iniciaram uma sequência de conquis-
tas dos países vizinhos.

Iluminismo
96 UNIDADE II

Conforme o historiador Grespan (2008, p. 9), a Revolução Francesa foi um


ícone no processo de mudança do pensamento ocidental contemporâneo,
“moldando as instituições e os ideais que nos animam e que consideramos
universais”.
Fonte: Grespan (2008, p. 9).

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O momento de apogeu dessas conquistas se deu com o Período Napoleônico
(1799 a 1815). O império estabelecido pelo general francês partia dos princípios
liberais da Revolução para estabelecer a tirania. Quando as tropas francesas inva-
diram os países que eram governados pelo absolutismo, foram recebidas como
libertadoras, mas aos poucos a esperança virou ódio e a “libertação” se transfor-
mou em dominação. A obra de Beethoven, a sinfonia “Heroica”, foi composta
em 1803 em homenagem a Napoleão Bonaparte. Contudo, o compositor ale-
mão, uma expressão do romantismo, arrependeu-se um ano depois e, num ato
de ódio, riscou o nome de Bonaparte do texto original.
As ideias liberais nem sempre encontraram nos governantes europeus dos
séculos XVIII e XIX uma expressão a altura. Mas não se pode negar a influên-
cia que o imperador francês teve sobre o destino da Europa. Mesmo derrotado e
tendo o seu destino selado no Congresso de Viena (1814 e 1815), as ideias libe-
rais se propagaram e as monarquias absolutistas estavam com seus dias contados,
mesmo tendo vencido Napoleão.
Na Alemanha, onde o pensamento liberal alcançou uma expansão desdobrada
do iluminismo francês, mas com aspectos típicos da cultura alemã, produziram-
-se pensadores que marcaram as bases do “esclarecimento”. O mais importante e
considerado último pensador clássico da modernidade, mas uma expressão das
ideias liberais, foi Immanuel Kant (1724 a 1824).
Nascido na Prússia oriental, em Königsverg, hoje Kalingrado, pertencente
à Federação Russa, Kant jamais se afastou da cidade natal. Sua vida foi mar-
cada pela docência no ensino médio e na universidade da cidade onde nasceu.
Mesmo com uma vida simples e com um cotidiano regrado, o pensador alemão

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


97

foi um dos mais brilhantes filósofos de seu tempo e sua influência é significa-
tiva até os dias de hoje.
Defensor da liberdade de conduta, Kant considerava que a pessoa deveria
buscar, por meio do esclarecimento, as condições necessárias para sua maturidade
intelectual. Libertar-se da mentalidade infantil é difícil pela autodeterminação,
segundo ele. É necessária a busca do conhecimento produzido e da experiência
libertária. Os homens são presos às crenças por causa de sua zona de conforto,
o que impede o desenvolvimento intelectual. Por isso, segundo ele, muitos per-
manecem na ignorância, por temer o peso das decisões e da responsabilidade
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com a própria vida.


Sua principal obra foi a “Crítica da Razão Pura”, publicada em 1781, e que
demonstra todo o peso da compreensão racional do mundo. O desafio de se posi-
cionar diante de uma percepção maniqueísta da realidade, dividida naquilo que
percebemos subjetivamente, herdamos culturalmente, e aquilo que conhecemos
pela experiência. Essa forma de compreensão do mundo por um direcionamento
subjetivo seria transformada nas bases do idealismo que tomou a Alemanha no
Século XIX.
Kant compreende que a razão guia o conhecimento, contudo seria ela con-
fiável? O filósofo, então, a coloca como ré, a fim de julgá-la como detentora de
validade no âmbito do conhecimento humano. Se a experiência, proveniente dos
sentidos, revela à pessoa um conhecimento, se faz necessário saber se isso se dá
de forma a priori ou a posteriori.
A própria experiência é uma forma de conhecimento que exige o con-
curso do entendimento, cuja regra devo pressupor em mim antes de
me serem dados os objetos, por consequência, a priori e essa regra é
expressa em conceitos a priori, pelos quais têm de se regular todos os
objetos da experiência e com os quais devem concordar (KANT, CRP,
B XVIII).

Esse exame da razão pura é para compreender como ela se envereda para além
dos fenômenos empíricos, daquilo que se pode compreender utilizando a expe-
riência, e tenta responder o que seja a metafísica (aquilo que está além da física).
Como a metafísica não é experienciável, Kant quer investigar o teor de cientifi-
cidade das inferências metafísica para que possa receber a chancela de ciência,
o que revoluciona o pensamento ocidental e os âmbitos da ciência.

Iluminismo
98 UNIDADE II

A tarefa desta crítica da razão especulativa consiste neste ensaio de al-


terar o método que a metafísica até agora seguiu, operando assim nela
uma revolução completa, segundo o exemplo dos geômetras e dos fí-
sicos. É um tratado acerca do método, não um sistema da própria ci-
ência; porém, circunscreve-a totalmente, não só descrevendo o contor-
no dos seus limites, mas também toda a sua estrutura interna (KANT,
CRP, B XXII-B XXIII).

Kant estabelece um método de investigação em que defende a possibilidade de


conhecimentos da natureza a priori, ainda que pensemos na experiência como
forma de conhecimento apenas.

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De tudo isto resulta a idéia de uma ciência particular [que se pode chamar
Crítica da razão pura] . [Porque] a razão é a faculdade que nos fornece os
princípios do conhecimento a priori. Logo, a razão pura é a que contém os
princípios para conhecer algo absolutamente a priori. Um organon da razão
pura seria o conjunto desses princípios, pelos quais são adquiridos todos os
conhecimentos puros a priori e realmente constituídos.
(Immanuel Kant)

Apesar de ter em Hegel sua maior expressão, o idealismo teve antecessores e está
intimamente ligado em suas bases às teses de Fichte (1762 a 1814) e Schelling
(1775 a 1854). O primeiro pode ser considerado um precursor do idealismo e
do nacionalismo alemão.
Fichte desenvolveu estudos sobre a obra de Kant e passou a defender a liber-
dade como uma condição necessária ao exercício da razão. Essa liberdade, no
entanto, não deveria ter como finalidade a felicidade, mas sim o conjunto da
compreensão do sentido da vida humana. Assim, a felicidade poderia mudar seu
sentido conforme a racionalidade desvendasse um novo sentido para a existên-
cia particular e, no particular, o conceito de felicidade coletiva.

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


99

Acusado de ateísmo, acabou por perder o emprego na Universidade de Jena.


Em suas teses de felicidade fundada na idealização racional, Fichte estabelecia
que a crença em um elemento divino fosse apenas uma forma da ideia de dar sen-
tido à existência. A humanidade, que era para ser criatura, passa a ser criadora.
Já a obra de Schelling apresenta o pensamento idealista sobre bases mais
complexas. Uma de suas principais contribuições foi a elaboração da dialética
idealista. Ele considerava que na construção de um terceiro elemento estará
sempre a negação e a identificação dos dois elementos que se negam e o geram.
Nessa concepção, há uma noção clara da dialética dos contrários, que seria fun-
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damental às teses de Karl Marx e Friedrich Engels.


Mas no idealismo alemão, a posição de Hegel é incontestável. Sua influ-
ência sobre seu tempo e, posteriormente, sobre a escola filosófica germânica é
inquestionável.
Para compreendermos melhor o tempo de Hegel (1770 a 1831), temos que
esclarecer o seu tempo histórico no território germânico em seu tempo. Nele, a
Alemanha enquanto estado nacional não existia, ainda. Desde o Século XVIII,
quando o Império Germânico havia se desfeito, a influência da cultura francesa
tinha se mantido como um elemento de diferenciação da aristocracia, da nobreza.
Essa diferença afastava a elite agrária das regiões ao sul da Germânia em
relação aos territórios do norte, onde predominava a influência da Prússia, um
império militar e nacionalista. As classes camponesas e agrárias da Alemanha
não se reconheciam nos hábitos da nobreza afrancesada. Com esse sentimento
de discordância e com uma forte identificação popular com os sentimentos ger-
mânicos, é que os primeiros movimentos militares em defesa do nacionalismo
se desenvolveram.
Foi da política diplomática e militar prussiana que acabou por se organizar
o movimento nacionalista. Sob a liderança prussiana, as guerras para a forma-
ção do Estado Nacional Alemãs obtiveram êxito em 1871. A formação do estado
nacional liderado pela Prússia colocou Berlim no centro do poder político e cul-
tural alemão. Foi nesse centro que as obras de Hegel ganharam reconhecimento,
assim como as de Fichte e Schelling.
Uma das principais obras de Hegel foi a “Filosofia da História”, em que
desenvolve a tese de construção dos estágios do pensamento e o relaciona com o

Iluminismo
100 UNIDADE II

desenvolvimento da história humana. É nesse contexto que a dialética se expressa


em sua obra com a construção dos três elementos – tese, antítese e síntese – que
estará presente no pensamento materialista histórico que o sucedeu.

A velhice natural é fraqueza, mas a velhice do espírito é a perfeita maturida-

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de e força; nela, ele retorna à unidade consigo, em seu caráter totalmente
desenvolvido como espírito.
(George W. F. Hegel)

Dessa forma, nas teses do pensador alemão, não há uma substituição, destruição
ou exclusão, mas transformação sem extermínio dos elementos que se opõem.
Toda a relação se estabelece como uma condição de construção derivada da relação
entre os elementos contrários. Dessa forma, a própria história é uma construção
de relações contrárias que vai permitindo o desenvolvimento da experiência, o
que Hegel chama de “absoluto”. Para o autor, o que move a história é o espírito,
que seria “real e ativo no mundo” (HEGEL, 1998, p. 21), a história, assim, seria
universal pois está conectada ao sujeito que é um ser pensante. Bertrand Russell,
em sua obra “História do Pensamento Ocidental” explica a dialética hegeliana:
Quanto ao processo dialético que conduz ao Absoluto, nos ajuda a
compreender melhor esta noção difícil. Exemplificar isto em lingua-
gem simples está além do alcance de Hegel e, sem dúvida, de qualquer
outra pessoa. Mas neste ponto Hegel recorre a uma das surpreendentes
ilustrações tão abundantes em suas obras. O contraste se estabelece en-
tre alguém cuja noção do Absoluto não se apóia na sua passagem pela
dialética, e outro alguém que tenha passado por ela. Isso se compara
ao significado que uma oração tem para uma criança e para um velho.
Ambos recitam as mesmas palavras, porém para a criança elas signifi-
cam pouco mais do que certos ruídos, enquanto para o velho evocam
experiências de toda uma vida (RUSSELL, 2001, p. 355-356).

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


101

Esta totalidade da dialética será mais acentuada na obra de Karl Marx, mas, por
enquanto, podemos considerar que Hegel tenta dar à história a capacidade de
ser o relato das relações de lutas que levam, dialeticamente, ao amadurecimento
e, por conta disso, a superioridade de uma determinada civilização. Para ele, a
formação do Estado Alemão seria o resultado dessa superioridade dialética.
Mais uma vez lembramos de que a valorização do germanismo está presente
no período em que Hegel desenvolveu seus trabalhos.
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TEORIAS DO MUNDO CONTEMPORÂNEO

O desenvolvimento da sociedade capitalista marcou a organização de uma filo-


sofia da coletividade, mas também da angústia do particular. Ao mesmo tempo
se estabeleceu dois campos de debate entre os pensadores, a questão da subjeti-
vidade e da objetividade.
Parte considerável dessa dualidade, objetividade e subjetividade cresceu
como um reflexo da sociedade industrial. As relações sociais passaram a envolver
meios diversos, tanto na produção de bens como no transporte, na comunica-
ção, até mesmo na intimidade. Nossa vida passa a ficar repleta de produtos que
são fruto da produção industrial. O que antes era uma arte de todos nós, agora se
adquire na prateleira de mercado, oferecido para todos. Contudo, ficamos mais
íntimos de “certas” coisas do que íntimos de “certas” pessoas.
No século 19, destaca-se o papel da ciência, e seu avanço torna-se ne-
cessário. O crescimento da nova ordem econômica — o capitalismo
— traz consigo o processo de industrialização, para o qual a ciência de-
veria dar respostas e soluções práticas no campo da técnica. Há, então,
um impulso muito grande para o desenvolvimento da ciência, enquan-
to um sustentáculo da nova ordem econômica e social, e dos problemas
colocados por ela (BOCK, 2002, p. 46).

Teorias do Mundo Contemporâneo


102 UNIDADE II

Esse processo de desenvolvimento da sociedade industrial abalou a socie-


dade europeia do século XIX. Ela viu a população urbana se multiplicar e o
desenvolvimento da produção industrial que atingiu diversos objetos. A classe
operária se multiplicou e ocupou as periferias das grandes cidades da Europa.
Cidades que não estavam preparadas para receber uma população imensa, resul-
tado do êxodo rural.
Não demorou para que os problemas sociais se multiplicassem. Violência
urbana associada a assaltos, homicídios, suicídios. Também surgiram as epide-
mias. A fome foi outra questão a ser resolvida nas grandes cidades, em especial

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naquelas em que se multiplicaram os desempregados e também a quantidade
de indigentes nas ruas.
Se por um lado as cidades industriais multiplicam sua população perifé-
rica, em determinados espaços, se observava o progresso material. A construção
de edifícios modernos, maquinaria, meios de transporte e comunicação. Até
mesmo as obras literárias, até então restritas a um número limitado de indi-
víduos pelo seu custo, passaram a se multiplicar com a industrialização, assim
como os periódicos. As teorias percorriam um número imenso de indivíduos,
desde que fossem alfabetizados. A noção de alfabetização não significa interpre-
tar o mundo, mas saber reconhecer os caracteres a fim de poder ler e estar com
aptidão para o mundo do trabalho nas indústrias.
O conhecimento, por isso, tem caminhado para ser a mola propulsora
da economia mundial e cujo valor de produtos e serviços depende cada
vez mais da parcela do conhecimento a eles incorporados (LOPES,
2002, p. 11).

O processo de industrialização acabar por promover a multiplicação de esco-


las nesse período, que atende às necessidades de uma qualificação humana,
seja para o trabalho operário ou para as qualificações de maior complexidade.
Produção e conhecimento assinaram uma aliança indivisível ao longo da histó-
ria, o que promoveu o progresso da economia e da vida social, mas infelizmente
não para todas as pessoas. A escola, então, atenderia não apenas o processo for-
mativo de uma criança, mas também a prepara para o mundo adulto, com suas
regras sociais, o universo organizativo do trabalho e comportamentos conside-
rados correto (BOCK, 2002).

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


103

Podemos considerar também até que ponto a educação poderia garantir uma
melhora nas competências humanas, atendendo ao processo de industrialização
em andamento e até os dias atuais. O analfabetismo, por exemplo, não impe-
diria a capacidade de um ser humano conseguir o ingresso dentro do “mundo
do trabalho”. Mesmo em nossos dias, a educação que as instituições de ensino
propõem não corresponde de forma eficiente às necessidades da produção de
forma integral. Talvez nas qualificações específicas e vinculadas diretamente à
atividade produtiva.
A modernização das formas de produção e o uso constante da ciência e
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

da tecnologia foram percebidos na produção industrial partindo do aprimora-


mento da máquina a vapor. O que assistimos no constante desenvolvimento da
indústria é o que foi inaugurado no século XVIII. O grau de complexidade da
cadeia produtiva tem delegado a mão de obra braçal à periferia da produção de
bens. Por isso, quando temos a necessidade do aprimoramento do trabalhador
em nossos dias, vive-se uma adequação específica de atividades. A educação, de
uma forma geral, tem se tornado desconexa da necessidade de produção ime-
diata, mas fundamental para entendermos a complexidade da organização social
em que vivemos.
Hoje vemos uma relação contraditória entre o progresso material, os avan-
ços da tecnologia e da ciência e o aprimoramento humano. Contudo, na mesma
proporção, se propagou a miséria. As cidades passaram a ser o campo onde esta
contradição ficou visual, cotidiana e se avizinhou.
As manifestações das classes populares, em especial dos trabalhadores, se
multiplicaram por toda a Europa e também pelos Estados Unidos, enfim, onde
houvesse chegado a industrialização. Diversas teorias passaram a se dedicar à
compreensão desse industrial, sua vida coletiva e sua angústia pessoal. Mais
uma vez, dando continuidade à busca da filosofia: “onde repousa a felicidade do
homem, independente de seu tempo”.
Os movimentos revolucionários do Século XVIII inspiraram os intelectuais
europeus, desde os defensores do liberalismo, como vimos na unidade anterior,
até os que desenvolveram suas teses durante e após a I Revolução Industrial (1750
a 1830), a Independência dos Estados Unidos (1776) e a Revolução Francesa
(1789 a 1815). Podemos considerar que nenhum pensador ficou isento de se

Teorias do Mundo Contemporâneo


104 UNIDADE II

posicionar diante dos movimentos que transformaram política e economica-


mente o mundo, em especial a Europa.
Alguns desenvolveram o elogio e o aprimoramento das teses liberais, promo-
veram sua “veia” nacionalista e exaltaram o papel do Estado como instrumento
de garantia dos interesses coletivos e individuais. Outros desenvolveram a opo-
sição, a crítica, a busca de se contrapor à sociedade industrial capitalista que
consideravam um ambiente de destruição das qualidades humanas.
O desenvolvimento de uma sociedade industrial complexa passou a movi-
mentar o meio intelectual para entender os elementos que compunham as relações

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econômicas cada vez mais destacadas na vida do ser humano cada vez mais
urbano. A cadeia de produção ganhava conotações de complexidade com uma
quantidade cada vez maior de pessoas envolvidas na produção de bens e servi-
ços. A concentração dessa população nas cidades colocava em xeque as funções
do estado, a organização política. O liberalismo parecia idealista demais para
resolver os problemas que a sociedade industrial apresentava.
Os conflitos entre os pragmáticos, que veremos a seguir, e os resistentes do
romantismo tomaram o palco dos debates intelectuais, principalmente na primeira
metade do século XIX. Só para ilustrar esse debate, podemos citar o pensamento
de Arthur Schopenhauer (1788 a 1860). O crítico das teses de Hegel conside-
rava que o amor não era a felicidade, mas uma condição que expunha a pessoa
à dor. A vida deveria ser compreendida pela capacidade de dar sentido aos ele-
mentos que a cercam e não na materialidade que ela expressa. Schopenhauer foi
autor da obra “O mundo como vontade e representação” (1818), desenvolveu
uma escrita de uma metafísica ética e ateia chamada de pessimismo filosófico, e
que influenciou as bases psicanalíticas de Freud.

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


105

“Quando lhe falta o objeto do querer, retirado pela rápida e fácil satisfação,
assaltam-lhe vazio e tédio aterradores, isto é, seu ser e sua existência mesma
se lhe tornam um fardo insuportável. Sua vida, portanto, oscila como um
pêndulo, para aqui e para acolá, entre a dor e o tédio”.
(Arthur Schopenhauer)
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Contrário a Hegel, distante do interesse feminino e reconhecido como grande


pensador, praticamente após sua morte, Schopenhauer não considerava que a
razão movia a pessoa, mas sua paixão pela existência. O significado que estabe-
lecemos ao mundo é mais importante do que ele realmente é. Segundo o filósofo,
é a vontade que guia cada pessoa frente ao seu próprio fenômeno, dando-lhe
significação, mostrando a “engrenagem interior de seu ser, de seu agir, de seus
movimentos” (SCHOPENHAUER, 2005, §18, p.156-157), refutando a ideia de
verdade como mestra guia no caminho da investigação.
agora a verdade não é, como nos outros casos, a referência de uma re-
presentação abstrata a uma outra representação, ou à forma necessária
do representar intuitivo e abstrato, mas é a referência de um juízo à
relação que uma representação intuitiva, o corpo, tem com algo que
absolutamente não é representação, mas toto genere diferente dela, a
saber: vontade” (SCHOPENHAUER, 2005, §18, p.160).

Outro expoente do seu tempo, nessa disputa entre o pragmatismo e neorroman-


tismo, é Friedrich Nietzsche (1844 a 1900). O pensador alemão foi um crítico do
cristianismo, considerava uma religião pessimista e vinculada aos exemplos dos
derrotados ao estimular a piedade. Assim, segundo Nietzsche, acaba por esti-
mular a ação contrária ao progresso humano. Os modelos que devemos buscar
devem estar associados ao crescimento, ao orgulho e trazer à superfície a supe-
rioridade humana eficiente, segundo ele.
Nietzsche não se esquiva em falar do processo educacional de seu tempo com
sua escrita aguda e pessimista, atribuindo à noção de ‘homem’ a necessidade de
cultura atrelada ao “lucro geral e do comércio mundial” (Nietzsche, 2004, p. 186).
A cultura na modernidade, conforme o filósofo, parece se preocupar apenas com

Teorias do Mundo Contemporâneo


106 UNIDADE II

as formas, não mais com os conteúdos, tornando a humanidade escravizada de


momentos efêmeros e fugidios.
Por mais que a falta de dignidade e de decência salte muito penosa-
mente aos olhos e que uma elegância mentirosa se mostre novamente
necessária para mascarar a doença desta pressa indigna. Pois este é o
liame que une a moda ávida da bela forma ao conteúdo horroroso do
homem contemporâneo: aquela deve dissimular, este deve ser dissimu-
lado. Ser culto daqui por diante significa: não se permitir observar até
que ponto se é miserável e mau, feroz na ambição, insaciável na acu-
mulação, egoísta e desavergonhado na fruição (NIETZSCHE, 2004, p.
189-190).

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Uma educação que apenas se dedicaria à formação de pessoas para o traba-
lho não é uma educação preocupada com a cultura, logo não poderia produzir
grandes genialidades (NIETZSCHE, 2004), a questão de ampliação de escolas
sem uma pauta cultural só revelaria o projeto de formar pessoas para consegui-
rem sobreviver no mundo, mais nada. E é no paradigma de Schopenhauer que
Nietzsche se ancora para defende que existem pessoas que conseguem estabele-
cer uma coerência entre a vida e a obra, haja vista que o exemplo deve ser dado
“pela vida real e não unicamente pelos livros” (Nietzsche, 2004, p. 150).
Fazendo parte desse conjunto temos Jeremy Bentham (1748 a 1832), inglês
e um dos fundadores da Univesity College. Sobre a história desse autor, a título
de curiosidade, é bom lembrar que o seu corpo até hoje está guardado na uni-
versidade que ajudou a fundar a seu pedido. Ele desejava que seu esqueleto fosse
preenchido com cera e mantivessem seu corpo preservado. Foi um pragmático e
criticava o idealismo. Também foi um crítico da religiosidade a qual considerava
um instrumento de dominação de uma elite sobre a grande maioria da socie-
dade. Suas teorias partem da experiência para que se alcance o conhecimento,
mas que nem é nova ou mesmo desnecessária.
Não estamos aqui diante de uma teoria nova e pouco segura, ou inútil.
Com efeito, tudo quanto acabamos de expor representa um dado com o
qual concorda plena e perfeitamente a experiência do gênero humano,
onde quer que os homens possuam uma visão clara acerca dos seus
próprios interesses (BENTHAM, 1974, p. 24).

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


107

A propagação da educação seria a forma de libertar as pessoas dessa inconsci-


ência, o que mais tarde Marx chamaria de alienação. Inclusive, vale ressaltar,
Bentham foi um dos precursores do pensamento marxista que se constituiria
como a grande crítica à sociedade capitalista. Também pode ser considerado um
defensor da busca da experiência material como elemento de formação do pen-
samento, o que de certa forma estaria nas teses de Comte, o “positivista”.

O PRAGMATISMO
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O que chamamos de pragmatismo, outros autores (Russell, principalmente)


chamam de “utilitarismo”, se tornou as teses de entendimento e valorização da
eficiência da sociedade sobre os princípios de moralidade que, por muitas vezes,
a trava. É aquela distância absurda entre a necessidade de uma ação e o seu
adiamento por um julgamento moral. O que necessita ser feito para garantir o
progresso humano deve estar à frente dos conceitos de moralidade. Com o sur-
gimento da sociedade capitalista, as mudanças materiais se dinamizaram e o ser
humano não acompanhou com a abstração moral a urgência dessa nova ordem.
Entre os pragmáticos, vale ressaltar Adam Smith (1723 a 1790), o “pai da
economia política”, e sua principal obra, “A Riqueza das Nações”. Seu trabalho de
compreensão do desenvolvimento da economia e o desenvolvimento dos meios
de produção associados à divisão do trabalho para o crescimento do capitalismo
deu base a uma sequência de pensamentos econômicos que tinham como fonte
de pesquisa o entendimento da produção capitalista.
Smith também foi responsável pela inauguração da escola econômica inglesa
que predominou durante mais de cem anos. Por isso, e como fator estimulante,
a Inglaterra foi a nação que liderou a economia mundial entre os Séculos XVII
e o início do Século XX.
Sua tese se fundamenta na compreensão da economia como um fenômeno
natural com leis próprias. O domínio dessas leis econômicas pode permitir à
humanidade aprimorar a capacidade produtiva e atender com mais eficiência

Teorias do Mundo Contemporâneo


108 UNIDADE II

a suas necessidades materiais. Dessa forma, ao aprimorarem-se as relações de


produção com a especialidade dos trabalhadores e o desenvolvimento técnico,
o volume e lucratividade da produção aumentam.
Por outro lado, a crítica ao capitalismo também se intensificou. Da mesma
forma que a o conhecimento econômico ganhava uma ciência própria para apri-
morar a produção, se desenvolvia a crítica utilizando a mesma racionalidade.
O socialismo moderno surge nesse momento chamado inicialmente de
“utópico”. O termo foi originado por Karl Marx em sua crítica ao idealismo dos
primeiros críticos do capitalismo. O pensador alemão considerava que os “socia-

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listas utópicos” queriam mudar a sociedade “de cima para baixo”. Acreditavam
que a “boa vontade” dos homens mudaria seu comportamento. Um dos que acre-
ditou nessa possibilidade foi Saint-Simon (1760 a 1825).
Filho da baixa nobreza francesa, Simon teve uma educação conservadora,
da qual só pode se livrar depois de ingressar no serviço militar. Na sua vida de
soldado, foi à América do Norte atuar na Independência dos Estados Unidos.
Sua estadia na nova nação republicana e democrática o levou a ser simpático ao
governo liberal democrático instalado na ex-colônia inglesa. Ele considerava que
nos Estados Unidos não há a fusão de privilégio econômico com a vida política.
Além de elogiar a liberdade de culto.
Ao voltar à França foi um dos atuantes na Revolução Francesa, onde desen-
volveu a tese da racionalidade absoluta e a promoção da pessoa pelo progresso
econômico e científico. Para ele, o desenvolvimento da humanidade dependia
do conhecimento e dos benefícios materiais chegarem a todos. Daqui se extraem
seus primeiros princípios socialistas.
Para Saint-Simon, a igualdade não seria uma condição absoluta, mas o
desempenho das potencialidades humanas poderia aproximar a pessoa de uma
condição material qualitativa, na proporção em que sua conduta fizesse jus, ou
seja, a teoria da meritocracia.
Um dos discípulos de Simon, e que acabou por superá-lo em importância
na herança intelectual do Ocidente, foi Augusto Comte (1798 a 1857). O “pai da
Sociologia” ou “físico social”, como alguns pensadores defendem. Apaixonado pelas
ciências naturais desde sua juventude, quando cursava a Escola Politécnica, Comte
defendeu a percepção da vida social como os mesmos critérios das ciências naturais.

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


109

A defesa da evolução do pensamento humano é um dos pontos altos do tra-


balho de Comte. Seu pensamento é fundado no desenvolvimento científico ao
longo da história da humanidade. Um desenvolvimento que permitiu o apri-
moramento da civilização ocidental, a qual considera superior às demais pela
capacidade científica. A organização racional de uma sociedade define seu grau de
habilidade em superar os problemas que ocorrem devido à complexidade social.
Dessa forma, Comte estabelece uma relação direta entre os elementos que
definem um corpo biológico do corpo social. A complexidade do organismo social
o faz ficar sujeito a problemas resultantes do desenvolvimento. Dessa forma, se
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faz necessária uma compreensão objetiva dos fenômenos sociais. A física social
seria a ciência capaz de responder a esses problemas.
Fundamental considerar que, para Comte, todas as ciências verdadeiras se
positivam, ou seja, se sustentam no mesmo método que as ciências naturais.
Todas devem derivar sua lógica da matemática, única capaz de trabalhar com a
abstração e dar a dimensão exata da existência de todas as coisas materiais. Esse
seria o destino das ciências consideradas sociais e humanas, como a Economia,
Política, a História e a Sociologia. Dessa forma, Comte se enquadra nos auto-
res da experimentação, naqueles que consideram que as experiências concretas
estabelecem a fonte de todas as leis universais que sustentam o desenvolvimento
do conhecimento científico.
Em sua obra “Conceitos Gerais e Surgimento da Sociologia”, Comte faz
considerações acerca da Física Social, que tenta estabelecer como a ciência da
sociedade:
entendo por física social a ciência que tem por objeto próprio o es-
tudo dos fenômenos sociais, considerados no mesmo sentido que os
fenômenos astronômicos, físicos, químicos e fisiológicos, isto é, como
submetidos a leis naturais invariáveis, cuja descoberta é o fim especial
de suas pesquisas. Assim, ela se propõe diretamente a explicar, com a
maior precisão possível, o grande fenômeno do desenvolvimento da
espécie humana, visto em todas as suas partes essenciais (...) (COMTE,
1972, p. 86).

É possível notar nessa citação que o teórico francês estabelece uma relação entre o
desenvolvimento da sociedade com as ciências naturais e justifica a superioridade
ocidental pela capacidade de se organizar fundada no conhecimento científico.

Teorias do Mundo Contemporâneo


110 UNIDADE II

As teses de Comte ainda são fundamentais na organização do conhecimento.


Sua compreensão de uma pessoa que valoriza a experiência material será a base
para outros métodos científicos que surgiram a partir de seu método. Essa pos-
tura de instituir a cientificidade às ciências humanas garantiu respeitabilidade,
além de revelar que possui métodos tão válidos como as demais ciências.
A filosofia teológica e a filosofia metafísica nada mais dominam hoje
em dia senão o sistema do estudo social. Elas devem ser expulsas deste
último refúgio. Isto será feito principalmente pela interpretação básica
do movimento social como necessariamente sujeito a leis físicas inva-
riáveis, em lugar de ser governado por qualquer espécie de vontade

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
(COMTE, 1978, p.16).

O pensador que desdobrou o pensamento de Comte foi Émilie Durkheim (1858 a


1917) - teórico francês que conquistou o reconhecimento acadêmico da Sociologia
como ciência. Apesar de pertencer a uma família judia com forte tendência reli-
giosa, Durkheim se afastou da religiosidade a qual considerava uma necessidade
social e não fruto da existência de uma divindade. Por sinal, sua compreensão
da influência da coletividade na vida particular é seu grande mérito como pen-
sador. Teve em Augusto Comte o pensador que inspirou seu desenvolvimento
metodológico.
Durkheim considera que o indivíduo é uma expressão da coletividade que
determina sua condição e ação. Na sociedade industrial, a pessoa vive em uma
rede complexa em que as funções sociais se impõem e levam à coação sobre o
indivíduo. Dessa forma, a conduta particular é condição que as estruturas coleti-
vas determinam. O sentimento de particularidade e a individualidade exacerbada
nada mais são do que uma precária visão que cada um tem das relações com
o todo. O comportamento de um único ser humano não é capaz de demons-
trar qual é a sua real condição e função dentro do corpo social, como também,
de um comportamento particular, em uma sociedade complexa, é impossível
entender o comportamento coletivo. A particularidade não expressa a coletivi-
dade para o pensador francês.
Outro ponto a ser ressaltado na obra de Durkheim é a importância da soli-
dariedade como condição de dependência entre os elementos que compõem a

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


111

sociedade. A complexidade industrial é a sua grande divisão de trabalho. Dessa


forma, se torna importante a integração pela elevação moral das funções de maior
relevância para a existência coletiva. Preservar as instituições fundamentais que
garantam a vida em coletividade. Essa noção só poderia ser compreendida sob
o viés sociológico, agora mais seguro com a física social estabelecida por Comte
e que conecta com a educação. Para o pensador, dessa forma, a sociologia é um
campo de proficuidade para o terreno educacional.
A sociologia pode alguma coisa mais e com mais proveito. Pode forne-
cer-nos o de que mais instantemente temos necessidade: um corpo de
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ideias diretrizes que sejam a alma de nosso labor, e que os sustenham,


deem nítida significação à nossa atividade e nos prendam a ela. Tal con-
dição é indispensável à proficuidade de toda e qualquer ação educativa
(DURKHEIM, 1952, p.74).

