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Everaldo Vasconcelos(org)

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Crestomatia dramática

CRESTOMATIA

DRAMÁTICA

Dos gregos à commedia dell’Arte

1º edição

João Pessoa

Edições Eva

2011

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Everaldo Vasconcelos(org)

Capa e revisão: Eva

Este livro foi impresso por serviço de reprografia, a partir


de arquivo digital, em formato 14X21, em 2011.

Contato: everaldovasconcelos@hotmail.com

Vasconcelos, Everaldo( org)

Crestomatia Dramática, dos gregos à commedia dell’Arte . João


Pessoa, PB: Edições Eva, 2011

p.168

1. Crestomatia dramática. I. Título

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Crestomatia dramática

AGRADECIMENTOS

Aos meus alunos e alunas


da disciplina História do Teatro I

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Everaldo Vasconcelos(org)

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Crestomatia dramática

INDICE

1 – Apresentação, 9

2 – Os Persas( Ésquilo), 14

3 – Agamenon I (Ésquilo), 19

4 – Agamenon II (Ésquilo), 21

5 – Agamenon III (Ésquilo), 24

6 – Prometeu Acorrentado (Ésquilo), 27

7 – Édipo- Rei (I) ( Sófocles), 36

8 - Édipo- Rei (II) ( Sófocles), 39

9 - Édipo- Rei (III) ( Sófocles), 48

10 – Antigona ( Sófocles), 53

11 – Electra ( Sófocles), 61

12 – As Bacantes I (Eurípedes), 69

13 – As Bacantes II (Eurípedes), 74

14 – Medéia I (Eurípedes), 83

15 – Medéia II (Eurípedes), 92

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16 – Lisistrata (Aristófanes), 95

17 – O Misantropo I ( Menandro), 110

18 - O Misantropo II ( Menandro), 113

19 – Aulularia (Plauto), 122

20 – O Eunuco I (Terêncio), 128

21 - O Eunuco II (Terêncio), 131

22 – Advogado Pathelin (Anônimo), 134

23 – O doutor desesperado (Flamínio Scala), 151

Notas, 165

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Crestomatia dramática

1 Apresentação

O jardim do teatro está repleto de referencias a grandes


autores cujos nomes são citados , mas cujas obras ficam
apenas na menção. Nos estudos de história do teatro faz-
se necessário, fazer com que estes autores surjam e
apresentem suas obras. Partindo desta idéia é que
elaboramos esta Crestomatia, uma antologia de textos
dramáticos para exemplificar as aulas de história, mas que
pode ser usada também em outras disciplinas como mote
para montagem de pequenas cenas.

Os autores foram escolhidos de acordo com o programa


da discilina de história do Teatro I do curso de Teatro da
UFPB.

O título Crestomatia é uma homenagem nossa ao


espetáculo com texto e direção do ator, diretor e ex-
professor da UFPB Ednaldo do Egypto que foi
apresentado no ano de 1998.

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Fazer uma antologia de textos não é uma tarefa muito


fácil, pois as omissões evidentes ficam à vista. No entanto
é forçoso fazer esta escolha pois não temos como
apresentar todos os textos e nem sequer um texto
completo por autor. Há o risco de alguém se esquecer de
ir fazer a leitura completa, mas a intenção é que isto sirva
de aperitivo para os textos integrais.

Algumas precauções serão necessárias ao lidarmos com


este universo dramático a partir de fragmentos. Primeiro
que todos devem saber que isto não substituirá a
necessária leitura da obra completa, quando existir a
tradução da mesma acessível a todos, mas hoje em tempos
de internet e do Google tradutor, é possível acessar um
grande volume de obras. É um dever do estudante de
teatro se aproximar das fontes primárias da dramaturgia.

Aqui usaremos traduções que estão disponíveis na


internet. Faremos sempre referencia ao link das obras
originais e suas traduções. Nada substituirá, no entanto, a
obtenção dos livros. O ideal é trabalhar com livros de
papel que possam ser anotados e comentados com
anotações à margem. Para isso os adoradores de livros
devem comprar dois volumes, um para objeto de culto e
outro para ler e estudar fazendo anotações no próprio
texto.

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Crestomatia dramática

A omissão de muitos outros autores foi inevitável. Os


autores gregos são os pilares de tudo que nos propomos,
então terão um espaço privilegiado com a apresentação de
mais cenas.

Alguns autores têm apenas a citação de uma fala de uma


obra, isto não significa que a sua obra é menor em relação
aos outros. Apenas precisamos conviver com o pequeno
espaço que dispomos. Mas cada autor possui riquezas que
somente o conhecimento completo de suas obras revelará.
É também um mistério que a obra de muitos permaneça
apenas restrita ao estudo de seus compatriotas ou dos
estudiosos de teatro.

A dramaturgia é cheia de enigmas, entre estes, aquilo que


faz com que um texto sobreviva ao tempo. Um breve
exame da dramaturgia produzida ao nosso redor
apresenta esta charada, vemos textos de grande beleza e
perfeição formal, que vão sendo esquecidos conforme
passam os anos, enquanto que simultaneamente vemos
outros que vão sobrevivendo e resistindo. Não há um
modo para explicar a razão disto: por que algumas obras
se tornam um clássico de um lugar, de um país, de um
continente, ou obras universais?

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Aqui estaremos lidando com as obras que atingiram este


patamar são obras universais, pertencem a todo o espírito
humano e tem sido montadas em todos os lugares e
evocadas por todos os estudiosos de teatro.

Mais uma palavra sobre o modo de usar esta crestomatia.


Como em todo livro deste gênero, os textos podem ser
acessados de acordo com o interesse de cada situação. As
cenas foram escolhidas para serem trabalhadas em sala de
aula. O ideal é que se compreenda o enredo de cada cena e
então se faça jogos de improvisação com cada uma delas
para apreender a relação das personagens, o ambiente
onde estão e qual a situação que estão vivendo.

Algumas cenas são monólogos, pois são um recorte da


cena com a fala de apenas uma personagem. Estes
monólogos tem finalidade didática para os propósitos
deste livro, mas fique à vontade para retomar o texto em
sua forma original.

Quero sugerir fortemente que os alunos reescrevam as


cenas com as suas próprias palavras produzindo
pequenas adaptações dos textos. Isto ajudará a
compreender a importância e a força desta dramaturgia e
a sua capacidade para iluminar os nossos dias. É também
através deste exercício que se pode ir dando os primeiros
passos na escrita dramatúrgica. O nosso século necessitará

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Crestomatia dramática

de dramaturgos que o equacionem, que tragam luz para


as angustias humanas e a nossa estupefação diante da
grandiosidade do que podemos construir para o bem e
para o mal.

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2 OS PERSAS

AUTOR - Ésquilo

PERSONAGENS – Xerxes e o Coro.

DESCRIÇÃO - Trecho final quando o coro relata que os


persas foram vencidos.

TEXTO – Adaptação da tradução de Maria José de


Carvalho.

Coro

Grandes deuses. Que sólido e feliz governo tínhamos,


enquanto um augusto soberano, irrepreensível, um rei
igual aos deuses, o invencível Dario, provendo sabiamente
a tudo, reinava neste império. A glória acompanhava
nossos exércitos. As leis tudo regiam nas cidades. Na
guerra, nenhum desastre, nenhum revés; feliz regresso
devolvia aos lares nossos soldados triunfantes. Quantas
cidades conquistou Dario sem ter que passar o rio Halis
ou sair do palácio sequer. Assim se lhe submeteram as

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Crestomatia dramática

cidades marítimas, vizinha dos campos da Trácia; e


aquelas que, longe do mar, no âmago das terras, em vão
ergueram seus baluartes. (...) As opulentas e populares
cidades dos gregos da Jônia foram também por sua
prudência dominadas. Suas hostes e a de seus numerosos
aliados formavam invencível força. Hoje, sem dúvida, por
influência dos caprichosos deuses, sofremos uma
subversão total. Vencidos em terra e mar, nós é que
sucumbimos.

(Entra Xerxes com séquito.)

Xerxes

Ai de mim. Desventurado. Que imprevisto, funesto


destino o meu. Qual cruelmente insulta a sorte a raça dos
persas. O que resta de mim? Dobram-se me os joelhos à
vista desses respeitáveis anciãos da minha cidade. Ó Zeus,
porque não me sepultaste junto com meus soldados na
noite da morte?

Coro

Ó rei. Que é de teu soberbo exército e da honra que regia o


império? Onde estão nossos bravos soldados? Todos
destruídos por um deus. A pátria reclama, chorando, a
juventude que nutriu. Ai de nós, Xerxes levou a
destruição, com ela sobrecarregando as torvas mansões do
Hades. A flor dos guerreiros da Ásia, nossos hábeis
arqueiros, milhares e milhares de homens, tudo pereceu.
Quão tristemente, ó rei, teve a Ásia que curvar a cerviz.

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Xerxes

Ai de mim. Que bela juventude.

Coro

Que terrível golpe ó rei. A Ásia inteira com ele se abateu.

Xerxes

Fui eu, deplorável, malfadado príncipe, ai de mim, fui eu


o flagelo de meus súditos e minha ora desolada pátria.

Coro

As saudações que em teu regresso ouvirás serão gritos


funestos, horrendo gemidos e o tom plangente de
lúgubres cantos.

Xerxes

Dai curso aos gritos e aos prantos. Adverso destino


desabou sobre mim.

Coro

Apesar do respeito, a ti erguerei meu gritos. A terra e o


mar conspiraram contra esta cidade que lamenta seus
filhos. Não sufocarei gritos nem lágrimas. O deus dos
jônios protegem os seus navios, arrebatando-nos tudo.
Cobriu de nossos destroços uma triste, funesta praia.

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Crestomatia dramática

Xerxes

Chora teu infortúnio.

Coro

Onde estão teus fiéis amigos?

Xerxes

Todos pereceram. Não foram transplantados em carros


cobertos de pendões e acompanhados por cortejo militar;
mas lançados a uma morte sem honra, como vis lacaios.

Coro

Ai de mim ó persas. Ó dor.

Xerxes

Possam nossos lamentos impregnar toda a cidade.

Coro

Choremos sim, choremos, que a Pérsia o testemunhe.

Xerxes

Avançai lentamente; exalai gritos de dor.

Coro

Ai, ai, solo da Pérsia que pareces gemer a nossos passos.

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Xerxes

Ai, por todos os que tombaram, por todos os navios


perdidos.

Coro

Com tristes lamentos te acompanharei.

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Crestomatia dramática

3 AGAMENON I

AUTOR - Ésquilo

PERSONAGENS - Sentinela

DESCRIÇÃO - Esse monólogo é o primeiro da peça. O


vigia está aguardando o sinal de que vai indicar o fim da
guerra e da queda de Tróia, que é "o brilho da chama de
sinal". Isto significa que Agamemnon, rei de Argos, será
finalmente volta para casa .

TEXTO – Esta tradução é de Jorge Teles, que a fez para


estudantes em 1973, visando uma futura leitura
dramática, partindo de um texto em francês de Leconte de
Lisle (1818-1894). (ver nota 3)

SENTINELA

Eu bem gostaria que os deuses terminassem minhas


penas, vigiar desde tanto tempo, como um cão, a ponto de
conhecer com exatidão a rota das estrelas. E eis-me de
novo vigilante, esperando o sinal de fogo que de Tróia

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deverá trazer a notícia da vitória; assim exigiu o coração


da rainha Clitemnestra. E aqui, querendo cantar e assobiar
para espantar o sono, acabo falando sozinho, lamentando
a sorte dessa casa, o palácio de Agamenon, onde não
existe mais a ordem antiga. (Vê a luz distante).

Salve, archote, que faz nascer o dia dentro da noite e


Argos se encher de coros para festejar o sucesso!

Rainha! Rainha! Acordem todos, Tróia foi destruída, o


sinal de fogo está proclamando de longe, Tróia caiu e
Agamenon está de volta! Acordem todos! Quero ser um
dos primeiros a saudá-lo! Já nem sei o que digo. Se o
palácio pudesse falar, ele mesmo gritaria a novidade.
Acordem! Acordem! Tróia caiu e o rei está de volta!