Esse processo educacional não seria atingido de forma rápida, como uma seta no
alvo, mas de forma lenta e gradativa, tendo objetivos bem pontuais, sem se dei-
xar “desviar por incidentes exteriores e circunstâncias adventícias, então chega
a dispor de todos os meios necessários para influenciar profundamente a alma
da criança” (DURKHEIM, 1952, p.42)
Em relação à coletividade, ela pode ser vista como o resultado de um desen-
volvimento econômico determinado pelo controle das condições de produção
da vida material. Ou seja, o que para Durkheim seria o aprimoramento da vida
em coletividade, que necessita de regulagem para manter o progresso, para Karl
Marx (1818 a 1883), é a capacidade de concentração de riqueza promovida pelo
desenvolvimento dos meios de produção concentrados nas mãos da classe domi-
nante, a burguesia.
O pai do socialismo científico, fundador do materialismo histórico dialético,
questiona o papel que o desenvolvimento material trouxe. Não pelo desenvol-
vimento em si, mas a que interessa esse desenvolvimento. O capitalismo se
apresenta como uma relação entre duas classes, a burguesia dominante e pro-
prietária dos meios de produção e a classe operária, o proletário, que é a força
de trabalho.

Teorias do Mundo Contemporâneo


112 UNIDADE II

A exploração da classe operária, de sua força de trabalho, é fundamental para


garantir ao capitalista, o burguês, a concentração de capital, segundo Marx. Para
ele, o desenvolvimento das forças produtivas mostra o grau de concorrência entre
as empresas capitalistas, na qual a produção da vida material não visa à satisfa-
ção coletiva, mas à concentração de riqueza nas mãos burguesas.
Dessa forma, a teoria de Marx considera que o futuro desse antagonismo
é a destruição da própria sociedade capitalista. Destruição esta que poderia se
dar pelo domínio da classe operária sobre o estado, seja pela via político-parti-
dária ou revolucionária.

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As teses de Marx consistem em defender a dialética como o elemento que
permite a elevação das relações de produção capitalista em grau de exploração
e desenvolvimento das forças produtivas. Dessa forma, o capitalismo é, para
ele, o resultado do aprimoramento de todas as formas de produção existentes
ao longo da história humana. Ao se libertar dessa exploração, a classe operária
poderia se apoderar de todo o desenvolvimento material promovido pela econo-
mia capitalista e colocá-la a serviço da coletividade, uma sociedade sem classes.
Do socialismo ao comunismo.
A principal característica do método de Marx é a dialética, herdada do hege-
lianismo do qual ele foi seguidor durante a sua juventude. A relação entre os
contrários, que já trabalhamos aqui em outra oportunidade, apresenta a trans-
formação material por meio da intervenção da pessoa partindo do confronto
da condição existente a sua compreensão desta condição e ação. Não é neces-
sário ter apenas uma visão sobre o mundo, mas se faz necessário intervir para
mudá-lo. Ao agirmos, nossa compreensão muda, e nossa ação ganha um novo
significado, e isso tudo dentro do próprio tempo, que é o “campo do desenvol-
vimento humano” (MARX, 1974, p.98). É nesse tempo que o pensar também se
faz, ou a própria educação. Produzir, seja no campo material ou imaterial, revela
a vida como estado de consciência.
A produção de ideias de representações, da consciência está, de início, dire-
tamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material
dos homens, com a linguagem da vida real. O representar, o pensar, o inter-
câmbio espiritual dos homens, aparece aqui como emanação direta de seu
comportamento material. [...] Não é a consciência que determina a vida,
mas a vida que determina a consciência (MARX; ENGELS, 1979, p.36).

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


113

Mas a busca de implantar um estado socialista não se realizou exatamente onde


Marx considerava mais próximo de acontecer, nos países industrializados da
Europa. Alemanha, França e Inglaterra seriam para ele as nações onde a classe
operária estaria mais próxima de sua consciência enquanto classe. Os trabalha-
dores da Europa ocidental se mantiveram fiéis à condição de trabalhadores e
elegeram outras prioridades para sua vida do que a implantação do socialismo.
Temas como o nacionalismo e a cultura passaram a interessar intensamente ao
operário industrial.
O socialismo buscado por Marx acabou se
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instalando em sociedades predominantemente


agrárias e dominadas pela corporação militar
como a Rússia, Polônia, Hungria, ou seja, no leste
europeu. Tudo indica que o socialismo se coloca
como uma imposição para o controle rígido da
vida social em que o bem-estar individual não
se estabelece e a democracia não se consolida.
Quem percebeu, de certa forma, essa rup-
tura entre o pensamento material e a forma
como ele se expressa na vida humana foi Max
Weber (1864 a 1920). Filho de um empresário
bem sucedido na Alemanha, sendo a mãe filha
de nobres, de formação calvinista conservadora, Weber se destacou nos estu-
dos em economia política e no estudo do desenvolvimento da racionalidade
no ocidente. O capitalismo lhe interessou substancialmente. Principalmente
como resultado do desenvolvimento da racionalidade econômica associado a
um legado cultural propício para a ação econômica em busca da acumulação.
Para ele, determinadas condições sociais geram possibilidades de desenvolvi-
mento em detrimento de outras. O que se justifica, na compreensão de Weber,
que o desenvolvimento do capitalismo não poderia ter se dado da mesma
forma em sociedades como modelos culturais distintos. É desse ponto de par-
tida que se organizou o principal trabalho de Weber, “A Ética Protestante e o
Espírito Capitalista”.

Teorias do Mundo Contemporâneo


114 UNIDADE II

Para o pensador alemão, a construção subjetiva de modelos de ação resulta


em um sentido particular para a conduta a ser tomada diante de necessidades
semelhantes. Em outras palavras, mesmo que vivendo condições idênticas, indi-
víduos podem ter condutas diferenciadas por não estabelecerem um sentido
futuro igual para o seu ato. Podemos considerar que o dinheiro é um valor abso-
luto, mas o que fazer com ele está relacionado diretamente ao seu sentido futuro.
Com isso, as heranças culturais constroem um sentido ao comportamento
presente, assim como a ação é orientada por uma consequência futura. Essa con-
sequência imaginada como condição a posterior. O futuro pode ser para alguns

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um longo período, para outros o imediato. Por isso, alguém pode agir hoje visando
a resultados que serão obtidos em anos, outros em minutos.
O importante de Weber é lhe contextualizar em seu tempo. Ele viveu na
Europa em um período de “Paz Armada” (1870 a 1914), uma fase marcada por
potências europeias que dominaram diversas regiões do planeta e transformaram
a África e a Ásia em colcha de retalhos, dividida entre as nações que buscavam
o domínio da economia e da diplomacia mundial. O que se convencionou cha-
mar de neocolonialismo e imperialismo. Weber acredita que a ciência é algo que
se debruça para compreender a realidade, ainda que existam conexões subjeti-
vas que perpassam os saberes e conhecimentos.
A ciência social que nós pretendemos praticar é uma ciência da reali-
dade. Procuramos compreender a realidade da vida que nos rodeia e
na qual nos encontramos situados naquilo que tem de específico; por
um lado, as conexões e a significação cultural das suas diversas mani-
festações na sua configuração atual e, por outro, as causas pelas quais
se desenvolveu historicamente assim e não de outro modo (WEBER,
1986, p. 88).

Essas conexões são fruto de uma estrutura de coletividade, que o pensador conse-
guiu detectar como interesse da coletividade que não se funda exclusivamente na
racionalidade teórica. Mas se esta estiver associada a valores culturais arraigados
na vida social, a orientação da ação pode mudar. O que isso significa? Em uma
crítica a Marx, Weber estabelece que os operários alemães, diante da iminência
da Primeira Guerra Mundial (1914 a 1918), foram orientados pelo Partido Social
Democrata alemão a não se alistarem no exército, para não morrerem em uma
guerra “imperialista” que interessava exclusivamente aos empresários alemães,

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


115

segundo as teses marxistas. Mas, o que ocorreu? Os operários eram germânicos,


nacionalistas, e abandonaram a orientação do partido para vestir a farda militar
e morrerem nos campos de batalha, “dignamente” como alemães.
Não é por acaso que Max Weber é apontado como um precursor do existencia-
lismo, além da defesa do conceito de ação como motora, a racional e a irracional.
Ação racional com relação a fins, “determinada por expectativas no
comportamento tanto de objetos do mundo exterior como de outros
homens, e utilizando essas expectativas como ‘condições’ ou ‘meios’
para alcançar fins próprios e racionalmente avaliados e perseguidos”.
Ação racional orientada a valores, “determinada pela crença consciente
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no valor ético, estético, religioso ou de qualquer outra forma como seja


interpretado, próprio e absoluto de determinada conduta, sem relação
alguma com o resultado, ou seja, puramente em consideração desse
valor”. Ação afetiva, ação irracional emotiva, “determinada por afetos e
estados sentimentais”. Ação tradicional, “determinada por um costume
arraigado” (WEBER apud BARROS, 2010, 150-151).

Essas ações determinam os modelos de dominação considerados ‘modelos ide-


ais’ partindo de pressupostos pessoais, o que nos leva a considerá-lo como um
pensador que deslocou da percepção humana os condicionamentos sociais, abor-
dando muito do que a teoria freudiana iria desenvolver no campo da psicologia.
Porém a Europa, e o Mundo de certa forma, não seriam mais a mesma depois
das duas guerras mundiais.

Teorias do Mundo Contemporâneo


116 UNIDADE II

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A CRISE DE IDENTIDADE HUMANA E AS TEORIAS
CONTEMPORÂNEAS

A euforia com os descobrimentos científicos no século XIX foi abalada com o


advento de duas guerras mundiais. A primeira, entre 1914 e 1918, e a segunda,
entre 1939 e 1945. As duas tiveram como objetivo impor a supremacia de interes-
ses imperialistas que dividam as nações. Alianças foram estabelecidas lideradas
pela Inglaterra e Alemanha, as duas principais rivais no campo econômico e
diplomático europeu.
O resultado destes conflitos foi a emergência de um novo jogo de forças entre
os Estados Unidos e a União Soviética, a Guerra Fria (1945 a 1898), uma fase já
superada, mas marcada por um temor que até nosso dias assombra a humani-
dade, o temor nuclear. Temor marcado inicialmente pela possibilidade de uma
guerra utilizando armamentos atômicos. Hoje é a energia que nos preocupa com
os acidentes nucleares.
Durante e após as duas guerras mundiais, o pensamento filosófico entrou em
crise com a ciência e rompeu com a arte. A humanidade se fragmentou entre o
avanço do conhecimento científico inegável e o conceito de humanidade sobre
si mesma, um dos sentidos da filosofia. Ainda que próxima da filosofia, a arte
se descomprometeu com a realidade e passou a construir um imaginário de
sonhos, não é por acaso que o cubismo, surrealismo e o expressionismo cresce-
ram neste período.

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


117

A fragmentação dos campos do conhecimento atingiu um grau de comple-


xidade expressivo. O que vemos em nossos dias, em que uma pessoa não é capaz
de desenvolver todo o saber em um determinado campo de conhecimento, muito
menos em todos aqueles que estão ligados à vida humana. Desta forma, enten-
der o pensamento sobre a pessoa a partir do século XX é valorizar os destaques
em campos específicos, além dos filósofos clássicos.
Um exemplo da pesquisa científica que desvenda um conceito humano foi
o trabalho do fisiologista Ivan Pavlov (1849 a 1936). Por acaso, ao fazer pesquisa
sobre a salivação, utilizando em seus experimentos cães, ele descobriu que a sali-
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vação, estímulo natural à alimentação, era produzida quando outro fato associado
a ela era apresentado. Um exemplo era que todas as vezes que seu assistente que
alimentava os cães surgia no laboratório, os cães salivavam. Diante disso, o pes-
quisador russo começou a manipular experimentos para perceber o grau de
condicionamento e sua extensão.
Burrhus Frederic Skinner (1904 a 1990), um estadunidense, também se
enveredou no campo comportamental humano, tanto que se tornou um dos
precursores do behaviorismo e da crença sobre a possibilidade de controlar e
moldar o comportamento, mas discorda das teorias de Pavlov. É possível com-
preender como ele disserta em suas obras como “Tecnologia do ensino” (1972)
e “Ciência e comportamento humano” (2003). Suas investigações científicas
revelam que se trata de uma matéria difícil por causa de sua complexidade e
plasticidade. Porém, é possível dimensioná-lo graças ao empenho e técnicas de
quem o estuda sendo, portanto, factível compreender a causa e o efeito decorren-
tes do comportamento. Um exemplo desse sistema de estímulo resposta Skinner
dá ao descrever um texto como dispositivo:
A literatura é produto de uma prática especial, que faz surgir um com-
portamento que, de outra forma, permaneceria latente no repertório
dos falantes. Entre outras coisas, a tradição e a prática da poesia lírica
encoraja a emissão de comportamentos sob controle de fortes priva-
ções – em outras palavras, respostas sob formas de mandos (SKIN-
NER, 1957, p.72-3).

A Crise de Identidade Humana e as Teorias Contemporâneas


118 UNIDADE II

Skinner em “Tecnologia do ensino” (1972) observa que os comportamentos dos


organismos individuais são previsíveis fora do contexto estatístico e que prever
as respostas só seria possível graças a uma série inferências. O comportamento,
segundo ele, no campo da aprendizagem pode ser observado conforme duas
principais melhorias: a primeira seria a Lei do Efeito, que possibilita a mode-
lagem comportamental e a segunda, que permite manter o controle sobre o
comportamento por mais tempo. Partindo desses conceitos o pensador cria o
que chama de máquinas de ensinar, que eram estruturas mecânicas desenvol-
vidas para auxiliar na aprendizagem com etapas específicas. Quem educa seria

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uma espécie de monitor(a), e quem é educado(a) avança em seu próprio ritmo
tendo uma resposta da máquina, se acertar continua, caso errar, continua até
resolver o problema ou questão proposta.
Desses estudos surgiu a teoria do comportamento reflexivo e as bases da
teoria comportamental. Hoje, uma das principais correntes da psicologia. Dessa
forma, valoriza o estudo da exterioridade humana e a sua adaptação ao meio
por meio da associação de comportamentos adquiridos com condicionamento.
Uma particularização das teses que o positivismo de Comte já havia apresentado.
Nesse sentido, se desenvolveu o princípio de atender ao interesse da sociedade
integrando a pessoa à vida social através do condicionamento de seu compor-
tamento. Sendo assim, dessa mesma forma tratar os problemas de adaptação
social. O comportamento observável é o elemento de partida para a compreen-
são de si enquanto humanidade e sua educação.
Evoluir em princípio significa desenrolar, como se desenrola um
pergaminho; desenvolver antigamente significava desdobrar, como
se desdobra uma carta. Ambas as palavras significam expor alguma
coisa que estava encoberta. Já se sabia antes de Darwin, certamente,
que as espécies haviam mudado, embora presumivelmente de acor-
do com um plano. Os psicólogos do desenvolvimento acompanham
o desenrolar ou desdobrar do comportamento das crianças enquanto
crescem. Uma criança pode ser “treinada”, no sentido horticultural de
ser guiada durante o crescimento, mas os fundamentos do que eventu-
almente aparece são de alguma forma predeterminados. Teóricos so-
ciais tais como Hegel e Marx e alguns antropólogos argumentam que
as culturas também evoluiriam através de uma ordem fixa de estágios
(SKINNER, 2005, p. 78).

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


119

Oposto a essa ideia está um dos inspiradores da arte surrealista, Sigmund Freud
(1856 a 1939). O que o médico austríaco desenvolveu foi a representação do
mundo material por meio de uma lógica subjetiva. Esta, nem sempre consciente
ao ser humano. A própria hierarquia de valores que construímos aparentemente
consciente seria, na verdade, filtrada por uma escala pessoal. Nossas experiências
sensíveis são retrabalhadas dentro do subconsciente, uma espécie de depósito
de sentimentos reprimidos.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O surrealismo está centrado na imaginação, nos sonhos, no simbolismo e na


intuição, afastando-se da lógica, do racionalismo, dos causalismos e de tudo
que constitua um obstáculo à sua livre e plena manifestação e atuação no
mundo da arte. O Surrealismo tem como principais fontes de inspiração o
romantismo alemão, a psicanálise freudiana, o esoterismo, a magia, o cubis-
mo e o dadaísmo.
Fonte: Alvarez Ferreira (2013, p. 191).

Nos sonhos, no inconsciente se revela e pode expressar na imaginação toda a


vontade reprimida, ou mesmo, trabalhar as situações vividas que nos ocasiona-
ram traumas.
Na relação entre os sentimentos natos e a ação racional existe uma escola de
estágios em que são filtrados nossos atos. Aqui a teoria dos três estágios (id, ego e
superego). O id como a expressão e instinto, o ego como o filtro de sobrevivência e
adaptação e o superego como instrumento de imposição das exigências coletivas.
O indivíduo ganhou o ponto central das teorias filosóficas a partir da década
de 1950. O conhecimento sobre a capacidade de a ação individual conviver com
as necessidades coletivas acabou por ter um significado invertido do que o pensa-
mento ocidental construiu ao longo de sua história. A busca por um ideal social
agora se centra na máxima da potencialidade individual, como já vinham bus-
cando Pavlov, Skinner e Freud, por exemplo. Assim, como diria Sartre (2010,

A Crise de Identidade Humana e as Teorias Contemporâneas


120 UNIDADE II

p.29), “sou responsável por mim e por todos e crio uma determinada imagem
de homem que escolho ser; ao escolher a mim, estou escolhendo o homem”,
revelando em que medida o processo histórico gesta o processo individual e de
responsabilidade do ser.
Nesta crise entre o todo e o particular, a filosofia existencialista foi uma
expressão significativa na segunda metade do Século XX. Ninguém a expres-
sou de forma mais intensa que Jean Paul Sartre (1905 a 1980). Fundador de um
existencialismo que rompe com a dependência do legado racional, Sartre coloca
sobre a decisão das pessoas a sua capacidade de universalizar o valor, sendo o

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
comportamento único, mas a escolha de uma posição humana diante do mundo,
não por causa de uma estrutura essencialista, mas que parte de escolhas indivi-
duais, como a covardia, por exemplo.
O existencialista quando descreve um covarde declara que este covarde
é responsável por sua covardia. Ele não é assim por ter um coração,
um pulmão ou um cérebro de covarde, ele não é assim a partir de uma
organização fisiológica, mas sim porque ele se modelou um covarde
por meio de seus atos. Não existe temperamento covarde. Há tempera-
mentos que são nervosos, há o “sangue fraco”, como dizem as pessoas,
ou temperamentos ricos. Mas o homem de sangue fraco não é necessa-
riamente covarde, pois o que define a covardia é o ato de renunciar ou
ceder; um temperamento não é um ato; o covarde se define a partir dos
atos que realiza. O que as pessoas sentem obscuramente e lhes causa
horror é o que o covarde que apresentamos é responsável por sua co-
vardia (SARTRE, 2010, p.44).

Ao desprender a pessoa de sua obrigação com o legado, ao determinar no com-


portamento particular um posicionamento diante de todos, Sartre impregna à
humanidade de seu maior fardo, a liberdade. Dessa mesma forma, sendo um
simpatizante das ideias de Nietzsche, declara seu ateísmo considerando que Deus
é uma afronta à liberdade humana. Nada pode justificar o ato, a não ser a esco-
lha, afirma o filósofo existencialista francês (SARTRE, 2010).
Algo que nos falta hoje, reconhecer o poder do ato, da ação particular sobre
o mundo. Nossa covardia diante da necessidade de fazer escolhas e se respon-
sabilizar por elas. Sartre vai além, de assinarmos nossa existência com as ações
que decidimos tomar, não aquela que tomam por nós. Esta, por sinal, as escolhas

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


121

que nos são impostas, permitem a muitos viverem em uma “zona de conforto”,
de eternos vitimados pela imposição autoritária que aceitam para não correrem
o risco da decisão.
Hannah Arendt (1906-1975), judia e filósofa, recebe as influências da Segunda
Guerra Mundial, o que é possível perceber na escrita que desenvolve ao falar
sobre natureza e condições humanas no livro “A condição humana” (2010). A
condição humana é aquela que permite à humanidade efetivar uma vida ativa,
que nos direciona como uma agulha de bússola, sem determinismos. Uma ‘natu-
reza humana’, segundo ela, nos é impossível de conhecer. Seria possível de ser
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conhecida apenas sob um olhar de um ser metafísico ou entidade superior à


humanidade. A noção de vida ativa se relaciona com o desdobramento de três
atividades humanas diferentes: o trabalho, enquanto atividade do próprio corpo
em seu aspecto biológico; a obra, pensada na transformação da natureza e cria-
ção cultural e a ação, que se espraia para o campo político. Preocupada com essas
relações, a filósofa distingue bens de consumo de produtos, que são elementos
garantidores da durabilidade da própria noção de mundo, de bens de consumo,
que garantem a sobrevivência, mas que surgem e desaparecem dando-nos fami-
liaridade do mundo.
Vistos como parte do mundo, os produtos da obra – e não os produtos
do trabalho – garantem a permanência e a durabilidade sem as quais
o mundo simplesmente não seria possível. É dentro desse mundo de
coisas duráveis que encontramos os bens de consumo com os quais a
vida assegura os meios de sua sobrevivência. Exigidas por nosso corpo
e produzidas pelo trabalho deste último, mas sem estabilidade própria,
essas coisas destinadas ao consumo incessante surgem e desaparecem
num ambiente de coisas que não são consumidas, mas usadas, e às
quais, à medida em que as usamos, nos habituamos e acostumamos.
Como tais, elas geram a familiaridade do mundo, seus costumes e há-
bitos de intercâmbio entre os homens e as coisas, bem como entre ho-
mens e homens. O que os bens de consumo são para a vida humana, os
objetos de uso são para o mundo do homem. É destes que os bens de
consumo derivam o seu caráter de objeto; e a linguagem, que não per-
mite que a atividade do trabalho produza algo tão sólido e não-verbal
como um substantivo, sugere a forte probabilidade de que nem mesmo
saberíamos o que uma coisa é se não tivéssemos diante de nós ‘o traba-
lho de nossas mãos’ (ARENDT, 2010, p. 106).

A Crise de Identidade Humana e as Teorias Contemporâneas


122 UNIDADE II

Consideramos, porém, que a maior crise que o pensamento ocidental enfrenta


está na angústia da sociedade diante de um futuro sem ideologia. A perda de
uma proposta mais substanciada da existência humana. Alguns pensamentos
contemporâneos apontam para esse problema com profundidade, como o que
vimos anteriormente.
Nosso dilema se encontra nos conflitos civis que foram substituídos pelas
guerras entre nações. Conflitos sem sentido ideológico, mas que promovem a
morte de milhares de pessoas todos os anos no mundo. A violência gratuita,
algumas promovidas pelas próprias vítimas, como se procurássemos a morte.

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Nada expressa tanto a decadência da ideologia do que o redesenho da
diplomacia mundial após a Guerra Fria (1989). A formação de conglomerados
econômicos não se mostrou eficiente diante do rompimento de barreiras que a
economia mundial desenhou além do mapa dos territórios nacionais. Por sinal,
as próprias nações refizeram seu sentido. O nacionalismo nunca esteve tão deca-
dente em seu sentido ideológico e tão exaltado no patriotismo de mercado.
A sociedade capitalista e liberal, criticada por muitos, se manteve diante
da alternativa socialista. A China, após a Guerra Fria, se transformou em uma
nação plenamente integrada ao capitalismo, vivendo uma ditadura social para
a maioria de sua população e satisfazendo uma minoria com toda a pompa que
a vida de consumo material “burguesa” pode gerar.
Nesse mundo que estamos vivendo, desenhar o pensamento humano con-
temporâneo é um desafio que não arriscamos afirmar, mas apenas apresentar
pontos para que você, no momento da leitura, possa compreender melhor o
impasse que estamos vivendo.
O primeiro autor de quem ressaltamos a obra é Jean Baudrillard (1929 a
2007), pensador francês que tentava manter sua privacidade e fugir dos excessos
que sua vida como intelectual lhe impunha, criticou a forma como a humani-
dade está se relacionando com os símbolos em uma sociedade midiática. Para
ele, a cultura de massas tem se transformado numa desinformação e em uma
imposição de “verdades prontas”, ou “falsas verdades”.
Essa aproximação aparente que vivemos, onde podemos nos relacionar
com pessoas distantes, só demonstram nossa falsa ideia de espaço, tempo e sen-
tido. Estamos convivendo com uma construção mercadológica, um produto

DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


123

apresentado, que é construído por meio de uma interatividade. Não nos rela-
cionamos com o real.
Uma das críticas centrais de Baudrillard está na “sociedade de consumo”.
O papel que o ato de consumir ganhou na relação entre as pessoas diante dos
objetos (BAUDRILLARD, 1995). Como esses atos se transformaram em uma
cultura de reconhecimento da dignidade, superando muitas vezes a cidadania.
Podemos certamente, num primeiro tempo, considerar os objetos em
si próprios e a sua soma como índice de pertença social, mas é muito
mais importante considerá-los, na sua escolha, organização e prática,
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como o suporte de uma estrutura global do ambiente circundante,


que é simultaneamente uma estrutura ativa de comportamento (BAU-
DRILLARD, 1996, 17).

Ter um cartão de crédito é mais significativo para a vida em sociedade do que


ter uma carteira de identidade. O consumo torna-se um modo ativo “de relação
como modo de atividade sistemática e de resposta global, que serve de base a
todo nosso sistema cultural” (BAUDRILLARD, 1995, p. 11).
Hans Magnus Enzensberger (1929) - filósofo, poeta e ensaísta, intelectual
alemão - é um dos maiores defensores do pacifismo. Atualmente tem feito pales-
tras em todo o mundo a procura de defender ações contra a violência propagada
na sociedade civil. Uma de suas mais importantes obras, “Guerra Civil”, ele apre-
senta uma análise do comportamento humano contemporâneo.
A guerra civil está em andamento, segundo Enzensberger. Uma guerra
constante e cotidiana, ausente de qualquer fundamento ideológico, em que o
culto à violência é o seu principal motor. Para ele, o instinto humano está sendo
acusado e a violência banalizada. Como Baudrillard, considera que a mídia con-
temporânea se mostra como uma arma poderosa para o bem e o mal. Muitas
vezes propaga falsas ilusões sobre o mundo que pretende aproximar através dos
meios de comunicação. Pela parabólica se propaga a ideia de “paraísos terrenos”,
lugares fantásticos, que movimentam migrantes em busca da “terra prometida”.
Esta pessoa perdida por meios de comunicação eletrônicos que propagam
valores também constrói uma ausência. Esta ausência é a falta de consciência e o
desejo de não se responsabilizar por nada. Para o filósofo francês, Pascal Bruckner,
um crítico do comportamento humano diante da sociedade de consumo, a viti-
mização tem sido o discurso oficial do mercado, uma forma de induzir a pessoa

A Crise de Identidade Humana e as Teorias Contemporâneas


124 UNIDADE II

a não sentir culpa pelos seus atos. Associada à infantilização, outra crítica feita
por Bruckner à humanidade contemporânea, a pessoa vitimada se sente no
direito de tudo sem ter que arcar com as consequências de suas escolhas. Assim
como Baudrillard e Enzensberger, Pascal Bruckner faz a crítica ao que se pro-
paga como conteúdo na mídia contemporânea. Segundo ele, não estamos atrás
de conhecer outras pessoas na mídia eletrônica, mas estamos atrás de cúmpli-
ces para nossos interesses mesquinhos.

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DO PENSAMENTO ILUMINISTA AO CONTEMPORÂNEO


125

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Somos uma civilização superior? Em alguns aspectos a nossa modernização é


inquestionável. O que aprimoramos nas técnicas de comunicação, o conheci-
mento que aprofundamos em diversas áreas da vida humana podem ser notadas
no dia a dia, infelizmente, nem sempre, na vida de todas as pessoas.
Talvez essa ainda seja a principal polêmica da existência contemporânea: o
desenvolvimento científico que permite o aprimoramento técnico que, por sua
vez, garante as condições materiais de melhora da qualidade de vida. Mas essa
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condição não é universal. Essa desigualdade se aprofunda à medida que a dife-


rença mantida pela sociedade de mercado acaba por condenar o ser humano
sem permitir o seu aprimoramento dentro da vida social.
A chamada modernidade é pouco compreendida pela grande maioria de nós
como uma condição contraditória. Estamos com as discussões sobre os temas
sociais focados na particularidade, nos anseios individuais. Parece não haver um
estabelecimento com a racionalidade a relação das pessoas com suas responsabi-
lidades sociais, contudo, a educação está atravessada por esses elementos e pode
ajudar a humanidade com o ritmo dos saberes sem ignorar as marcas dos passado.
Ao encerrarmos esta unidade, se percebe que os temas que norteiam as dis-
cussões sobre a existência humana, com uma proposta de engajamento e de
organização voltada à coletividade, agora se estabelecem em um particularismo
“raso” e sem comprometimento.
O desafio para quem educa é maior, pois a quem necessita do conhecimento
para compreender que precisa receber a educação é uma prerrogativa delicada,
porque existe uma ideia de plenitude de “direitos”, mas sem obrigações, além de
uma prática crescente do consumo pelo consumo. A ciência ainda é fundamental
para mudarmos essa condição. No entanto, um dos desafios de hoje é demons-
trar a importância para a vida para a humanidade.

Considerações Finais
126

1. (ENADE/2014) Da visão dos direitos humanos e do conceito de cidadania fun-


damentado no reconhecimento das diferenças e na participação dos sujeitos,
decorre uma identificação dos mecanismos e processos de hierarquização que
operam na regulação e produção de desigualdades. Essa problematização ex-
plicita os processos normativos de distinção dos alunos em razão de caracterís-
ticas intelectuais, físicas, culturais, sociais e linguísticas, estruturantes do mode-
lo tradicional de educação escolar (BRASIL, MEC. Política Nacional de Educação
Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, 2008, p. 6 [adaptado]).
As questões suscitadas no texto ratificam a necessidade de novas posturas docen-
tes, de modo a atender a diversidade humana presente na escola. Nesse sentido,
no que diz respeito a seu fazer docente frente aos alunos, o professor deve:
I. Desenvolver atividades que valorizem o conhecimento historicamente
elaborado pela humanidade e aplicar avaliações criteriosas com o fim de
aferir, em conceitos ou notas, o desempenho dos alunos.
II. Instigar ou compartilhar as informações e a busca pelo conhecimento de
forma coletiva, por meio de relações respeitosas acerca dos diversos posi-
cionamentos dos alunos, promovendo o acesso às inovações tecnológicas.
III. Planejar ações pedagógicas extraescolares, visando ao convívio com a di-
versidade; selecionar e organizar grupos, a fim de evitar conflitos.
IV. Realizar práticas avaliativas que evidenciem as habilidades e competências
dos alunos, instigando esforços individuais para que cada um possa melho-
rar o desempenho escolar.
V. Utilizar recursos didáticos diversificados, que busquem atender a necessi-
dade de todos e de cada um dos alunos, valorizando o respeito individual
e coletivo.
É correto apenas o que se afirma em:
a. I e III.
b. II e V.
c. II, III e IV.
d. I, II, IV e V.
e. I, III, IV e V.

2. Hannah Arendt (1906-1975), filósofa contemporânea, desenvolve uma relação


entre natureza e condição humana, o que nos faz pensar sobre a ideia de es-
sencialidade e das relações que permeiam a vida humana nos diversos campos
sociais. Frente a isso, descreva quais as diferenças, para a autora, entre na-
tureza e condição humana.
127

3. Skinner em Tecnologia do ensino (1972) observa que os comportamentos dos


organismos individuais são previsíveis fora do contexto estatístico e que prever
as respostas só seria possível graças a uma série de inferências. Sobre esses
conceitos assinale a alternativa correta:
a. O comportamento, segundo ele, no campo da aprendizagem pode ser ob-
servado conforme duas principais melhorias: a de causa e efeito e o avanço
genético.
b. Skinner cria o que chama de máquinas de ensinar, que eram estruturas me-
cânicas desenvolvidas para auxiliar na aprendizagem com etapas específi-
cas.
c. A pessoa que educa está para além de um conceito de monitoria, mas par-
te de uma estrutura familiar em que se adequa a um universo de ensino-
-aprendizagem envolta nas relações de empatia.
d. Skinner, similar a Pavlov, acredita na impossibilidade de moldar um com-
portamento, seja de organismos simples ou mesmo mais complexos, como
o humano.
e. A relação entre comportamento e aprendizagem educacional inexiste,
uma vez que o processo de se aprender e apreender algo é parte funda-
mental que estrutura na dinâmica platônica do Mundo das Ideias.

4. O Iluminismo, importante fenômeno humano europeu em que a racionalida-


de científica é a prerrogativa para o pensamento, influenciou sobremaneira as
diversas áreas do conhecimento. Sobre esse período é correto afirmar que:
a. Os pensadores considerados ‘enciclopedistas’ marcaram seus pensamentos
por conseguir unir as pesquisas científicas junto ao pensamento teológico,
o que acabou por provocar a Reforma Protestante.
b. Jean-Jacque Rousseau (1712-1778) escreveu a obra “Contrato Social, em
que estabeleceu os princípios da liberdade coletiva barrada pela relação
contratual com o estado. Ao submeter a liberdade coletiva ao estado, as
pessoas cedem a sua liberdade limitando.
c. Tanto Marx como Engels estiveram presentes na escrita da obra mais em-
blemática do Iluminismo, a saber, a “Enciclopédia”.
d. Diderot (1713 a 1784) foi o responsável pela maior parte das obras contidas
na “Enciclopédia”, tendo seu trabalho que se espraiou para temas ligados à
política e religião.
e. O Iluminismo, conhecido como Século das Luzes, pouco influenciou o de-
senvolvimento epistemológico (científico) na Europa, como se pode verifi-
car com as leituras históricas.
128

5. Jean Baudrillard (1929 a 2007) faz críticas pontuais em relação à sociedade con-
temporânea e a relação com os símbolos em uma sociedade midiática, entre
elas, a “sociedade de consumo”. Explique o que seria essa crítica do autor.
129

O recorte do ensaio a seguir nos leva à reflexão de como o consumo e a mercadoria se


constituem como fatores de relações sociais que predomina entre as pessoas, se conec-
tando com o conceito de crise do sistema capitalista e ampliando o conceito de alienação.

O ‘falso socialmente necessário’


As pessoas, aqui no sentido de humanidade, são o que elas fazem. Os seres humanos
são as relações sociais que estabelecem entre si; os indivíduos são as conexões que es-
tabelecem com a história da qual são partícipes. Como vivemos em uma sociedade que
produz mercadorias, fazemos a nós próprios “guardiões de mercadorias”. Os da classe
dominante são “guardiões do capital”, os assalariados são guardiões da sua força de tra-
balho, a única mercadoria que têm para vender. Todavia, como a riqueza do patrão é
produzida pelo trabalhador, o capital da burguesia nada mais é que a riqueza produzida
pelo operário e, assim, o capital termina revelando-se o que de fato é: a força de trabalho
convertida em propriedade do burguês. No fundo, portanto, o burguês e o proletário
são guardiões da mesma mercadoria sob formas diversas. Isto que vale para o burguês
e o operário vale para todos os trabalhadores, entre eles os assalariados em geral. E vale
também para os marginalizados e desempregados: são guardiões que são miseráveis
por não conseguirem vender suas mercadorias. As mercadorias têm uma propriedade
curiosa. Tal como Midas, que transformava em ouro tudo o que tocava, as mercadorias,
ao serem produzidas, convertem os homens em sua imagem e semelhança. As mercado-
rias não “podem ir ao mercado” por si próprias, não podem se trocar umas pelas outras a
não ser que os seres humanos as troquem. Portanto, para que as mercadorias “se refiram
umas às outras como mercadorias, é necessário que os seus ‘guardiões’ se relacionem
entre si como pessoas cuja vontade reside” nas mercadorias, de tal modo que troquem
suas mercadorias segundo as vontades do vendedor e do comprador. Mas, para que
as pessoas se relacionem enquanto vendedores e compradores, é preciso, ainda, que
se reconheçam “reciprocamente como proprietários privados. Esta relação jurídica, cuja
forma é o contrato, desenvolvida legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que
se reflete a relação econômica” (Marx, 1983, p. 79). Quando a economia força o indivíduo
a vender e comprar mercadorias para viver, as relações de concorrência moldam até
mesmo a ‘vontade’ dos indivíduos: é assim que vivemos em função do dinheiro, que é a
mercadoria das mercadorias, a mercadoria universal.
Fonte: Lessa (2006, p. 231-246).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Sociedade de Consumo
Jean Baudrillard
Editora: Almedina

Sinopse: obra constitui uma das principais reflexões para a socio-


logia contemporânea, em que Baudrillard analisa incisivamente um
dos fenômenos mais nevrálgicos das sociedades desenvolvidas da
segunda metade do século XX. Ele revela como o consumo huma-
no substitui os mitos tribais, concedendo um novo, além de impli-
car na moral do mundo contemporâneo.
131
REFERÊNCIAS

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(Org.). Sociologia: Weber. Trad. Amélia Cohn e Gabriel Cohn. 3. ed. São Paulo: Ática,
1986.
133
GABARITO

1. B.
2. A ideia central é que você compreenda que a condição humana seria aque-
la em que se efetiva a vida ativa, uma forma de direcionamento em que nos
orientamos, a natureza humana, por sua vez, não é possível de ser conhecida
pois somos partes de um todo, logo, apenas um ser acima de nós poderia ter
condições de saber qual nossa verdadeira natureza.
3. B.
4. D.
5. Baudrillard, ao falar sobre “sociedade de consumo”, chama a atenção do papel
que o ato de consumir ganhou na relação humana, como esses atos se transfor-
maram em uma cultura de reconhecimento da dignidade, superando, muitas
vezes, a cidadania.
Professor Me. Gilson Aguiar
Professor Me Rodrigo Pedro Casteleira

III
A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO

UNIDADE
NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA
SENTIDA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Compreender as condições em que a educação foi implantada na
colônia e o seu significado em uma sociedade caracterizada pelos
interesses da metrópole portuguesa.
■■ Avaliar as consequências da educação estruturada na colônia para a
sociedade atual.
■■ Estabelecer a relação entre a educação na colônia e após o processo
de independência com a instituição da monarquia.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ Os primeiros tempos
■■ Educação laica, o abandono
■■ Da colônia ao império
137

INTRODUÇÃO

Caro(a) aluno(a), esta unidade é um relato da história da educação no Brasil


tendo por princípio o Brasil Colônia até chegar ao Brasil Império, considerando
a educação jesuítica até passar para o processo laico, iniciado com o Marquês de
Pombal. Percorremos as políticas educacionais brasileiras, se é que elas existi-
ram, mas o que importa é procuramos dar condições para que você conheça os
caminhos que a educação percorreu ao longo da história do país.
Partindo do entendimento dos interesses que levaram o Estado Nacional
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Português a instalar um processo de colonização associado também à conversão


do elemento nativo e a educação dos primeiros colonizadores a uma doutrina-
ção dirigida pela Igreja Católica, em pleno período de guerras religiosas que
assolaram a Europa. Esse processo de colonização mesclada à catequização só
foi possível graças à Ordem Jesuítica, orientada pelas mãos de Inácio de Loyola.
Passamos pelo completo abandono, ainda durante o período colonial, do
Período Pombalino até a emancipação e a formação do Estado Nacional Brasileiro,
constituído a fórceps pela transferência da corte portuguesa, o que não vai con-
tribuir para uma melhora das condições de ensino nos primeiros anos após a
independência, mas que já traz algumas mudanças trazidas da Europa por influ-
ência das ideias iluministas.
A lacuna educacional manteve-se até meados do Império (1822 a 1889)
quando a política educacional começou a ser desenhada, sem atender à grande
maioria da população, característica que vai dominar até a Primeira República
(1889 a 1930). Contudo, a educação não foi destinada para toda a população,
mas à elite, como constante tentativa de manter os interesses da elite a salvo,
além de deixar de lado mulheres, pessoas escravizadas e indígenas, revelando a
postura de permanência de dominação. Esta Uidade revela uma ‘fotografia’ do
passado para que possamos compreender os passos do presente dentro da edu-
cação brasileira.
Boa leitura!

Introdução
138 UNIDADE III

OS PRIMEIROS TEMPOS

Ao desembarcar no território no qual


a colônia portuguesa viria a se organi-
zar, os primeiros representantes da coroa
europeia estabeleceram as relações de ocu-
pação e organização das primeiras unidades
produtivas, assim como os primeiros povo-
amentos de interesse luso.

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É preciso considerar que não ocorreu
uma padronização no território colonial, em
algumas regiões se estabeleceram os centros
de interesses, as plantations, unidades pro-
dutoras fundadas na produção extensiva,
com mão de obra escrava e monocultora.
O trabalho escravizado se tornou um
dos principais fundamentos da área colonial
portuguesa (o Brasil), o que, por interesse
de concentração de riqueza derivada das prá-
ticas mercantis, através do tráfico de escravos, viria ser o africano. Dessa forma,
as pessoas nativas, indígenas, deveriam ser poupadas do regime compulsório de
trabalho, pelo menos em parte. Uma das decisões tomadas pelo governo portu-
guês foi a implementação da Ordem Jesuíta no território colonial, o que ocorreu
em terras coloniais da Espanha e da França, no mesmo período.
Bom lembrar que a Ordem Jesuíta foi criada por Inácio de Loyola, um nobre
e militar espanhol que lutou na expulsão dos Mouros da Península Ibérica (século
XV). A Ordem é formada com o espírito militar da expansão cristã, o que já tinha
sido praticado nas cruzadas. A Ordem somada à Inquisição representavam um
grandioso aparato da Contra-Reforma católica, na tentativa de barrar o avanço
tanto de mouros como de protestantes (LUZURIAGA, 2001).

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


139

“Nascida oficialmente no começo do século XIII e durando até o século XIX,


a Inquisição dedicou-se, dizem eles, a semear o terror e a embrutecer os es-
píritos. Adotando como método de trabalho a pedagogia do medo, reinou,
de modo implacável, para impor aos povos uma ordem, a sua ordem, que
não admitia divergências, nem sequer hesitações”.
Fonte: GONZAGA (1993, p. 17).
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A reforma protestante ganhava terreno na Europa, o que levou a igreja cató-


lica a se articular para não perder mais fiéis, travando lutas tanto internas como
externas, o que gerou a chamada Contra-Reforma, que duraria cerca de dois
séculos. A forma encontrada, então, para barrar essas perdas se alicerçaram em
dois órgãos, a Companhia de Jesus e o Concílio de Trento (LUZURIAGA, 2001).
Não estava em jogo apenas o número de fiéis que se ganha ou perde, mas
também de teorias. O projeto era o da retomada anterior ao humanismo, como
tentativa de barrar a racionalidade como condutora das ações humanas, deixan-
do-a submissa aos valores religiosos.
No Brasil, assim como nas colônias católicas onde a Ordem se estabeleceu, a
prática dos padres jesuítas era voltada à conversão das pessoas nativas e instru-
ção da cristandade. Na Europa, a Ordem ficou com o controle das instituições
de ensino como universidades e colégios, servindo de braço do Papa para man-
ter uma educação conservadora.
Durante a Reforma Protestante, no século XVI, a Ordem passou a ser o ins-
trumento de combate à expansão do luteranismo e calvinismo. O interesse era
garantir a permanência dos fiéis na Igreja e propagar o catolicismo nas terras colo-
niais para evitar a propagação do protestantismo. Os reis católicos adotaram o
monopólio religioso e a própria Ordem Jesuíta como instrumentos de seu poder.
A Companhia de Jesus foi quem introduziu a educação ocidental em terri-
tório colonial. Com seu caráter conservador buscou a formação religiosa com
ensino de lógica, latim, canto e jogos lúdicos, em que os princípios morais do
cristianismo norteavam os conteúdos. O professor, o padre jesuíta, era o elemento

Os Primeiros Tempos
140 UNIDADE III

principal da educação. Tinha sobre sua responsabilidade a preparação diária de


materiais de educação e correção de atividades, o que exigia demasiadamente
dos mestres da Ordem.
Mas entre indígenas, a resistência da educação jesuítica também se fazia
presente. Muitos nativos fugiam dos aldeamentos para o interior da mata, pre-
ferindo a aventura, a vida nômade, os combates, ou mesmo a educação familiar
que os indígenas recebiam de seus familiares. O encontro entre a cultura oci-
dental e indígena não foi harmônica. Muitos padres jesuítas acabaram mortos
na tentativa de constituir uma unidade catequética, como menciona a historia-

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dora Maria Luisa Santos Ribeiro.
Entre as diretrizes básicas constantes no Regimento, isto é, na nova po-
lítica ditar por D. João III (17-12-1548), é encontrada uma, referente
à conversão dos indígenas à fé católica pela catequese e pela instrução
(RIBEIRO, 1992, p. 19).

Está bem definida a que modelo de educação o Brasil Colônia tinha por projeto:
“à política colonizadora dos portugueses” (RIBEIRO, 1992, p. 20). A educação
da elite colonial também se fez pelas mãos dos jesuítas. A criação de seminários
e colégios nas principais cidades da colônia se constituiu como centro de for-
mação de uma elite culta. A educação se dava em tempo integral, e apenas 10%
dos homens livres teriam acesso a esta educação, que durava onze anos. Os que
se destacavam poderiam continuar seus estudos na Europa, já que nos trópicos
portugueses não existia ensino superior, 20% dos formados nos seminários e
colégios inacianos seguiam esse destino.
Até 1759, a Ordem Jesuíta construiu uma poderosa rede de ensino na colô-
nia, com seminários nas principais cidades coloniais e um imenso número de
missões e aldeamentos em diversas partes do território brasileiro. Para se ter
uma ideia da dimensão que Ordem representava, ela tinha 670 membros espa-
lhados pelo território português nos trópicos e, em sua região de maior atuação,
a Bacia do Prata, ela tinha aliciado 150 mil nativos. A Ordem detinha um con-
texto específico de interesse e a quem servir.

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


141

Num contexto social com tais características, a instrução, a educação


escolarizada só podia ser conveniente e interessar a esta camada diri-
gente (pequena nobreza e seus descendentes) que, segundo o modelo
de colonização adotado, deveria servir de articulação entre os interes-
ses metropolitanos e as atividades coloniais (RIBEIRO, 1992, p. 22).

Aos jesuítas está relacionada uma série de ações que foram marcos na história
colonial brasileira. Foram eles que iniciaram o estudo da língua indígena com
a finalidade de catequese e apresentaram as primeiras classificações dos diale-
tos nativos, o guarani e o jê. Também resgataram, por meio de obras literárias, o
cotidiano do território colonial e a análise dos problemas que envolviam o ter-
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ritório colonial.
Os primeiros jesuítas a se instalarem na colônia foram Manoel da Nóbrega
e José de Anchieta. Nóbrega veio com a instalação do Governo Geral na colô-
nia (1549), já Anchieta chegou ao Brasil com o governador Duarte da Costa,
em 1553. Os planos de estudo da Ordem (1570) não encontraram terreno fértil
para seu desenvolvimento, uma vez que os colégios jesuíticos tinham grandes
dificuldades para manter as classes de gramática latina funcionando. A oferta
educacional se resumia, no início da colonização, ao ensino conhecido como
elementar, oqual se aprendia a escrever, ler e fazer contas e ainda alguns cursos
da área das ciências humanas, como retórica e classe gramatical.
A estrutura pedagógica jesuítica no início do processo de colonização esteve
par e passo às elaborações das Constituições e do Ratio Studiorum, implicando em
relações antagônicas das práticas. A Ratio Studiorum consistia em um método
educacional, não como organização pedagógica, mas estando mais para um con-
junto de práticas e condutas positivas. Vejamos, por exemplo, o que o Ratio fala
sobre o procedimento de castigos físicos:
Não seja precipitado no castigar nem demasiado no inquirir; dissimule
de preferência quando o puder sem prejuízo de ninguém; não só não
inflija nenhum castigo físico (este é ofício do corretor) mas abstenha-se
de qualquer injúria, por palavras ou atos não chame ninguém se não
por seu nome ou cognome; por vezes é útil em lugar do castigo acres-
centar algum trabalho literário além do exercício de cada dia; ao Prefei-
to deixe os castigos mais severos ou menos costumados, sobretudo por
faltas cometidas por fora da aula, como a ele remeta os que se recusam
aceitar os castigos físicos [...] principalmente se forem mais crescidos
(RATIO, 1952, p. 122-123, J- 40).

Os Primeiros Tempos
142 UNIDADE III

A proposta pedagógica era a de formar um ‘novo homem’ pautada no humanismo,


com a intenção de garantir uma criticidade e independência do pensamento,
porém, na prática, o que aconteceu foi contrário, pois os dogmas religiosos con-
duziram à educação à tradicionalidade (LUZURIAGA, 2001).
Enquanto na Europa os documentos para a educação eram elaborados para
que a educação fosse ao encontro dos ideários iluministas, no Brasil as práti-
cas promovidas pelas missões eram opostas. Mas não podemos ter uma visão
romantizada da presença jesuítica no Brasil, uma vez que era uma ordem que
atendia a um ideal religioso e político à sua época, tanto que a educação não era

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pensada de forma igualitária a toda e qualquer pessoa, como já mencionado.
Existia pontualmente uma forma de educação destinada a uma determinada
categoria de pessoa.
A educação profissional (trabalho manual), sempre muito elementar
diante das técnicas rudimentares de trabalho, era conseguida através
do convívio, no ambiente de trabalho, quer de índios, negros ou mesti-
ços que formavam a maioria da população colonial.

A educação feminina restringia-se a boas maneiras e prendas domés-


ticas.

A elite era preparada para o trabalho intelectual segundo um modelo


religioso (católico), mesmo que muitos de seus membros não chegas-
sem a ser sacerdotes (RIBEIRO, 1992, p. 25).

O projeto pedagógico educacional da época para a formação da elite colonial


possuía objetivamente finalidades para a manutenção do sistema de domínio
da Coroa, marcada pela ‘rigidez’ no modo de pensar, conforme aponta Ribeiro
(1992), o que implica em como se interpreta a própria realidade.
A formação da elite colonial em tais moldes adequa-se quase que com-
pletamente à política colonial, uma vez que:

a. a orientação universalista jesuítica baseada na literatura antiga e


na língua latina;

b. a necessidade de complementação dos estudos na metrópole (Uni-


versidade de Coimbra);

c. o privilégio do trabalho intelectual em detrimento do manual


afastavam os alunos dos assuntos e problemas relativos à reali-

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


143

dade imediata, distinguiam-se da maioria da população que era


escrava e iletrada e alimentava a ideia de que o mundo civiliza-
do estava “lá fora” e servia de modelo. Os “letrados” acabavam
por rejeitar não apenas esta maioria, e exercer sobre ela uma
eficiente dominação, como também a própria realidade colo-
nial, contribuindo para a manutenção deste traço de dominação
externa e não para sua superação (RIBEIRO, 1992, p. 27-28).

É importante mencionar que, de diversos colégios jesuíticos saíram intelectuais


que figuram como importantes, tais como Descartes, Rousseau e Montesquieu,
no entanto, não podemos nos furtar a dizer que todo projeto educacional atende
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a princípios políticos, bem como as distinções entre o que ocorria na Europa e


nas Américas. No Brasil surgem os primeiros indícios de uma filosofia nativa,
mas colada ainda à teologia. As primeiras escritas da considerada filosofia bra-
sileira são influenciadas por Aristóteles, Tomás de Aquino e Duns Scotus.
Aqui, no Brasil, alguns padres da Ordem marcaram a literatura brasileira
como o Padre Antônio Vieira (1608 a 1697). “Os Sermões”, uma coletânea de
documentos escritos durante a sua presença no nordeste brasileiro, faz uma
interpretação dos trabalhos da ordem e crítica à conduta de elementos coloniais.
O elemento do ar representa o estado da nobreza, não por ser a esfera
da vaidade, mas por ser o elemento da respiração, porque os fidalgos de
Portugal foram o instrumento felicíssimo por que respiramos, deven-
do este reino eternamente à resolução de sua nobreza os alentos com
que vive, os espíritos com que se sustenta. Finalmente, o elemento da
água representa o estado do povo: Aquae sunt populi – diz um texto do
Apocalipse – e não como dizem os críticos, por ser elemento inquieto
e indômito, que à variedade de qualquer vento se muda, mas por servir
o mar de muitos e mui proveitosos usos à terra, conservando os comér-
cios, enriquecendo as cidades, sendo o melhor vizinho que a natureza
deu às que amou mais (VIEIRA, 1957, p. 32-33).

Vieira se destaca por receber sua formação no Brasil, o que resulta em uma escrita
cheia de emoção religiosa e reflexiva sobre o conhecimento, mas sem deixar de
lado uma estrutura hierárquica entre a Metrópole e a Colônia, como na citação
anterior. Para o jesuíta, nosso primeiro passo ativo deve ser o de auto-conheci-
mento. Essa produção nativa significa defender uma filosofia luso-brasileira, sem
reprodução da filosofia portuguesa no Brasil, mas uma possibilidade de abertura
para a emancipação da própria razão (CERQUEIRA, 2011).

Os Primeiros Tempos
144 UNIDADE III

Um dos principais objetos de ataque de Vieira foi a ação dos bandeirantes


em relação aos indígenas. A “defesa” de indígenas, por sinal, é uma das con-
trovérsias na história dos padres da Companhia de Jesus. A conduta em sua
defesa está aliada à empresa de catequese que retirava indígenas de sua organi-
zação original. As missões, ou reduções, como eram chamadas as áreas que os
padres constituíam em meio à mata para estabelecer sua “obra” também é vista
como uma violência contra pessoas nativas. Se o bandeirante capturava indíge-
nas para o trabalho escravo, os jesuítas os destruíam pela imposição da cultura
ocidental cristã.

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O grande patrimônio estabelecido pelos jesuítas na colônia mostrou a efici-
ência da ordem e significou um risco para a coroa portuguesa. O fortalecimento
da ordem dava aos padres poderes excessivos em territórios coloniais portugue-
ses. Ficava cada vez mais claro que os nativos catequizados estavam mais ligados
aos interesses dos padres do que da coroa.
Em algumas regiões onde a ordem se estabeleceu, a prosperidade trazia
benefícios maiores à Igreja do que a Portugal. Uma dos exemplos foi a região
da Bacia do Prata, que era área de fronteira com as colônias da Espanha, objeto
de disputa entre os dois reinos, onde os jesuítas estavam presentes por todas as
margens dos rios da Bacia (rios Paraguai, Uruguai, Paraná e Prata). Os interes-
ses das nações ibéricas estavam ameaçados pela presença da instituição religiosa
que tinha em seu poder milhares de nativos.
Mesmo em Portugal, os interesses dos jesuítas e da coroa estavam em conflito.
Opositores de Pombal, o ministro do Rei Dom José, a Ordem se opunha às deci-
sões do ministro. Acostumados a terem influência sobre a decisão do estado, os
padres acabaram sendo acusados de um atentado contra o Marquês de Pombal.
Tendo sido culpados ou não, os jesuítas foram expulsos.
Mas, em 1759, o ministro de Portugal, administrador da Coroa, o Marquês
de Pombal, expulsou a Ordem do território lusitano e de suas colônias. A prá-
tica do despotismo esclarecido do Marquês, aliada a sua intenção de concentrar
o poder, o fez se confrontar com os clérigos da ordem inaciana. Essa medida
teve um importante efeito na colônia, rompeu uma política educacional que,
bem ou mal, se consolidava na sociedade brasileira. Mas não apenas isso. O
poder econômico que possuíam deveria ser devolvido ao governo e educavam

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


145

apenas com o interesse em uma “ordem religiosa e não dos interesses do país”
(RIBEIRO, 1992, p. 34).
Em diversos casos houve resistência da Ordem em se retirar. No Brasil, a
Revolta ou Revolução Guaranítica demonstrou isso. Jesuítas organizaram mis-
sões na Região do Prata que se levantaram contra a autoridade portuguesa. Os
missionários foram eliminados e os nativos que sobreviveram foram obrigados
a retornarem à floresta ou ficarem à mercê dos traficantes de escravos.
Vale a pena lembrar que a primeira biblioteca da colônia pertenceu à Ordem
Jesuíta e estava instalada no Seminário de Olinda, em Pernambuco. O destino
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dessa biblioteca, após a expulsão dos inacianos, foi cruel. Diante da negativa de
compra, ou de quem quisesse os livros, eles se tornaram papel de embrulho para
comerciantes da cidade pernambucana.

EDUCAÇÃO LAICA, O ABANDONO

Com a saída dos jesuítas, a educação passa a


ser responsabilidade do Estado Português, o ©shutterstock

qual não cumpriu com interesse sua função.


Contudo, Portugal regulamentou diretrizes
para a prática educacional que deveria ser
executada por professores, mestres, contrata-
dos pelo estado. Poucos se interessaram pela
tarefa, muitos que receberam para ministrar
aulas não cumpriram sua função. O Marquês
de Pombal tinha preocupações, conforme
aponta Carvalho (1978), sobretudo no tocante
à reforma da economia portuguesa, tanto que
cria um agrupamento em torno do comércio.

Educação Laica, o Abandono


146 UNIDADE III

Pombal antes de pensar na formação dos teólogos, canonistas, advo-


gados e médicos – problema que não foi estranho aos propósitos do
gabinete de D. José I – cuidava preliminarmente de amparar o trabalho
econômico por intermédio da criação de uma escola destinada a for-
mar a “elite” indispensável ao progresso financeiro das empresas e dos
grupos que a política monopolista do novo governo planejara e orga-
nizara, ao pretender motivar o acúmulo de riquezas individuais de tal
forma que as novas condições econômicas melhor pudessem satisfazer
aos reclamos dos interesses estatais (CARVALHO, 1978, p.43).

Além disso, Pombal defende a ideia de que a Companhia de Jesus foi um empe-
cilho para que as ideias iluministas se efetivassem em Portugal e na Colônia,

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como já acontecia no restante da Europa. Ele ‘compra’ as ideias iluministas e as
utiliza, contudo, mais no âmbito da forma do que na essência, na reorganização
da educação. A Universidade de Coimbra está aquém do mundo ocidental exa-
tamente por causa do período em que ficou nas mãos de jesuítas, necessitando
urgentemente de modernização para tentar se aproximar um pouco do centro
principal europeu da época: a Inglaterra (de 1680 a 1720) (RIBEIRO, 1992, p. 33).

(...) marcando o divisor das águas entre a pedagogia jesuítica e a orien-


tação nova dos modeladores dos estatutos pombalinos de 1772, já apa-
recem indícios claros da época que se deve abrir no século XIX e em
que se defrontam essas duas tendências principais. Em lugar de um
sistema único de ensino, a dualidade de escolas, umas leigas, outras
confessionais, regidas todas, porém, pelos mesmos princípios; em lugar
de um ensino puramente literário, clássico, o desenvolvimento do en-
sino científico que começa a fazer lentamente seus progressos ao lado
da educação literária, preponderante em todas as escolas; em lugar da
exclusividade de ensino de latim e do português, a penetração pro-
gressiva das línguas vivas e literaturas modernas (francesa e inglesa);
e, afinal, a ramificação de tendências que, se não chegam a determinar
a ruptura de unidade de pensamento, abrem o campo aos primeiros
choques entre as idéias antigas, corporificadas no ensino jesuítico, e a
nova corrente de pensamento pedagógico, influenciada pelas idéias dos
enciclopedistas franceses, vitoriosos, depois de 1789, na obra escolar da
Revolução (AZEVEDO, 1976, p. 56-57).

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


147

Os materiais didáticos eram impressos pela coroa através da Imprensa Régia.


Neste momento surge o ensino público, voltado para formar o indivíduo “finan-
ciado pelo e para o Estado” (RIBEIRO, 1992, p. 34), além de regras específicas
para o funcionamento das instituições, do corpo docente e de obras lícitas ou
ilícitas, segundo o Alvará de 28 de junho de 1759.
O Alvará de 28-6-1759 criava o cargo de diretor geral dos estudos, de-
terminava a prestação de exames para todos os professores, que passa-
ram a gozar do direito de nobres, proibia o ensino público ou particular
sem licença do diretor geral dos estudos e designava comissários para o
levantamento sobre o estado das escolas e professores.
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Em cumprimento a ele, ainda neste mesmo ano foi aberto, no Brasil,


um inquérito com o fim de verificar quais os professores que leciona-
vam sem licença e quais usavam livros proibidos. Foram realizados
concursos para provimento das cátedras de latim e retórica na Bahia, o
que parece ter havido também no Rio. Foram enviados dois professores
régios portugueses para Pernambuco (RIBEIRO, 1992, p. 34).

O projeto de modernização da Reforma Pombalina está explícito, porém não


podemos esquecer que quem lecionava na época havia recebido sua formação e
prática do sistema jesuítico, o que não mudou foi a preocupação em formar uma
elite mais eficiente em se articular para manter os interesses da classe dominante
portuguesa (RIBEIRO, 1992).
Nas grandes capitais, a educação foi direcionada aos filhos de fazendeiros,
senhores de engenho e também de funcionários do estado. O número de fre-
quentadores das escolas representou um quinto da população de homens livres.
Mesmo entre as famílias de elite agrária, não existia um interesse em formar
filhos e filhas, a herança das terras e as práticas das lavouras eram marcadas por
relações brutas aprendidas na lida com o trabalho, não nos estabelecimentos de
ensino. Os poucos que conseguiam se formar, lembrando que a educação formal
era destinada aos homens e não às mulheres, tinham posição social de privilé-
gio e, mais ainda, os que conseguiam ingressar em uma universidade europeia.

Educação Laica, o Abandono


148 UNIDADE III

Gilberto Freyre (1900-1987), um historiador que tem um papel importante


ao ‘mapear’ o Brasil e a identidade brasileira, chama a atenção para a postura
social que a mulher era enquadrada no século XIX, mas que já era paradigma
de séculos anteriores: a sinhá-moça, que era desposada entre treze e quinze
anos de idade, “abafadas sob as carícias de maridos dez, quinze, vinte anos mais
velhos”, esposos de carreira de bacharéis e de escolha do pai: senhores de enge-
nho, comerciantes, médicos ou oficiais (FREYRE, 2006, p. 423).
Em uma economia fundada no trabalho escravizado, em que a produção agrí-
cola para o mercado externo não implicava na qualificação de mão de obra, as

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baixas técnicas de produção dos engenhos se mantiveram por séculos no Brasil
sem qualquer alteração. Nesse ambiente, também estão as roças de subsistência,
conduzidas por pequenos produtores com trabalho familiar. Em nenhuma des-
sas lavouras há a necessidade de especialização do trabalho.
Vamos perceber que a necessidade de trabalhadores mais qualificados se
dava em setores restritos da sociedade. Os cargos administrativos do estado
português exigiam uma mão de obra mais qualificada, mas esta era importada
de Portugal. Poucos eram os filhos da elite que atingiam uma formação educa-
cional mais apurada.
A sociedade colonial, ao longo da história brasileira, se constituiu em uma
ordem agrária patriarcal. O domínio da figura máscula tinha seu elemento maior
no senhor de engenho - ele se impunha sobre o restante da sociedade pelo con-
trole que tinha sobre a principal atividade econômica do território colonial - o
engenho. Todos estavam indiretamente subordinados a ele, e a sua autoridade
patriarcal se reproduzia sobre os demais elementos sociais.
No ambiente doméstico, a mulher do senhor era uma extensão de seus bens
e se impunha diretamente a sua autoridade. Existindo apenas para dar sequên-
cia à produção da hereditariedade, era plenamente submissa à autoridade de seu
marido. As filhas seguiam o destino da mãe. Tinham pouca formação, quando
a tinham. Caso recebessem alguma instrução, esta ocorria no ambiente domés-
tico, como já mencionado.
As meninas não tinham acesso à educação, eram raros os casos, entre elas,
de quem conseguia o acesso a alfabetização. A instrução das mulheres ocorria
dentro do ambiente domiciliar, ainda por interesse da família. Quando ocorria,

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


149

entre os privilegiados sociais, era para preparar a jovem para um casamento, um


complemento das prendas femininas. Por isso, o casamento era um arranjo de
interesses financeiros entre as famílias mais abastadas.
Já a prática da poligamia era mantida e se estabelecia como uma prática con-
denável pela moral cristã, contudo, exercida intensamente no território colonial.
Em algumas regiões de menor importância econômica para o estado português,
nos primeiros séculos de colonização, conviver com mais de uma mulher em um
ambiente doméstico era tolerado. São Paulo, vila fundada pelos jesuítas (Nóbrega
e Anchieta), no século XVI, foi marcada pelo convívio entre pessoas brancas e
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indígenas unidas pelo concubinato.