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Crestomatia dramática

4 AGAMENON II

AUTOR - Ésquilo

PERSONAGENS - Clitemnestra

DESCRIÇÃO - Nesta cena o rei Agamenon acaba de


chegar a Argos em seu carro com sua amante Cassandra.
Depois o Coro o elogia pela vitória na guerra,
Clitemnestra cumprimenta-o e acolhe-o em casa. Neste
monólogo, ela declara seu amor por ele e descreve a dor
que sofreu durante os últimos dez anos, enquanto ela
estava esperando o marido voltar da guerra.

TEXTO – nota 3,

CLITEMNESTRA

Honrados cidadãos de nossa velha Argos, não quero ter


vergonha de falar de meus sentimentos diante de todos. A
ocasião impede que eu seja tímida. Não estou repetindo
alguma lição que tenha decorado; mas preciso falar de
meus sofrimentos durante a ausência de meu marido.

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Para uma mulher, bastaria a separação, para amargurar


todo o período de ausência. Mas não cessavam de chegar
aquelas terríveis mensagens que recebíamos, todas
anunciando as misérias que sofria o rei. Se este homem
tivesse sido ferido tantas vezes, de quantas tive notícias,
ou se tivesse, de fato, morrido tantas vezes quantas me
fizeram sabedora... ele haveria de se vangloriar por
possuir o dom de muitas vidas.

Quantas vezes, por tais rumores, desejei a morte.

É por tudo isto que não está em casa o nosso filho


Orestes, prova da minha fidelidade. Temendo uma revolta
do Conselho, desiludido pela demora de sua volta,
enviei-o à Fócida, para que não corresse o risco de ser
morto pelos nossos homens cheios de ira. Minhas lágrimas
secaram. Na obstinada vigilância de teus sinais de fogo
fugiram a luz de meus olhos.

E agora, depois de tanto sofrer, posso enfim te chamar


de cão fiel, coluna mestra de minha casa, terra que surge
de repente ao marinheiro sem esperança.

Minha alegria vem expulsar o muito que sofri.

Agora, entra no palácio, mas sem pisar no chão, meu


rei. Estes pés que destruiram Tróia... por que demoram,
escravas, a cobrir o chão como já ordenei?

Que se faça para teus pés um caminho púrpura, por


onde a Justiça te conduzirá à inesperada porta de tua nova
morada!

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Crestomatia dramática

Depois, com o auxílio dos deuses, um pensamento que


nem o sono consegue vencer, um pensamento decidido
cumprirá a vontade do Destino!

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5 AGAMENON III

AUTOR - Ésquilo

PERSONAGENS – Clitemnestra, coro

DESCRIÇÃO - Clitemnestra matou Agamenon e despejou


seu corpo ao lado do altar. O Coro critica suas ações.

TEXTO – nota 3,

CLITEMNESTRA

Vim aqui, diante de vocês, para desmentir as palavras


amáveis com que eu recebi o rei, para que ele não
desconfiasse do que eu estava tramando. E vim avisar que
matei Agamenon.

Há quanto tempo eu esperava por este momento!


Demorou mas meus desejos se cumpriram. Finalmente dei
cabo dele. Estava de tal modo feita a cilada, que ele não
pode fugir. A rede estava armada sobre a banheira onde
tinha preparado seu último banho. Ele arfou como um
peixe mas dois golpes e seus membros tombaram. Vibrei a

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Crestomatia dramática

espada pela terceira vez, oferecendo este último golpe a


Zeus, guardião dos mortos. Foi uma só golfada de sangue
quente e negro.

Eis tudo o que fiz. Gostem ou não, eis o que apresento


como minha maior vitória. Pudesse eu fazer libações sobre
o seu corpo e seria um ato mais que justo: foi a taça de
crimes que ele encheu nesse palácio e agora eu o obriguei
a bebê-la.

CORO: Esta linguagem está cheia de insolência.


Envaidecer-se assim, por ter assassinado o marido!

CLITEMNESTRA: Não me interessa o que vocês pensam:


louvor ou censura, para mim tanto faz. Ali está
Agamenon, o rei, derrubado por esta mão. Eis o que eu
chamo de um excelente trabalho.

CORO: Que ervas envenenadas você comeu, infeliz, para


perpetuar tal crime e pretender se esquivar às maldições
de um povo. Você vai ser banida. Cairá sobre a tua cabeça
o ódio do povo de Argos.

CLITEMNESTRA: Hoje querem me condenar, clamando


contra mim o ódio do povo! E o que foi que fizeram,

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quando ele escolheu, como quem tira a melhor ovelha do


rebanho, quando ele escolheu a própria filha para sangrá-
la, a minha Ifigênia, para que começassem a soprar os
ventos da Trácia? Quem levantou a voz e decretou seu
exílio?

Mas o que interessa tudo isto? Podem me ameaçar como


quiserem! Estou pronta para revidar. Se vocês vencerem,
serei dominada. Mas se os deuses me protegerem, vocês
aprenderão uma lição, ainda que tão tarde.

CORO: Você está louca! Bêbada de fúria, acreditando ser


justo o sangue que te mancha a veste. Todos te
abandonarão e os crimes serão resgatados, um a um.

CLITEMNESTRA: Pois querem saber o que penso? Em


nome da minha filha assassinada, em nome da Fatalidade,
em nome das Fúrias, a quem sacrifiquei este rei, não terei
medo de ninguém, enquanto estiver Egisto à sombra de
minha lareira. Ele é o escudo que me guardará.

Mandei pra debaixo da terra o homem que me ofendeu,


o rei de Argos, o herói excelso de Tróia.

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Crestomatia dramática

6 PROMETEU ACORRENTADO

AUTOR - Ésquilo

PERSONAGENS – Kratos, filho de Palas, personificação


do poder de Zeus; Bia, irmã de Kratos, personifica a
violência (personagem sem falas), Hefesto, deus do fogo,
dos metais e da metalurgia; Prometeu.

DESCRIÇÃO – Cena inicial na qual Prometeu é


acorrentado nos rochedos da Cítia.

TEXTO – Adaptada da tradução de J B de Melo e Souza

(ver nota 4)

KRATOS

Eis-nos chegados aos confins da terra, à longínqua região


da Cítia, solitária e inacessível! Cumpre-te agora, ó
Hefesto, pensar nas ordens que recebeste de teu pai, e

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acorrentar este malfeitor, com indestrutíveis cadeias de


aço, a estas rochas escarpadas. Ele roubou o fogo, — teu
atributo, precioso fator das criações do gênio, para
transmiti-lo aos mortais! Terá, pois, que expiar este crime
perante os deuses, para que aprenda a respeitar a
potestade de Zeus, e a renunciar a seu amor pela
Humanidade.

HEFESTO

Para vós, Kratos e Bia, — a ordem de Zeus está cumprida;


nada mais resta a fazer. Quanto a mim, sinto-me sem
coragem para acorrentar pela força a um deus, meu
parente, sobre este rochedo, exposto à fúria das
tempestades! Vejo-me, no entanto, coagido a fazê-lo, pois
seria perigoso esquecer as ordens de meu pai. Preclaro
filho da sábia Têmis, é bem contra minha vontade, e a tua,
que te vou prender por indissolúveis cadeias, a este
inóspito rochedo, de onde não ouvirás a voz, nem verás o
semblante de um único mortal; e onde, queimado
lentamente pelos raios ofuscantes do sol, terás adusta a
epiderme; onde a noite estrelada tardará a poupar-te à luz
intensa, assim como o sol tardará em secar o orvalho
matinal. Oprimir-te-á o peso de uma dor perene, pois
ainda não nasceu, sequer, o teu libertador. Eis a
conseqüência de tua dedicação pelos humanos; como
deus, que tu és, fizeste aos mortais uma dádiva tal, que

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Crestomatia dramática

ultrapassou todas as prerrogativas possíveis. Como


castigo por essa temeridade, ficarás sobre esta rocha
terrífica, em pé, sem sono e sem repouso; debalde farás
ouvir suspiros e clamores dolorosos; o coração de Zeus é
inexorável... Um novo senhor é sempre severo!...

KRATOS

E então? Por que tardas ainda? De que vale esta vã


piedade? Pois quê?... por acaso não detestas a uma
divindade inimiga dos demais deuses, visto que
transmitiu aos homens as honras que eram teu privilégio?

HEFESTO

É que... os laços do sangue, e os da amizade, são


poderosos!

KRATOS

Sem dúvida! Mas como desobedecer às ordens de teu pai?


Não o temes, por acaso?

HEFESTO

Tu serás sempre, ó Kratos,personificação do poder de


Zeus, destituído de piedade, e capaz de tudo!

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KRATOS

Certamente! De que serve lamentar a sorte deste


criminoso, uma vez que não há remédio possível para seu
mal? Não te canses, pois, na busca de um socorro inútil.

HEFESTO

Oh!... Como abomino o ofício a que me consagrei!

KRATOS

Por quê? Esse ofício não é a causa, nem a origem, dos


males que aqui vemos presentes.

HEFESTO

Quem me dera um companheiro, que comigo partilhasse


deste sacrifício!...

KRATOS

Muito podem os deuses, na verdade, porém dependem de


um poder supremo; só Zeus é onipotente.

HEFESTO

Realmente assim é... Tudo o que vemos o prova; nada


tenho a objetar.

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Crestomatia dramática

KRATOS

Nesse caso, por que não cumpres tua missão, a fim de que
teu pai não te veja negligente?

HEFESTO

Os elos para os braços, ei-los aqui: podes vê-los.

KRATOS

Vamos! Passa-lhos pelas mãos!... agora, prende-os ao


rochedo por fortes marretadas.

HEFESTO

Já o fiz, e meu trabalho não será em vão.

KRATOS

Bate ainda mais! Aperta! Não deixes afrouxar a corrente,


pois ele é habilidoso, e capaz de se libertar de nós
inextricáveis!

HEFESTO

Este braço em caso algum se poderá desprender...

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KRATOS

Pois acorrenta agora o outro, de tal sorte que ele sinta,


embora engenhoso, que é inferior a Zeus.

HEFESTO

Eis aí! Como o fiz, ninguém poderá censurar, exceto


Prometeu.

KRATOS

Prende agora com toda a força este gancho de aço,


atravessando-lhe o peito.

HEFESTO

Ai de ti, Prometeu! Como me penaliza tua desgraça!

KRATOS

Eis-te de novo hesitante, com pena dos inimigos de Zeus!


Cuidado, Hefesto: que também um dia virás a sofrer!

HEFESTO

Vê! Oue horrendo espetáculo!

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Crestomatia dramática

KRATOS

Vejo apenas um audacioso convenientemente castigado.


Vamos! Passa estas correntes em torno de seus quadris!

HEFESTO

Sei o que me cumpre fazer! Tuas ordens são supérfluas!

KRATOS

Não importa! Minhas ordens e meus gritos não deixarão


de te apressar! Desce um pouco agora; prende-lhe as
pernas por fortes elos.

HEFESTO

Já o fiz, sem grande dificuldade.

KRATOS

Prende agora os pés por meio destes cravos. Quem vai


julgar teu trabalho é severo; não o esqueças!

HEFESTO

Como tuas palavras correspondem bem a teu interior!

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KRATOS

Apieda-te de quem quiseres, mas não censures minha


audácia, nem a dureza de meu coração!

HEFESTO

Retiremo-nos! Seus membros já estão bem acorrentados!

KRATOS

Insulta agora daqui os deuses, ó Prometeu! Rouba-lhes as


honras divinas, para dá-las a seres que não viverão mais
que um dia! Poderão, por acaso, os mortais, minorar teu
suplício? Em vão te deram os deuses o nome de
Prometeu... Tu, sim! — precisas de um Prometeu que te
liberte!