A presença de indígenas na vida colonial não ocorreu apenas pela misci-
genação, mas mais que isso. A alimentação, assim como as próprias técnicas de
produção agrícola eram predominantemente uma reprodução do que os nativos
promoviam. A língua guarani também passou a ser utilizada costumeiramente
em algumas regiões da colônia. O exemplo mais significativo foi a vila de São
Paulo. Nela, o guarani era língua corrente entre a população.
Assim, a educação ocidental não se sustentou e não foi priorizada. Ela não era
uma necessidade da vida colonial. A instrução formal foi limitada pela própria
organização da economia agrária exportadora, como as regiões de subsistência.
Vale lembrar que o europeu que migrou para o território colonial, em grande
parte, era um desterrado, sem o interesse de uma atividade específica nas terras
portuguesas na América.
As diferenças entre as diversas regiões coloniais se aprofundaram. A mine-
ração na Região Sudeste, em especial, gerou um núcleo próspero que atingia as
cidades mineiras (Ouro Preto, São João Del Rei, Diamantina), também na capi-
tal da colônia, que foi transferida da Bahia para o Rio de Janeiro. Mesmo nos
centros de exportação do açúcar, como Salvador e Recife, a prosperidade se acen-
tuou, mas foi um benefício para poucos.
A educação foi uma expressão dessa diferença. As escolas, muitas ainda liga-
das à Igreja Católica, atendiam aos filhos das elites. Esses faziam sua formação
básica no Brasil e depois ingressavam nas universidades europeias. Foi dessa
“inteligência” que se organizou a intelectualidade colonial que lideraria os movi-
mentos de emancipação que se multiplicaram ao longo dos séculos XVIII e XIX.

Educação Laica, o Abandono


150 UNIDADE III

Com o advento da ordem de Pombal pela saída dos jesuítas do sistema


educacional, em 1759, o resultado foi o de mais de 20 colégios existentes e 17
seminários, além de um sistema pedagógico que foi seguido pelo novo: o ensino
de lógica, com memorização.
Na segunda metade do século XVIII, os movimentos liberais tomaram
a Europa. A revolução Industrial (1750) e Francesa (1789), assim como a
Independência dos Estados Unidos (1776), mudaram o quadro das intenções
da formação educacional. O conhecimento racional laico passou a imperar como
necessidade de instrução. Mas, no Brasil, essa medida só começou a se fazer sen-

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tir com a transferência da Corte Portuguesa em 1808.

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


151
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DA COLÔNIA AO IMPÉRIO

Obrigada a se refugiar em sua principal colônia, a coroa portuguesa chega ao


território colonial e transfere a estrutura administrativa de Lisboa para o Rio
de Janeiro. Essa medida fez surgir a necessidade de formação de especialidades
necessárias aos membros da corte. Assim surgiram as primeiras aulas de cirurgia
em Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo. O que muitos consideram a implanta-
ção do ensino superior no Brasil.
A segunda biblioteca brasileira quase teve o destino da primeira. Com a trans-
ferência da corte portuguesa para o Brasil, chegaram com Dom João VI, e depois
em mais duas etapas, os livros da Biblioteca Real de Lisboa. Sem um lugar apro-
priado para ser instalada, ficou no Porto do Rio de Janeiro. Mas acabou sendo
transferida para prédios públicos e foi o acervo embrião da Biblioteca Nacional,
a maior da América Latina e uma das sete maiores do mundo.
O ensino superior implantado por Dom João acabou se restringindo a um
grupo específico de membros da corte, sendo formados para atender aos interes-
ses do estado ou para exercerem sua profissão em um círculo seleto de habitantes
da colônia. Em relação ao ensino fundamental e médio, no período, não houve
alteração em relação ao que a Ordem Jesuíta tinha estabelecido e Pombal mantido.

Da Colônia ao Império
152 UNIDADE III

É importante destacar que as Cortes Gerais, Extraordinárias e Cons-


tituintes da Nação Portuguesa decretaram, em 30 de junho de 1821,
que o ensino fosse livre a qualquer cidadão, assim como a abertura de
escolas de primeiras letras, desde que contasse com a gratuidade, sem
a dependência de exame ou licença. Esse decreto é o único documento
que se destaca no período e, somente com a Independência, agora pro-
clamada, que se iniciou uma nova política no campo da instrução, no
Brasil (ZICHIA, 2005, p. 22).

Com o processo de independência do país (1822), os debates sobre a educação


chegaram ao Congresso Nacional, mas sem relevância ou primazia. Manteve-se
como um tema necessário para dar ao país uma instrução aos súditos, os quais

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se definiam como homens livres, sendo que a maioria era uma sociedade for-
mada por escravos.
Saviani (2013) retrata, de forma pontual, as ideias pedagógicas que perme-
aram os debates desse período de Proclamação da Independência, que dá luz a
uma Constituição em 3 de maio de 1823. No discurso de Dom Pedro I quando
da inauguração e instauração dos trabalhos constituintes da Assembleia, há o
destaque da necessidade de uma “legislação especial sobre instrução pública”
(SAVIANI, 2013, p. 119). É neste momento que existe a preocupação de um pro-
jeto educacional (instrução pública), contudo, a forma encontrada para isso foi a
de uma espécie de concurso de projetos, com intuito em estimular um “Tratado
Completo de Educação da Mocidade Brasileira” (SAVIANI, 2013, p. 119).
As discussões se voltaram para o projeto elaborado por Martim Francisco
Ribeiro d’Andrada Machado, conhecido como Memória de Martim Francisco.
Seu projeto estava mais para uma (re)interpretação das propostas laicas de escola
do francês Marie-Jean-Antonie-Nicolas Caritat, conhecido mais como Condorcet
(1734-1794). O projeto de Martim altera algumas características como a dura-
ção de primeiro grau e o ajusta a seu perfil ideológico. Condorcet é o autor que
melhor gesta a relação entre Estado, escola pública e sistema liberal, defendendo
que a universalização da instrução é aproveitável a todo e qualquer cidadão.
Esta instrução será suficiente mesmo aos que aproveitarão as lições
dadas aos homens para torná-los capazes de exercer as funções pú-
blicas mais simples, às quais é bom que todo cidadão possa ser con-
vocado, como aquela de jurado, de guarda municipal (CONDOR-
CET, 2010, p. 25).

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


153

A ideia de instrução pública brasileira estava atrelado ao projeto da concepção


laica da própria burguesia que fomentou e triunfou no processo de “independên-
cia e da organização do Estado brasileiro, ajustando-a, porém, às peculiaridades
dessa situação particular” (SAVIANI, 2013, p. 121). Para melhor compreender
o projeto de Condorcet, Savini o sintetiza do seguinte modo:
Primeira memória - natureza e objeto de da instrução pública; segunda
memória - da instrução comum para as crianças; terceira memória -
sobre a instrução comum para os homens; quarta memória - sobre a
instrução relativa às ciências (SAVIANI, 2013, p. 121).
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A Constituição outorgada em 1824 promoveu as primeiras mudanças na dire-


triz da educação, como mencionado, mas o projeto todo foi abandonado para
se centrar nas discussões sobre a criação de universidades. A proposta de uma
“Instrução Geral” que orientava a educação nas principais cidades brasileiras,
partindo de pressupostos modernos e laicos que não saíram da noção de pro-
jeto, ou seja, na prática a religião católica ainda era associada ao Império na
forma legal, as demais seriam aceitas, desde que suas práticas se mantivessem
nos cultos domésticos, ou particular em casas para isso destinadas” (SAVIANI,
2013, p. 124), sem qualquer templo destinado como no caso de igrejas apostó-
licas romanas.
Vale lembrar que a medida tentou laicizar ao máximo uma educação que con-
tinuou sendo mantida, no âmbito privado, pelas instituições católicas, carregando
consigo o modelo lancasteriano de ensino, outorgado pelo imperador em 1823.
Hei por bem mandar criar nesta Corte uma Escola de primeiras letras,
na qual se ensinará pelo método do ensino mútuo, sendo em benefí-
cio, não somente dos militares do Exército, mas de todos as classes dos
meus súditos que queiram aproveitar-se de tão vantajoso estabeleci-
mento (BRASIL, Decreto de 1º de março de 1823).

O Decreto menciona o método do ensino mútuo, um sinônimo para o método


que o inglês Joseph Lancaster (1778-1838) havia elaborado: um sistema de
ensino com monitores auxiliando os demais alunos. O monitor seria aquele que
revela mais destreza, bom comportamento e geralmente mais adiantados que os

Da Colônia ao Império
154 UNIDADE III

demais. O professor ficaria em um lugar específico na sala, em uma espécie de


tablado ou palco mais elevado de onde possa ver toda a sala a um só golpe de
visão (LANCASTER, 1821).
Uma das primeiras medidas efetuadas foi a implantação de mestres para
salas de aula de até 30 alunos. Os professores elegiam monitores, os melhores
alunos, em número de dez, os quais ensinariam os demais alunos. Os livros eram
manuseados pelos professores, os alunos reproduziam o conteúdo em caixas de
areia de pequeno porte, onde copiavam o conteúdo com pedaços de madeira
ou com o dedo.

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A adoção do método lancasteriano gerou avaliações divergentes, principal-
mente porque o método se preocupava mais com a quantidade formada do que
a qualidade, uma vez que era possível formar várias pessoas a custos baixos.
As meninas podiam frequentar o ensino, mas nas escolas religiosas eram
separadas dos meninos. Poucas, elas tinham um controle rígido sobre seu com-
portamento. Era um mundo educacional masculino que ainda discriminava sua
presença. Mesmo como docentes, as mulheres eram discriminadas, só poderiam
ministrar aula com uma autorização, “Declaração de Boa Conduta”, o que era
um expediente raro durante o Império.
Em 1831, o monarca Dom Pedro I, proclamador da independência, foi obri-
gado a abdicar do trono. Após nove anos de um reinado marcado por rupturas
com as elites agrárias e sem apoio popular, perdido ao longo de uma administra-
ção marcada por desmandos na vida pública e pessoal, o país viveu a Regência
(1831 a 1840). É em 1834 que a aprovação do Ato Adicional à Constituição do
Império que o governo se desobriga a gerenciar as escolas primárias e secun-
dárias, transferindo aos governos das províncias esse papel (SAVIANI, 2013).
As Assembleias Provinciais, de outro lado, elaboraram a seu modo leis referen-
tes à instrução pública, muitas vezes desconexas com a proposta de unidade
da coerência.
Na primeira metade do século XIX, portanto, sob a vigência da Lei das
Escolas de Primeiras Letras, a instrução públicas caminhou a passos
lentos. As críticas principais recaíam sobre a influência quantitativa,
falta de preparo (a tentativa de resolver esse problema com a criação
de Escolas Normais ainda não surtira efeito e vinha sendo objeto de
críticas constantes), parca remuneração e pouca dedicação dos profes-

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


155

sores; a ineficácia do método lancasteriano atribuída, sobretudo, à falta


de instalações físicas adequadas à prática do ensino mútuo; e a ausên-
cia de fiscalização por parte das autoridades do ensino, o que tornava
frequente nos relatórios a demanda pela implantação de um serviço
de inspeção das escolas. A situação estava, pois, a reclamar uma ampla
reforma da instrução pública (SAVIANI, 2013, 129-130).

A monarquia se manteve, mas sem o comando de um monarca. O jovem impera-


dor, com cinco anos de idade quando o período regencial se estabeleceu, assumiria
prematuramente o trono em 1840, diante da instabilidade que se manteve.
Foi durante o Período da Regência que uma das mais importantes insti-
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tuições de ensino pública se estabeleceu, o Colégio Dom Pedro II. O qual foi
administrado, durante a monarquia, pelo próprio imperador. Era ele que esco-
lhia professores, acompanhava a qualidade do que era ensinado e interferia na
organização da instituição educacional. O Colégio era para ser um modelo para
o surgimento de novas unidades de educação no país. A escola tinha um cur-
rículo fundado em gramática, literatura, latim, grego, botânica, astronomia e
princípios de física.
O Colégio Dom Pedro II teve no seu corpo docente ilustres personagens da
literatura brasileira, entre eles, Machado de Assis e Euclides da Cunha. Com for-
mação exclusiva do ensino médio, o Dom Pedro II foi e é uma das referências do
ensino público no Brasil. Após seis anos na instituição, os alunos ingressavam
automaticamente nos cursos de Medicina, Engenharia e Direito.
O reinado de Dom Pedro II foi marcado por mudanças profundas na orga-
nização social e na organização da economia agroexportadora. Tais mudanças
deram oportunidade para a ascensão de uma nova elite agrária e de um novo
produto agrícola, o café, que reorganizou o poder de forma diferente daquela
no processo açucareiro. Inicialmente na órbita do imperador, mas com o tempo,
contrária a ele.
[...] a economia cafeeira contou, desde o início, com uma vanguarda
constituída por homens com experiência comercial, entrelaçando-se,
assim, os interesses da produção e os do comércio. [...] Tendo consci-
ência clara de seus interesses, esses dirigentes compreenderam a im-
portância do governo na atividade econômica, o que os levou a colocar
a política a serviço do grupo econômico por eles representado (SAVIA-
NI, 2013, 159-160).

Da Colônia ao Império
156 UNIDADE III

A abolição da escravidão foi um capítulo duro na vida da monarquia. Buscando


atender aos interesses de uma economia agrária herdada do império e que susten-
tava o país, o segundo reinado manteve o quanto pode o trabalho compulsório.
Contudo, sofreu os desgastes de tal prática. O império perdeu popularidade e
legitimidade junto às forças que o sustentavam.
Sofrendo pressões do imperialismo inglês para pôr fim ao trabalho escravo, a
monarquia fez da abolição uma guerra diplomática e um trauma social. Rompeu
simbolicamente com a Inglaterra, mas tomou todas as medidas para abolir o
trabalho escravo sem prejudicar os interesses da lavoura extensiva, em espe-

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cial a cafeeira.
Uma das alternativas para a substituição da mão de obra escrava foi o imi-
grante europeu, o qual já se dirigia ao Brasil, principalmente no Sul do país, para
reproduzir parcialmente a vida que tinha na Europa, mas com as características
das terras gaúchas, catarinenses e paranaenses. No Sudeste, o imigrante iria ser
utilizado na grande lavoura de café, por meio da parceria, o que gerou conflitos
entre os trabalhadores livres de origem europeia e proprietários de terra, acos-
tumados com a escravidão. Efetivamente, “quando ocorre a Abolição definitiva,
1888, a imigração europeia, principalmente italiana, já fluía regularmente para
os cafezais, em especial os paulistas” (SAVIANI, 2013, 163).
O governo, a despeito dos gastos dessas imigrações, acaba por assumir os
custeios dos transportes, o que gera o aumento do contingente de pessoas de 13
mil, em 1870, para 184 mil, em 1880, passando, ainda, para 609 mil na década
de 1890, isso apenas no estado de São Paulo.
Nicolau Campos Vergueiro, senador do Império, produtor de café no inte-
rior de São Paulo, em Ibicaba, contratou o trabalho de 177 famílias de imigrantes
alemães e suíços, através do regime de parceria – forma de produção em que se
dividiam os lucros da venda do produto com as famílias produtoras. Contudo,
a tentativa não foi bem sucedida. Tratados como escravos, os imigrantes acaba-
ram se revoltando e queimando as plantações de café em 1857.
Mesmo com o fracasso das primeiras tentativas, o trabalho imigrante no
campo se propagou. Após 1870, o governo estabelece a Lei de Imigração e passa
a incentivar, com propaganda na Europa e subsídios para as viagens de europeus
para o Brasil, a importação de mão de obra.

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


157

A medida acabou por beneficiar também o trabalho urbano e o advento da


indústria com a concentração de trabalhadores assalariados e com grau de ins-
trução bem mais elevado do que o trabalhador nacional. O braçal brasileiro, que
nunca teve uma política de formação e qualificação para o mundo do trabalho,
agora se via diante dos interesses dos empregadores, interessados em substitui-
ção rápida do trabalho escravo pelo estrangeiro (europeu). Uma solução imediata
para a economia que manteve um problema crônico: a instrução. Durante o
império diversas instituições de pesquisa foram criadas, algumas ainda em fun-
cionamento até hoje:
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Museu Paraense, criado por Emílio Goeldi em 1885, o Instituto Agro-


nômico, criado pelo Governo Imperial em 1887, em Campinas. O Li-
ceu de Artes e Ofícios de São Paulo foi criado em 1873, por ato do
Governo Imperial. Em Recife, dentre as muitas obras encomendadas,
entre 1840 e 1846 ao engenheiro Francês Louis Vauthier, estava o Tea-
tro Santa Izabel (NASCIMENTO, 1999, p. 32)

As localizações dessas instituições revelam, em certa medida, a preocupação em


construir locais de conhecimento de forma a não centralizar apenas em uma
localidade do Brasil, considerando tanto a extensão territorial como a oferta de
ensino superior, o que não implica mais em ter que ir para a Europa para dar
sequência nos estudos. Conforme aponta,
os cursos jurídicos de Olinda e São Paulo eram os que maior clientela
atendiam. Existiam, ainda, cursos médicos na Bahia e no Rio, a Escola
Politécnica (Rio), os cursos militares no Rio Grande do Sul, no rio e
em Fortaleza, o curso de Minas em Ouro Preto, o curso da Marinha
(Rio), o ensino artístico (Rio) e o ensino religioso em seis seminários
(RIBEIRO, 1992, p. 52).

Na política educacional inicia-se uma discussão acerca da instrução nacional e


da preparação do elemento brasileiro, como apontado nas citações anteriores,
para enfrentar a presença do estrangeiro. Nos debates políticos no Congresso
Nacional, inicia-se a defesa de uma educação positiva.
Nesse processo todo, a filosofia brasileira gesta alguns autores como Tobias
Barreto (1839-1889) e Sílvio Romero (1851-1914), com infulências mencio-
nadas anteriormente. Tobias Barreto escreve Estudos de filosofia (1977), obra
em que defende que a adesão ao positivismo de Comte não leva a humanidade

Da Colônia ao Império
158 UNIDADE III

ao panteísmo ou ateísmo, algo difundido constantemente pelos clérigos, mas


que ajuda a racionalidade na compreensão do conhecimento de forma mais
organizada.
Não nos enganamos, quando firmemente aderimos ao pensamento da
escola de Augusto Comte, na parte relativa ao desdém da teologia; e
cremos que o positivismo teria uma grande vitória, se empreendesse a
crítica de todos os sistemas teístas, católicos ou não, para mostrar-lhes
o falso caminho em que pisam e as contradições em que caem. Não
seria jogar o jogo dos ateus, como pensa Paulo Janet, em uma crítica
ultimamente feita a Guizot; mas antes seria deixar, por uma vez, pa-

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tentes as parvas pretensões dos filósofos e teólogos, sobre a natureza
e atributos divinos; seria dizer a todos eles, homens da fé e homens da
razão, clérigos e leigos: - basta de luta entre vós, e abraçai-vos como
irmãos, porque ides cair juntos no fundo do mesmo abismo. É sabido
que a filosofia do clero, em seus continuados ataques à razão especu-
lativa, costuma entoar como um hino de vitória esta fórmula soberba:
o racionalismo leva necessariamente ao panteísmo (BARRETO, 1977,
p. 116-117).

O culto à ciência e racionalização das questões públicas infiltram-se entre os


intelectuais. A filosofia de Comte ganha força entre os maçons, intelectuais de
uma forma geral, e também dentro da corporação militar. Contudo, a adesão
ao positivismo não é eterna para Barreto, vindo a romper com o que acreditava
de parcialmente válido, entre 1875 e 1882, quando tem contato com a cultura
alemã, sobretudo pelas leitura kantianas, e ao se questionar sobre a metafísica
está morta ou não.
É isto suficiente para caracterizar, de um lado, a deplorável condição
em que nos achamos, e, por outro, justificar o interesse que tomamos
em responder à pergunta proposta. Se em nossos dias nenhum homem
verdadeiramente culto deve ignorar que o dogmatismo da metafísica
moderna foi abalado por Hume, cuja implacável crítica coube a Kant
concluir em mais largas proposições e com mais considerável profun-
deza, há de causar admiração o grande espanto que tão triviais verda-
des ainda despertam entre nós.

[...] Toda a filosofia até o aparecimento de Kant, como ensina Schope-


nhauer, não passou de um sonho estéril de falsidades e servilismo inte-
lectual, do qual os novos tempos só se libertaram pelo grado partido da
Crítica da Razão Pura (BARRETO, 1977, p. 292-293).

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


159

Seu amparo está em Kant para romper definitivamente com os paradigmas


positivistas, considerando que o pensador alemão só ampliou a própria visão
após romper com a escolástica e se valer dos caminhos de Hume, alargando-o
(BARRETO, 1977).

“A filosofia quer e deve ser livre; a liberdade é para ela mais que um distinti-
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vo; é sua própria vida, pois que constitui o seu poder”.


Fonte: Barreto (1977, p. 67).

A Guerra do Paraguai foi um marco para a propagação destas ideias, mas também
umas das guerras mais sangrentas e de maior duração na América Latina, con-
forme descreve Doratioto (2006), com seu início em 1864 e o advento de novos
modelos bélicos “resultado de inovações tecnológicas decorrentes do avanço da
industrialização na Europa e nos Estados Unidos” (DORATIOTO, 2006, p. 253).
Existia uma relação de disputa política e territorial entre Paraguai e seus países
vizinhos, Brasil e Argentina.
Na Argentina e no Brasil, funcionavam instituições liberais, embora
acessíveis apenas a parcelas minoritárias das respectivas populações.
No Paraguai, nem esse mínimo, pois era impossível o indivíduo diver-
gir do governo e inexistiam imprensa privada, partidos políticos, juízes
independentes, e o Legislativo era uma ficção. Este não se reunia por
anos a fio e, quando o fazia, era por convocação do Executivo para rati-
ficar decisões governamentais (DORATIOTO, 2006, p. 255-256).

A situação se agrava entre esses países, o que resulta na entrada do Uruguai como
parceiro de Brasil e Argentina, formando a Tríplice Aliança contra o Paraguai.
Para resumir, a guerra custou não apenas contingente humano de cada país,
mas também capital monetário investido, para o Império Brasileiro, por exem-
plo, “a guerra causou gastos de 614 mil contos de réis, valor equivalente a onze
vezes o orçamento do governo brasileiro para 1864” (DORATIOTO, 2006, p.

Da Colônia ao Império
160 UNIDADE III

281-282). Como a economia brasileira estava em crescimento na tentativa de


modernização, os recursos foram desviados para manter a disputa, ‘atrasando’
o desenvolvimento em meio século.

O Paraguai, derrotado, perdeu os territórios que disputava com Argentina e

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Brasil e assistiu ao fim do Estado autoritário e patrimonial, o que não signifi-
cou, porém, que as novas instituições, supostamente liberais, contribuíssem
para o desenvolvimento do país. O Brasil manteve sob sua influência os go-
vernos paraguaios até 1904, quando uma revolução liberal afastou o país
da órbita brasileira, vinculando-o politicamente à Argentina, cuja economia
havia satelizado a paraguaia na década de 1870.
Fonte: Doratioto (2006, p. 282-283).

A criação de escolas de oficiais, a mais importante foi a da Praia Vermelha, no


Rio de Janeiro, instruída por mestres europeus de tendência positivista, asso-
ciada ao fortalecimento políticos do exército, faria dos militares os líderes do
movimento republicano. Contudo, não seriam eles que conduziriam o destino
do país após a Proclamação da República em 1889. Seria uma aristocracia cafe-
eira já consolidada no poder durante a monarquia.
Nesse momento, se interpela em diversos momentos da vida pública do país
a questão do elemento nacional. Leis são aprovadas para facilitar a imigração.
O país precisa de mão de obra para sua principal atividade agrícola, o café. O
estrangeiro se traduz como principal agente de trabalho e é criado o Ministério
de Estrangeiros, o qual determina a política de imigração para o país.
No período colonial a lei portuguesa e espanhola proibia a entrada de
imigrantes. Estimulava a imigração “forçada” de trabalhadores, escra-
vos africanos. Do início do século XIX (período das Independências) à
meados de 1960 a legislação dos países da América Latina enfatizavam
as migrações estimuladas, “livres”, pois os imigrantes representavam fa-

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


161

tor importante na ocupação territorial – colonização (1824-1939) e no


fomento ao crescimento dos países (1945-1960), como mão-de-obra
qualificada (ZAMBERLAM, 2004, p. 29).

A educação passa a ser uma possibilidade de garantir ao país o preparo ao o


trabalho. A necessidade de força de trabalho se torna vital, mas agora na condi-
ção de pessoa livre. A multiplicação do assalariamento já estava se processando
desde o Império e, na Primeira República, se transformou em uma questão vital.
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A legislação portuguesa proibia a entrada de qualquer estrangeiro. Estimu-


lava a migração forçada (escravos africanos), cujo regime e proteção jurídica
era similar ao dos animais. Cabia ao escravo aprender a língua e exercer uma
atividade produtiva. Ao dono cabia dar-lhe comida e moradia. A crueldade
não era coibida.
Fonte: Zamberlam (2004, p. 32).

Uma das primeiras instituições que buscou o preparo do trabalhador visando à


qualificação para o ofício foram os liceus. O primeiro foi fundado em 1883, já
na derrocada do Império. Por meio da influência das ideias positivistas e com
o apadrinhamento da Maçonaria, surge ‘O Liceu de Artes e Ofícios’ na cidade
de São Paulo.
Os liceus nunca se multiplicaram e ficaram nas mãos dos empreendimentos
privados. Sustentados por empresários, com pouco recurso, acabaram min-
guando ao longo do tempo. Fechados, não conseguiram dar início ao processo
de qualificação que se esperava.
As mulheres, como já citamos, ampliaram, mas de forma lenta, sua parti-
cipação na educação. A instrução fundamental ganhou nela um dos principais
agentes da docência, mas é inevitável falar de como a mulher foi apartada dos
estudos sem mencionar o fato de que também se constitui como uma relação
de gênero.

Da Colônia ao Império
162 UNIDADE III

Não parece ser possível compreender a história de como as mulheres


ocuparam as salas de aula sem notar que essa foi uma história que se
deu também no terreno das relações de gênero: as representações do
masculino e do feminino, os lugares sociais previstos para cada um
deles são integrantes do processo histórico. Gênero, entendido como
construção social, e articulado à classe, etnia, religião, idade determi-
nou algumas posições de sujeito que as mulheres professoras ocuparam
(LOURO, 1997, p. 478).

Estabelecimentos de ensino especializados na educação feminina surgiram nas


capitais brasileiras no segundo reinado. Mas a subordinação à vida doméstica
continua até hoje a ser uma atribuição imposta à mulher. A educação pública

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brasileira, então, se desenha como um projeto lento e que, por vezes, o próprio
Estado parece se ausentar da responsabilidade, deixando explícito a quais inte-
resses se destina desde o processo de desembarque português nas novas terras
tropicais: à classe burguesa. À margem dessas relações, historicamente, estão
indígenas, pessoas negras e mulheres, evidenciando o descompasso que se arras-
tou e se arrasta tanto no universo educacional como nos demais espaços sociais
e de disputas.

A HISTÓRIA DA EDUCAÇÃO NO BRASIL: UMA AUSÊNCIA SENTIDA


163

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A educação pode ser considerada um marco cultural necessário e que todas as


sociedades ao longo da história mantiveram. Nós a institucionalizamos e fizemos
dela uma condição para perpetuar valores, manter necessidades, buscar respos-
tas para nossos problemas e lutar pela superação. Mas a educação também foi
o meio de submeter as “estranhezas” e dominá-las. A educação que o Ocidente
impôs sobre as áreas coloniais europeias tinha este interesse.
A presença de uma educação catequética no território colonial brasileiro tinha
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esta intenção: se impor. Garantir o interesse do conquistador dando a quem se


domina uma imagem de mundo concebida a partir do poder europeu. Era um
tempo de uma Europa que vivia a crise da identidade cristã, da vida econômica,
da incerteza de um continente em mudança.
Muitos desses conflitos se transferiram para a área colonial e marcaram a
vida das pessoas que viveram na colônia. A imposição do cristianismo e dos valo-
res que ele expressou no território brasileiro marcou o nosso futuro. Mas não se
consolidou por toda a colônia esta educação catequética, ela não terminou sua
obra, os jesuítas foram expulsos. A educação dita “laica” que foi implantada após
a expulsão dos padres da Companhia de Jesus não teve o efeito que os anteces-
sores promoveram, não atingiu a mesma dimensão.
A formação do estado nacional brasileiro não teve a participação popular,
não foi um projeto da sociedade organizada. A formação do estado nacional não
foi uma realização de manifestações culturais de identidade comum que pode-
ria se chamar “brasileiros e brasileiras” efetivamente.
Essa condição demonstra que não há uma educação que expresse a iden-
tidade comum, mas a múltipla. Foi e será o estado, como veremos em nossa
próxima unidade, que fará da educação um instrumento de construção do estado
nacional. Uma imposição que nos fez, como tantas imposições construiu nossa
história até nossos dias.

Considerações Finais
164

1. Explique o que era a Ratio Studiorum, amplamente utilizada pelos jesuítas.


2. A expulsão da Ordem Jesuíta em 1759, pelo então ministro de Portugal, Mar-
ques de Pombal, representou uma ruptura para com os poderes religiosos no
sistema educacional, mas outras situações se relacionam a esse período. Leia as
afirmativas a seguir:
I. Não foi com resistência que a Ordem permaneceu. Assim que a expulsaram
e voltaram a Portugal.
II. A Revolução Guaranítica pode ser considerada como um ponto de resis-
tência da Ordem.
III. Depois da saída da Ordem, a biblioteca, concentrada em suas instalações,
virou papel de embrulho para os comerciantes.
IV. A expulsão apenas se deu em documento e não fisicamente. O que a Or-
dem perdeu foi o prestígio, não seu lugar.
Conforme o que leu das sentenças, assinale a única alternativa correta:
a. I e III.
b. I e IV.
c. II e III.
d. II.
e. III.