SAEM KRATOS, BIA, E HEFESTO

PROMETEU

Ó divino éter! ó sopro alado dos ventos! Regatos e rios.


ondas inumeráveis, que agitais a superfície dos mares! Ó
Terra, mãe de todos os viventes, e tu, ó Sol, cujos olhares
aquecem a natureza! Eu vos invoco!... Vede que
sofrimento recebe um deus dos outros deuses! Vede a que
suplício ficarei sujeito durante milhares de anos! E que
hediondas cadeias o novo senhor dos imortais mandou

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Crestomatia dramática

forjar para mim! Oh! eis-me a gemer pelos males


presentes, e pelos males futuros! Quando virá o termo de
meu suplício? Mas... que digo eu? O futuro não tem
segredos para mim; nenhuma desgraça imprevista me
pode acontecer. A sorte que me coube em partilha, é
preciso que eu a suporte com resignação. Não sei eu, por
acaso, que é inútil lutar contra a força da fatalidade? Não
me posso calar, nem protestar contra a sorte que me
esmaga! Ai de mim! Os benefícios que fiz aos mortais
atraíram-me este rigor. Apoderei-me do fogo, em sua
fonte primitiva; ocultei-o no cabo de uma férula, e ele
tornou-se para os homens a fonte de todas as artes e um
recurso fecundo... Eis o crime para cuja expiação fui
acorrentado a este penedo, onde estou exposto a todas as
injúrias! Oh! Ai de mim! Que rumor será este? Que
estranho perfume vem para mim? Será de origem divina
ou mortal? Ou de uma e de outra ao mesmo tempo?
Quem quer que seja, virá apenas contemplar meu
sofrimento, ou que outro motivo o traz? Vede, eis aqui,
coberto de correntes, um deus desgraçado, incurso na
cólera de Zeus, odioso a todas as divindades que
freqüentam seu palácio, tudo isso porque amei os
mortais... Mas... que ouço agora? Será um rumor de aves
que se aproximam? O ar se agita a um bater de asas... Seja
o que for, tudo me apavora!

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7 ÉDIPO-REI I

AUTOR - Sófocles

PERSONAGENS – Édipo, Sacerdote

DESCRIÇÃO – Édipo se apresenta ao povo para saber das


suas queixas.

TEXTO – (ver nota 5)

ÉDIPO

Ó meus filhos, gente nova desta velha cidade de Cadmo,


por que vindes assim, junto a estes altares, tendo nas mãos
os ramos dos suplicantes? Sente-se, por toda a cidade, o
incenso dos sacrifícios; ouvem-se gemidos, e cânticos
fúnebres. Não quis que outros me informassem da causa
de vosso desgosto; eu próprio aqui venho, eu, o rei Édipo,
a quem todos vós conheceis. Responde tu, ó velho; por tua
idade veneranda convém que fales em nome do povo.
Dize-me, pois, que motivo aqui vos trouxe? Que terror, ou

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Crestomatia dramática

que desejo vos reuniu? Careceis de amparo? Quero


prestar-vos todo o meu socorro, pois eu seria insensível à
dor, se não me condoesse de vossa angústia.

O SACERDOTE

Édipo, tu que reinas em minha pátria, bem vês esta


multidão prosternada diante dos altares de teu palácio;
aqui há gente de toda a condição: crianças que mal podem
caminhar, jovens na força da vida, e velhos curvados pela
idade, como eu, sacerdote de Júpiter. E todo o restante do
povo, conduzindo ramos de oliveira, se espalha pelas
praças públicas, diante dos templos de Minerva, em torno
das cinzas proféticas de Apolo Ismeno! Tu bem vês que
Tebas se debate numa crise de calamidades, e que nem
sequer pode erguer a cabeça do abismo de sangue em que
se submergiu; ela perece nos germens fecundos da terra,
nos rebanhos que definham nos pastos, nos insucessos das
mulheres cujos filhos não sobrevivem ao parto. Brandindo
seu archote, o deus maléfico da peste devasta a cidade e
dizima a raça de Cadmo; e o sombrio Hades se enche corri
os nossos gemidos e gritos de dor. Certamente, nós não te
igualamos aos deuses imortais; mas, todos nós, eu e estes
jovens, que nos acercamos de teu lar, vemos em ti o
primeiro dos homens, quando a desgraça nos abala a vida,
ou quando se faz preciso obter o apoio da divindade.
Porque tu livraste a cidade de Cadmo do tributo que nós

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pagávamos à cruel Esfinge; sem que tivesses recebido de


nós qualquer aviso, mas com o auxilio de algum deus,
salvaste nossas vidas. Hoje, de novo aqui estamos, Édipo;
a ti, cujas virtudes admiramos, nós vimos suplicar que,
valendo-te dos conselhos humanos, ou do patrocínio dos
deuses, dês remédios aos nossos males; certamente os que
possuem mais longa experiência é que podem dar os
conselhos mais eficazes! Édipo! Tu, que és o mais sábio
dos homens, reanima esta infeliz cidade, e confirma tua
glória! Esta nação, grata pelo serviço que já lhe prestaste,
considera-te seu salvador; que teu reinado não nos faça
pensar que só fomos salvos por ti, para recair no
infortúnio, novamente! Salva de novo a cidade; restitui-
nos a tranqüilidade, ó Édipo! Se o concurso dos deuses te
valeu, outrora, para nos redimir do perigo, mostra, pela
segunda vez, que és o mesmo! Visto que desejas continuar
no trono, bem melhor será que reines sobre homens, do
que numa terra deserta. De que vale uma cidade, de que
serve um navio, se no seu interior não existe uma só
criatura humana?

38
Crestomatia dramática

8 ÉDIPO-REI II

AUTOR - Sófocles

PERSONAGENS – Édipo, Tirésias

DESCRIÇÃO – Tirésias revela a Édipo o assassino de Laio.

TEXTO – (ver nota 5)

EDIPO

Ó Tirésias, que conheceis todas as coisas, tudo o que se


possa averiguar, e o que deve permanecer sob mistério; os
signos do céu e os da terra... Embora não vejas, tu sabes
do mal que a cidade sofre; para defendê-la, para salvá-la,
só a ti podemos recorrer, ó Rei!" Apolo, conforme deves
ter sabido por meus emissários, declarou a nossos
mensageiros que só nos libertaremos do flagelo que nos
maltrata se os assassinos de Laios forem descobertos nesta
cidade, e mortos ou desterrados. Por tua vez, Tirésias, não
nos recuses as revelações oraculares dos pássaros, nem
quaisquer outros recursos de tua arte divinatória; salva a

39
Everaldo Vasconcelos(org)

cidade, salva a ti próprio, a mim, e a todos, eliminando


esse estigma que provém do homicídio. De ti nós
dependemos agora! Ser útil, quando para isso temos os
meios e poderes, ë a mais grata das tarefas!

TIRÉSIAS

Oh! Terrível coisa é a ciência, quando o saber se toma


inútil! Eu bem assim pensava; mas creio que o esqueci,
pois do contrário não teria consentido em vir até aqui.

ÉDIPO

Que tens tu, Tirésias, que estás tão desalentado?

TIRÉSIAS

Ordena que eu seja reconduzido a minha casa, ó rei. Se me


atenderes, melhor será para ti, e para mim.

ÉDIPO

Tais palavras, de tua parte, não são razoáveis, nem


amistosas para com a cidade que te mantém, visto que lhe
recusas a revelação que te solicita.

TIRÉSIAS

Para teu benefício, eu bem sei, teu desejo é inoportuno.


Logo, a fim de não agir imprudentemente...

40
Crestomatia dramática

ÉDIPO

Pelos deuses! Visto que sabes, não nos ocultes a verdade!


Todos nós, todos nós, de joelhos, te rogamos!

TIRÉSIAS

Vós delirais, sem dúvida! Eu causaria a minha desgraça, e


a tua!

ÉDIPO

Que dizes?!... Conhecendo a verdade, não falarás? Por


acaso tens o intuito de nos trair, causando a perda da
cidade?

TIRÉSIAS

Jamais causarei tamanha dor a ti, nem a mim! Por que me


interrogas em vão? De mim nada ouvirás!

ÉDIPO

Pois quê! Ó tu, o mais celerado de todos os homens! Tu


irritarias um coração de pedra! E continuarás assim,
inflexível e inabalável?

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Everaldo Vasconcelos(org)

TIRÉSIAS

Censuras em mim a cólera que estou excitando, porque


ignoras ainda a que eu excitaria em outros! Ignoras... e, no
entanto, me injurias!

ÉDIPO

Quem não se irritaria, com efeito, ouvindo tais palavras,


que provam o quanto desprezas esta cidade!

TIRESIAS

O que tem de acontecer, acontecerá, embora eu guarde


silêncio!...

ÉDIPO

Visto que as coisas futuras fatalmente virão, tu bem podes


predizê-las!

TIRÉSIAS

Nada mais direi! Deixa-te levar, se quiseres, pela cólera


mais violenta!

ÉDIPO

Pois bem! Mesmo irritado, como estou, nada ocultarei do


que penso! Sabe, pois, que, em minha opinião, tu foste
cúmplice no crime, talvez tenhas sido o mandante,

42
Crestomatia dramática

embora não o tendo cometido por tuas mãos. Se na fosse


cego, a ti, somente, eu acusaria como autor do crime.

TIRÉSIAS

Será verdade? Pois EU! EU é que te ordeno que obedeças


ao decreto que tu mesmo baixaste, e que, a partir deste
momento, não dirijas a palavra a nenhum destes homens,
nem a mim, porque o ímpio que está profanando a cidade
ÉS TU!

ÉDIPO

Quê? Tu te atreves, com essa impudência, a articular


semelhante acusação, e pensas, porventura, que sairás
daqui impune?

TIRÉSIAS

O que está dito, está! Eu conheço a verdade poderosa!

ÉDIPO

Quem te disse isso? Com certeza não descobriste por meio


de artifícios!

TIRESIAS

Tu mesmo! Tu me forçaste a falar, bem a meu pesar!

ÉDIPO

43
Everaldo Vasconcelos(org)

Mas, que dizes, afinal? Não te compreendo bem! Vamos!


Repete tua acusação!

TIRESIAS

Afirmo QUE ÉS TU o assassino que procuras!

ÉDIPO

Oh! Não repetirás impunemente tão ultrajante acusação!

TIRÉSIAS

Será preciso que eu continue a falar, provocando ainda


mais tua cólera?

ÉDIPO

Fala o quanto quiseres... O que dizes, de nada valerá.

TIRÉSIAS

Pois eu asseguro que te uniste, criminosamente, sem o


saber, àqueles que te são mais caros; e que não sabes ainda
a que desgraça te lançaste!

ÉDIPO

Crês tu que assim continuarás a falar, sem conseqüências?

ÉDIPO

44
Crestomatia dramática

Crês tu que assim continuarás a falar, sem conseqüências?

TIRÉSIAS

Certamente! Se é que a verdade tenha alguma força!

ÉDIPO

Sim! Ela a tem; mas não em teu proveito! Em tua boca, ela
já se mostra fraca... Teus ouvidos e tua consciência estão
fechados, como teus olhos.

TIRÉSIAS

E és tu, ó rei infeliz! - que me fazes agora esta censura...


mas um dia virá, muito breve, em que todos, sem exceção,
pior vitupério hão de formular contra ti!

ÉDIPO

Tu vives na treva... Não poderias nunca ferir a mim, ou a


quem quer que viva em plena luz.

TIRÉSIAS

Não é destino teu cair vítima de meus golpes. Apolo para


isso bastará, pois tais coisas lhe competem.

ÉDIPO

Isso tudo foi invenção tua, ou de Creonte?

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Everaldo Vasconcelos(org)

TIRÉSIAS

Creonte em nada concorreu para teu mal; tu somente és


teu próprio inimigo.

ÉDIPO

Ó riqueza! Ó poder! Ó glória de uma vida consagrada à


ciência, quanta inveja despertais contra o homem a quem
todos admiram! Sim! Porque do império que Tebas pós
em minhas mãos sem que eu o houvesse pedido, resulta
que Creonte, meu amigo fiel, amigo desde os primeiros
dias, se insinua sub-repticiamente sob mim, e tenta
derrubar-me, subornando este feiticeiro, este forjador de
artimanhas, este pérfido charlatão que nada mais quer,
senão dinheiro, e que em sua arte é cego. Porque, vejamos:
dize tu, Tirésias! Quando te revelaste um adivinho
clarividente? Por que, quando a Esfinge propunha aqui
seus enigmas, não sugeriste aos tebanos uma só palavra
em prol da salvação da cidade? A solução do problema
não devia caber a qualquer um; tomava-se necessária a
arte divinatória. Tu provaste, então, que não sabias
interpretar os pássaros, nem os deuses. Foi em tais
condições que eu aqui vim ter; eu, que de nada sabia; eu,
Édipo, impus silêncio à terrível Esfinge; e não foram as
aves, mas o raciocínio o que me deu a solução. Tentas
agora afastar-me do poder, na esperança de te sentares

46
Crestomatia dramática

junto ao trono de Creonte!... Quer me parecer que a ti, e a


teu cúmplice, esta purificação de Tebas vai custar caro.
Não fosses tu tão velho, e já terias compreendido o que
resulta de uma traição!

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9 ÉDIPO-REI III

AUTOR - Sófocles

PERSONAGENS – Mensageiro, Coro, Édipo.

DESCRIÇÃO – Édipo fura os olhos depois da morte de


Jocasta.

TEXTO – (ver nota 5)

EMISSÁRIO

Ó vós, que sereis sempre os chefes mais respeitados deste


país, se ainda prezais a família de Lábdaco, ides ouvir
tristes notícias, receber profundos golpes e sofrer lutuosos
desgostos! Creio que nem as águas do mister, nem as do
Fásio seriam bastantes para purificar esta casa, tais e
tantos são os crimes que nela se praticaram! Sabereis de
novas desgraças, voluntárias, e não impostas; e os males
que nós próprios nos causamos são precisamente os mais
dolorosos!

48
Crestomatia dramática

CORIFEU

Nada falta, ao que já sabemos, para que nos sintamos


todos profundamente penalizados. No entanto, dize: que
novas calamidades nos anuncias?

EMISSÁRIO

Uma coisa fácil de dizer, como de ouvir: Jocasta, a nossa


rainha, já não vive!

CORIFEU

Oh! Que infeliz! Qual foi a causa de sua morte?

EMISSÁRIO

Ela resolveu matar-se... E o mais doloroso vos foi


poupado: vós não vistes o quadro horrendo de sua morte.
Dir-vos-ei, no entanto, como sofreu a infeliz. Alucinada,
depois de transpor o vestíbulo, atirou-se em seu leito
nupcial, arrancando os cabelos em desespero. Em seguida,
fechou violentamente as portas, e pôs-se a chamar em
altos brados por Laios, recordando a imagem do filho que
ela teve há tantos anos, o filho sob cujos golpes deveria o
pai morrer, para que ela tivesse novos filhos, se é que estes
merecem tal nome! Presa da maior angústia, ela se
lastimava em seu leito, onde, conforme dizia tivera uma
dupla e criminosa geração. Como teria morrido, não sei

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Everaldo Vasconcelos(org)

dizer, pois Édipo, aos gritos, precipitou-se com tal fúria,


que não pude ver a morte da rainha. Todos os nossos
olhares voltaram-se para o rei, que, desatinado, corria ao
acaso, ora pedindo um punhal, ora reclamando notícias da
rainha, não sua esposa, mas sua mãe, a que deu à luz a ele,
e a seus filhos. No seu furor invocou um deus, - não sei
dizer qual, pois isto foi longe de mim! Então, proferindo
imprecações horríveis, como se alguém lhe indicasse um
caminho, atirou-se no quarto. Vimos então, ali, a rainha,
suspensa ainda pela corda que a estrangulava... Diante
dessa visão horrenda, o desgraçado solta novos e
lancinantes brados, desprende o laço que a sustinha, e a
mísera mulher caiu por terra. A nosso olhar se apresenta,
logo em seguida, um quadro ainda mais atroz: Édipo
toma seu manto, retira dele os colchetes de ouro com que
o prendia, e com a ponta recurva arranca das órbitas os
olhos, gritando: "Não quero mais ser testemunha de
minhas desgraças, nem de meus crimes! Na treva, agora,
não mais verei aqueles a quem nunca deveria ter visto,
nem reconhecerei aqueles que não quero mais
reconhecer!" Soltando novos gritos, continua a revolver e
macerar suas pálpebras sangrentas, de cuja cavidade o
sangue rolava até o queixo e não em gotas, apenas, mas
num jorro abundante. Assim confundiram, marido e
mulher, numa só desgraça, as suas desgraças! Outrora
gozaram uma herança de felicidade; mas agora nada mais

50
Crestomatia dramática

resta senão a maldição, a morte, a vergonha, não lhes


faltando um só dos males que podem ferir os mortais.

CORIFEU

E o desgraçado rei está mais tranqüilo agora?

EMISSÁRIO

Ele grita que lhe abram as portas; que mostrem a todos


ostebanos o parricida, o filho que... nem posso repetir-vos,
cidadãos, as palavras sacrílegas que ele pronuncia... Quer
sair, em rumo do exílio; não quer continuar no palácio
depois da maldição terrível que ele mesmo proferiu. No
entanto, ele precisa de um guia, e de um apoio, pois seu
mal é grande demais para que sozinho o suporte. Ele aí
vem, e vo-lo mostrará. Ides ver um espetáculo que
comoveria o mais feroz inimigo...

ENTRA ÉDIPO, ENSANGÜENTADO, E COM OS


OLHOS VAZADOS.

CORIFEU

Ó sofrimento horrível de ver-se! Eis o quadro mais


horripilante que jamais tenho presenciado em minha vida!
Que loucura, - ó infeliz! -caiu sobre ti? Que divindade
levou ao cúmulo o teu destino sinistro, esmagando-te ao
peso de males que ultrapassam a dor humana? Oh! Como

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és infeliz! Não tenho coragem, sequer, para volver meus


olhos e contemplar-te assim; no entanto, eu quereria
ouvir-te, interrogar-te, e ver-te! Tal é o arrepio de horror
que tu me causas!

ÉDIPO

(CAMINHANDO SEM RUMO CERTO) Pobre de mim!


Para onde irei? Para que país? Onde se fará ouvir a minha
voz? Ó meu destino, quando acabarás de uma vez?!...

CORIFEU

Numa miséria extrema, que não poderemos ver, nem


imaginar!

ÉDIPO

Ó nuvem sombria, execrável treva que caiu sobre mim,


escuridão pavorosa e sem remédio! Ai de mim! Como me
traspassam as dores do meu sofrimento e a lembrança de
meu infortúnio!

52
Crestomatia dramática

10 ANTÍGONA

AUTOR - Sófocles

PERSONAGENS – Antígona e Ismênia

DESCRIÇÃO – Na ágora de Tebas, diante do palácio de


Édipo, onde reina agora Creonte. Clareia o dia

TEXTO – (ver nota 6)

ANTÍGONE

Ismênia, minha querida irmã, companheira de meu


destino, de todos os males que Édipo deixou, suspensos,
sobre a sua descendência, haverá algum com que Júpiter
ainda não tenha afligido nossa vida infeliz? Não há
provação - sem falar de outras desditas nossas - por mais
funesta, ou ignominiosa, que não se encontre em nossa
comum desgraça! Ainda hoje - que quererá dizer esse
édito que o rei acaba de expedir e proclamar por toda a
cidade? Já o conheces, sem dúvida? Não sabes da afronta

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que nossos inimigos preparam para aqueles a quem mais


prezamos?

ISMÊNIA

Ó Antígone, nenhuma notícia, agradável ou funesta,


chegou a meu conhecimento, depois da perda de nossos
dois irmãos, mortalmente feridos, em luta, um pelo
outro!... Tendo fugido, esta noite, o exército dos Argivos,
nada mais vejo que possa concorrer para aumentar nossa
felicidade, nem nossas desditas.

ANTÍGONE

Eu já o sabia... Chamei-te ate aqui, fora do palácio, para


que só tu possas ouvir o que tenho a te dizer.

ISMÊNIA

Que há, pois? Tu me pareces preocupada!

ANTÍGONE

Certamente! Pois não sabes que Creonte concedeu a um


de nossos irmãos, e negou ao outro, as honras da
sepultura? Dizem que inumou a Etéocles, como era de
justiça e de acordo com os ritos, assegurando-lhe um lugar
condigno entre os mortos, ao passo que, quanto ao infeliz
Polinice, ele proibiu aos cidadãos que encerrem o corpo

54
Crestomatia dramática

num túmulo, e sobre este derramem suas lágrimas. Quer


que permaneça insepulto, sem homenagens fúnebres, e
presa de aves carniceiras. Tais são as ordens que a
bondade de Creonte impõe a mim, como também a ti, e,
eu o afirmo: ele próprio virá a este sítio comunicá-las a
quem ainda as ignore. Disso faz ele grande empenho, e
ameaça, a quem quer que desobedeça, de ser apedrejado
pelo povo. Tu ouviste o que eu te disse: virá o dia em que
veremos se tens sentimentos nobres, ou se desmentes teu
nascimento.

ISMÊNIA

Mas, minha pobre irmã, em tais condições, em que te


posso eu valer, quer por palavras, quer por atos?

ANTÍGONE

Quererás auxiliar-me? Agirás de acordo comigo?

ISMÊNIA

A que perigos pensas arriscar-te ainda? Que pretendes


fazer?

ANTÍGONE

Ajudarás estes meus braços a transportar o cadáver?

ISMÊNIA

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Everaldo Vasconcelos(org)

Queres tu, realmente, sepultá-lo, embora isso tenha sido


vedado a toda a cidade?

ANTÍGONE

Uma coisa é certa: Polinice era meu irmão, e teu também,


embora recuses o que eu te peço. Não poderei ser acusada
de traição para com o meu dever.

ISMÊNIA

Infeliz! Apesar da proibição de Creonte?

ANTÍGONE

Ele não tem o direito de me coagir a abandonar os meus!

ISMÊNIA

Ai de nós! Pensa, minha irmã, em nosso pai, como morreu


esmagado pelo ódio e pelo opróbrio, quando, inteirado
dos crimes que praticara, arrancou os olhos com as
próprias mãos! E também em sua mãe e esposa, visto que
foi ambas as coisas, que pôs termo a seus dias com um
forte laço! Em terceiro lugar, em nossos irmãos, no mesmo
dia perecendo ambos, desgraçados, dando-se à morte
reciprocamente! E agora, que estamos a sós, pensa na
morte ainda mais terrível que teremos se contrariarmos o

56
Crestomatia dramática

decreto e o poder de nossos governantes! Convém não


esquecer ainda que somos mulheres, e, como tais, não
podemos lutar contra homens; e, também, que estamos
submetidas a outros, mais poderosos, e que nos é forçoso
obedecer a suas ordens, por muito dolorosas que nos
sejam. De minha parte, pedindo a nossos mortos que me
perdoem, visto que sou obrigada, obedecerei aos que
estão no poder. É loucura tentar aquilo que ultrapassa
nossas forças!

ANTÍGONE

Não insistirei mais; e, ainda que mais tarde queiras


ajudar-me, já não me darás prazer algum. Faze tu o que
quiseres; quanto a meu irmão, eu o sepultarei! Será um
belo fim, se eu morrer tendo cumprido esse dever.
Querida, como sempre fui, por ele, com ele repousarei no
túmulo... com alguém a quem amava; e meu crime será
louvado, pois o tempo que terei para agradar aos mortos,
é bem mais longo do que o consagrado aos vivos... Hei de
jazer sob a terra eternamente!... Quanto a ti, se isso te
apraz, despreza as leis divinas!

ISMÊNIA

Não! Não as desprezo; mas não tenho forças para agir


contra as leis da cidade.

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Everaldo Vasconcelos(org)

ANTÍGONE

Invoca esse pretexto; eu erguerei um túmulo para meu


irmão muito amado!

ISMÊNIA

Ah! Pobre infeliz! Eu me aflijo por ti!

ANTÍGONE

Não temas por minha vida; trata de salvar a tua.