3. Sobre a vinda da coroa portuguesa ao Brasil e a chegada de Dom João VI, leia
as afirmativas a seguir e assinale a alternativa correta:
a. O ensino superior implantado por D. João VI conseguiu democratizar o acesso
à educação a todas as pessoas, sem distinção.
b. A educação inicia, com a vinda da família real, o processo de readequação,
ofertando, então, escolas tanto para pessoas nativas quanto as que estão na
corte.
c. O ensino implantado nesta época modificou drasticamente o ensino que era
ofertado desde a época da Ordem Jesuítica.
d. A estrutura administrativa portuguesa é obrigada a vir para o Brasil, o que
implica na necessidade de formação de especialidades necessárias aos mem-
bros da corte.
e. Sentindo os ventos do Iluminismo, Dom João VI decide instituir uma educa-
ção laica de fato, além de um ensino voltado às investigações epistemológi-
cas e racionais.
165

4. (ENADE/2014) As reformas religiosas são protestantes e católicas e interagem


de tal modo que são se compreendem as suas consequências se não levarmos
em conta as relações que vão se verificando ao longo do século XVI. Nesse sen-
tido, a reação protestante ativa e antecipa mudanças que a Igreja Católica já
vinha considerando. Da mesma forma, nem todas as reformas protestantes ti-
veram um sentido capitalista. Também, a Reforma Católica não implicava um
retorno à Idade Média; e tanto católicos quanto protestantes reformistas perse-
guiram bruxas e bruxos.
RODRIGUES, A. E.; FALCON, F. J. C. A formação do mundo moderno. 2. Ed. Rio de Ja-
neiro: Elsevier, 2006, p. 121 (adaptado).
O fenômeno mencionado no texto acima, conhecido como reformas religiosas, re-
presentou uma nova configuração no contexto político da Europa Ocidental no sé-
culo XVI. Nesse sentido, considera-se que tais reformas religiosas:
a. Resultaram da relação de diferentes conflitos, que remontam a questões
teológicas, políticas, econômicas e ainda à posse e exploração do Novo
Mundo.
b. Representaram o novo clima vivido pela Europa Ocidental no século XVI,
constituindo-se em movimentos circunstâncias que responderam a inte-
resses particulares da burguesia.
c. Inauguraram um novo tempo na relação Estado e Igreja, ao estabelecer a
separação entre política e religião, tanto no catolicismo quanto no protes-
tantismo.
d. Ocasionaram, no caso da Reforma Católica, um retrocesso político, que se
refletiu na reativação do Tribunal do Santo Ofício, vinculado à Inquisição.
e. Promoveram maior liberdade de culto, decorrente da concorrência que se
estabeleceu entre as duas correntes do cristianismo e das ideias humanas.
5. A educação no período colonial estava toda centrada nas mãos dos jesuítas,
mesmo sendo participante da elite, além da criação de seminários e colégios
nas principais cidades da colônia como centro de formação de uma elite mais
culta. Em relação à educação elitista dessa época, é correto afirmar que:
a. Apenas 50% dos homens e mulheres teria acesso a esta educação, que du-
rava onze anos. Os que se destacavam poderiam continuar seus estudos
no Brasil mesmo, o que representava 20% dos formados nos seminários e
colégios inacianos.
b. Apenas 10% dos homens e mulheres livres teria acesso a esta educação,
que durava dez anos. Os que se destacavam poderiam continuar seus es-
tudos na Europa, já que nos trópicos portugueses não existia ensino supe-
rior, 20% dos formados nos seminários e colégios inacianos seguiam esse
destino.
166

c. Apenas 10% dos homens livres teria acesso a esta educação, que durava
sete anos. Os que se destacavam poderiam continuar seus estudos no Bra-
sil mesmo, o que representava 20% dos formados nos seminários e colé-
gios inacianos.
d. Apenas 50% dos homens, livre ou não, teria acesso a esta educação, que du-
rava sete anos. Os que se destacavam poderiam continuar seus estudos na
Europa, já que nos trópicos portugueses não existia ensino superior, 20%
dos formados nos seminários e colégios inacianos seguiam esse destino.
e. Apenas 10% dos homens livres teria acesso a esta educação, que durava
onze anos. Os que se destacavam poderiam continuar seus estudos na Eu-
ropa, já que nos trópicos portugueses não existia ensino superior, 20% dos
formados nos seminários e colégios inacianos seguia esse destino.
167

PARA ALÉM DOS JESUÍTAS

Até 1580 somente os jesuítas tinham autorização para estabelecerem-se na Colônia,


mas isso mudou nas seis décadas seguintes com a chegada de algumas antigas ordens
religiosas fundadas ainda no período medieval. Esta “liberação”, se deu sobretudo graças
a anexação de Portugal à Espanha, o que propiciou a vinda de Franciscanos, Carmelitas,
Beneditinos, Mercedários e Capuchinhos. As ordens que chegaram ao território brasilei-
ro tinham basicamente dois objetivos principais, primeiro de expandir as suas obras em
novos territórios e segundo de responder às solicitações dos habitantes locais [...].

SAGRADO E O FEMININO

Diante de uma sociedade majoritariamente masculina, as mulheres também tiveram


seu espaço no meio religioso, mesmo sendo consideradas menos importantes e por
isso mesmo denominadas de segunda ordem, considerando que a primeira era sem-
pre a dos homens. Alguns grupos religiosos femininos como as franciscanas e as car-
melitas chegaram e se estabeleceram no território brasileiro, embora bem mais tarde,
sobretudo pela lógica social predominante. A inserção de religiosas e consequente-
mente a construção de conventos no Brasil passou de repente a ser uma solicitação
bastante insistente por parte de algumas famílias, pois seria uma forma de manter a
virgindade de suas filhas e ao mesmo tempo afastá-las de eventuais maridos despro-
vidos de qualquer título de nobreza ou de condições financeiras para mantê-las [...].
Um dos fatores que justificava a repulsa do governo português em criar conven-
tos femininos se dava pelo seu projeto de dominação colonial que ficaria enfraque-
cido se muitas mulheres brancas começassem a ingressar nos conventos, já que elas
eram parte essencial para o “branqueamento” da nova terra. Por outro lado, as famí-
lias nobres continuavam insistindo nas fundações, pois no caso delas era uma garan-
tia de solução para os problemas de ordem social, moral e política. Ao ingressar em
um convento, a jovem passava a viver não mais somente sob a vigilância das leis esta-
tais, mas também eclesiásticas e patriarcais. No convento a jovem não tinha acesso ao
exterior, exceto em momentos de visitas monitoradas e separadas por estruturas que
impediam qualquer contato corporal. Os conventos eram verdadeiras fortalezas, com
espessas paredes envoltas por altos e resistentes muros, portanto a jovem interna ti-
nha uma vida totalmente voltada à oração e até o seu traje diário seguia rígidos pa-
drões estabelecidos por cada ordem, mas que basicamente cobria todo o seu corpo.

Fonte: Gumieiro (2013, p. 63-78).


MATERIAL COMPLEMENTAR

Casa Grande & Senzala


Gilberto Freyre
Editora: Global

Sinopse: Gilberto Freyre retrata, a seu modo, a formação do pen-


samento brasileiro fazendo contrapontos entre dois espaços que dia-
logam e atritam: a Casa Grande, onde reside a família e proprietária
das terras e das pessoas escravizadas, e a Senzala, local onde pessoas
negras escravizadas ficavam confinadas.

A Missão

Sinopse: Rodrigo Mendoza (Robert De Niro) é um mercador espanhol


escravista do final do século XVIII que vale de violências como método
de vida, a ponto de matar seu irmão em uma disputa pelo amor de uma
mesma mulher. O arrependimento acaba o conduzindo para junto dos
jesuítas, nas florestas brasileiras, mudando radicalmente sua postura
violenta, passando a defender indígenas que antes escravizava.

Comentário: o filme é baseado em fatos reais e retrata o processo de


influência jesuítica junto a indígenas, além de revelar as estruturas das
missões e as dificuldades todas para se chegar até ela, entremeado aos
interesses da coroa portuguesa.
MATERIAL COMPLEMENTAR

Aqui temos Chico Buarque, cantor e compositor clássico brasileiro, falando da obra “O Povo Brasi-
leiro” de Darcy Ribeiro. A formação da índole do povo e do seu perfil contraditório é o tema. Vale a
reflexão de assumirmos o que somos.

Link: <http://www.youtube.com/watch?v=bv9DqymwzBc&feature=related>.

Há algo para se deliciar neste vídeo, o encontro entre o elemento europeu e o indígena. O olhar
europeu sobre um povo que via os “recém chegados” como divindades, mas na prática o início de
uma grande transformação que forjou o que somos, “O Brasil”.

Link: <http://www.youtube.com/watch?feature=endscreen&v=hzGAcqGiV0g&NR=1>.

Material Complementar
REFERÊNCIAS

AZEVEDO, F.. A transmissão da cultura: A transmissão da cultura parte 3. São Paulo:


Melhoramentos/INL, 1976.
BARRETO, T. Estudos de filosofia. Editorial Grijalbo, São Paulo, 1977.
BRASIL. Decreto de 1º de março de 1823. Cria uma Escola de primeiras letras,
pelo método do Ensino Mútuo para instrução das corporações militares. Cole-
ção das Decisões do Governo do Império do Brasil de 1823. Rio de Janeiro: Imprensa
Nacional, 1887.
CARVALHO, L. R. As reformas pombalinas da instrução pública. São Paulo: Sarai-
va/Editora da Universidade de São Paulo,1978.
CERQUEIRA, L. A. A ideia de filosofia no Brasil. Revista
Filosófica de Coimbra, n. 39, p. 163-192, 2011.
CONDORCET. Escritos sobre instrução pública: Condorcet. Trad. Maria Auxiliadora
Cavazzotti e Lígia Regina Klein. Campinas: Autores Associados, 2010.
DORATIOTO, F. GUERRA DO PARAGUAI. In: História das guerras. Demétrio Magnoli
(org.) 3. ed. São Paulo: Contexto, 2006.
FREYRE, G. O escravo negro na vida sexual e de família do brasileiro. In: FREYRE, G.
Casa-grande & senzala. 51. ed. Rev. São Paulo: Global, 2006.
GONZAGA, J. B. G. A Inquisição em seu mundo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 1993.
GUMIEIRO, F. As ordens religiosas e a construção sócio-política no Brasil: Colônia e
Império. Tuiuti: Ciência e Cultura, n. 46, p. 63-78, Curitiba, 2013.
LANCASTER, J. The lancasterian system of education: with improvements. Balti-
more: WN Ogden Nilles, 1821.
LOURO, G. L. Mulheres em sala de aula. In: DEL PRIORE, M. (org). História das mulhe-
res no Brasil. São Paulo: Contexto, 1997.
LUZURIAGA, L. História da Educação e da pedagogia. São Paulo: Companhia Edi-
tora Nacional, 2001.
NASCIMENTO, J. C. A cultura ocultada ou a influência alemã na cultura brasileira
durante a segunda metade do século XIX. Londrina: Ed.UEL, 1999.
RATIO atque Institutio STUDIORUM – Organização e plano de estudos da Compa-
nhia de Jesus. In: FRANCA, L. O método pedagógico dos jesuítas. Rio de Janeiro:
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RIBEIRO, M. L. S. História da educação brasileira: a organização escolar. São Paulo:
Cortez, 1992.
171
REFERÊNCIAS

SAVIANI, D. História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas: Editora Autores


Associados, 2013.
VIEIRA, A. Sermões. São Paulo: Editora das Américas, 1957.
ZAMBERLAM, J. O processo migratório no Brasil e os desafios da mobilidade hu-
mana na globalização. Porto Alegre: Pallotti, 2004.
ZICHIA, A. C . O direito à educação nas províncias do Império do Brasil. Disserta-
ção de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Faculdade de Educa-
ção, Universidade de São Paulo, 2005.
GABARITO

1. Consistia em um método educacional e de organização de estudos, sendo a


principal marca pedagógica dos jesuítas.
2. C.
3. D.
4. A.
5. E.
Professor Me Gilson Aguiar
Professor Me Rodrigo Pedro Casteleira

DA VELHA REPÚBLICA À

IV
UNIDADE
REPÚBLICA NOVA

Objetivos de Aprendizagem
■■ Reconhecer que a mudança de regime – da monarquia para a
república – não mudou a realidade da educação no país.
■■ Compreender a história da educação como um instrumento de
implantação do poder público, mas sem atingir o objetivo ao que se
propôs.
■■ Entender os limites da educação na atualidade como uma
consequência histórica.
■■ Identificar velhos problemas na educação e que ainda não foram
superados.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O regime republicano: educação de saliva e papel
■■ Eis que Getúlio se estabelece: o modelo imposto
■■ O regime militar e a educação abaixo de botas
175

INTRODUÇÃO

A república não veio acompanhada de uma mudança na melhora da qualidade de


vida para as pessoas do Brasil. As mesmas condições que a cidade viveu durante a
monarquia se mantiveram na primeira fase da república. O que explica essa con-
tinuidade são as lideranças políticas que se colocaram à frente do novo governo.
Uma república proclamada pela elite agrária, com a ação dos oficiais do exército
e intelectuais, que estiveram no início do regime, mas depois foram afastados
pelos interesses dos grandes proprietários de terra. A república foi proclamada
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sem a participação popular, “que assistiu bestializada a proclamação”, segundo


Aristides Lobo, um dos intelectuais que participou de sua proclamação e que
escreveu, em 1889, um artigo no Diário Popular sobre o que havia presenciado
(MARTINS, 2016, on-line)1.
O desenvolvimento da economia agrária também gerou o crescimento de um
mercado interno, incentivou a imigração de pessoas vindas da Europa e Ásia, for-
mando novas forças sociais como a classe média e a operária. As cidades passaram
a ter um papel importante na vida política. Dessas novas composições, emergi-
ram as forças que levaram à desestabilização do regime que, aliadas ao contexto
mundial da crise cafeeira, permitiram a ascensão de Getúlio Vargas ao poder.
Por meio da ação tecnocrata do Estado, a educação serviu aos interesses do
poder estabelecido, mas nunca a uma construção de um projeto de educação
que demonstrasse eficiência e criasse condições de superação da sociedade de
suas condições de marginalização no mercado de trabalho. Mesmo durante o
período em que Vargas esteve no poder (1930 a 1945), a educação técnica ficou
a serviço dos centros econômicos e não preparam a população de regiões mar-
ginais com a qualificação que atraísse investimentos.
No Regime Militar (1964 a 1985), o sistema educacional se modernizou,
mas ainda permaneceu com resultados precários para as classes populares. Os
programas de alfabetização de adultos e a multiplicação das instituições públi-
cas não vieram acompanhados de qualidade, o que, de certa forma, ainda é um
dilema na educação nacional.

Introdução
176 UNIDADE IV

O REGIME REPUBLICANO: EDUCAÇÃO DE SALIVA E


PAPEL

Com o advento da república (1889), a educação passou estar presente na retó-


rica dos homens públicos, mas sem um efeito prático. Mesmo que a Constituição
de 1891 viesse a prever a alfabetização para a garantia do voto ao cidadão, a
escola não conseguiu executar esta inclusão para a maioria dos brasileiros. Não
se multiplicaram as instituições de ensino públicas, como idealizaram políticos
e intelectuais como Rui Barbosa. Os imigrantes, por exemplo, que ingressaram

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
no país desde o império, eram alfabetizados. O elemento nacional não tinha por
parte do estado esta prerrogativa.
O país está envolto em concepções liberais de diversas matizes, como evolu-
cionismo social, positivismo e todas as formas de liberalismo político (SAVIANI,
2013), mas, neste sistema todo, o Estado é protagonista de um sistema antagônico
de si, ele requer para si a centralidade de tudo sem que o seja responsável. Rui
Barbosa elabora pareceres em que defende essa posição do Estado, legitimando
que só é possível se a reforma educacional realizar todas as metas a ela impostas,
“[...] a expectativa era que, atingida essa meta, ocorreria uma diminuição do papel
do Estado no que se refere à sua função centralizadora” (SAVIANI, 2013, 169).
Neste período de tensões, em 1890, José Veríssimo (1857-1916) escreve “A
educação nacional”, em que delineia uma reforma da educação pautada como
antecessora da reforma política. Dito de outro modo, para Veríssimo, ao modi-
ficar a estrutura moral da população, posterior e consequentemente, a reforma
do regime político teria se efetivado. Ele considera como base de reforma a
reconstrução do caráter e do sentimento nacional, tendo um espírito brasileiro
(VERÍSSIMO, 1906), educação física, educação cívica e, mais uma vez, uma
concepção do papel da mulher como responsável pela educação de caráter de
gerações futuras (SAVIANI, 2013). Veríssimo foi influenciado por diversas cor-
rentes filosóficas, o que explica como ele estava em sintonia com ideias modernas
de ciência e educação.
No campo da filosofia a geração de Veríssimo sofreria os impactos do
cientifismo dominante, que se firmara com o progresso das ciências di-
tas experimentais (física, química, biologia) e a inauguração da filosofia

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


177

moderna por Descartes. Importante, no século XIX, como se sabe, o


desenvolvimento da filosofia transcendental, do criticismo, da psicolo-
gia e Cosmologia racionais, que se entroncam em Kant (1724-1804) e
no cartesianismo (séc. XVII). O idealismo e o panteísmo alemães (Fi-
chte, Schelling), que se seguem, em conseqüência, sem falar em Hegel
(1770-1830) e em Marx, desembocariam nas duas correntes até hoje
em confronto: a “ala esquerda” radical, materialista, revolucionária, an-
ti-metafísica e a “ala direita”, teísta, ortodoxa, conservadora, racional,
com suas consequências naturais sobre as idéias das elites letradas no
Brasil. Filosofias que inspirariam tanto o materialismo dialético quan-
to o pessimismo de Schopenhauer e o voluntarismo de Nietzsche, do
mesmo passo que o positivismo idealista de Comte, Taine, Spencer,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Durkheim, Buckle, com dignos seguidores entre nós (Sílvio Romero,


Euclides da Cunha, Clóvis Be-vilacqua), nos vários campos das ciên-
cias do espírito (BRANDÃO, 1987, p. 25).

Esses pressupostos todos o conduziram a defender uma educação pautada na


filosofia especulativa junto à empiria (experiência), que promova uma educa-
ção com fins objetivos e que se corrija ao longo do processo.
Uma das contradições da República Velha era que uma das exigências para
o exercício da cidadania seria o voto, restrito aos alfabetizados, homens acima
de 21 anos, além de ser facultativo. O processo de instrução permaneceu cerce-
ado à maioria da população, em sua maioria residente na zona rural, à mercê de
grandes proprietários de terras, os “coronéis”.

“Embora Veríssimo tivesse passado pouco tempo pelos bancos da Politécni-


ca, obrigado a abandonar o curso de engenharia por questões de saúde, aos
19 anos de idade, o comtismo marcá-lo-ia para sempre”.
(Adelino M. Brandão)

O Regime Republicano: Educação de Saliva e Papel


178 UNIDADE IV

Outro dado curioso do regime republicano instalado no Brasil foi o papel que
as mulheres passaram a desempenhar nas instituições de ensino. Incentivadas
a se dedicarem à educação, mas com baixos salários, elas foram incorporadas
ao sistema de ensino para cuidar do ensino fundamental e normal. Elas passa-
ram a ter uma escolha a mais em um destino marcado pela submissão à figura
masculina. Para a maioria das mulheres, o destino era casar, serem operárias,
trabalhadoras agrícolas, lavadeiras ou parteiras.
Com a proclamação do regime republicano, a Igreja Católica deixou de ser
agregada ao Estado. Na Constituição, o poder público se torna laico e as insti-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
tuições públicas e católicas foram separadas. Esta medida tirou a educação em
massa da Igreja e transferiu ao Estado a responsabilidade de gerir a instrução.
O discurso de importância da educação para a formação do brasileiro deveria
se estender à primeira idade. Dessa forma, foram criados os primeiros “jardins
da infância” - nome dado aos estabelecimentos de ensino que deveriam iniciar
a instrução à primeira idade. Em 1895, surge o primeiro Centro de Educação
Infantil. As crianças permaneciam até os sete anos em casa, depois começavam
sua vida na escola.
Mas a educação infantil não atingiu
a todos os brasileiros. As fábricas que se
multiplicaram na Primeira República
arregimentavam um grande número
de crianças para o trabalho operário.
Principalmente durante e após a Primeira
Guerra Mundial (1914 a 1918), foi neces-
sária a política de substituição de bens
importados. Associado ao número de
trabalhadores assalariados no país, o mer-
cado interno brasileiro aumentou a demanda de bens de consumo.
Nesse contexto, em longas jornadas de trabalho, algumas de 10 a 12 horas,
mulheres e crianças eram exploradas nas indústrias. Os poderes públicos, apro-
veitando-se da autonomia prevista na Constituição, criaram mecanismos para
facilitar o uso do trabalho feminino e infantil com remunerações menores que a
dos homens. Com relação à conjuntura econômica e política da Primeira Guerra

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


179

Mundial, Araripe expõe:


A Grande Guerra foi travada no ambiente resultante do salto tecno-
lógico da Revolução Industrial que, da Grã-Bretanha, se irradiou pela
Europa continental e pelos Estados Unidos, e os meios e os processos
de combate de 1914-18 refletem necessariamente esse fato. Tais refle-
xos são tantos e tão profundos que somente é possível citar alguns. A
estrada de ferro e a telegrafia sem fio (a TSF), presentes na Guerra de
Secessão e na Guerra Franco-Prussiana, são extensivamente utilizadas
na Grande Guerra, permitindo transportar, controlar e abastecer gran-
des massas de homens e de materiais. O desenvolvimento do motor
a explosão e do motor elétrico respondem pelo aparecimento do au-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

tomóvel, do avião e do tanque, o carro de combate na terminologia


militar. O submarino, em fase de protótipo na guerra entre os Estados,
tornou-se arma temível no ataque à navegação aliada. Aços especiais e
mecânica pesada possibilitaram o aumento de calibre da artilharia e da
blindagem dos navios de guerra (ARARIPE, 2006, p. 324-325).

O sistema belicoso da Primeira Grande Guerra promoveu um ‘salto’ tecnológico


que as indústrias receberam, mesmo que fossem de outros artefatos. Com a mar-
cha de homens para os fronts, restou absorver mulheres e crianças nas fábricas,
a fim de que o sistema não parasse. O Brasil, assim como boa parte da América
Latina, recebia influências francesas, com a literatura e a formação artística, por
exemplo, e de outras partes da Europa “vinham, também, a manteiga e a moda,
ternos e camisas feitos em Londres, por intermédio de representantes no Brasil”
(ARARIPE, 2006, p. 342), tanto que se manteve no discurso de neutralidade, o
que a população recebeu positivamente, mas essa atmosfera não permaneceu
por muito tempo.
Em 3 de abril de 1917, um navio mercante americano é torpedeado e
os Estados Unidos rompem relações diplomáticas com a Alemanha.
Nesse mesmo dia, outro navio mercante, este brasileiro, é torpedeado
no canal da Mancha. Uma semana depois, o presidente Wenceslau Braz
rompeu relações com a Alemanha, em solidariedade aos Estados Uni-
dos e com fundamento na Doutrina de Monroe.9 Mais navios brasilei-
ros são torpedeados, e em outubro é a vez do Macau, afundado ao largo
da costa francesa. A indignação dos jornais e da opinião pública cresce.
A 26 de outubro de 1917, o Congresso brasileiro decreta e o presidente
sanciona resolução proclamando a existência de um estado de guerra
entre o Brasil e o Império Alemão (ARARIPE, 2006, p. 342).

O Regime Republicano: Educação de Saliva e Papel


180 UNIDADE IV

As primeiras organizações operárias tentaram remediar, inicialmente, este tipo


de prática, sustentando escolas para os filhos dos trabalhadores, as quais eram
mantidas por associações dos trabalhadores. Posteriormente, com o advento dos
primeiros sindicatos, se mantiveram escolas e a luta para romper com o traba-
lho infantil se iniciou.

O DISCURSO NACIONAL

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A humanização da educação e a proposta de uma escola que desenvolvesse o
conhecimento a partir das condições biológicas e psíquicas dos alunos chegaram
ao Brasil no início dos anos de 1920. Essa nova forma de pensar a educação e a
realidade do aprendiz fez parte de uma tendência nacionalista, que veio com um
discurso modernizador que viria a promover o projeto político da Era Vargas
(1930 a 1945).
Podemos considerar que o Brasil estava descobrindo o “Brasil”, mas não
seria uma descoberta fundada na pesquisa e no autoconhecimento dos brasilei-
ros por si. O Estado teria a batuta dos conteúdos que poderiam ser conhecidos
e os maquiaria para justificar sua autoridade.
Após uma série de movimentos culturais conhecidos como “Modernismo”,
a Semana de Arte Moderna (1922) foi o grande exemplo, a produção literária
e a intelectualidade brasileira tinham expoentes dedicados ao sonho de uma
nação do futuro. O desejo de construir uma nação para o futuro viria, infeliz-
mente, pelo intervencionismo do Estado. Não podemos, conforme descreve
Boaventura (2000), pensar que foi ela quem inaugurou, contudo, ela é a anun-
ciadora do início da caminhada a uma nova mentalidade com traços marcados
pelo simbolismo e futurismo:
1. As marcas nítidas de certo modernismo datado e desatual que, en-
tre nós, caiu no gosto do público; 2. a penetração desastrosa no meio
literário de um futurismo obcecado pela modernidade aparente, no
âmbito da linguagem e de tiradas bombásticas, praticando, em outro
registro, o mesmo artifício linguístico que os novos almejavam derru-
bar (BOAVENTURA, 2000, p. 19-20).

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


181

Boaventura (2000) elabora uma crítica à Semana de Arte Moderna, pois consi-
dera que ela acaba por engessar a estética ao invés de expandi-la, sobretudo ao
se comparar qualquer produção “estapafúrdia” com o futurismo. Indiferente das
pessoas defenderem ou atacarem esse movimento, o Brasil, no século XX, dese-
java o espírito moderno mais do que o vivia, uma vez que as as tecnologias e
ciências eram incipientes. No entanto, o elemento central do Modernismo está
alicerçado na busca por uma identidade nacional, para isso, a necessidade em
se romper com padrões estrangeiros, ainda que a sintonia com o que ocorria na
Europa era necessária, e se voltar para o próprio passado.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

O Brasil precisava se redescobrir: seu povo, folclore, ancestralidades. É neste


caldeirão de profusão de ideias que Mário de Andrade (1893-1945) lança seu
ideário da fusão do povo brasileiro a partir das três ‘raças’: indígena, negras e
branca. É na obra Macunaíma, escrita na primeira fase do Modernismo, em que
traça a história de seu anti-herói Macunaíma, rompendo com a escrita romântica.

“E estava lindíssima na Sol da lapa os três manos um louro um vermelho


outro negro, de pé bem erguidos e nus. Todos os seres do mato espiavam as-
sombrados. O jacarèuna o jacarètinga, o jacaré-açu o jacaré-ururau de papo
amarelo, todos esses jacarés botaram os olhos de rochedo pra fora d’água”.
(Mário de Andrade)

Em meio a tudo isso, desponta o pronunciamento da autoridade estatal sobre a


vida social, chamada de Movimento Tenentista. Jovens oficiais se organizaram para
a defesa do que consideravam o bem público maior, a pátria. Mas seu conceito
de valor patriótico vestia “verde oliva”, nome que acabou sendo dado ao Clube
fundado pelos “tenentes”. Hermes da Fonseca, marechal que já tinha sido presi-
dente da república, foi o presidente honorário da associação dos jovens militares.

O Regime Republicano: Educação de Saliva e Papel


182 UNIDADE IV

O Movimento Tenentista se desenvolveu de 1920 a 1935 sob as ordens de


revolucionários do período, muitos desses homens sem a patente de tenente,
contudo, recebeu ainda assim o nome de Tenentista. Esse movimento foi res-
ponsável pela crise das oligarquias cafeeiras e por deflagrar a Revolução de 1930,
ganhando apoio popular, mas não obtendo êxito na permanência do poder. O
insucesso se deve às plataformas econômicas que desagradaram o sistema agrá-
rio, as disputas internas e a retomada de poder pelo exército.
O que se pode afirmar do Tenentismo, em suas etapas iniciais – até
1926, vamos dizer -, é que se mantém, predominantemente, no âmbito

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de um reformismo pequeno-burguês, que divaga em formulações ou
que se repete, mas não se renova (SODRÉ, 1978, p. 28).

Antes da Revolução de 1930 propriamente dita, ainda em 1920, o Brasil era um


país de cultura fortemente agrária e de escassa tecnologia, aliado a uma crise
política advinda do sistema capital internacional o país viu sua economia interna
encolher devido à queda das exportações. A crise se intensifica quando o pre-
juízo é dividido entre todo o sistema oligárquico: agropecuaristas e cafeeiros
recebem o mesmo ônus.
Nesse cenário, Artur Bernardes assume a cadeira da presidência, mesmo com
uma conspiração militar que tenta impedir sua posse. Os atritos militares cres-
cem, generalizou-se entre as corporações, intelectualidade, grupos econômicos
e, por fim, contou com a adesão inócua de instituições populares. As propostas
eram pontuais, como, por exemplo, defesa do voto secreto, combater o sistema
de corrupção, imprensa livre, equilíbrio dos três poderes e efetiva centralidade
do poder federal.
Entre os principais nomes que integravam o Movimento Tenentista, pode-
mos destacar o de Luís Carlos Prestes, que fez oposição a Bernardes. O Centro de
Pesquisas e Documentação de História Contemporânea (CPDOC), uma Escola
de Ciências Sociais Da Fundação Getúlio Vargas (FGV)2, abriga documentos per-
tinentes sobre a história recente brasileira. O CPDOC (2016, on-line)3 chama a
atenção para as práticas de Prestes:

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


183

Comprometeu-se com o movimento revolucionário de 1924, que se


propunha a depor o presidente Artur Bernardes, e por conta disso li-
cenciou-se do Exército. Em julho, a capital paulista foi palco de uma
primeira tentativa revolucionária naquele ano, ficando a cidade sob
o controle dos rebeldes por três semanas. Comandados pelo general
Isidoro Dias Lopes e pelo oficial da Força Pública, Miguel Costa, os
revolucionários paulistas, após serem desalojados da capital pelas for-
ças legalistas, rumaram para o estado do Paraná. Em outubro, foi a vez
das guarnições do interior do Rio Grande do Sul se sublevarem lide-
radas por Prestes e contando, ainda, com o apoio de tropas irregulares
comandadas por caudilhos gaúchos. Derrotados, os rebeldes rio-gran-
denses também rumaram para o Paraná, onde encontraram, em abril
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de 1912, as forças paulistas (CPDOC, 2016, on-line)3.

Os rebeldes se unem, primeiro se conciliando com o sul, fundindo-se à força


tenentista e recebendo o nome de Coluna Miguel Costa-Prestes. A coluna per-
correu boa parte do território nacional, agremiando adeptos, mas as revoluções
esperadas não aconteceram, sendo massacrados na Bahia por forças de jagunços
contratados pelos coronéis dos sertões. O período de poder de Artur Bernardes
já estava no fim, principal intento do movimento. Washington Luís assume a
posse, e o ciclo de revoluções iniciado em 1922 ainda se propaga até o golpe de
1930. Em paralelo, Washington Luís, paulista, apadrinha Carlos Prestes, tam-
bém paulista, como sucessor à presidência. Assim, em oposição, Getúlio Vargas,
com o apoio dos tenentistas, passa a representar a força de Minas Gerais, Rio
Grande do Sul e Paraíba.
Júlio Prestes ganha as eleições, mas, com as condições econômicas insus-
tentáveis, o assassinato do vice de Vargas e o descontentamento da população,
é deflagrado o golpe de 1930 e Vargas é conduzido a um governo provisório.

O Regime Republicano: Educação de Saliva e Papel


184 UNIDADE IV

EIS QUE GETÚLIO SE


ESTABELECE: O MODELO IMPOSTO

Um dos personagens de maior importância da modernização da educação bra-


sileira foi Anísio Teixeira. O advogado, intelectual baiano, assumiu diversos
cargos no poder executivo, tanto na Bahia como no Rio de Janeiro. Além do
Governo Federal,
[...] as dificuldades enfrentadas pela educação vinham desses setores
resistentes às mudanças, os quais continuavam controlando a socieda-

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de brasileira. Anísio identificava essas resistências também na forma
como nosso processo político tinha se organizado, cristalizando a ten-
dência dos políticos de defesa de interesses privados, o que conduzia a
uma política clientelista e personalista (SAVIANI, 2013, p. 22).

Anísio Teixeira (1900-1971) se destaca pela preocupação com a integração da


educação no país, escreve algumas obras voltadas à educação: “Educação não é
privilégio” (1957) e “Educação é um direito” (1968). Unir o destino do brasileiro
na escola pública à universidade; promover condições para que todos tivessem
acesso à instrução que, para Teixeira, era a forma de conter o atraso do país.
[...] as dificuldades enfrentadas pela educação vinham desses setores
resistentes às mudanças, os quais continuavam controlando a socieda-
de brasileira. Anísio identificava essas resistências também na forma
como nosso processo político tinha se organizado, cristalizando a ten-
dência dos políticos de defesa de interesses privados, o que conduzia a
uma política clientelista e personalista (SAVIANI, 2013, 22).

A democratização do conhecimento também era uma preocupação do educador


baiano. Foi dele a fundação do Centro Educacional Carneiro Ribeiro, em Salvador,
que daria modelo aos conhecidos CIACs (Centro Integrado de Atendimento à
Criança), criado em 1991, durante o governo de Fernando Collor de Melo.
O nacionalismo defendido por Anísio Teixeira se traduziu numa tendência
da política educacional no país, no momento em que os movimentos sociais se
articulavam para implantar mudanças contra as oligarquias regionais e a desi-
gualdade latente do projeto econômico brasileiro.
Em 1924, a Associação Brasileira de Educação (ABE), que tinha por finali-
dade a divulgação de ideias com alicerces em teorias estadunidenses, surge pela

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


185

iniciativa de 13 idealizadores, tendo, entre outras metas, rejeitar os modelos fran-


ceses até então amplamente utilizados nas escolas. Anísio se tornou presidente
da ABE em 1931, e é nesse cenário que as ideias de John Dewey (1859-1952)
foram introduzidas por ele, após viajar aos Estados Unidos e receber uma for-
mação pedagógica:
Na formação pedagógica de Anísio Teixeira, foram decisivas as duas viagens
que fez aos Estados Unidos. Da primeira, em 1927, resultou o livro Aspectos
americanos da educação, publicado em 1928, no qual relata os resultados de sua
viagem, apresentando comentários sobre estabelecimentos de ensino, órgãos de
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administração, edifícios, métodos práticos de ensino, currículo flexível e variado,


vida estudantil, além de uma primeira sistematização da concepção de Dewey
(SAVIANI, 2013, 228).
O pensamento de Dewey representou o avanço tecnológico de sua época,
somando os conceitos darwinianos sobre evolução, a física social comtiniana,
bem como sua leitura de Marx, Weber e Durkheim, o que levou o pensador a
dar destaque aos fatores sociológicos enquanto objeto epistemológico. Nas pala-
vras de Anísio Teixeira:
Podemos, já agora, definir, com Dewey, educação como o processo de
reconstrução e reorganização da experiência, pelo qual lhe percebemos
mais agudamente o sentido, e com isso nos habilitamos a melhor di-
rigir o curso de nossas experiências futuras (TEIXEIRA, 2010, p. 37).