ISMÊNIA

Ao menos, não digas a ninguém o que vais fazer; guarda


segredo, que eu farei o mesmo.

ANTÍGONE

Não! Fala! Tu me serás mais odiosa silenciando, do que se


disseres a todos os que eu quero fazer.

ISMÊNIA

Tu pareces desejar, com o coração ardente, o que nos


causa calafrios de pavor!

ANTÍGONE

58
Crestomatia dramática

Só sei que cumpro a vontade daqueles a quem devo


agradar.

ISMÊNIA

Se tu o fizeres... mas o que desejas é impossível!

ANTÍGONE

Quando me faltarem as forças, eu cederei

ISMÊNIA

Mas não é prudente tentar o que é irrealizável!

ANTÍGONE

Visto que assim me falas, eu te odiarei! E serás odiosa,


também, ao morto, junto a quem serás um dia
depositada... E com razão! Vamos! Deixa-me, com minha
temeridade, afrontar o perigo! Meu sofrimento nunca há
de ser tão grande, quanto gloriosa será minha morte!

ISMÊNIA

Já que assim queres, vai! Bem sabes que cometes um ato


de loucura, mas provas tua dedicação por aqueles a quem
amas.

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Crestomatia dramática

11 ELECTRA

AUTOR - Sófocles

PERSONAGENS – Egisto, Coro, Electra, Orestes

DESCRIÇÃO – Depois da morte de Climemnestra Oreste


mata o seu amante Egisto.

TEXTO – (ver nota 7)

EGISTO

Onde estarão os estrangeiros recém-vindos com a


informação de que afinal morreu Orestes num desastre
com seu carro, segundo dizem?

(DIRIGINDO-SE À ELECTRA.)

Tu mesma, com esse orgulho teu, essa arrogância

(SUPONHO QUE A NOTÍCIA TE FERIU DE PERTO...)

indica, onde? Certamente sabes! Onde?

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Everaldo Vasconcelos(org)

ELECTRA

Sei, Egisto... Não posso deixar de saber; só se não cuidasse


do destino dos meus...

EGISTO

Dize: que direção tomaram? Fala logo!

ELECTRA

Foram há poucos momentos lá para dentro; suponho que


atingiram a fidalga hóspede...

EGISTO

E confirmaram realmente que morreu?

ELECTRA

Mais do que isso; trouxeram prova da morte.

EGISTO

Onde se encontra o cadáver? Poderei vê-lo?

ELECTRA

Poderás. Não é dos melhores espetáculos...

EGISTO

62
Crestomatia dramática

Sem querer, dás-me notícias de meu agrado.

ELECTRA

Se tens motivos, solta as rédeas de teu júbilo!

EGISTO

Ordeno silêncio! Abre de par em par as portas do palácio!


Quero que os micênios e todos os argivos vejam o
cadáver; se alguém se obstina em esperar a volta desse
homem, diante da evidência irrecusável há de curvar-se e
de aceitar o meu domínio, antes de ser dobrado por
castigo duro!

ELECTRA

Por mim, adoto a mais sensata decisão: vou ser prudente;


seguirei o vencedor.

(ELECTRA ABRE A PORTA PRINCIPAL DO PALÁCIO.


ORESTES E PÍLADES VEM SAINDO. EMPURRAM UMA
MESA PROVIDA DE RODAS, SOBRE A QUAL ESTÁ O
CADÁVER COBERTO COM UM LENÇOL, LEVANDO-A
ATÉ ONDE ESTÁ EGISTO.)

EGISTO

Bom Zeus! Meus olhos vêem uma cena agora capaz de


provocar inveja até nos deuses!

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Everaldo Vasconcelos(org)

(SE HOUVER BLASFÊMIA EM MINHAS EXPRESSÕES,


RENEGO-AS!)

(DIRIGINDO-SE A ORESTES E PÍLADES)

Tirai depressa o véu que lhe recobre o rosto!

Quero prestar-lhe o meu tributo de lamentos, pois afinal


de contas sou parente dele.

ORESTES

Retira tu o véu; repara o cadáver e dize-lhe as palavras


ternas que quiseres.

EGISTO

É bom conselho; aceito-o.

(DIRIGINDO-SE À ELECTRA.)

Antes vai lá dentro e chama Clitemnestra, se puderes vê-


la!

ORESTES

Por que chamá-la se ela está perto de ti?

(EGISTO DESCOBRE O CADÁVER NUM GESTO


BRUSCO.)

64
Crestomatia dramática

EGISTO

Não! Que vejo?...

ORESTES

Tens medo? Estranhas esse rosto?

EGISTO

Traição! Em meio de que gente, em que cilada vim cair?

ORESTES

Inda não pudeste perceber que os mortos (assim


expressavas) estão vivos?

EGISTO

É muito tarde!... Decifrei o enigma! E tu, que me falas, não


podes ser senão Orestes!

ORESTES

A solução demorou; não és bom profeta...

EGISTO

Estou perdido! Vencido!... Mas poderia dizer uma simples


palavra?

ELECTRA

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Everaldo Vasconcelos(org)

Pelos deuses! não lhe permitas, meu irmão, dizer mais


nada, nem defender-se! Se um mortal é envolvido na
trama do destino, que proveito há em conservar a vida,
por mais um momento? Não! Deves matá-lo já! E atira o
cadáver distante de meus olhos, bem longe aos abutres,

coveiros dos malvados dessa qualidade! Assim há de


pagar os males que me fez! Orestes

(DIRIGINDO-SE A EGISTO)

Anda, e depressa! Para que falar? É inútil! Não queremos


palavras, mas tua vida!

EGISTO

Por que me levas ao palácio? Se há justiça em tua ação,


por que procuras esconder-te? Não quer a tua mão ainda
golpear-me?

ORESTES

Não mandes! Mostra em que lugar meu pai foi morto!


Onde o mataram, lá tu morrerás! Caminha!

EGISTO

Quer o destino que o palácio dos Átridas assista a todas as


inúmeras desgraças presentes e futuras da raça de Pélops!

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Crestomatia dramática

ORESTES

Às tuas, pelo menos; não sou mal profeta.

EGISTO

Teu pai não teve o dom de que te vanglorias!

ORESTES

Falas demais e te retardas! Vamos! Marcha!

EGISTO

Vai na frente!

ORESTES

Vai tu! Na frente marcharás!

EGISTO

Receias minha fuga?

ORESTES

Não escolherás a forma de morrer e não te faltará tortura


alguma quando te atingir a morte! Queiram os céus que a
firme espada vingadora golpeie fatalmente todos os
perversos! Assim será menor a malvadez do mundo!

CORO

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Everaldo Vasconcelos(org)

Bravos filhos de Agamemnon! Quantos males suportastes


por amor da liberdade! Hei-la enfim recuperada graças à
bravura vossa!

68
Crestomatia dramática

12 AS BACANTES I

AUTOR - Eurípedes

PERSONAGENS – Dionísio

DESCRIÇÃO – A cena é em Tebas. Ao fundo, a fachada


do palácio real. Frente ao palácio, vêem-se algumas ruínas
e entre elas o túmulo de Sémele, rodeado de vides, e
donde se escapa por vezes um fio de fumo. Dioniso,
revestido com uma pele de gamo e com o tirso na mão,
entra em cena. Avança até o túmulo de Sémele. ( ver nota
8)

TEXTO – (ver nota 8)

DIONISO

À terra de Tebas venho, eu, Dioniso,

de Zeus filho, a quem outrora deu à luz Sémele,

filha de Cadmo, pela chama do raio assistida.

Alterando para mortal a feição divina,

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Everaldo Vasconcelos(org)

junto estou à nascente de Dirce e águas de Ismeno;

o túmulo de minha mãe, a fulminada, vejo,

ao palácio vizinho, e as ruínas da sua morada,

do fogo de Zeus uma chama ainda viva exalando,

imperecível cólera de Hera contra minha mãe.

A Cadmo exalto, que em solo inviolável

o túmulo da filha tornou; de pâmpano

eu o cingi, em verdura e cachos abundante.

Da Lídia e da Frígia, os campos ricos em ouro deixei;

da Pérsia, os planaltos batidos de sol;

de Báctria, os muros; em funesta invernia, o país

dos Medos; e a opulenta Arábia percorri

e a Ásia toda, que ao longo do salgado mar

jaz, com Helenos a bárbaros associados,

senhora de copiosas cidades de belas torres;

para esta cidade dos Gregos logo me encaminhei,

depois de ti ali instituídos meus coros

e ritos, para aos mortais como deus me revelar.

70
Crestomatia dramática

De terras helênicas, Tebas é a primeira

a ressoar com os meus gritos, a nébride sobre o corpo,

e à mão entregue o tirso, dardo feito de hera;

pois as irmãs de minha mãe, menos que ninguém,

deviam dizer que Dioniso não nasceu de Zeus,

que Sémele, seduzida, a falta do leito

de algum mortal imputou a Zeus

- expediente por Cadmo inventado – e que Zeus a matou

porque disso se jactava, já que tais núpcias fantasiara.

Por tal, de delírio as impregnei,

e, loucos os espíritos, do palácio à montanha se foram.

Forcei-as a usar a veste das minhas orgias,

e toda a descendência feminina Cadminiana,

quantas mulheres havia, expulsei das casas;

sentam-se em rochedos desabrigados, sob verdes


pinheiros.

Deve a cidade aprender, ainda que não queira,

nos báquicos mistérios não sendo iniciada,

71
Everaldo Vasconcelos(org)

que a Sémele, minha mãe, defendo, e eu

aos mortais surjo como deus, por ela de Zeus concebido.

Cadmo, idoso já, o poder absoluto

www.oficinadeteatro.com

a Penteu, de uma filha gerado, entregou;

este comigo luta e das libações

me repele, e, nas preces, de mim não tem memória.

Por isso, a ele e a todos os Tebanos

Mostrarei que nasci deus. A outra terra,

Depois de tudo em ordem, meus passos dirigirei,

Revelando quem sou. Mas se a cidade de Tebas,

Pela cólera e pelas armas, da montanha as Bacantes

buscar reconduzir, dirigirei as Ménades no combate.

Por tais motivos, em mortal mudados tenho os traços,

a semblante humano passei a minha feição.

Vamos! Vós que o Tmolo, bastião da Lídia, abandonastes,

ó meu tíaso, ó mulheres, que de bárbaros países

comigo trouxe, adeptas e companheiras minhas,

72
Crestomatia dramática

os tamboris, na terra Frígia natos,

erguei, invento de Réia venerável e meu,

e, cercando o palácio real de Penteu,

fazei-os ressoar, para que a cidade de Cadmo veja!

Às escarpas do Citéron, aonde estão me vou,

e, com as Bacantes, dos coros participarei.

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Everaldo Vasconcelos(org)

13 AS BACANTES II

AUTOR - Eurípedes

PERSONAGENS – Servo, Dionísio, Penteu

DESCRIÇÃO – Entra Dionísio acorrentado.

TEXTO – (ver nota 8)

SERVO

Penteu, ei-nos trazendo capturada a presa

pela qual nos enviaste; não foi em vão que marchamos.

A fera que aqui está foi-nos dócil e não pretendeu

evadir-se, antes de seu grado as mãos ofertou,

e sem empalidecer, sem alterar a face cor de vinho,

sorrindo, a acorrentá-lo e a trazê-lo nos incitou,

enquanto aguardava, tornando-me fácil a tarefa.

74
Crestomatia dramática

Eu, confuso, disse-lhe: "Estrangeiro, não é por mim

que te arrasto, mas por Penteu, que tal me ordenou."

Quanto às Bacantes, que tomaste e encerraste

nos públicos cárceres, em grilhetas algemadas,

libertas se foram através dos campos,

saltando e o divino Brómio invocando,

dos pés por si se soltaram as cadeias,

das portas sem mão mortal os ferrolhos se afrouxaram.

Veio este homem, para Tebas tornar

plena de maravilhas. Quanto ao resto, é a ti que pertence


atender.

PENTEU

Desprendei-o! Em minhas redes caído,

por veloz que seja, não me escapará.

Não sem beleza teu corpo é, ó estrangeiro,

pelo menos para as mulheres; por isso em Tebas surgiste;

teus longos e anelados cabelos, não peleja,

mas paixão denunciam, pela face dispersos...

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Everaldo Vasconcelos(org)

A nívea pele que tens, não é por falta de cuidados -

dos raios do sol resguardada, não da sombra.

Com tal perfeição a Afrodites cativas...

Qual a tua origem, primeiro me dirás.

DIONISO

Fátuo não sou; simples é de expor.

Já ouviste falar do Tmolo fecundo em flores?

PENTEU

Sim, como um círculo, a cidade de Sardes envolve.

DIONISO

De lá venho, a Lídia é a minha pátria.

PENTEU

Donde são os mistérios que à Hélade trazes?

DIONISO

Dioniso nos iniciou, o filho de Zeus.

PENTEU

Um Zeus tendes por lá, de novos deuses criador?

DIONISO

76
Crestomatia dramática

Não: apenas aquele que a Sémele nestes lugares se uniu.

PENTEU

Deu-te ordens de noite ou à tua vista?

DIONISO

Nos olhos o olhei, e os ritos me entregou.

PENTEU

Dessas orgias por ti obtidas, qual a natureza?

DIONISO

Aos não iniciados vedadas estão as coisas secretas.

PENTEU

Daqueles que os acolhem, qual o proveito?

DIONISO

Não é justo que o saibas, mas profícuo é conhecê-los.

PENTEU

De astúcia usas, para eu mais querer escutar.

DIONISO

Os sacros mistérios rejeitam a piedade.

PENTEU

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Everaldo Vasconcelos(org)

Viste claramente visto o deus, como era ele?

DIONISO

A seu grado, não fui eu quem o determinou.

PENTEU

Outra destra evasiva, para não falares.

DIONISO

Ao ignorante, o que fala com senso parece não pensar


bem.

PENTEU

Para aqui trouxeste primeiro o teu deus?

DIONISO

Todos, de entre os bárbaros, celebram os mistérios.

PENTEU

É que eles são menos sensatos que os Helenos!

DIONISO

Nisto, são-no bem mais, ainda que os costumes divirjam.

PENTEU

É de noite ou de dia que os ritos se praticam?

78
Crestomatia dramática

DIONISO

De noite sobretudo; mais sacras são as sombras.

PENTEU

Dolo temerário para as mulheres é!

DIONISO

Atos indecorosos traz também o dia.

PENTEU

Com pena serás punido, por teus perversos sofismas!

DIONISO

E tu, por irreverência e impiedade para com o deus!

PENTEU

Ó insolente Bacante, em discutir tão versado!

DIONISO

Que irei sofrer, diz? Que dano me farás?

PENTEU

Teus delicados caracóis primeiro cortarei...

DIONISO

Sacros cabelos, para o deus os criei!

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Everaldo Vasconcelos(org)

PENTEU

Depois, o tirso que na mão seguras entregarás.

DIONISO

Vem arrebatá-lo! De Dioniso é atributo!

PENTEU

No recôndito dos cárceres, teu corpo custodiado será.

PENTEU

O próprio deus me libertará, quando eu desejar.

PENTEU

Quando entre as Bacantes o invocares...

DIONISO

Está perto agora e quanto padeço ele vê.

PENTEU

Onde? À minha vista não é visível...

DIONISO

Onde eu estou. Mas, ímpio que és, não te apercebes.

PENTEU

Prendei-o! Este homem a mim e a Tebas ultraja!

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Crestomatia dramática

DIONISO

Não me acorrentem! Sensato, a um insensato falo!

PENTEU

Acorrentar-te irei; mais poderoso que tu eu sou.

DIONISO

Desconheces o que seja a tua vida, o que fazes e quem és!

PENTEU

Sou Penteu, filho de Agave e vergôntea de Equíon!

DIONISO

À desdita propício é teu nome!

PENTEU

Vai-te! Aprisionai-o aqui perto, nas estrebarias

dos cavalos, para que, além das negras trevas, nada veja!

Lá podes bailar... Quanto às tuas sectárias,

cúmplices dos teus erros, ou as venderei,

ou de suas mãos o fragor e o vibrar do couro

apartando, minhas servas ao tear farei.

DIONISO

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Everaldo Vasconcelos(org)

Estou pronto a ir, pois o que não tem de ser, não devo

sofrê-lo. De tais opróbrios o repressor,

Dioniso te punirá, aquele que afirmas não existir.

Iníquo para nós, a ele vais acorrentar.

82
Crestomatia dramática

14 MEDÉIA I

AUTOR - Eurípedes

PERSONAGENS – Medéia, Coro, Creonte

DESCRIÇÃO – primeiro episódio no qual Creonte expulsa


Medéia.

TEXTO – (ver nota 9)

MEDEIA

Saí de casa, ó mulheres de Corinto, para que nada me


censurei. Porque eu sei que muitos dentre os mortais são
arrogantes, uns longe da vista, outros à porta de casa;
outros, atravessando a vida com passo tranqüilo, hostil
fama ganharam de vileza. Porque não há justiça aos olhos
dos mortais, se alguém antes de bem conhecer o íntimo do
homem, o odeia só de o ver, sem ter sido ofendido. Força é
que o estrangeiro se adapte à nação; tampouco louvo do
cidadão que é acerbo para os outros, por falta de
sensibilidade. Sobre mim este feito inesperado se abateu,
que a minha alma destruiu. Fiquei perdida e tenho de
abandonar as graças desta vida para morrer,, amigas.

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Everaldo Vasconcelos(org)

Aquele que era tudo para mim (ele bem o sabe) no pior
dos homens se tornou - o meu esposo. De quanto há aí
dotado de alma e de razão, somos nós, mulheres, a mais
mísera criatura. Nós, que primeiro temos de comprar, à
força de riqueza24, um marido e de tomar um déspota do
nosso corpo - dói mais ainda um mal do que o outro. E
nisso vai o maior risco, se o tomamos bom ou mau. Pois a
separação para a mulher é inglória, e não pode repudiar o
marido. Entrada numa raça e em lei novas, tem de ser
adivinha, sem ter aprendido em casa, de como deve tratar
o companheiro de leito. E quando o conseguimos com os
nossos esforços, invejável é a vida com um esposo que não
leva o jugo à força; de outro modo antes a morte. O
homem, quando o enfadam os da casa, saindo, liberta o
coração do desgostos . Para nós, força é que
contemplemos uma só pessoa. Dizem: como nós vivemos
em casa uma vida sem risco, e ele a combater com a lança.
Insensatos! Como eu preferiria mil vezes estar na linha de
batalha a ser uma só vez mãe! Mas a vós e a mim não
serve a mesma argumentação. Vós tendes aqui a vossa
cidade e a casa paterna, a posse do bem-estar e a
companhia dos amigos. E eu, sozinha, sem pátria, sou
ultrajada pelo marido, raptada duma terra bárbara, sem
ter mãe, nem irmão, nem parente, para me acolher desta
desgraça. Apenas isto de vós quero obter: se alguma
solução ou processo eu encontrar para fazer pagar ao meu
marido a pena deste ultraje, guardai silêncio. Aliás, cheia
de medo é a mulher, e vil perante a força e à vista do ferro.
Mas quando no leito a ofensa sentir, não há aí outro
espírito que penda mais para o sangue.

84
Crestomatia dramática

CORO

Assim farei. Com justiça castigarás o teu marido, ó


Medeia. Não me admiro que deplores a tua sorte. Mas
vejo também Creonte, o príncipe desta terra,, que se
aproxima, mensageiro de novas deliberações.

(ENTRA CREONTE, ACOMPANHADO PELOS SEUS


GUARDAS.)

CREONTE

A ti, ó Medeia de olhar turvo, com teu esposo irada, eu


digo que saias como exilada deste país, levando contigo os
teus dois filhos. E não hesites. Que eu sou de tal ordem o
árbitro, e não voltarei para minha casa antes de te
expulsar dos confins desta terra.

MEDEIA

Ai! Ai! Desgraçada, que de todo estou perdida. O navio


inimigo avança a todo pano, e não há saída deste mal, que
seja fácil de abordar. Mas, na minha desgraça,, mesmo
assim te pergunto: porque me mandas embora desta terra,
ó Creonte?

CREONTE

Eu temo - não vale a pena dissimular as palavras - que


faças à minha filha algum mal irreparável. Motivos de
temor há-os de sobra. Tu és por natureza astuta e
sabedora de muitos artifícios, e torturas-te por estares

85
Everaldo Vasconcelos(org)

privada do tálamo conjugal. Ouço dizer - e anunciam-mo -


que algo ameaças fazer ao que dá em casamento, ao
esposo e à desposada. Disto me guardo, antes de o sofrer.
Melhor é para mim mostrar-me agora odioso, ó mulher,
do que gemer depois de enfranquecido.

MEDEIA

Ai! Ai! Não é agora a primeira vez, ó Creonte, mas já


muitas vezes a fama me foi nociva e me causou grandes
males. Que jamais alguém, que seja por natureza astuto,
instrua os filhos mais do que o preciso, fazendo deles
sábios. Porque, além da mancha da inércia, que têm,
ganharão malevolente inveja dos seus concidadãos. É que,
para a multidão ignara, quem for o portador de uma nova
sabedoria, passará por inútil,, e não por sábio. E quem, na
cidade, for julgado melhor do que aqueles que aparentam
saber muitas coisas será tido como indesejável. De tal
sorte também eu mesma participo. A minha ciência faz
com que eu para uns seja invejada para outros ainda
desagradável. E, contudo, não sou muito sábia. E então tu
tens medo de mim? Medo de sofreres algo desagradável?
Não estou na disposição - ai! não temas Creonte - de me
tornar culpada contra quem governa. Pois tu que mal me
fizeste? Deste a tua filha a quem a alma te indicava. Ao
meu esposo, e esse é que eu detesto. Tu - creio eu -
procedeste assim com sensatez. E agora, eu não invejo o
teu bem-estar. Casai, sede felizes. Mas deixem-me habitar
neste país. Mesmo ultrajadas, calar-nos-emos, vencidas
pelos ais poderosos.

86
Crestomatia dramática

CREONTE

Dizes palavras brandas ao ouvidos, mas dentro da tua


alma tenho o temor de que premedites algum mal para
mim, e tanto mais que antes acreditei em ti. Porque a uma
mulher irascível, tal como a um homem, é mais fácil
guardá-la do que a um sábio silencioso. Mas sai o mais
depressa possível, não discutas. É assim que convém, e
não terás artes de ficar junto de nós, tendo más intenções
contra mim.

MEDEIA

Não, suplico-te pela tua filha há pouco desposada.

CREONTE

Estás a gastar palavras; nunca me convencerias.

MEDEIA

Expulsas-me então e não te amerceias das minhas preces?

CREONTE

Não te amo mais a ti do que à minha casa.

MEDEIA

Ó minha pátria, como eu agora me lembro de ti!

CREONTE

Depois dos filhos, nada me é mais caro.

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Everaldo Vasconcelos(org)

MEDEIA

Ai! Ai! Que grande mal é o amor para os mortais!

CREONTE

Conforme a fortuna, ao que me parece.

MEDEIA

Zeus, não vos escape o causador desta desgraça!

CREONTE

Vai-te, ó louca, e livra-me de trabalhos.

MEDEIA

Trabalhos serão os nossos e de mais não precisamos.

CREONTE

Em breve serás levada à força, nos braços dos escravos.

MEDEIA

Isso, ao menos, não, suplico-te, Creonte.

CREONTE

Tu causarás dificuldades, ao que parece, ó mulher.

MEDEIA

Fugiremos; mas não era esse o objeto da minha súplica.

88
Crestomatia dramática

CREONTE

E então por que insistes e não te afastas desta terra?

MEDEIA

Este dia só consente que eu fique, a pensar na maneira de


nos irmos e na direção que hão de tomar os meus filhos, já
que o pai nada se importa com o que há de arranjar para
eles. Tem pena deles. Que tu também és um pai com
filhos. É natural que tenhas benevolência. Pelo que me diz
respeito, não tenho cuidados, quando nos formos, mas
choro-os a eles, pela desgraça que os atingiu.