Conforme Teixeira (2010), a educação, para Dewey, não se localiza em um


determinado tempo da vida, mas a qualquer tempo, seja na infância, moci-
dade ou velhice. Mas ressalta os aspectos plásticos conforme cada etapa de vida,
onde quanto mais jovens somos, mais experiências aproveitadas teremos. Sob
o aspecto social, a sociedade se organiza e mantém a organização por causa da
comunicação, ou seja, a transmissão. Ser sociedade implica em comunicação, e
comunicação é educação (TEIXEIRA, 2010). O processo de ensinar e aprender
consiste em educação que, por sua vez, é exigida pela vida social.
Em 1931 é realizado no Rio de Janeiro um evento com pessoas do universo
da educação, a IV Conferência Nacional de Educação, organizada pela ABE. É
neste evento que o presidente do Brasil, Getúlio Vargas, pede na plenária uma

Eis que Getúlio se Estabelece: O Modelo Imposto


186 UNIDADE IV

filosofia que possa nortear a educação brasileira. Como as ideias eram diversas
das pessoas presentes na conferência, o resultado é a divisão em dois blocos: um
mais conservador e o outro mais pioneiro e liberal.
O Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova, nome mais conhecido da obra “A
Reconstrução Educacional no Brasil” (1932), é fruto da escrita da parte pioneira
e que declara abertamente a educação como direito para todas as pessoas e como
uma obrigação do Estado, afirmando a defesa do interesse de formar a popula-
ção para superar a desigualdade instalada no país, uma herança do seu passado.
À luz dessas verdades e sob a inspiração de novos ideais de educação,

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foi que se gerou, no Brasil, o movimento de reconstrução educacio-
nal, com que, reagindo contra o empirismo dominante, pretendeu um
grupo de educadores, nesses últimos doze anos, transferir do terreno
administrativo para os planos político-sociais a solução dos problemas
escolares (AZEVEDO et al, 2010, p. 35).

O slogan lançado pela Escola Nova era “ensinamos crianças, não matérias”, dei-
xando objetiva a chamada “curvatura da vara” para o lado das crianças, e não
para o das matérias, como faziam os tradicionalistas (SAVIANI, 2013). As pessoas
que compunham o Manifesto eram profissionais que possuíam uma mobilidade
nas áreas institucionais, urbanas e ideológicos. Suas formações eram de cursos
tradicionais superiores, como medicina, direito e engenharia, mas não apenas
nesses espaços, como indica Nunes (1998).
Os seminários, as livrarias, as editoras, os bares e os quartos de pensão
foram também locus de reunião e formação desses intelectuais. O pri-
meiro ponto a reter é, portanto, o fato de que para a geração de inte-
lectuais dos anos 20 e 30, a universidade ou o ensino superior não foi o
local exclusivo e muitas vezes nem o mais importante da sua formação
intelectual.

Qual foi a tarefa básica dos intelectuais assim forjados? Secularizar a


cultura. Um ponto importante dessa secularização para a qual traba-
lharam incansavelmente foi operar a passagem da escola enquanto ex-
tensão do campo familiar, privado e religioso para o espaço público da
cidade (NUNES, 1998, p. 110).

O papel das pessoas que se aliaram para elaborar uma nova forma de educação
era o de estabelecer sua secularização, como indicado, se afastando dos ranços
religiosos e formando pessoas na área educacional com desejos para o futuro,

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


187

valorizando a democracia, a ciência e a indústria. Para que esse projeto desse


certo, reformas foram necessárias nos anos de 1920 e 1930: linguagem comum,
prioridades, hierarquias. Para tanto, a apropriação de elementos jurídicos pode
dar esse rigor, surgindo os Departamentos de Educação (NUNES, 1998).
O desenvolvimento do capital industrial e a regulação do Estado sobre as
atividades econômicas e sociais necessitaram de uma política de cunho nacio-
nalista e com o sentimento de assistência do poder público na vida do cidadão.
Era preciso proliferar as instituições públicas e promover a assistência à popu-
lação para garantir a autoridade do estado em todos os cantos do país.
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A escola seria fundamental na formação do ideário brasileiro, na construção


de um sentido patriótico que tivesse no líder, o presidente da república, a per-
sonificação do país. Não foi por acaso que a história de Getúlio Vargas ganhou
destaque nas cartilhas do DIP (Departamento de Imprensa e Propaganda). No
dia do aniversário do ditador, 19 de abril, crianças prestavam homenagem a
Vargas. Ele era personagem de inspiração para a alfabetização de crianças; um
“bom” exemplo que, obrigatoriamente, deveria ser seguido.

O DIP foi criado por decreto presidencial em 1939, com a finalidade de di-
vulgar e propagandear a ideologia do Estado Novo à massa como um todo,
o que implica em veicular uma imagem ‘pronta’ do próprio governo interna-
mente e externamente.
Fonte: CPDOC (2016, on-line)2.

O papel do DIP, entre outras coisas, era o de definir no rádio, televisão, jornal e
cinema as propostas do governo nos âmbitos da educação, cultura, economia,
censurando qualquer projeto que julgasse contrário ao próprio Estado.
A educação também tinha como prioridade a formação sintonizada com o
mundo do trabalho. Para isso, os cursos profissionalizantes passaram a ser uma

Eis que Getúlio se Estabelece: O Modelo Imposto


188 UNIDADE IV

das prioridades do Estado. A reforma da educação promovida pelo então Ministro


da Educação e Saúde, Gustavo Capanema, priorizou essa meta.
Capanema foi ministro da Educação de 1934 a 1945, e foi o que mais tempo
permaneceu à frente do ministério, promovendo mudanças para estrutura da
educação contemporânea no país. Entre as suas realizações está a reforma que
leva seu nome “Capanema”.
Por esta reforma, a educação deveria exaltar o civismo associado ao valor do
trabalho e à qualificação da sociedade em seus diferentes segmentos. Preparar
o operário, mas também qualificar as elites. As universidades deveriam estar

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preparadas para o desenvolvimento da liderança com caráter patriótico. O tra-
balhador deveria ser qualificado e voltado a uma especialidade em benefício
do desenvolvimento do país. Até mesmo as mulheres deveriam receber uma
educação adequada para a complementação da educação doméstica. Propostas
como a de qualificar a mão de obra revelam o interesse de uma classe aristo-
crática para que o desenvolvimento industrial se efetive, sem uma preocupação
com a educação emancipadora ou mesmo igualitária que a elite tinha acesso
(ROMANELLI, 1999).
O discurso nacionalista teve um papel de destaque na reforma do ministro
do Estado Novo. Seu interesse era fortalecer a imagem do governo utilizando
os meios educacionais para a hegemonia do poder federativo. O presidente é
o representante da pátria. O DIP, ins-
trumento de propaganda do governo
Vargas, aliou-se a este interesse, como
falamos anteriormente.
A alfabetização de adultos pas-
sou, também, a ser preocupação do
Estado Brasileiro. Era preciso tirar uma
grande leva de brasileiros da ignorân-
cia através das letras e prepará-los para
as atividades profissionais. A urbani-
zação fortalecida pelo êxodo rural e a
redução da imigração europeia impunham a necessidade de preparação do ele-
mento nacional.

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


189

A REDEMOCRATIZAÇÃO POPULISTA E A EDUCAÇÃO POPULAR

A queda do Estado Novo, em 1945, não significou uma mudança na política eco-
nômica do país, já que a saída de Getúlio Vargas do poder manteve os grupos
políticos, parcialmente, que lhe deram suporte na esfera de comando do estado.
Sempre é importante lembrar que as classes populares eram afastadas dessa dis-
cussão. Os dados sobre a população eram trabalhados por especialistas - eles é
que desenhariam a estratégia para resolver o problema do analfabetismo, por
exemplo.
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O nome de destaque no contexto da alfabetização de adultos foi Paulo Freire


(1921-1997). O educador pernambucano que se dedicou à alfabetização das clas-
ses populares acabou sendo conhecido pelo trabalho com adultos. Seu destaque
inicial foi, em 1963, ter alfabetizado 300 adultos em 45 dias. Seu método “revo-
lucionário” ganhou fama - acreditava que a educação não era capaz de mudar o
país por completo, pois ela estaria atrelada a outros interesses, como os da elite,
contudo, ela também pode ser agente de mudança.
Você, eu, um sem-número de educadores sabemos todos que a educa-
ção não é a chave das transformações do mundo, mas sabemos também
que as mudanças do mundo são um que fazer educativo em si mesmas.
Sabemos que a educação não pode tudo, mas pode alguma coisa. Sua
força reside exatamente na sua fraqueza. Cabe a nós pôr sua força a
serviço de nossos sonhos (FREIRE, 1991, p. 126).

Adaptado ao projeto nacionalista e desenvolvimentista do país, marcado pela


necessidade de superar o legado amargo do passado, enterrando os brasileiros
no analfabetismo, Paulo Freire era a possibilidade de encurtar o tempo para a
qualificação necessária.
Formado em direito, nunca tendo exercido a profissão, preferiu traba-
lhar como professor de língua portuguesa em Recife. Acabou sendo indicado
para o cargo de Secretário de Estado da Educação, Cultura e Serviço Social de
Pernambuco (1946). Encontrava-se nessa oportunidade a possibilidade prática
de colocar seu método em funcionamento.
Quando recebeu apoio do governo federal, na presidência de João Goulart,
com as Reformas de Base, para propagar seu método de ensino em todo o país, o
Regime Militar (1964 a 1985) se estabeleceu e foi abortada a iniciativa de Freire.

Eis que Getúlio se Estabelece: O Modelo Imposto


190 UNIDADE IV

O Método Paulo Freire, como ficou conhecido, buscava alfabetizar a partir


da realidade que a pessoa vivia, utilizando “fichas da descoberta”, sistema em que
utilizava uma palavra do cotidiano e depois separava suas sílabas e “daí mostra-
vam-se as famílias fonêmicas” (SAVIANI, 2013, p. 325).
O seu cotidiano e elementos de existência seriam a matéria-prima para a
orientação à ciência. Desta forma, considerava fundamental que a consciência
fosse o elemento de impulso para a aquisição do conhecimento formal. Para ele,
a liberdade do ser humano está ligada diretamente à capacidade de racionalizar
a existência dentro da condição que o cerca. Partindo do cotidiano e refletindo

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sobre si, a pessoa se percebe agente racional, humanizando-se e se conscienti-
zando da própria existência.
A conscientização implica, pois, que ultrapassemos a esfera espontânea
de apreensão da realidade, para chegarmos a uma esfera crítica na qual
a realidade se dá como objeto cognoscível e na qual o homem assume
uma posição epistemológica (FREIRE, 2006, p. 30).

Por isso, parte considerável de seus postulados metodológicos está ligada às ten-
dências de esquerda, o que resultou em sua perseguição pelo Regime Militar.

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


191

O REGIME MILITAR E A
EDUCAÇÃO ABAIXO DE BOTAS

O golpe militar instalado no Brasil em 1964 foi um desdobramento da crise polí-


tica que o país vivia desde o final da Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945).
O desenvolvimentismo como uma política de crescimento econômico permitiu
a transformação da educação como elemento de profissionalização, o aumento
do capital estrangeiro no país modernizou a economia, mas aprofundou as dife-
renças regionais.
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O analfabetismo e qualificação do trabalhador continuavam como priori-


dade, mas distante de ser atingida rapidamente. Neste contexto, o Método Paulo
Freire foi um importante avanço, mas colocava uma ameaça, a conscientização
dos trabalhadores aliada à alfabetização. A educação não podia libertar os cida-
dãos das classes populares, a massa sem instrução não poderia questionar as
formas de dominação que já existiam no país havia séculos.
Na luta pelo poder, o presidente João Goulart (1961 a 1964) buscou na popu-
lação o apoio que não conseguia no Congresso Nacional. Entre os meios para
atingir o poder, o presidente lançou as Reformas de Base. Essas reformas pro-
punham modificações na economia, política e na sociedade, fomentadas pelo
Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) na tentativa de superar o subdesenvolvi-
mento nacional, mas que só em 1961 com Goulart (Jango) na presidência é que
as discussões avançam.
O que gerou o ambiente para a ação dos militares, apoiados nos grupos
econômicos dominantes, aliados ao capital multinacional e a classe média con-
servadora. Em primeiro de Abril de 1964, uma junta militar tomou o poder e o
entregou ao General Castelo Branco.
No regime dominado pelos generais, o domínio sobre as instituições educa-
cionais foi constante, impedindo que se colocasse contra os interesses do estado
uma camada social crítica, uma vez que era dentro dessas instituições que esta-
vam expressões da intelectualidade que discordavam das ações do regime.
A construção de uma política centralizadora implicava em anular os meios
em que a educação se tornava um mecanismo representativo. Dessa forma,
interferir nas instituições de ensino e reprimir as manifestações representativas

O Regime Militar e a Educação Abaixo de Botas


192 UNIDADE IV

seria fundamental. E o regime militar fez isso. Uma das primeiras medidas foi o
Decreto Lei 477 - por ele, o regime militar fechou os centros acadêmicos, pren-
deu professores e fechou instituições.
O regime, de forte caráter tecnicista, ampliou o número de universidades no
país, ao mesmo tempo em que implantou o vestibular. A justificativa era permi-
tir que um maior número de alunos ingressasse nas instituições superiores, mas
selecionar a vaga por desempenho em uma prova de conhecimento. E aí os cur-
sinhos pré-vestibulares se proliferaram.
Aqui a educação tecnicista ganha terreno guiada por programas como Aliança

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para o Progresso ou acordos de parceria com os Estados Unidos (LUCKESI,
2003). As leis 5.540/68 e 5.692/71 tornam oficiais o ensino técnico, o que implica
na ação do comportamento operante, ao estilo behaviorista, a instituição escolar
se torna engrenagem no sistema (re)produtivo do capitalismo.
A escola atua, assim, no aperfeiçoamento da ordem social vigente (o
sistema capitalista), articulando-se diretamente com o sistema produ-
tivo; para tanto, emprega a ciência da mudança de comportamento, ou
seja, a tecnologia comportamental (LUCKESI, 2003, p. 61).

A relação estabalecida entre quem educa e quem recebe educação se dá de modo


formal, o qual quem ensina apenas transmite o conhecimento, revelando uma
estrutura onde a passividade do alunato é exercida e os conteúdos decorados,
fragmentando ainda mais os saberes. Nas palavras de Aranha (1996, p. 183), a
tendência tecnicista tem por finalidade “as funções de planejar, organizar, diri-
gir e controlar,intensificando a burocratização que leva à divisão do trabalho”.
Na base da pirâmide, a ditadura militar negou e reafirmou, contraditoria-
mente, o processo de alfabetização de adultos. Se Paulo Freire, o educador das
Reformas de Base, foi expurgado do país, seu método serviu como base para a
implantação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), sob a lei nº
5.379, de 15 de dezembro de 1967. O corpo militar estaria no controle de todos
os conteúdos ensinados, o que ganha maior corpos em 1970, sob o enfoque de
eliminar o analfabetismo no Brasil em pouco tempo.
Mas a experiência de alfabetização dos militares não foi bem-sucedida.
Impregnado por corrupção e falta de uma ação mais eficaz para fazer executar
o plano de alfabetização nacional, a proposta minguou. Os recursos previstos

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


193

vinham da loteria federal e imposto de renda, mas sem o devido controle, os


gastos foram maiores do que a arrecadação, sendo substituído em 1985 pela
Fundação Educar, pelo Decreto nº 91.980.
Na interferência dos conteúdos, o regime substitui disciplinas humanis-
tas como História e Geografia e introduziu Estudos Sociais e Educação Moral e
Cívica – esta desdobrada nos demais anos de ensino como Ordem Social Política
Brasileira (OSPB) e Estudo de Problemas Brasileiros (EPB).
Nas escolas de ensino médio, chamados de Colegial, se implantou o ensino
técnico e profissionalizante. As escolas públicas se dedicaram à formação média
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associada a uma profissão técnica, a qual já havia sido prioridade dos regimes
que antecederam a ditadura.
As duas medidas mais significativas do regime foram a implantação das leis
nº 4.024/1961 e 5.692/1971. A primeira deu ao regime condições de interferên-
cia direta nas instituições de ensino, a segunda implantou as diretrizes e bases da
educação, em 1971. Ironicamente foi a primeira Lei de Diretrizes e Base (LDB)
nacional, implantada por um regime autoritário.
Dentro de uma diretriz ideológica, sintonizada com o contexto mundial, a
educação proposta pelos militares teve uma carga ideológica anticomunista. O
que fez do regime, de certa forma, “uma caça às bruxas”, ironicamente a educa-
ção seria, para os generais, o caldeirão dos ideais de esquerda.
Como ocorre em toda ditadura, a busca pela perpetuação desgasta a socie-
dade. O autoritarismo excessivo fez com que setores que apoiaram o regime
inicialmente começassem a declinar e engrossar a oposição aos militares.
A economia mundial ampliou o descontentamento, principalmente após a
crise mundial do petróleo (1973). A crise mundial restringiu o crédito interna-
cional e encerrou a sequência de crescimento a que o país assistia desde 1969,
o que foi chamado de “milagre econômico”. Os objetivos dentro desse milagre
estavam pontualmente afixados:
a) a ficção da moeda estável na legislação econômica; b) a desordem
tributária; c) a propensão ao déficit orçamentário; d) as lacunas do sis-
tema financeiro; e) os focos de atrito criados pela legislação trabalhista
(SIMONSEN; CAMPOS, 1974, p.119).

O Regime Militar e a Educação Abaixo de Botas


194 UNIDADE IV

A falta de recursos por parte do Governo Federal fez com que se paralisassem
obras de grande envergadura que davam sentido ao regime e propunham a cons-
trução de uma potência econômica no futuro. Discurso que predominou em
diversos governos, como um ideário a ser cumprido, mas que nunca se realizou.
A partir de 1974, com a eleição de Ernesto Geisel, o penúltimo presidente
do regime militar, inicia-se um processo de abertura, lento e gradual, com retro-
cessos no caminho da liberdade política. O encerramento deste processo se deu
ao final do governo João Batista Figueiredo (1979 a 1985) e foi nele que se anis-
tiaram os exilados políticos em 1979.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
A transição para uma democracia se mostrou conservadora. Apesar do
movimento pelas “Diretas Já”, que desejava implantar eleições ainda em 1984
para a escolha de um presidente da república, o governo, de forma habilidosa,
retardou a escolha pelo voto e promoveu as eleições indiretas por meio do con-
gresso. Em 1985, Tancredo Neves foi eleito para a sucessão presidencial, com
José Sarney como vice.
Sarney assumiria o governo após a morte de Tancredo, enfermo e afastado
do poder. A posse de eleito foi simbólica, feita pelo seu vice. O titular jamais saiu
de hospitais onde foi tratado até a morte, em abril de 1985.
A posse de José Sarney fazia da transição um processo extremamente con-
servador. Ele havia sido representante da ditadura militar no Congresso e fiel
aos interesses dos militares. Sua dissidência era imediatista e sua presidência
uma fatalidade para quem desejava uma democracia que reiniciasse com mais
originalidade histórica.
Em 1988, ficou pronta a Constituição do país que coroava a reabertura polí-
tica e a defesa da democracia. Para a educação, as verbas foram estabelecidas em
porcentagens acima do que o governo militar designava – União deveria inves-
tir 18%, estados membros 25% – o que acabou não se realizando na prática, com
manipulações de recursos para outros fins, tirados da educação (BRASIL, 1988).
O Estado passa a se reconhecer como responsável pelo sistema educacional, con-
ferindo o acesso à educação como direito.
A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será pro-
movida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao ple-
no desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercícios da cida-
dania e sua qualificação para o trabalho (BRASIL, 1988, Art. 205).

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


195

Em 1996, a nova LDB (Leis de Diretrizes e Bases da Educação) é aprovada. Nela


a educação infantil é incluída como parte do processo educacional e obrigatória
sua oferta pelo estado. São as novas formas de organização do ensino fundamen-
tal. A educação média também é reformulada, assim como o ensino superior.
A finalidade da educação básica (a educação infantil, o ensino fundamental e o
ensino médio) é finalmente pontuada, revelando uma novidade fruto dos emba-
tes educacionais ao longo dos anos:
A educação básica tem por finalidade desenvolver o educando, assegu-
rar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posterio-


res (BRASIL, 1996, Art. 22).

A proliferação das instituições de ensino superior privadas foi também uma marca
da educação brasileira nos últimos 15 anos. Com um número cada vez maior de
cursos ofertados, o país viveu uma procura imensa pelas cadeiras universitárias,
as quais agora apresentam ociosidade. Conforme retrata Teixeira (1989), antes
da Era Vargas, o ensino superior no Brasil era deficitário no campo das huma-
nidades, uma vez que as cadeiras ofertadas eram de medicina, ciências agrárias
ou engenharias, o que gerava uma precariedade de formação docente, se conec-
tando a uma formação da educação básica carente.
Sabemos que todo sistema de educação, em seus diferentes níveis de
estudos e em seus diferentes currículos e programas, só pode ensinar
a cultura que na universidade ou nas escolas superiores do país se pro-
duzir. Não seria possível um curso secundário humanístico ou cientí-
fico sem que a universidade ou as escolas superiores tivessem estudos
humanísticos ou científicos avançados. Como só teve o Brasil, no nível
superior, escolas profissionais de saber aplicado, o seu ensino secundá-
rio acadêmico de humanidades e ciências teria de ser inevitavelmente
precário e deficiente, como sempre foi durante essa longa experiência
de ausência da universidade ou das respectivas escolas superiores para
licenciar os docentes (TEIXEIRA, 1989, p. 73-74).

Com o incentivo do governo Vargas, surgem as faculdades de filosofia, ciências


e letras, mas, ainda assim, sem um projeto comum, uma vez que a tradição bra-
sileira não estava nesta área específica. Ainda assim, suas atuações trouxeram
importantes resultados para o cenário em expansão do ensino superior. Mas não
podemos ignorar que a década de 1990, com Fernando Henrique Cardoso como

O Regime Militar e a Educação Abaixo de Botas


196 UNIDADE IV

presidente, fortemente influenciada por ideais neoliberais é toda delineada pelo


projeto de constante privatização da educação, recebendo apoio da mídia e de
projetos com “Amigos da escola”, por exemplo, com a isenção do Estado à frente
de sua responsabilidade na educação (BORGES, 2005).
O diálogo entre sistema público e privado se intensifica sob as relações com
as Organizações Não Governamentais (ONGs), fundações privadas e parcerias
empresariais. Diálogos possíveis graças às estruturas legais redigidas sob a forma
de leis, como indica Luz (2011):
o poder público, no contexto das reformas, priorizou a interlocução

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
com o setor privado na formulação e na implementação das políticas
educacionais e criou uma série de aparatos legais e administrativos
para consolidar essa interlocução com o Estado, principalmente no
que favorece as parcerias. Podemos citar como exemplos, no Brasil, a
Lei n. 9.608/1998, que dispõe sobre os serviços voluntários; a Lei n.
9.637/1998, que qualifica as entidades como “pessoas jurídicas de direi-
to privado, sem fins lucrativos”, e a Lei n. 9.790/1999, que regulamenta
a participação do Terceiro Setor na gestão pública (LUZ, 2011, p. 443).

O empresariado ‘abraça’ a causa do sistema educacional, o que lhe garante acesso a


editais, fomentos e a expansão de oferta do sistema privado. Essa dinâmica acaba
por fragilizar o sistema público, que não detém o mesmo investimento capital para
manter suas estruturas, ampliando ainda mais a desigualdade no país. Conforme os
dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
(INEP), do ano de 2014, 87,4% das instituições de educação superior são privadas.

“O Censo da Educação Superior, realizado anualmente pelo Instituto Nacio-


nal de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), constitui-se
em importante instrumento de obtenção de dados para a geração de infor-
mações que subsidiam a formulação, o monitoramento e a avaliação das
políticas públicas, além de ser elemento importante para elaboração de es-
tudos e pesquisas sobre o setor”.
Fonte: INEP (2016, on-line)4.

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


197

Como forma de tentar ‘equilibrar’ a balança da oferta e acesso ao ensino supe-


rior, programas governamentais são lançados, como o Exame Nacional do Ensino
Médio (ENEM). Criado em 1998, tem por objetivo avaliar o desempenho nacio-
nal do ensino médio, mas que também é utilizado como forma de concorrer a
bolsas do ensino superior com o Programa Universidade para Todos (ProUni).
A pontuação pode ser utilizada de forma integral ou parcial na substituição do
exame vestibular (BRASIL, 2013).
O ENEM, enquanto instrumento avaliativo, vem acompanhado da implan-
tação do Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB) e da Prova Brasil. A
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

maioria destes sistemas de avaliação ocorre desde 1998 e foram complementa-


dos nos anos seguintes.
Outro grande avanço na educação nacional foi o ProUni. Instituído pelo
governo do presidente Lula, ele permite o financiamento do ensino superior em
universidades privadas, mas condicionado às notas do ENEM e com comprova-
ção de carência de recursos por parte do candidato, conforme está previsto nas
Diretrizes Curriculares Nacionais de Educação Básica:
Art. 21. O Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM) deve, progressi-
vamente, compor o Sistema de Avaliação da Educação Básica (SAEB),
assumindo as funções de: I – avaliação sistêmica, que tem como objeti-
vo subsidiar as políticas públicas para a Educação Básica; II – avaliação
certificadora, que proporciona àqueles que estão fora da escola aferir
seus conhecimentos construídos em processo de escolarização, assim
como os conhecimentos tácitos adquiridos ao longo da vida; III – ava-
liação classificatória, que contribui para o acesso democrático à Educa-
ção Superior (BRASIL, 2013, p. 201).

Outros temas têm tomado a educação no país, como a inclusão na escola frente
a uma estrutura excludente, tanto física como humana. A polêmica sobre as
cotas nas instituições de ensino superior, como tentativa de correção do des-
compasso histórico que classes sofreram, como indígenas, pessoas negras ou
de renda baixa. A questão racial tem sido debatida nos conteúdos de história,
literatura e geografia, conforme está previsto na lei 10.639 de 2003, no tocante
aos conteúdos de História e cultura africana e afro-brasileira. Além disso, há o
desafio de incluir na educação 660 mil brasileiros entre 7 e 14 anos que ainda
estão fora da escola.

O Regime Militar e a Educação Abaixo de Botas


198 UNIDADE IV

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Caro(a) aluno(a), há muito que fazer pela educação brasileira, isso é uma cer-
teza. Ela tem muitos descaminhos, muitas vezes fantasias. Propostas de uma
educação que esbarram no idealismo estão expressas nos planos educacionais
de muitas instituições de ensino. Não podemos condenar a busca de um ideal,
mas temos que ter algumas necessidades básicas cumpridas na formação do ser
humano para libertá-lo de seus limites: a instrução básica, o acesso à informa-
ção escrita e a capacidade de entendimento sobre o que se lê.

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
Propostas de uma educação melhor que esbarram no idealismo de quem
projeta os planos educacionais e pouco sentido prático de um ser humano que
precisa ser educado com mecanismos básicos e fundamentais para sua formação.
Outro tema constante dentro da “sala de aula” brasileira é a desigualdade que
rege nossas vidas e se expressa no desempenho dos educadores e dos educan-
dos. As incontáveis pesquisas feitas sobre o desempenho da escola brasileira e as
inúmeras demonstrações do fracasso da educação pública revelam sua incapaci-
dade de emancipar a pessoa e lhe dar o mínimo. A instrução debilitada expressa
a miséria em que muitos vivem, mais pela falta de qualidade humana do que
de condições materiais. A primeira precede a segunda. A instrução debilitada
expressa o foco da miséria, o que revela a história de uma falta de compromisso
para com a educação e a estreita relação que o sistema privado dispõe e inter-
fere nesse campo, perpetuando as assimetrias sociais.
As mudanças que ocorreram nos últimos 30 anos devem ser consideradas,
não há dúvida, mas o que ainda permanece uma incógnita é o futuro da instru-
ção pública no país. Os exames implantados pelo governo federal, como o Prova
Brasil e o ENEM merecem elogios. Podem não ser precisos em sua medida, mas
afere o que nunca foi denunciado antes, precisamos de qualidade, mais do que
quantidade. É isso que esta Unidade procurou apontar.

DA VELHA REPÚBLICA À REPÚBLICA NOVA


199

1. A educação no Brasil conheceu uma expansão entre os anos de 1946 a 1964.


Os movimentos sociais passaram a ser tema da vida acadêmica, universitária.
Contudo, também, da educação básica. A preocupação era com a erradicação
do analfabetismo. Um dos destaques desta política foi Paulo Freire. Leia as afir-
mativas abaixo e assinale a alternativa que apresenta a educação defendida
por Freire:
a. Que a alfabetização de adultos não deve ser feita resgatando a vida coti-
diana, trabalhando os elementos econômicos, sociais e culturais de quem
recebe a educação.
b. Uma libertação pela educação, por meio da qual as classes dominantes po-
deriam superar suas limitações tendo a alfabetização como instrumento.
c. Uma educação popular, segundo a qual as condições precárias poderiam
ser objeto de análise para a construção da alfabetização.
d. Uma elitização do conhecimento, evitando o contato das classes mais
abastadas com os vícios populares que destroem a riqueza do conheci-
mento vernáculo.
e. Freire se preocupava mais com uma educação liberal e que atendia a inte-
resses capitais, sobretudo pelo momento de expansão industrial brasileira.
2. A Era Vargas (1930-1945), assim conhecida na história, fez surgir o domínio de
uma política nacional-desenvolvimentista. O Estado Federal passaria a ser pro-
tagonista das grandes mudanças no país, bem como a educação. Descreva as
mudanças para a educação nesse momento e quem encabeçou.
3. O golpe militar se instalou no Brasil em 1964, mas acabou por estar associado
a outro evento de crise de proporções grandiosa externa e uma outra interna.
Leia as afirmações a seguir e marque a resposta correta:
a. Foi um desdobramento da crise política que o país vivia desde o final da
Segunda Guerra Mundial.
b. Foi um desdobramento da crise fruto da Reforma Pombalina e do início da
Primeira Guerra Mundial.
c. Foi um desdobramento da crise política que o país vivia desde o final da
Primeira Guerra Mundial.
d. Foi um desdobramento da crise religiosa que o país vivia desde o início da
Segunda Guerra Mundial.
e. Foi um desdobramento da crise política que o país vivia desde a Guerra do
Paraguai.
200

4. Sobre o método de Paulo Freire e sua biografia, leia as sentenças a seguir:


I. O Método Paulo Freire foi um importante avanço, mas colocava uma amea-
ça, a conscientização dos trabalhadores aliada à alfabetização.
II. O Método de Paulo Freire deu origem à Educação de Jovens e Adultos
(EJA), quando Freire foi exilado.
III. O analfabetismo em 1964, e mesmo logo após, estava controlado, tanto
que Freire trabalhava para dar continuidade ao sistema educacional.
IV. O Método de Paulo Freire ‘encurtava’ o tempo para a qualificação necessá-
ria que o país nacionalista e desenvolvimentista exigia.
Assinale a alternativa em que as questões estão corretas:
a. Somente I e II são corretas.
b. Somente II e IV são corretas.
c. Somente III e IV são corretas.
d. Somente I e III são corretas.
e. Somente I e IV são corretas.
5. O regime republicano brasileiro trouxe mudanças no cenário educacional
como, por exemplo, em relação às mulheres e sua participação. É possível afir-
mar que elas detiveram os mesmos direitos que os homens como educado-
ras? Justifique sua resposta.
201

AS AÇÕES E OS PROGRAMAS DAS INSTITUIÇÕES DE EDUCAÇÃO INFANTIL


NO INÍCIO DO SÉCULO XX
Segundo Kramer, as políticas públicas para a infância brasileira, do século XIX até as
primeiras décadas do século XX são marcadas por ações e programas de cunho médi-
co-sanitário, alimentar e assistencial, predominando uma concepção psicológica e pa-
tológica de criança, inexistindo um compromisso com o desenvolvimento infantil e com
os direitos fundamentais da infância: [...] voltadas, quando muito, para a liberação das
mulheres para o mercado de trabalho ou direcionar a uma suposta melhoria do rendi-
mento escolar posterior, essas ações partem também de uma concepção de infância
que desconsiderava a sua cidadania e desprezava os direitos sociais fundamentais capa-
zes de proporcionarem às crianças brasileiras condições mais dignas de vida. (KRAMER,
1988, p.199) Até meados da década de 20 do século passado, a assistência à infância foi
realizada basicamente por entidades particulares. Kramer (2003a, p.48)3 também des-
taca que o atendimento à criança era caracterizado pela ausência de proteção jurídica
e alternativas de atendimento, bem como por programas no campo da higiene infantil,
médica e escolar, com a predominância de entidades particulares e grupos médicos na
coordenação dos trabalhos institucionais. Alguns dos estudiosos da história da política
da infância no Brasil (KUHLMANN JÚNIOR, 2001; KRAMER, 2003a; OLIVEIRA, 2005) des-
crevem que as primeiras experiências de ações e programas destinados às crianças eram
voltados à infância “desvalida”. Oliveira (2005, p.92) ressalta que, no período precedente
à República, as iniciativas isoladas de proteção à infância, realizadas através de entida-
des de amparo, orientavam-se para o combate das altas taxas de mortalidade infantil.
Para o atendimento à infância brasileira desvalida existiu, até 1874, a “Casa dos Expostos”
ou “Roda”, instituição destinada ao abrigo e acolhimento das crianças desamparadas.
Constata-se que as primeiras iniciativas foram resultantes de ações higienistas centradas
no combate à mortalidade infantil, cujas causas eram atribuídas aos nascimentos ilegíti-
mos (consequentes da união entre escravos ou destes com seus senhores) e também à
falta de conhecimentos intelectuais das famílias para o cuidado com as crianças. Nas úl-
timas décadas do século XIX e início do século XX, o Estado começou a ter uma presença
mais direta na questão da infância, atuando, inicialmente, como agente fiscalizador e
regulamentador dos serviços prestados pelas entidades filantrópicas e assistenciais”.