CREONTE

A minha vontade e nada é a de um déspota; mas muitas


vezes arruinei a situação, por ser compassivo. E agora eu
vejo que erro, ó mulher, mas, mesmo assim, ser-te-á
concedido. Mas previno-te, se a luz do sol que há de
surgir te vir e às crianças dentro dos confins desta terra,
morrerás; está é sentença iniludível. E agora, se é preciso
ficares,, fica por um dia; que não farás nada do mal que eu
temo.

(SAI CREONTE.)

CORO

Pobre mulher, Ai de ti! infeliz pela desgraça,

para onde hás de voltar-te? que hospitalidade,

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Everaldo Vasconcelos(org)

que casa, que país salva teus males?

Como um deus te conduziu, ó Medeia,

por um mar sem fim de calamidades.

MEDEIA

De todos os lados a desgraça. Quem contestará? Mas


ainda não fica assim, não suponhais. Ainda há lutas para
os noivos de há pouco; para os sogros, não pequenos
trabalhos. Ou pensais que, se o lisonjeei, não era para
ganhar ou tramar alguma coisa? Nem lhe falava nem lhe
tocava com as minhas mãos... E ele a tal loucura chegou
que, sendo-lhe dado tolher os meus planos, expulsando-
me do país, concedeu-me ficar este dia, em que dos meu
inimigos farei três cadáveres: o pai e a donzela e o marido
- mas o meu. Dispondo de muitos caminhos, para lhes
dar a morte, não sei, amigas, qual ensaiar primeiro. Se hei
de deitar fogo à casa nupcial ou enterrar no coração uma
espada afiada, entrando silenciosa no palácio no palácio,
onde está armado o leito. Mas uma só coisa me é adversa:
se sou apanhada ao entrar em casa e ao preparar o ardil, a
minha morte dará motivo ao escárnio dos meus inimigos.
O melhor é pela via ais direta, na qual somos mais sábias,
suprimi-los com veneno. Seja. Eles estão mortos. E que
cidade me receberá? Quem, oferecendo uma terra imune
de ofensa e uma casa fidedigna, salvará o meu corpo com
a sua hospitalidade? Não há ninguém. Espero então ainda
algum tempo, a ver se aparece algum baluarte seguro, e
com o dolo e o silêncio executo este crime. E, se uma sorte

90
Crestomatia dramática

irreparável me atingir, eu mesma empunharei a espada,


ainda quando tenha de morrer, e os matarei, e seguirei os
caminhos violentos da ousadia. Porque, pela minha
Senhora, a quem presto culto acima de todos, e que
escolhi para me ajudar, por Hécate, a que habita no
recesso do meu lar, nenhum deles torturará incólume o
meu coração. Amargos e funestos lhes farei os esponsais,,
amarga a aliança e a minha fuga destas terras. Coragem,
Medeia, não te poupes a nada do que sabes,, agora que já
deliberaste e arranjaste um expediente. Avança para esse
fim terrível; agora é a luta dos ânimos fortes. Tu vês o que
sofres. Não deves oferecer motivos de escárnio por causa
destas núpcias entre a raça de Sísifo e Jasão, e que
descendes de um pai nobre e do Sol. Bem o sabes. Além
de que nascemos mulheres, para as ações nobres
incapacíssimas, mas de todos os males artífices
sapientíssimas.

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Everaldo Vasconcelos(org)

15 MEDÉIA II

AUTOR - Eurípedes

PERSONAGENS – Medéia, Os dois Filhos.

DESCRIÇÃO – Medéia fala aos filhos ocultando a sua


intenção de matá-los.

TEXTO – (ver nota 9)

MEDEIA

Ó filhos, filhos, vós tendes país e tendes morada, na qual,


depois de terdes abandonado esta desgraçada, habitareis,
para sempre privados da vossa mãe. Eu tenho de partir
para o exílio, para outra terra, antes de ter gozado a vossa
companhia e de vos ter visto felizes, antes de ter adornado
o leito, e a noiva, e o tálamo, e de ter pegado nos fachos
nupciais.

Oh! Desventurada que eu sou, por ser tão indomável! Não


era para isto que eu vos tinha criado, ó filhos, não foi para
isto que eu sofri trabalhos e passei torturas, suportando as
dores agudas de dar à luz.

92
Crestomatia dramática

Coitada de mim, que em tempos tive tanta esperança em


vós, que havíeis de amparar-me na velhice, e que, depois
de morta, me havíeis de arranjar por vossas mãos,
piedosamente, causando inveja aos homens; e agora se foi
o doce pensamento. Porque, privada de vós, eu levarei
uma vida amarga, e para mim dolorosa. E vós nem sequer
ao menos vereis a vossa mãe com esses queridos olhos,
porque tereis passado a outro gênero de vida.

Ai! Ai! Porque fitais em mim os olhos, ó filhos? Porque


sorrides pela última vez? Ai! Ai! Que hei de eu fazer? O
ânimo fugiu-me, mulheres, desde que vi o olhar límpido
dos meus filhos. não, eu não seria capaz. Deixá-las ir, as
minhas decisões anteriores. Levarei desta terra os filhos,
que são meus. Para que hei de eu, para afligir o pai deles
com a sua desgraça, infligir a mim duas vezes os mesmos
males? Não, eu não, por certo. Deixá-las ir, as minhas
decisões.

E contudo, que se passa em mim? Quero provocar o


escárnio dos meus inimigos, deixando-os de castigo?
Tenho de me atrever. Ah! Mas que vileza a minha, ter
sequer admitido pensamentos de brandura no meu
espírito! Ide, ó filhos, para casa. A quem não agradar
assistir aos meus sacrifícios, é consigo. O meu braço não
estará enfraquecido. Ai! Ai!

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Everaldo Vasconcelos(org)

Mas não, meu coração, tu, ao menos, não farás isso. Deixa-
os, ó desgraçada, poupa as crianças. Vivendo lá conosco,
eles serão a tua alegria.

Juro pelos gênios da vingança, que estão no Hades, nunca


acontecerá que eu entregue os meus filhos aos inimigos
para lhes sofrerem as insolências. É assim, absolutamente,
e não há que fugir-lhe. E é certo que com a coroa na
cabeça, envolta no peplos, a noiva perecerá, eu bem o sei.
Mas eu sigo pelo caminho mais desgraçado, e a estes vou
mandá-los por um ainda pior! Quero dizer adeus aos
meus filhos. Deixai-me, ó filhos, deixai à vossa mãe
apertar a vossa mão direita.

Ó mão tão querida, ó boca mais cara de todas, e figura e


rosto nobre dos meus filhos, gozai de felicidade, mas lá;
que a daqui vosso pai vo-la tirou. Ó doce abraço, ó terno
corpo e sopro suavíssimo dos meus filhos! Ide, ide.

OS FILHOS SAEM PARA OS APOSENTOS

Já não estou em estado de olhar mais para nós, que sou


dominada pelo mal. E compreendo bem o crime que vou
perpetrar mas, mais potente do que a minha vontade, é a
paixão, que é a causa dos maiores males para os mortais.

94
Crestomatia dramática

16 LISISTRATA

AUTOR - Aristófanes

PERSONAGENS – Lisistrata, Cleonice, Mirrina, Lampito

DESCRIÇÃO – Lisistrata propõe um estratagema para


acabar com a guerra.

TEXTO – (ver nota 10)

LISÍSTRATA – Se fosse para uma bacanal ou coisa


parecida nem teria sido necessário convidá-las. Como é
para coisa séria, até agora nenhuma mulher apareceu.
(percebendo Cleonice que se aproximava). Até que enfim
vejo uma vizinha saindo de casa! Bom dia, Cleonice!

CLEONICE – Bom dia, Lisístrata. Por que você está de


cara amarrada? Deixe esse ar trágico, meu bem, Você
assim vai ficar com rugas.

LISÍSTRATA – É, Cleonice; estou com o coração pulando


de raiva de nós mesmas, mulheres. Dizem que com os
homens somos espertíssimas...

95
Everaldo Vasconcelos(org)

CLEONICE – E somos mesmo!

LISÍSTRATA - ... mas quando se combina um encontro


aqui para tratar de assunto tão sério, elas ficam dormindo;
não aparecem!

CLEONICE – Mas queridinha, elas virão. Você sabe como


é difícil para a mulher sair de casa. Uma deve ter estado
muito ocupada com o marido; outra teve de acordar a
empregada; outra deve ter tido de fazer as crianças
dormirem; outra teve de lavá-las; outra deve ter tido
trabalho com o mingau...

LISÍSTRATA – Sei de tudo isso mas havia assuntos mais


urgentes a tratar aqui!

CLEONICE – Mas afinal, querida, por que motivo você


nos convocou?

LISÍSTRATA – Quero falar sobre uma coisa...

CLEONICE – É grande a coisa?

LISÍSTRATA – Muito grande!

CLEONICE – Então todas já deviam ter chegado!

LISÍSTRATA – (com ar de desânimo): A coisa não é essa


em que você está pensando! Se fosse já estariam todas
aqui há muito tempo. Trata-se de outra coisa, que está

96
Crestomatia dramática

remexendo aqui em minha cabeça, que me faz ficar na


cama virando para um lado e para outro há muitas noites.

CLEONICE – Então essa coisa que faz você se virar tanto


deve ser o máximo!

LISÍSTRATA - É sim, e a salvação da pátria depende do


apoio das mulheres à minha idéia.

CLEONICE – Das mulheres? Fraco apoio...

LISÍSTRATA – Fique certa de que o destino do país está


em nossas mãos. Se falharmos a pátria estará perdida, será
destruída por tantas lutas fratricidas. Mas se nós, as
mulheres, nos unirmos, as mulheres de todos os rincões
da Grécia, o país estará salvo.

CLEONICE – E que espera você que as mulheres façam de


sensato ou de extraordinário, nós que vivemos diante do
espelho às voltas com nosso “maquilagem”, nossos
vestidos, nossa roupa de baixo, nossas sandálias?

LISÍSTRATA – É justamente isso que nos salvará; nossos


vestidos provocantes, nossos perfumes, “rouge”, batom,
camisolas transparentes...

CLEONICE – Mas como?

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Everaldo Vasconcelos(org)

LISÍSTRATA – de tal maneira que não se verá mais


ninguém erguer a lança contra ninguém...

CLEONICE – Nesse caso vou já mandar fazer um vestido


bem decotado.

LISÍSTRATA - ... nem carregar escudo...

CLEONICE – Vou usar uma camisola transparente!

LISÍSTRATA - ... Nem empunhar espadas.

CLEONICE – Ah! Vou comprar umas sandálias bem


chiques!

LISÍSTRATA – Diante disso você não acha que as


mulheres já deviam ter chegado?

CLEONICE – Mais ainda: deveriam ter voado para cá há


muito tempo.

LISÍSTRATA – É, querida, mas você vai ver que como


boas atenienses elas chegarão tarde demais. Ninguém
apareceu! Nem da costa, nem das ilhas...

CLEONICE - Elas devem estar atracando... Mas olhe ali!


Estou vendo algumas aproximando-se!

LISÍSTRATA – (mais animada) É mesmo! Estão vindo


outras do lado de lá!

98
Crestomatia dramática

ENTRA MIRRINA.

MIRRINA – Será que chegamos tarde, Lisístrata? Que é


que há? Por que esse silêncio?

LISÍSTRATA – Você não vai querer elogios por chegar tão


tarde e sozinha para tratar de um caso tão importante!

MIRRINA - É que custei a encontrar minha cinta no


escuro... Mas se o caso é tão urgente estamos aqui. Fale!

CLEONICE – Ainda não. Vamos esperar as mulheres das


outras cidades. Elas não devem demorar.

LISÍSTRATA – Você tem razão. (entram Lampito, de


Esparta, e duas moças, uma da Beócia e outra de Corinto).
Aliás Lampito está chegando! Muito bem, minha querida
espartana! Salve ela! Você está linda, minha doçura! Que
carnação bonita! Que corpo vigoroso! Você seria capaz de
estrangular um touro!