Fonte: Andrade (2010, p. 131-132)


MATERIAL COMPLEMENTAR

História da Educação Brasileira: Leituras


Maria Lucia Spedo Hilsdorf
Editora: Saraiva

Sinopse: a área de estudos de história do Brasil é um campo que


pode ser intitulado como fecundo no sentido de produzir mais sa-
beres atualmente, o que revela o processo epistemológico em se
‘desvendar’ em que medida os escritos brasileiros demarcaram o
processo educacional e quais suas influências recebidas. A auto-
ra se dedica a tentar responder às expectativas desses processos
todos, demarcando os pontos mais emblemáticos da análise para
uma análise da relação escola-sociedade brasileira, dos jesuítas aos nossos dias, sem construir uma
narrativa evolutiva, mas enunciando uma visão macroscópica da organização escolar.

Revolução de 30 (1980)

Sinopse: o filme, do diretor Sylvio Back, mescla colagens docu-


mentais com ficção, alinhavado com músicas da época, sobre
a Revolução de 1930. Na verdade é uma soma de outros do-
cumentários que retratam o período com discursos gravados e
eventos que antecedem a Revolução.
203
REFERÊNCIAS

ANDRADE, LBP. Educação infantil: discurso, legislação e práticas institucionais


[online]. São Paulo: Editora UNESP; São Paulo: Cultura Acadêmica, 2010.
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BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei número 9394, 20 de
dezembro de 1996.
BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Secretaria de Edu-
cação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão. Secretaria de Educação
Profissional e Tecnológica. Conselho Nacional da Educação. Câmara Nacional de
Educação Básica. Diretrizes Curriculares Nacionais Gerais da Educação Básica.
Ministério da Educação. Secretaria de Educação Básica. Diretoria de Currículos e
Educação Integral. Brasília: MEC, SEB, DICEI, 2013.
FREIRE, P. A Educação na Cidade. São Paulo: Cortez; 1991.
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XEIRA, A.; ROMÃO, J. E.; RODRIGUES, V. L. (org.). Recife: Fundação Joaquim Nabuco,
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ago. 2016.
2
Em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/FatosImagens/DIP>. Acesso em: 26
out. 2016.
3
Em: <http://cpdoc.fgv.br/producao/dossies/AEraVargas1/biografias/luis_carlos_
prestes>. Acesso em: 24 out. 2016.
4
Em:<http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documen-
tos/2015/notas_sobre_o_censo_da_educacao_superior_2014.pdf>. Acesso em: 22
out. 2016.
205
GABARITO

1. C.
2. O Ministro Capanema, que cuidava tanto da educação como da saúde, implan-
tou a reforma no ensino médio. A educação deveria exaltar o civismo associado
ao valor do trabalho e à qualificação da sociedade em seus diferentes segmen-
tos. Preparar o operário, mas também qualificar as elites. As universidades deve-
riam estar preparadas para o desenvolvimento da liderança com caráter patri-
ótico. O trabalhador deveria ser qualificado e voltado a uma especialidade em
benefício do desenvolvimento do país. Até mesmo as mulheres deveriam rece-
ber uma educação adequada para a complementação da educação doméstica.
3. A.
4. E.
5. Não é possível afirmar que as mulheres estavam no mesmo patamar que os
homens, pois no regime republicano elas passaram a desempenhar funções
nas instituições de ensino. Incentivadas a se dedicarem à educação, mas com
baixos salários, elas foram incorporadas ao sistema de ensino para cuidar do
ensino fundamental e normal. Elas passaram a ter uma escolha a mais em um
destino marcado pela submissão à figura masculina. Para a maioria das mulhe-
res, o destino era casar, serem operárias, trabalhadoras agrícolas, lavadeiras ou
parteiras.
Professor Me Gilson Aguiar
Professor Me Rodrigo Pedro Casteleira

FILOSOFIA, MODERNIDADES

V
UNIDADE
E CORPOS

Objetivos de Aprendizagem
■■ Subsidiar discussões sobre teorizações referentes aos períodos
Moderno e Pós-Moderno.
■■ Apontar conceitos referentes a algumas noções sobre identidade e
corpo nos âmbitos filosóficos e históricos.
■■ Identificar situações sobre os processos identitários que perpassam
os espaços escolares.

Plano de Estudo
A seguir, apresentam-se os tópicos que você estudará nesta unidade:
■■ O chamado período moderno e algumas interpretações
■■ Algumas questões para se pensar a filosofia atual
■■ A filosofia da linguagem
■■ Corpos: saberes que atravessam fronteiras
209

INTRODUÇÃO

Saudações aluno(a), aqui a filosofia, entendida também como um processo para


se compreender a humanidade e seus fluxos, não está parada no tempo, pois segue
par e passo os meandres humanos, como veremos. A proposta deste capítulo é
trazer recortes de pensamentos considerados modernos e contemporâneos da
filosofia e história que se agregam à educação.
Além disso, trazer discussões sobre a filosofia da linguagem a fim de pensar
nos métodos e como se organiza a língua e a comunicação, que se liga à educa-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ção como vimos no capítulo anterior. O período moderno e pós-moderno, será


questionado sob alguns pensamentos, bem como a própria noção de pessoas
que não são mais aquelas pensadas no período iluminista, mas que ‘escapam’ de
definições essencialistas, como se as fronteiras ‘deslizassem’ constantemente, o
que nos permite questionar as noções identitárias ou mesmo ampliar nossa visão
geralmente essencialista e mediada por poucos paradigmas.
Como estrutura para se organizar tais discussões, recorremos não apenas
à filosofia e história, mas saberes que dialogam com elas, como os que estão no
âmbito das ciências sociais ou mesmo da educação, a fim de ampliar as discus-
sões que atravessam os corpos, suas noções e o próprio currículo.
A ideia, então, é dimensionar críticas sobre o processo e o ensinar em si,
considerando outros atravessamentos, como corpo, ciências e tecnologias que
perpassam a educação. Para tanto, neste capítulo trazemos discussões que fogem
das relações estáveis, ao se pensar as pessoas e o processo moderno, assim como
as discussões sobre epistemologia para lançarmos provocações referentes à noção
de currículo.
O currículo é um caminho que orienta a prática docente, mas que recebe influ-
ências também no tempo e no espaço. Se os conceitos sobre pessoas se modificam
ou são teorizados, o mesmo pode ser levado para a noção curricular. Esperamos
trazer mais provocações do que soluções mágicas, tenha uma boa leitura.

Introdução
210 UNIDADE V

O CHAMADO PERÍODO MODERNO E ALGUMAS


INTERPRETAÇÕES

Conceituar o período moderno não é tão simples como se pensa, uma vez que
o termo carrega conceituações diferentes conforme quem escreve sobre. Após
o Iluminismo, conforme estudado nos capítulos anteriores, a concepção de
humanidade se modificou, bem como os saberes que agora se ancoram na racio-
nalidade. Nos capítulos anteriores existem discussões referentes ao século XIX e
XX, focando o romantismo alemão com Kant ou nas discussões trazidas por Marx

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sobre o capital e mais valia. Ambas correntes influenciam na maneira de se pen-
sar as pessoas, as estruturas de pensamento e, portanto, no âmbito da educação.
O século XX se revelou para a humanidade como emblemático por trazer
brigas belicosas, armamentos de destruição em massa, um crescimento popu-
lacional desenfreado somado à exploração grandiosa dos recursos naturais.
Apesar disso, a virada do século, dos 1800 para os 1900, que nos oferta um grande
desenvolvimento científico, como na física com a quebra de paradigma com a
Teoria Quântica, por Max Planck (1900), e a Teoria da
Relatividade, de Albert Einstein (1905). Este século
é ainda o palco para a “Virada Linguística”, que con-
siste em trazer para o campo filosófico as análises
da linguagem humana.
Esses e outros eventos acabam por ‘provocar’ a
filosofia, que não pode assistir a tudo isso de forma
passiva e muda. Ela precisa se movimentar a respon-
der, mesmo que surjam soluções diversas ou mesmo
contraditórias, como o conceito de modernidade. O
conceito de Moderno gera diversas interpretações,
selecionamos algumas teorizações para delinear um ©shutterstock

pouco do cenário mais ocidental.


Anthony Giddens (1938-), um sociólogo britânico, em seu livro “As conse-
quências da modernidade”, destaca apontamentos referentes à modernidade e
suas implicações na sociedade. Para o pensador, a modernidade rompe com a
continuidade, seja no âmbito global ou mesmo micro das relações.

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


211

Os modos de vida produzidos pela modernidade nos desvencilharam


de todos os tipos tradicionais de ordem social, de uma maneira que
não tem precedentes. Tanto em sua extensionalidade quanto em sua
intensionalidade, as transformações envolvidas na modernidade são
mais profundas que a maioria dos tipos de mudança característicos
dos períodos precedentes. Sobre o plano extensional, elas serviram
para estabelecer formas de interconexão social que cobrem o globo; em
termos intensionais, elas vieram a alterar algumas das mais íntimas e
pessoais características de nossa existência cotidiana. Existem, obvia-
mente, continuidades entre o tradicional e o moderno, e nem um nem
outro formam um todo à parte; é bem sabido o quão equívoco pode ser
contrastar a ambos de maneira grosseira (GIDDENS, 1991, p. 10-11).
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

Não é possível, segundo ele, inferir uma noção de unidade história, mas de rup-
turas, ou descontinuidades, entre os sistemas agrários, por exemplo, em que o
modo de produção tradicional é substituído. Giddens (1991) indica três carac-
terísticas de descontinuidades: o ritmo de mudança, que revela a velocidade com
que as coisas se modificam; o escopo da mudança, em que lugares distantes são
postos em contato de forma virtual, o que implica em modificações sociais e a
natureza intrínseca das instituições modernas, característica que indica que algu-
mas formas sociais não estão embasadas em um período histórico precedente
(GIDDENS, 1991).
A modernidade, fruto do sistema de produção industrial e capitalismo, nos
conecta virtualmente, parece nos dar segurança e a sensação de controle, de inú-
meras possibilidades a realizarmos, contudo, não é o que sugere Giddens:
A modernidade expande as arenas de realização pessoal e de segurança
a respeito de amplas faixas da vida cotidiana. Mas a pessoa leiga — e
todos nós somos pessoas leigas a respeito da vasta maioria dos sistemas
peritos — devem guiar o carro de Jagrená. A falta de controle que mui-
tos de nós sentimos em relação a certas circunstâncias de nossas vidas
é real (GIDDENS, 1991, p. 129).

O paradoxo das ambivalências parece ser a tônica da modernidade: medo/


confiança, oportunidade/perigo, local/global. A aura da fragmentação e do abs-
trato imperam, o que chega às noções educacionais. O ensino de ciências, por
exemplo, é geralmente defendido como aquele que possui fixidez, tanto que no
sistema de ensino quem consegue questionar suas validades? Apenas quem dá
continuidade nos estudos do campo das ciências por algum tempo é que poderá
ser introduzido “a questões contenciosas ou tornar-se plenamente cônscio da

O Chamado Período Moderno e Algumas Interpretações


212 UNIDADE V

falibilidade potencial de todas as reivindicações ao conhecimento em ciência”


(GIDDENS, 1991, p. 81).
Bruno Latour (1994), por exemplo, em seu livro “Jamais fomos modernos”,
traz algumas pontuações sobre os usos das palavras ‘moderno’, ‘modernidade’ e
‘modernização’ que são amplamente utilizadas em comparação ao passado, con-
siderado estável e arcaico. Existe uma relação de disputa em utilizar esses termos,
a fim de definir quem vence ou não ao longo da história, Antigos ou Modernos,
mas ambos tem vitórias e fracassos. Para o autor, o projeto moderno não dei-
xou de ser um projeto porque as ‘esferas’ não foram separadas, como a divisão

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o poder político e o poder científico. Para o autor, a divisão de tarefas (cultura,
ciência, política), por exemplo, não se concretizou porque a cada conhecimento
que emerge em determinada sociedade há a interferência. Essa interferência pro-
voca mudanças em toda a sociedade, mas não de forma isolada. Desta forma,
uma nova descoberta científica é, ao mesmo tempo, cultural, política e social.
O processo de hibridismo entre humanos e não humanos, por exemplo, gera
um ser composto por essas relações. Falar da camada de ozônio considerando
os problemas sociais representa essas relações de entrecruzamentos. As práticas
devem ser pensadas separadas, mesmo que o processo híbrido aconteça.
A partir do momento em que desviamos nossa atenção simultanea-
mente para o trabalho de purificação e o de hibridação, deixamos ins-
tantaneamente de ser modernos, nosso futuro começa a mudar. Ao
mesmo tempo, deixamos de ter side modernos, no pretérito, pois to-
mamos consciência, retrospectivamente, de que os dois conjuntos de
práticas estiveram operando desde sempre no período histórico que se
encerra (LATOUR, 1994, p. 16).

Latour (1994), então, sugere que a humanidade nunca foi moderna efetivamente,
o que pode nos faz suscitar inúmeras questões sobre o que de fato seríamos, mas
a questão aqui é lançar possibilidades para se pensar outras teorizações sobre os
fluxos de tempo da/na humanidade.
Bauman (2013), por sua vez, tem outro entendimento do que seja moderno e
pós-moderno, trazendo discussões atreladas à ideia de fluidez constante nas rela-
ções todas. Essa plasticidade ele chama de liquidez, tanto que a maioria de suas

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


213

obras carregam essa terminologia, e talvez possamos usá-la como sinônimo do


que Giddens chama de descontinuidade. Embora seja considerado como ensa-
ísta, tendo formação em ciências sociais, traz pontos para pensarmos de forma
heraclitiana, em relação às mudanças constantes das coisas em um mundo con-
siderado, por vezes, pós-moderno. O autor chama a atenção para um cenário
que se modificou da ideia de paideia grega para o que vivemos na atualidade.
Levou mais de dois milênios, desde que os sábios da antiga Grécia in-
ventaram a noção de paideia, para que a ideia de “educação por toda a
vida” se transformasse de paradoxo (uma contradição em termos) em
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

pleonasmo (como “manteiga amanteigada” ou “ferro metálico”). Essa


notável transformação ocorreu muito pouco tempo atrás, nas últimas
décadas, em consequência do ritmo radicalmente acelerado de mudan-
ça no cenário social dos dois principais conjuntos de atores da educa-
ção: professores e alunos (BAUMAN, 2013, p. 19).

Na era ‘sólido-moderna’, conforme o autor, a filosofia da educação enxergava


quem lecionava como uma espécie de lança mísseis balísticos, com uma progra-
mação calibrada a fim de que o percurso seja seguido à rigor. Com o advento da
era ‘líquida-moderna’, a educação substitui os mísseis balísticos por mísseis inte-
ligentes, capazes de adquirir novos conhecimentos. Esses novos conhecimentos
são descartáveis, sendo substituídos quando não são mais úteis, um fluxo cons-
tante de aquisição e descarte, o que gera uma crise no sistema educacional.

Heráclito (535-475) foi um filósofo da natureza que acreditava que tudo es-
tava em constante mudança, o devir. Esse devir era a luta entre os contrários,
em que tudo está no campo do vir-a-ser.
Fonte: Störig (2008, p. 109-110).

O Chamado Período Moderno e Algumas Interpretações


214 UNIDADE V

Os autores, desta forma, acabam por ser opostos do que pensam sobre os perí-
odos. Se para Latour a humanidade não está no Moderno, pois o projeto não se
efetivou, como Bauman indicaria uma Pós-Modernidade? Ambos trazem teo-
rizações pontuais para se pensar os fluxos históricos da humanidade ocidental,
o que acaba por se espraiar nas definições da educação, como uma noção de
identidade que se modifica constantemente ou aquelas que são atravessadas por
diversos saberes continuamente podem ser abarcadas? Para além de responder
uma noção de ‘verdade’, trazer tais apontamentos para as discussões é reconhe-
cer a existência de identidade que ‘escapam’ de conceitos mais fechados, o que

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
promove a existência de fenômenos que merecem atenção também da filosofia.

ALGUMAS QUESTÕES PARA SE PENSAR A FILOSOFIA


ATUAL

Apesar de não definirmos pontualmente a existência ou não do que seja efeti-


vamente modernidade ou pós-modernidade, se existem ou não, os problemas
contemporâneos parecem se ancorar no mesmo objeto: o ser. O ser, pensando nos
atributos clássicos gregos aqui será tomado como pessoa, a fim de ser o menos
excludente possível. A antropologia filosófica carrega tais reflexões sob os ali-
cerces de uma essencialidade e de localidade, algo já discutido há séculos pelos
helênicos, mas que ganhou terreno, e ramo específico, no século XX.
A antropologia filosófica não foi gestada exclusivamente graças à filosofia em
si, mas ganhou corpo por causa das influências trazidas por outras ciências que
investigam a categoria humana, como a psicologia, sociologia e biologia humana.
O eixo fundamental é o mesmo: a pessoa (ser). Esse eixo esmiuçado já nas eras
mitológicas e nas religiosas agora ganha interpretações nas artes e literaturas.
Conforme aponta o historiador da filosofia Störig (2008, p. 555), “no que
diz respeito à filosofia, para descrever uma história detalhada da antropologia
filosófica, seria preciso nomear praticamente todos os pensadores da filoso-
fia ocidental”, o que seria uma tarefa longa, mas não menos importante. Como
a nossa proposta é trazer apontamentos sobre o cenário histórico-filosófico

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


215

contemporâneo, seguiremos algumas trilhadas já deixadas por Störig, dando


enfoque a Marx (1818-1883) e Darwin (1809-1882), ainda que já trabalhados em
capítulos anteriores, trazendo ainda outras teorizações sobre a noção de pessoa.
Karl Marx suscita discussões sobre como a humanidade pode ser vislumbrada
como uma imagem que extrapola a ciência e a filosofia ao carregar o conceito de
consciência de massa. Para ele, a pessoa permanece a mesma ao longo da histó-
ria, no entanto, ainda sim não muda. Essa ideia está ancorada no trabalho, aquilo
que faz a pessoa ser humana. Ao trabalhar, a pessoa, um ser agente, se constrói
junto a ele, se modificando continuamente, mas isso só é possível por causa da
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matéria humana que é o ser humano, e essa é a parte que não se altera. Esse tra-
balho se realiza em conjunto a outras pessoas.
A imagem trazida pelo inglês Charles
Darwin rompe com diversas dinâmicas reli-
giosas ao defender que a humanidade é um
produto da evolução animal, e que ainda se
encontra em evolução, nos fornecendo mais
um pouco das ideias de relativismos. O ser
humano passa a ser investigado pelo com-
©shutterstock

portamento e subjetividades psicológicas,


isso por causa do contato da antropologia com noções de zoologia e da psicanálise.
Temos expoentes que seguiram nessa mesma vertemente, como Max Scheler
(1874-1928), Helmuth Plessner (1892-195), Arnold Gehlen (1904-1976). Gehlen,
por exemplo, descreve em sua obra conhecida como “O homem - Sua Natureza
e sua posição no Mundo”, de 1940, que nós, enquanto categoria animal, somos
seres com recursos físicos precários, o que demanda uma soma de cuidados e
de educação para que sejamos guiados até a fase da puberdade.
Essa educação nos situa nesse mundo artificial que nós criamos. Ela é neces-
sária exatamente porque não possuímos apenas os instintos, mas significamos
o que nos cerca. Desta forma, os instintos não seriam capazes de mediar aquilo
que foge do natural. A humanidade planeja, então, as transformações da natu-
reza, o que implica em uma obra humana: a cultura. Ela ajudará a organizar os
sistema humanos: leis, regras, comportamentos e ordenamentos, a fim de nos
deixar aptos para aquilo que nos cerca.

Algumas Questões para se Pensar A Filosofia Atual


216 UNIDADE V

A FILOSOFIA DA LINGUAGEM

Essas mediações sobre o mundo são repassadas sob o recurso da linguagem. Ela
foi tema central na filosofia clássica, como pensaram Platão e sua dialética ou
Aristóteles e suas categorizações, porém, após o século XVIII ela ganha novos
contornos e questionamentos, pois sem ela não teríamos a razão ou como falar
sobre o mundo. Dito de outro modo, sem linguagem não há o mundo.
Dentro da filosofia da linguagem uma das pessoas que mais contribuiu foi
Ludwig Wittgenstein (1889-1951). Austríaco naturalizado britânico, é dele a

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frase descrita na imagem anterior, que traduzida seria: “os limites da minha lin-
guagem são os limites do meu mundo”. O filósofo da linguagem pode ser ser
compreendido em dois momentos distintos, tanto pela idade como pela forma
de escrita. O ‘primeiro’ Wittgenstein escreve a obra “Tractatus logico-philosophi-
cus”, uma obra com poucas páginas em que elabora uma dinâmica de escrita de
difícil compreensão e em cadência de aforismos (textos sintéticos) enumerados.
Essa obra emprega as teorias de linguagem cotidiana com a utilização de
um rigor apurado e com precisão, o que a afasta do uso cotidiano. Sua escrita
é radical, de tal forma que pensa que não precisa de qualquer retoque, o que o
leva a acreditar que qualquer palavra dita deve ser analisada sem que haja qual-
quer dúvida sobre.
No entanto, o ‘segundo’ Wittgenstein percebe que a linguagem demanda das
relações entre as pessoas que a partilham. Em sua obra “Investigações lógicas”
revela o que ele chama de ‘jogos de linguagem’. Esse ‘jogo’ é similar ao xadrez,
em que as pessoas que jogam precisam compreender as regras para exista o
acordo. Quando falantes se comunicam, a língua precisa ser dita e compreen-
dida de forma simétrica, indiferente se segue uma estrutura ‘rígida’ ou não, falar
é ser compreendida. A linguagem pode ser comparada à organização de uma
cidade: o centro é estruturado, seguindo uma ordem e planejamento, ao passo
que a periferia tem um fluxo mais plástico, mais ‘caótico’. Ambos se constituem
como elementos da mesma cidade, como a linguagem que possui elementos mais
organizados, porém, não é rígida e imutável.

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


217

Conforme explica Chauvire (1991), as definições de jogo para Wittgenstein


representam a liberdade em criar regras, em estipular ‘contratos’ entre as pes-
soas que estão no mesmo campo de jogo (ou linguagem):
Os jogos são livres criações do espírito e da vontade, autônomos e go-
vernados por regras. Saber jogar um jogo é uma capacidade que supõe
domínio de uma técnica, consecutiva a uma aprendizagem. O fosso
que separa a regra de sua aplicação preenchido pelo treinamento ou o
adestramento (Abrichtung), a familiaridade, a prática do jogo (CHAU-
VIRE, 1991, p. 91).

Se utilizarmos como exemplo uma sala de aula notaremos como quem leciona
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

e quem está nos bancos escolares nem sempre possui a mesma sintonia linguís-
tica. As regras de linguagem devem ser partilhadas e compreendidas para que
a comunicação se efetive.

Os limites de minha linguagem significam os limites de meu mundo.


(Wittgenstein)

Partindo dessas discussões sobre a filosofia da linguagem chamamos a atenção


para a noção curricular com a seguinte provocação: se o currículo norteia o tra-
balho docente, o faz tendo por conceito uma estrutura rígida ou flexível? Quem
leciona deve estar no mesmo ‘jogo de linguagem’ do que a quem se leciona, a fim
de haver uma comunicação mútua, o que auxilia no desenvolvimento e compre-
ensão dos conceitos durante o processo de ensino-aprendizagem.
Como descreve Varela (2013), o currículo pode permitir a contextualização,
o que gera a potencialização da inovação, uma vez que considera as realidades
socioeducativas e, por isso, agrega as noções de inclusão e de multiculturalismo.

A Filosofia da Linguagem
218 UNIDADE V

As políticas curriculares traduzem concepções filosóficas, representa-


ções ideológicas e opções políticas e, na sua explicitação e implementa-
ção, estão envolvidas tanto as altas instâncias políticas decisoras, como
a administração educativa central, como as instituições escolares, ca-
bendo a estas últimas, essencialmente, a responsabilidade de sua mate-
rialização nos diversos contextos, no âmbito da qual produzem igual-
mente discursos e tomam decisões (VARELA, 2013, p. 57).

Como a citação anterior menciona, o currículo é permeado pelas concepções


ideológicas filosóficas e políticas, resultado de um tempo, espaço e embates
diversos, a fim de construir uma estrutura que oriente o programa disciplinar de

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quem leciona. Dentro desse universo curricular e de linguagem temos o corpo.
Ele é, em certa medida, uma linguagem, ou como diria Le Breton (2012), uma
fronteira “para delimitar perante os outros a presença do sujeito. Ele é o fator
de individuação” (LE BRETON, 2012, p. 32) e, por esse motivo, o corpo será o
próximo elemento a discutirmos.

CORPOS: SABERES QUE ATRAVESSAM AS


FRONTEIRAS

Como mencionado anteriormente, o corpo transita nos espaços e carrega con-


sigo uma soma de demarcadores: cor, gênero, etnia, idade, religiosidade etc.
Esses demarcadores informam às pessoas parte do que a pessoa se constitui,
mas nunca sua totalidade. Além disso, a forma de ‘ler’ cada corpo está ligada
às relações subjetivas, o que pode gerar pré-conceitos. Nosso hábito em tentar
enquadrar as pessoas sem considerar suas trajetórias pode nos levar a erros. A
filosofia também se ocupou em investigar o corpo.
O corpo, para a comunidade grega clássica, era chamado de soma, a parte
material do ser humano, enquanto a parte imaterial era a psique, que pode
ser considerada como alma. A mitologia grega, por exemplo, narra como os
seres humanos foram moldados por Prometeu, a partir do barro. Zeus, por sua
vez, sopra nesses bonecos de barro e acabam por ganhar vida, dando origem à
humanidade.

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


219

Os filósofos clássicos, como Platão e Aristóteles, deram suas posturas acerca


da corporeidade. Platão, como já estudado, pensava o ser humano dividido em
duas substâncias, o dualismo psicofísico. O corpo faz parte do mundo sensível,
do que é palpável, mas que não é a realidade, mas cópia, ao passo que a alma
está ligada ao mundo perfeito e imutável, o mundo das ideias.
Aristóteles não concorda com seu mestre Platão e elabora a noção de hile-
morfismo, que consiste na ideia de que todas as coisas são constituídas pela fusão
de matéria e forma. Esses dois princípios são diferentes, mas se complementam,
como o ser humano que seria o resultado da união entre elas duas, como des-
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creve sobre matéria e forma no livro “Física”.


O corpo foi, ainda, categorizado na Idade Média, quando a filosofia e a teo-
logia caminhavam próximas e as leituras platônicas e aristotélicas retomadas.
Nesse período ele foi considerado fonte do pecado, ao passo que a alma a puri-
ficadora, aquela que deveria guiar para a retidão religiosa.
René Descartes (1596-1650), considerado o ‘pai da modernidade’, defen-
deu o conceito de um ‘corpo-máquina’, algo similar à ideia de relógio com suas
engrenagem que se movem pelo contato das peças. A diferença é que o corpo
cartesiano possui, além da parte física, uma substância imaterial: a alma.
Pois tudo o mais que pode ser atribuído ao corpo pressupõe a extensão
e é apenas um certo modo da coisa extensa; assim como todas as coisas
que encontramos na mente são apenas diversos modos de pensar. As-
sim, por exemplo, não se pode entender a figura a não ser numa coisa
extensa, nem o movimento a não ser no espaço extenso; nem a imagi-
nação, ou o sentido, ou a vontade, a não ser na coisa pensante. Mas, ao
contrário, pode-se entender a extensão sem a figura ou o movimento e
o pensamento sem a imaginação ou o sentido e assim por diante, como
fica manifesto para quem quer que atente (DESCARTES, 2002, p. 69).

Se o corpo é a parte que possui extensão, por antagonismo a alma será a


substância incorpórea, que está conectada ao corpo em uma relação de ‘contato’,
marcada pelo filósofo como glândula pineal, para ele a sede da alma. A noção
de corpo cartesiano ainda é usada quando analisamos os saberes biomédicos e
seus discursos voltados unicamente para as relações ‘biológicas’ das corporei-
dades, desconsiderando as culturas, por exemplo.

Corpos: Saberes que Atravessam as Fronteiras


220 UNIDADE V

Como a ideia não é investigar todas as noções sobre o corpo ao longo da


história da filosofia, ou mesmo da antropologia, como Breton (2012) faz, mas
trazer outras pessoas para o diálogo, daremos um salto no tempo para discutir-
mos posições mais contemporâneas.
Michel Foucault (1926-1984), um filósofo francês, indica que o corpo é onde
o poder atua, tanto que o controle constante durante a Idade Média foi realizado
exatamente para que as pessoas não percebessem as noções de controle. Não
perceber a submissão era uma estratégia pontual, a fim de que houvesse uma
disciplina, o que ele chama de controle disciplinar. Esse controle está em diver-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
sas instituições: colégios, prisões, hospitais, conventos, fábricas etc. O filósofo
investigou esses espaços e concluiu que são de controle e, para isso, o recurso da
punição se constitui como algo a fim de regular as ações:
não punir menos, mas punir melhor; punir talvez com uma severida-
de atenuada, mas para punir com mais universalidade e necessidade;
inserir mais profundamente no corpo social o poder de punir (FOU-
CAULT, 2008, p. 70).

Uma estrutura de punições e regulamentações geraria um controle mais agu-


çado e pontual nas relações sociais, o que nos faz questionar: as avaliações nos
espaços escolares são uma estrutura de aferir o processo de ensino-aprendiza-
gem? Podem as avaliações servirem como forma de controle e/ou punição? As
estruturas de controle permeiam todas as relações. Segundo ele, três foram os
dispositivos que podem ser localizados após o século XVIII, como: o direito do
soberano, dentro da monarquia, em que se decidia sob o uso da espada e da lei;
a punição, em que consistia em reformar as pessoas como seres de direito e, por
fim, a organização carcerária, em que os corpos e comportamentos são molda-
dos segundo um ‘treinamento’ e coerção. Dentro dessas relações de poder e de
tecnologia de poder, surge o poder disciplinar. Esse poder constante imprime
sobremaneira a noção de obediência na medida em que são úteis sob a forma
de disciplinas, que podem ser vistas nos quartéis, hospitais e mesmo colégios.
O poder disciplinar é, com efeito, um poder que em vez de se apropriar
e de retirar, tem como função maior adestrar; ou sem dúvida, adestrar
para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. Ele não amarra as for-
ças para reduzi-la; procura ligá-las para multiplicá-las e utiliza-las num
todo (FOUCAULT, 1987, p.143).

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


221

O papel da disciplina, que está ligada ao poder, é o de adestrar os corpos para ati-
vidades mais ligadas à ‘utilidade’. Nessa relação se encontra a escola, que funciona
como uma arquitetura de controle (salas separadas por ano/série, carteiras enfi-
leiradas, corredores cada vez mais estreitos, muros altos) e um rol de regras que
determina explicitamente o que se pode ou não fazer, assim como existem deter-
minações implícitas nas relações. Um caso dessa estrutura de ‘adestramento’ dos
corpos seria o de pedir para que todas as pessoas se levantem para uma oração
inicial em uma escola pública. O discurso de ‘respeito’ solicitado funciona como
dispositivo para controlar os corpos em nome de uma expressão de fé subjetiva.
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O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue pelo jogo do


olhar, um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos
de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visí-
veis aqueles sobre quem se aplicam (FOUCAULT, 1987, p.143).

O corpo se configura como elemento plástico, dotado de potencialidades inúme-


ras que são adestradas a fim de que produzam segundo um sistema determinado,
para isso, as instituições se configuram como dispositivos de controles.
Judith Butler (1956-), uma filósofa nascida nos Estados Unidos, resgata das
discussões do francês Michel Foucault as questões sobre corpo e sexualidade, à
luz do feminismo, para dizer que o filósofo não se debruçou nas investigações
sobre gênero, por exemplo. Para a filósofa, o gênero é performativo, ou seja, não
é possível afirmar que exista um determinismo biológico para se determinar os
sexos e gêneros. Se o sexo biológico determinasse as identidades, por exemplo,
qual a necessidade de uma cultura que firma e reafirma constantemente quais
os papéis de homens e mulheres? Quais as necessidades em separar brinquedos
e cores para meninos e meninas? Uma questão simples e simplista, mas que car-
rega um debate longo dentro do universo acadêmico, onde os fenômenos são
estudados segundo dinâmicas epistemológicas.
O corpo, deste modo, performatiza os gêneros. Os discursos da linguagem
são ferramentas importantes para aproximar o sexo, o gênero e o próprio corpo,
tudo está em construção. Judith Butler (2003) afirma que o gênero pode ser com-
preendido como uma fabricação sob processos internos, uma fantasia que envolve
as fronteiras corporais, nada mais destitui a conclusão de que não sejam falsos ou
verdadeiros, apenas produtos de um discurso acerca de uma identidade ‘primária

Corpos: Saberes que Atravessam as Fronteiras


222 UNIDADE V

e estável’. Essas performances gestuais, de condutas e corporeidades representam


produtos manufaturados firmados por discursos (políticos).
Os corpos vivem e morrem; comem e dormem; sentem dor e prazer;
suportam a enfermidade e a violência e alguém poderia proclamar ceti-
camente que estes “fatos” não podem se descartar como uma mera cons-
trução. Seguramente deve haver algum tipo de necessidade que acompa-
nhe estas experiências primárias e irrefutáveis. E seguramente há. Porém
seu caráter irrefutável de modo algum implica o que significaria afirmá-
-las nem através de que meios discursivos (BUTLER, 2002, p.13).

Não é possível, então, pensar no corpo apenas como um aparato biológico, mas

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
também cultural. Dentro dessa premissa, não podemos ignorar as tecnologias.
Elas são responsáveis pela elaboração das corporeidades também: uso de cremes,
próteses, tecidos e toda uma gama de recursos extra ou intra-corporal.
Donna Haraway (1944-), uma bióloga e filósofa, traça um mito ficcional e
político para falar da gênese de corpos ciborgues na obra ‘Manifesto ciborgue’.
Um corpo ciborgue carrega “hibridismos teóricos e das composições orgânicas
e fabricadas que mesclam para si” (CASTELEIRA; INOCÊNCIO, 2016), ou seja,
trata-se de um corpo que está atravessado pelas tecnologias que o conduzem a
uma esfera não apenas orgânica, mas também inorgânica.
Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e
organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura
de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa
nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz
de mudar o mundo (HARAWAY, 2009, p. 36).

Pensemos, por exemplo, nas pessoas que utilizam próteses para suas mobilidades
e frequentam os espaços escolares, em que medida as escolas e currículos estão
preparados para recebê-las? Trazer discussões históricas e filosóficas acerca da
corporeidade pode dar um panorama de como ele foi representado e pensado.
Partindo disso, a noção de um corpo ‘pronto’ se esvai, pois ele não é um produto
acabado, mas plástico, está sempre em construção de suas fronteiras.

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


223

As tecnologias de comunicação e as biotecnologias são ferramentas


cruciais no processo de remodelação de nossos corpos. Essas ferramen-
tas corporificam e impõem novas relações sociais para as mulheres no
mundo todo. As tecnologias e os discursos científicos podem ser par-
cialmente compreendidos como formalizações, isto é, como momentos
congelados das fluidas interações sociais que as constituem, mas eles
devem ser vistos também como instrumentos para a imposição de sig-
nificados (HARAWAY, 2009, p. 64).

Esses corpos, que rompem com a considerada normalidade (gordos, negros, ciga-
nos, indígenas, de religiosidades não cristãs, não heterossexuais, não jovens), estão
em trânsito nos espaços, inclusive nos escolares. A fim de garantir uma equidade
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

de direitos ao acesso e permanência nos espaços educacionais, existem instru-


mentos legais que garantem políticas públicas que atendem a esses princípios.

DIVERSIDADES CORPÓREAS E IDENTITÁRIAS NOS CURRÍCULOS

O currículo, como já mencionado, é uma espécie de pista de corrida, não apenas


um guia de uma disciplina, mas que deve atender as questões referentes a como,
o que, a quem, por que ensinar. Pontuaremos alguns caminhos teóricos do cur-
rículo, considerando que ele nunca é neutro, pois resulta de seleções específicas
dentro de um campo vasto de opções.
O currículo é sempre o resultado de uma seleção: de um universo mais
amplo de conhecimentos e saberes seleciona‐se aquela parte que vai
constituir, precisamente, o currículo. As teorias do currículo, tendo de-
cidido quais conhecimentos devem ser selecionados, buscam justificar
por que “esses conhecimentos” e não “aqueles” devem ser selecionados
(SILVA, 2007, p. 15‐16).

O currículo, além de não ser neutro, se relaciona com os processos sociais e his-
tóricos. Em um momento em que a crescente industrialização gera constantes
demandas, a instituição escolar recebe novas responsabilidades para as soluções
de problemas sociais que surgem graças às modificações econômicas. Frente a
isso, a escola e currículo foram alvos de críticas no tocante ao aparato social, com
a chamada teorias da correspondência, com sua gênese nos anos 70.

Corpos: Saberes que Atravessam as Fronteiras


224 UNIDADE V

Trata-se de teorias marxistas que defendem a correspondência entre a


base econômica e a superestrutura, indo de perspectivas mecanicistas,
em que a correspondência é total e exata, a concepções em que a dialéti-
ca entre a economia e a cultura se faz mais visível. Incluem trabalhos va-
riados do campo da sociologia, alguns dos quais problematizando mais
especificamente o currículo escolar (LOPES; MACEDO, 2011, p. 27).

Mas não são apenas as teorias marxistas que criticam as abordagens técnicas,
como as propostas por Dewey, a partir de 1960 com a expansão dos movi-
mentos de contracultura, que chegam ao Brasil em 1970 e o influencia mesmo
durante o sistema ditatorial. As experiências curriculares e sua transcendência

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
quanto às atividades, desde Dewey, conforme descreve Lopes e Macedo (2011,
p. 33), não conseguem resolver o problema do “hiato entre os planos curricu-
lares e sua aplicação”.
Os conceitos curriculares de matriz fenomenológica defendem uma estrutura
aberta à experiência das pessoas e que esteja além dos saberes sociais prescri-
tos por estudantes. O nome mais marcante dessa corrente é o de Paulo Freire.
Como já vimos, o educador considera a vida e a vivência cotidiana no espaço
escolar como forma de ensino guiado também por outras teorias, como o exis-
tencialismo e marxismo. Freire propõe “uma pedagogia baseada no diálogo e,
nesse sentido, vai além da análise das formas de funcionamento da ideologia e
da hegemonia” (LOPES; MACEDO, 2011, p. 34), defendendo a posição de que
a educação se opõe ao sistema reprodutivo.
Uma outra teoria curricular é o que se alicerça nos estudos pós-curricula-
res, iniciados no Brasil por volta de 1990 despontando com os escritos de Tomaz
Tadeu da Silva (1957-). O pós-estruturalismo agrega ideias do estruturalismo,
sobretudo as que revelam a desconstrução de conceitos curriculares que se
apoiam na linguagem para instituir o que seja social. Dito de outra forma, nas
teorias pós-estruturalistas o significado de determinada coisa só o é porque foi
construído socialmente. A realidade é elaborada pela linguagem, que é forne-
cida pelo sistema, segue que para entender o mundo passa a ser necessário que
as estruturas sejam compreendidas sob análises da linguagem, como defende o
estruturalismo (LOPES; MACEDO, 2011).

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


225

Para o pós-estruturalismo, a linguagem precisa ser relida, a própria noção


da ideia de estrutura sugerida pelo estruturalismo está marcada na linguagem, o
que implica em também estar marcada pela construção social. O currículo seria
um discurso, um dispositivo de poder e significação em que constrói a realidade
,“nos governa, constrange nosso comportamento, projeta nossa identidade, tudo
isso produzindo sentidos” (LOPES; MACEDO, 2011, 41).
Se o currículo nos produz, a escola também o faz de forma direta, quando
o currículo é explícito, ou indireta quando ‘forma’ pessoas segundo as defini-
ções sociais.
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

A escola contribui para esse processo não propriamente através do


conteúdo explícito de seu currículo, mas ao espalhar, no seu funcio-
namento, as relações sociais do local de trabalho. As escolas dirigidas
aos trabalhadores subordinados tendem a privilegiar relações sociais
nas quais, ao praticar papéis subordinados, os estudantes aprendem a
subordinação. Em contraste, as escolas dirigidas aos trabalhadores dos
escalões superiores da escala ocupacional tendem a favorecer relações
sociais nas quais os estudantes têm a oportunidade de praticar atitudes
de comando e autonomia (SILVA, 2007, p. 33).

É na escola que as tensões e relações de dispositivos de poder podem ser obser-


vadas, além das que acontecem fora dos muros. Os corpos que ali transitam são
diversos, escapam das essencialidades e ‘normalidades’, são indígenas, negros,
femininos, masculinos, cadeirantes, amputados, magros ou gordos, enfim, cor-
pos que são também linguagens e atravessam os currículos. As identidades estão
conectadas às corporeidades e, como elas, não são consideradas fixas.
A identidade torna‐se uma “celebração móvel”: formada e transfor-
mada continuamente em relação às formas pelas quais somos repre-
sentados ou interpelados nos sistemas culturais historicamente, e não
biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes
momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um “eu”
coerente (HALL, 2006, p. 13).

Stuart Hall (1932), um pensador jamaicano, é conhecido pela escrita em que foca
sobre as definições de cultura, raça e identidades, chamando a atenção para as
crises das identidades e o papel da biologia cada vez mais questionado pelos des-
lizamentos das instabilidades sociais. Aquela identidade fixa e rígida iluminista,

Corpos: Saberes que Atravessam as Fronteiras


226 UNIDADE V

que representava o centro das pessoas não passa de uma fantasia (HALL, 2006).
Os antigos paradigmas de referenciação identitárias estão em processo de des-
truição, uma vez que novos referenciais surgem, cada vez mais decalcada de
outros elementos.
As velhas identidades, que por tanto tempo estabilizaram o mundo
social, estão em declínio, fazendo surgir novas identidades e fragmen-
tando o indivíduo moderno, até aqui visto como um sujeito unificado
(HALL, 2006, p. 7).

As definições sobre identidades, como afirma o autor, estão pautadas em estru-

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
turas políticas e, portanto, nas linguagens e relações artificiais. As identidades
requerem para si sempre o que lhes falta, por isso do processo de decalques, de
fragmentos de outras para tentar completar uma que nunca será ou foi, mas estará
em processo. O móvel é a afirmação, o que desestrutura as afirmações ‘irrefutá-
veis’ biologizantes e se ancora na mobilidade histórica.
A identidade torna-se uma “celebração móvel”: formada e transforma-
da continuamente em relação às formas pelas quais somos representa-
dos ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam. É definida
historicamente e não biologicamente (HALL, 2006, p. 12-13).

Reconhecer as identidades como móveis revela a possibilidade de nos organizar-


mos em projetos efetivos, haja visto que compreenderemos as mudanças culturais
que são externas a nós e nos modificam internamente, não como um processo
dialético, talvez, mas paradoxal, em que os recortes para preenchermos nossas
identidades muitas vezes atritem para quem vê de fora. Conforme descrevem
Moreira e Candau (2007), o contato com as outras pessoas e cultural nos pro-
voca, em que impera a categoria entre nós e os outros.
Junto ao reconhecimento da própria identidade cultural, outro ele-
mento a ser ressaltado relaciona-se às representações que construímos
dos outros, daqueles que consideramos diferentes. As relações entre
nós e os outros estão carregadas de dramaticidade e ambiguidade. Em
sociedades nas quais a consciência das diferenças se faz cada vez mais
forte, reveste-se de especial importância aprofundarmos questões
como: quem incluímos na categoria nós? Quem são os outros? Quais
as implicações dessas questões para o currículo? Como nossas repre-
sentações dos outros se refletem nos currículos? (MOREIRA; CAN-
DAU, 2007, p. 39).

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


227

Se o ‘choque’ existe entre as identidades, fixas ou mutantes, modernas ou pós-


-modernas, a questão que levantamos é a de que o currículo enquanto dispositivo
político e de poder, pode mediar as relações das diferenças. Os outros são sujeitos
que podem receber a marca da tolerância, em que nós permitimos que transitem
em nossos espaços, ainda que não queiramos, mas toleramos, ou ainda podemos
folclorizar ou exoticizar a presença desses outros, em que momentos específi-
cos do calendário escolar suscitamos debates sobre determinada marca cultura
(MOREIRA; CANDAU, 2007). A questão é a de que parece haver a resistência de
que essas identidades também possuem a mesma validade que todas as demais,
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

ou mesmo que suas marcas culturais estão no mesmo conjunto de cultura que
as nossas, por exemplo. A forma sugerida por Moreira e Candau (2007) para que
as relações de assimetria sejam minimizadas é a de que o currículo seja trans-
formado em um espaço de crítica cultural, em que a cultura de estudantes e de
fora dos muros dialogue.
Um dos caminhos é abrir as portas, na escola, a diferentes manifesta-
ções da cultura popular, além das que compõem a chamada cultura
erudita. Músicas populares, danças, filmes, programas de televisão, fes-
tas populares, anúncios, brincadeiras, jogos, peças de teatro, poemas,
revistas e romances precisam fazer-se presentes nas salas de aula. Da
mesma forma, levando-se em conta a importância de ampliar os hori-
zontes culturais dos(as) estudantes, bem como de promover interações
entre diferentes culturas, outras manifestações, mais associadas aos
grupos dominantes, precisam ser incluídas no currículo (MOREIRA;
CANDAU, 2007, p. 41).

Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) indicam de forma objetiva quais as


ações norteadoras para a educação das diversidades, sobretudo em seu caderno 10,
chamado Pluralidade Cultural, em que pontua uma proposta curricular voltada
para a cidadania e que “deve preocupar-se necessariamente com as diversidades
existentes na sociedade, uma das bases concretas em que se praticam os precei-
tos ético” (BRASIL, 1997, p. 129).
A noções de diversidade no contexto escolar estão dispostas em instrumen-
tos legais brasileiros, como os PCNs ou a Resolução CEB nº 2, de 7 de abril de
1998. A CEB nº 2, que trata das Diretrizes curriculares nacionais para o Ensino
Fundamental, já conceitua os princípios pedagógicos éticos, políticos e estéti-
cos que determinam o papel de uma prática cidadã como aquela que parte do

Corpos: Saberes que Atravessam as Fronteiras


228 UNIDADE V

diálogo de múltiplas identidades e culturas e que acabam por influenciar na cons-


tituição de identidades afirmativas.
III - As escolas deverão reconhecer que as aprendizagens são consti-
tuídas pela interação dos processos de conhecimento com os de lin-
guagem e os afetivos, em consequência das relações entre as distintas
identidades dos vários participantes do contexto escolarizado; as diver-
sas experiências de vida de alunos, professores e demais participantes
do ambiente escolar, expressas através de múltiplas formas de diálogo,
devem contribuir para a constituição de identidade afirmativas, persis-
tentes e capazes de protagonizar ações autônomas e solidárias em rela-
ção a conhecimentos e valores indispensáveis à vida cidadã (BRASIL,

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
1998, Art. 3, III).

As diretrizes para o ensino médio, por sua vez, dão sequência a essa noção de
identidades e culturas dentro do currículo, revelando que as expressões sociais
contribuem para o processo formativo de ser uma pessoa cidadã.
Art. 6º O currículo é conceituado como a proposta de ação educativa
constituída pela seleção de conhecimentos construídos pela socieda-
de, expressando-se por práticas escolares que se desdobram em torno
de conhecimentos relevantes e pertinentes, permeadas pelas relações
sociais, articulando vivências e saberes dos estudantes e contribuindo
para o desenvolvimento de suas identidades e condições cognitivas e
sócio-afetivas (BRASIL, 2013, p. 195).

As diversidades representam uma marca que merece respeito enquanto direito


básico das pessoas e o entrelaçamento com outros temas transversais será emble-
mático no tratamento de tais direitos individuais, “nas relações de gênero, no
campo da saúde, na questão ambiental, na temática do trabalho e consumo [...]”
(BRASIL, 2013, p.163). Aguiar (et.al., 2006) chama a atenção para o Programa
Nacional de Fortalecimento dos Conselhos Escolares e que objetiva subsidiar
“às secretarias estaduais e municipais de educação na realização de capacitações
de conselheiros escolares, seja por meio de cursos presenciais ou a distância” (p.
8-9), além de poder estimular os debates entre as pessoas que participam dos
conselhos. Em uma das recomendações é possível notar a indicação para a valo-
rização de suas culturas e historicidades, bem como a de gênero:

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


229

Nessa direção, a escola pode propiciar a organização de situações que


favoreçam ao estudante efetivar aprendizagens que o leve a valorizar a
história do seu bairro, dos líderes populares do seu lugar, da sua raça,
do seu gênero , corporeidade e classe social. Incentivar no corpo dis-
cente o desenvolvimento de posturas solidárias, críticas e criativas e
propiciar a organização de situações que induzam o estudante a lutar
pelos seus sonhos são tarefas de uma escola comprometida com a for-
mação cidadã (AGUIAR et. Al., 2006, p.45).

Escola, ainda que seja configurada como dispositivo de poder, precisa se abrir
às identidades todas. Receber as demandas sociais e reconhecer as diferenças
todas trazidas pelas identidades é educar para uma sociedade cidadã. Os diver-
Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.

sos currículos e teorias sobre corpos e/ou identidades estão em constante atrito,
algumas teorias na tentativa de criar uma hegemonia social, quando ela a cada
dia é mais provisória.

Corpos: Saberes que Atravessam as Fronteiras


230 UNIDADE V

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Saudações aluno(a), os novos conceitos e teorizações no cenário contemporâneo


no universo da filosofia mostram como outras áreas humanas foram investigadas,
como a linguagem e o corpo, por exemplo. Esses novos saberes atravessam os espa-
ços de conhecimento e modificam os paradigmas sociais também. Dentro dessa
estrutura, as compreensões sobre o período moderno e pós-moderno divergem,
o que leva também a se divergir a compreensão do que seja a noção de pessoa.
Os saberes revelam novas possibilidades ao se estudar os corpos e suas

Reprodução proibida. Art. 184 do Código Penal e Lei 9.610 de 19 de fevereiro de 1998.
performatividades, como o gênero por exemplo. Longe de fecharmos alguma
definição pontual, a ideia é a de provocar em que medida os corpos foram ana-
lisados, vigiados e punidos de forma a responder a um poder disciplinar. Esse
controle tenta, a todo momento, guiar nossos gestos, desejos, sexualidades, reli-
giosidades, etnias, o que se espraia na escola.
Os corpos não mais aparatos orgânicos e biológicos, mas culturais, tecno-
lógicos e híbridos, ganhando uma dimensão que antes parecia residir apenas
em obras ficcionais. Corpos considerados abjetos, estranhos, divergentes ou
anormais, estão presentes em nossa estrutura social, ainda que marginalizados
culturalmente. É dever de uma escola democrática considerar que, ao longo da
história, esse corpo está conectado a uma identidade e merece tanta atenção
como aos demais.
A escola, enquanto instituição de ensino, não deve ser omissa ao que se
segue na sociedade para além dos muros, como se fosse uma ilha isolada. Os
fenômenos existem e as ciências os investigam e o categorizam, mas para além
disso, tais fenômenos estão nos espaços escolares e merecem atenção pedagó-
gica, didática e humana.
A maneira para que haja esse diálogo é por intermédio do currículo, que
guiará o trabalho docente. Ele, ao se guiar pelos documentos legais, considera
tais diversidades e plasticidades no convívio escolar, o que pode minimizar as
violências e preconceitos.

FILOSOFIA, MODERNIDADES E CORPOS


231

1. Bruno Latour acredita que a Modernidade nunca deixou de ser projeto. Justifi-
que.
2. Sobre as relações da antropologia filosófica, leia as sentenças a seguir:
I. A base de discussões da antropologia filosófica é o ser.
II. Uma educação centrada da antropologia filosófica revela o anseio pela vol-
ta a um mundo mais natural e menos artificial.
III. A antropologia filosófica se ocupa mais com questões zoológicas do que
as culturais.
IV. A antropologia filosófica não foi gestada exclusivamente graças à filosofia
em si, mas ganhou corpo por causa das influências trazidas por outras ci-
ências que investigam a categoria humana, como a psicologia, sociologia
e biologia humana.
Assinale a alternativa correta:
a. Apenas I e II estão corretas.
b. Apenas II e III estão corretas.
c. Apenas I está correta.
d. Apenas I e IV estão corretas.
e. Nenhuma das alternativas está correta.
3. O corpo foi e é amplamente estudado, o que revela olhares diferentes segundo
a história e a filosofia ao decorrer do tempo. Frente a isso, leia as sentenças e
assinale Verdadeiro (V) ou Falso (F):
( ) O corpo, como defendem Butler e Haraway, é mais amplo do que as
relações puramente orgânicas.
( ) O corpo pode ser considerado como linguagem e, como tal, pode ser
performatizado.
( ) O corpo na Idade Média foi considerado como fonte da racionalidade e
de conhecimento.
( ) A noção de corpo não pode ser considerada fixa e rígida, mas plástica e
em constante mutação.
( ) O corpo não precisa ser punido, segundo Foucault, pois ele compreende
a disciplina de forma quase que orgânica.
4. A escola pode trabalhar com um currículo que agregue as discussões sobre cor-
poreidades sem ferir algum documento legal? Justifique.
232

5. ENADE/2011 - “A cibercultura pode ser vista como herdeira legítima (embora


distante) do projeto progressista dos filósofos do século XVII. De fato, ela valori-
za a participação das pessoas em comunidades de debate e argumentação. Na
linha reta das morais da igualdade, ela incentiva uma forma de reciprocidade
essencial nas relações humanas. Desenvolveu-se a partir de uma prática assí-
dua de trocas de informações e conhecimentos, coisa que os filósofos do Ilu-
minismo viam como principal motor do progresso. (...) A cibercultura não seria
pós-moderna, mas estaria inserida perfeitamente na continuidade dos ideais
revolucionários e republicanos de liberdade, igualdade e fraternidade. A dife-
rença é apenas que, na cibercultura, esses “valores” se encarnam em dispositi-
vos técnicos concretos. Na era das mídias eletrônicas, a igualdade se concretiza
na possibilidade de cada um transmitir a todos; a liberdade toma forma nos
softwares de codificação e no acesso a múltiplas comunidades virtuais, atra-
vessando fronteiras, enquanto a fraternidade, finalmente, se traduz em interco-
nexão mundial” (LEVY, P. Revolução virtual. Folha de S. Paulo. Caderno Mais, 16
ago. 1998, p.3 [adaptado]).
O desenvolvimento de redes de relacionamento por meio de computadores e a ex-
pansão da Internet abriram novas perspectivas para a cultura, a comunicação e a
educação. De acordo com as ideias do texto acima, a cibercultura:
a. representa uma modalidade de cultura pós-moderna de liberdade de co-
municação e ação.
b. constituiu negação dos valores progressistas defendidos pelos filósofos do
Iluminismo.
c. banalizou a ciência ao disseminar o conhecimento nas redes sociais.
d. valorizou o isolamento dos indivíduos pela produção de softwares de co-
dificação.
e. incorpora valores do Iluminismo ao favorecer o compartilhamento de in-
formações e conhecimentos.
233

“Os corpos de adolescentes e jovens, em sua pluralidade de tribos e gangues, desafiam,


espetacularmente, as divisões dicotômicas. A multiplicidade de modos de ser e de apa-
recer coloca sob suspeita as definições tradicionais de classe, gênero, sexualidade, et-
nia. Outras divisões se instauram, é verdade; fronteiras são rompidas enquanto outras
se constroem. Mas esses grupos juvenis (por vezes de forma mais expressiva do que
grupos de adultos ou de crianças) mostram claramente o quanto intervêm em seus cor-
pos para torná-los representativos de uma identidade própria. Membros de uma tribo
devem, como qualquer outro grupo cultural, compartilhar os mesmos códigos, falar a
mesma linguagem e, nesse caso, buscar a mesma aparência. A noção do “corpo como
um projeto”, utilizada por estudiosos como Chris Schilling (1997), cabe bem aqui. Ela ex-
pressa a operação deliberada, empreendida pelo próprio indiví­duo, de tornar evidente
e reconhecível, através da aparência física, uma determinada identidade - o que esses
garotos e garotas tanto se empenham em realizar. É possível concordar com Stuart Hall
(2000, p.104) quando ele diz que a identidade é um desses conceitos que a perspectiva
desconstrutiva colocou “sob rasura”; isto é, conforme ele explica, um conceito que talvez
“não (seja) mais ‘bom para pensar’ - em sua forma original, não reconstruída”. Mas Hall
segue dizendo que já que conceitos como este não foram “dialeticamente superados”
ou efetivamente substituídos, temos, de algum modo, de continuar pensando com eles,
“embora agora em suas formas destotalizadas e desconstruídas”. Parece-me que, no
terreno da teorização educacional, o conceito de identidade cultural, tomado no seu
caráter de multiplicidade, fluidez e instabilidade ainda pode ser útil. Não só porque são
escassos os estudos e as pesquisas que se valem dele, mas porque pode ajudar a analisar
uma dinâmica que freqüentemente é desprezada ou negada. Os conceitos de identida-
des sexual e de gênero - desde que libertados da dicotomia com que a princípio foram
empregados - parecem-me, ainda, instigantes e produtivos, talvez muito especialmente
porque, no âmbito da educação, possam contribuir decisivamente para fazer “aparecer”
os corpos aí sempre tão escondidos e suspeitos”.
Fonte: Louro (2000, p. 59-76).
MATERIAL COMPLEMENTAR

Problemas de gênero
Judith Butler
Editora: Civilização Brasileira
Sinopse: Judith Butler traz elementos históricos e filosóficos para se
analisar, de forma geral como os conceitos de gênero se estabelecem e
fazem marcar sua denominação aceita de modo equivocado, partindo
daquilo que se considera como ‘natural’. A proposta do livro chama a
atenção para o modo como as identidades foram demarcadas e que
não carregam uma essencialidade efetiva, mas talvez efêmera.

Eu, robô (2004)


Sinopse: em 2035 a existência de robôs é algo corriqueiro, sendo
usados constantemente como empregados e assistentes dos
humanos. Os robôs possuem um código de programação chamado
Lei dos Robóticos, que impede que façam mal a um ser humano.
Esta lei parece ter sido quebrada quando o Dr. Miles aparece morto
e o principal suspeito de ter cometido o crime é justamente o robô
Sonny. Caso Sonny realmente seja o culpado, a possibilidade de os
robôs terem encontrado um meio de quebrarem a Lei dos Robóticos
pode permitir que eles dominem o planeta, já que nada mais poderia
impedi-los de subjugar os seres humanos. Para investigar o caso, é
chamado o detetive Del Spooner (Will Smith) que, com a ajuda da
Dra. Susan Calvin (Bridget Monayhan), precisam desvendar o que realmente aconteceu.
Comentário: o filme, apesar de seguir uma estrutura diferente de “Blade runner, o caçador
de andróide” (1982), que é uma ótima indicação também, revela como pessoas ciborgues
convivem com andróides ou autômatos. É certo que o viés de Haraway é levado a uma extrema
potencialidade ficcional, mas nos provoca a pensar como nossas tecnologias corporais nos
migram para um continente cada vez mais híbrido.
235
REFERÊNCIAS

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de 1998. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. Disponível
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VARELA, B. L. O currículo e o desenvolvimento curricular: concepções, práxis e
tendências. Cabo Verde: Edições UNICV, 2013.
237
GABARITO

1. Para Latour o projeto moderno consistia em separar cada saber ou área de


conhecimento, de forma a uma não interferir na outra, no entanto, as novas
descobertas específicas provocam mudanças em toda a sociedade, mas não
de forma isolada. Desta forma, uma nova descoberta científica é, ao mesmo
tempo, cultural, política e social.
2. D.
3. V, V, F, V, F.
4. Pode. A escola, ao se guiar pelos PCNs, no Caderno 10, por exemplo, permite
as discussões dentro das disciplinas, garantindo uma legalidade no currículo e
plano docente. Para além disso, existem outros recursos, como a Lei 10639/03,
a Lei Maria da Penha e outros instrumentos que tratam de questões indígenas,
ciganas que podem ser discutidas sob o viés corporal. O conceito que precisa
ficar assegurado é o de que trabalhar com os conceitos dentro das disciplinas é
possível e que pode promover mudanças positivas para a sociedade.
5. E.
CONCLUSÃO

Prezado(a) aluno(a), esperamos que a proposta feita no início desta obra tenha se
concluído, suscitando conteúdo dinâmico e atual dentro do possível, tendo consci-
ência dos limites da totalidade da filosofia e de como ela e a história atravessam o
processo educacional.
A primeira Unidade resgata os pensamentos gregos e romanos clássicos, que deram
bases ao pensamento medieval e escolástico; notamos o quanto a reinterpretação
da filosofia grega se modifica no ocidente pelo ideário cristão, que ganha cada vez
mais terreno. O Iluminismo, por sua vez, traz o contraponto em relação ao conheci-
mento separando a razão da fé, o que deu base para a elaboração de saberes mais
modernos. A preocupação com o método guia as estruturas sistemáticas, que dão
a tonicidade desse período, além da preocupação em construir um pragmatismo e
noções de individualidade que crescem na dinâmica capitalista.
A segunda Unidade contemplou os grandes clássicos das ciências sociais. O positi-
vismo de Comte, o estruturalismo de Durkheim, o materialismo de Marx e a história
cultural de Weber.
A terceira e quarta Unidades revelam as influências europeias recebidas pelo Brasil
desde a chegada de jesuítas até o período do império. Essas influências perpassam
a dinâmica educacional e deixam uma marca que pode ser vista hoje nas estrutu-
ras escolares. No período getulista a educação esteve a serviço do Estado, sob uma
base tecnocrata e tecnicista, objetivando uma população qualificada para o proces-
so industrial e não emancipatório, mas não se pode negar a modernização nesse
período.
Na última Unidade há uma provocação tendo por premissa a filosofia antropológi-
ca, em que as noções de modernidade e pós-modernidade permeiam os corpos, o
que implica em se pensar outras pessoas que possuem corpos considerado ‘não-
-normais’ e que estão nos espaços educacionais. Ao se compreender uma educação
para todas as pessoas, se compreende que não pode haver distinção ou apagamen-
to desses sujeitos.
Este trabalho, que chega agora à sua conclusão, será sempre um ponto de partida
para uma nova revisão.
Desejamos a você muito sucesso!

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