LAMPITO – É mesmo. Eu faço ginástica no estádio e dou


meus pulinhos para ficar musculosa!

LISÍSTRATA – (apalpando o busto de Lampito) Como é


bom ter um busto assim rijo!

LAMPITO – Você está me apalpando como se quisesse me


cortar em pedaços para vender a carne!

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Everaldo Vasconcelos(org)

LISÍSTRATA – E essa moça aí, quem é?

MIRRINA – Uma moça de qualidades, como você está


vendo. Ela é da Beócia.

LISÍSTRATA – Sim senhora! Logo se vê. Ela parece muito


enxuta!

CLEONICE – É sim! É que a Beócia é muito seca. E ela


deve Ter pouca vegetação...

LISÍSTRATA – E essa outra mocinha, quem é?

LAMPITO – De uma família muito proeminente lá de


Corinto.

CLEONICE – Proeminente mesmo, principalmente de


perfil...

LAMPITO – Mas afinal quem convocou essa reunião de


mulheres?

LISÍSTRATA – Fui eu.

LAMPITO – Então vá logo dizendo o que você quer.

CLEONICE – Sim, querida. Já é tempo de revelar que


negócio tão sério é esse.

LISÍSTRATA – Vocês já vão saber. Antes, porém, vou


fazer uma pergunta – uma perguntinha só.

100
Crestomatia dramática

CLEONICE – Quantas você quiser.

LISÍSTRATA – Vocês não sentem falta dos pais de seus


filhos que a guerra mantém longe de vocês? Eu sei que os
maridos de quase todas estão ausentes.

CLEONICE – (suspirando) Quanto ao meu, há cinco


meses o coitadinho está fora, lá na Trácia, tomando conta
de um general para ele não fugir!

LAMPITO – E o meu? O tempo que ele passa fora do


regimento mal dá para pegar de novo o escudo e sai
voando!...

LISÍSTRATA – É exatamente isso. Homem mesmo, que é


bom, não há. Desde que começou esta última guerra nós
não temos consolo... De grande só temos mesmo a
saudade. Se eu achasse um meio, vocês concordariam com
meu plano para acabar com esta guerra?

CLEONICE – É claro! Eu, pelo menos, topo qualquer


parada, ainda que tenha que empenhar tudo o que é meu.

MIRRINA – Eu também, mesmo que tivesse de me cortar


ao meio, como um linguado, e dar metade de mim!

LAMPITO – E eu subiria uma montanha de joelhos se


soubesse que lá no cume encontraria a paz.

101
Everaldo Vasconcelos(org)

LISÍSTRATA – Então vou falar, pois não há mais razões


para guardar segredo. Nós, mulheres, se quisermos
obrigar nossos maridos a votar pela paz teremos de nos
privar...

CLEONICE – De quê? Diga logo!

LISÍSTRATA - Vocês se privarão?

CLEONICE – Nós nos privaremos, ainda que tenhamos de


morrer!

LISÍSTRATA – Muito bem: vocês terão de se privar... de


fazer amor! Ei! Por que vocês estão indo embora? Aonde
vocês vão? Por que estão com essa cara amuada e coçando
a cabeça? E essas lágrimas? Vocês vão ou não vão fazer o
que eu disse? Qual é a dificuldade?

CLEONICE – Isso eu não posso fazer. Deus me livre!


Antes a guerra!

MIRRINA – Nem eu. Deus me livre! Prefiro a guerra!

LISÍSTRATA – É você quem fala assim, linguado, você


que disse se deixaria cortar ao meio?

CLEONICE – Faço qualquer coisa que você queira. Se for


preciso andar descalça em cima de uma fogueira, conte

102
Crestomatia dramática

comigo. Antes isso que passar sem fazer amor. Isso é


insubstituível, minha querida!

LISÍSTRATA – (dirigindo-se a Mirrina) E você?

MIRRINA – Eu também prefiro andar por cima da


fogueira da Cleonice.

LISÍSTRATA – Ó sexo dissoluto! Não escapa uma! Não é


sem razão que somos assunto de tu quanto é tragédia.
Quando vocês não estão pensando num homem é porque
estão pensando em vários! (dirigindo-se a Lampito). Mas
minha querida espartana, você parece a única que está
comigo. Unamo-nos! Ainda poderemos salvar a situação!

LAMPITO – É doloroso para uma mulher dormir sozinha,


sem uma certa coisa... Em todo caso, estou resolvida, pois
precisamos de paz!

LISÍSTRATA – Querida! Você é a única mulher de


verdade entre todas essas aí!

CLEONICE – E se, na medida do possível, nós nos


provássemos disso que você disse – Deus me livre! – você
garante que conseguiríamos a paz? Será que não há outro
meio?

LISÍSTRATA – O meio é exatamente esse! Se ficamos em


casa, bem pintadas, com vestidos transparentes, deixando

103
Everaldo Vasconcelos(org)

ver certos lugares bem depiladinhos, e quando nossos


maridos avançarem para nós, taradinhos,loucos para nos
agarrar, nós não deixarmos, garanto que eles votarão logo
pela paz!

LAMPITO – É isso mesmo! Quando Menelau pôs o olho


nos seios de Helena, largou logo a espada e mandou
brasa!

CLEONICE – E se nossos maridos nem perceberem nossos


encantos à mostra?

LISÍSTRATA – Eles vêem até o que está escondido, minha


filha, quanto mais o que se mostra!...

CLEONICE – Eu acho tudo isso uma bobagem. Não gosto


de fingir. Mas se eles nos agarrarem e nos levarem à força
para o quarto?

LISÍSTRATA – Vocês seguram na porta.

CLEONICE – E se eles baterem em nós?

LISÍSTRATA – Em último caso, vocês deixam, mas de má


vontade e sem cooperar. Não há prazer nessas coisas
quando forçadas. Além disso é preciso faze-los sofrer.
Fique tranqüila; eles entregarão logo os pontos pois o
homem sem mulher não tem prazer em nada.

104
Crestomatia dramática

CLEONICE – Se vocês são dessa opinião... eu também


sou!

LAMPITO – Nós em Esparta convenceremos nossos


homens a votar por uma paz justa, leal. Mas os atenienses,
que são de briga, como vai ser possível aquietá-los?

LISÍSTRATA – Não tenha receios quanto a isso. Daremos


um jeito neles...

LAMPITO – Enquanto eles tiverem navios de guerra e o


Tesouro lá na Acrópole estiver cheio, acho difícil.

LISÍSTRATA – Mas nós pensamos nisso também. Vamos


assaltar a Acrópole hoje, minha filha. As mulheres mais
velhas têm ordem para isso; enquanto estivermos nos
concentrando aqui, a pretexto de rezar juntas, elas
ocuparão a Acrópole.

LAMPITO – Bem; assim pode ser. Você agora me


convenceu.

LISÍSTRATA – Então, Lampito, por que nãos nos unimos


logo por um juramento, para que nosso pacto seja
inviolável?

LAMPITO – Boa idéia! Então diga como devemos jurar.

LISÍSTRATA – Vamos tratar disso.

105
Everaldo Vasconcelos(org)

CLEONICE – Que juramento você quer fazer, Lisístrata?

LISÍSTRATA – Vamos todas jurar com as mãos em cima


de um escudo, como fazem os homens.

CLEONICE – Ora, Lisístrata! Esse negócio de escudo


cheira a guerra e nós queremos paz.

LISÍSTRATA – Então como vamos jurar? (pausa) Tenho


outra idéia. Em vez de escudo vamos usar uma grande
taça cheia de vinho para jurar, uma taça de paz. Tragam a
taça e vinho!

CLEONICE – Mas Lisístrata, vinho é vermelho e lembra


sangue. E depois podemos ficar embriagadas...

LISÍSTRATA – Assim não se vai chegar a nenhuma


conclusão, Cleonice.

CLEONICE – Então eu quero ser a primeira...

LISÍSTRATA – Não senhora!

CLEONICE - ... a primeira a beber um traguinho desse


vinho perfumado.

LISÍSTRATA – Ponham as mãos por cima da taça. Vamos,


Lampito! E uma de vocês repetirá em nome de todas o que
eu for dizendo. Vocês jurarão o mesmo que eu e nosso
compromisso solene será indissolúvel. Atenção! Vamos

106
Crestomatia dramática

começar ”Não deixarei nenhum homem, seja amante ou


marido...”

CLEONICE – “Não deixarei nenhum homem, seja amante


ou marido...”

LISÍSTRATA – “... chegar perto de mim...” (dirigindo-se a


Cleonice que permanecia calada) Vamos! Repita!

CLEONICE – (com voz sumida) “... chegar perto de


mim...” Ai! Meus joelhos estão fraquejando, Lisístrata!

LISÍSTRATA – “Ficarei em casa sem homem...”

CLEONICE – “Ficarei em casa sem homem...”

LISÍSTRATA – “... vestida com camisola transparente e


toda enfeitada...”

CLEONICE – “... vestida com camisola transparente e


toda enfeitada...”

LISÍSTRATA – “... para que meu marido fique tarado por


mim...”

CLEONICE – “... para que meu marido fique tarado por


mim...”

LISÍSTRATA – “... e não me entregarei a ele até que ele


vote pela paz...”

107
Everaldo Vasconcelos(org)

CLEONICE – “... e não me entregarei a ele até que ele vote


pela paz...”

LISÍSTRATA – “... e se, contra a minha vontade, ele me


forçar...”

CLEONICE – “... e se, contra a minha vontade, ele me


forçar...”

LISÍSTRATA – “... não me enroscarei nele nem o


abraçarei...”

CLEONICE – “... não me enroscarei nele nem o


abraçarei...”

LISÍSTRATA – “... nem levantarei meus pés para o teto...”

CLEONICE - “... nem levantarei meus pés para o teto...”

LISÍSTRATA – “... nem farei qualquer movimento.”

CLEONICE – “... nem farei qualquer movimento.”

LISÍSTRATA – “... Se eu guardar meu juramento,


permitam os deuses que eu possa beber sempre vinho...”

CLEONICE – “... Se eu guardar meu juramento, permitam


os deuses que eu possa beber sempre vinho...”

LISÍSTRATA – “... mas se eu quebrar meu juramento, que


esta taça se encha d’água!”

108
Crestomatia dramática

CLEONICE – “...mas se eu quebrar meu juramento, que


esta taça se encha d’água!”

LISÍSTRATA – Todas juram?

TODAS JUNTAS – Juramos!

LISÍSTRATA – Então bebamos! (demora bebendo)

CLEONICE – Ei! Beba só a sua parte! Afinal, se todas


juramos, todas devemos beber!

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17 O MISANTROPO I

AUTOR - Menandro

PERSONAGENS – Pã

DESCRIÇÃO – Prólogo no qual Pâ apresenta a estória da


peça.

TEXTO – (ver nota 11)

(SAINDO DA GRUTA A ELE DEDICADA.)

Imaginem que o lugar da cena é File, na Ática; a gruta das


Ninfas, de onde estou saindo, é exatamente o santuário
bem visível, pertencente aos filásios, gente capaz de fazer
crescer plantas nos rochedos desta região. Na propriedade
ali à minha direita mora Cnêmon, homem cheio de rancor
para com todo o mundo e inimigo da sociedade. Digo
sociedade? Ele já é um bocado velho; pois bem, durante
toda a sua existência ele nunca iniciou conversa alguma,
nunca dirigiu a palavra primeiro a ninguém, a não ser

110
Crestomatia dramática

para me reverenciar (constrangido por nossa vizinhança)


quando passa diante de mim, Pã; e ainda assim de má
vontade, eu bem sei.

Com um temperamento assim ele casou com uma viúva,


cujo marido morrera, deixando-lhe um filho de tenra
idade. Não se contentando com discutir com ela o dia
todo, ele ainda consumia assim a maior parte da noite;
viviam pessimamente. E tiveram uma filha; foi ainda pior.
Como a desventura deles ultrapassasse tudo que se pode
imaginar, e sua vida fosse apenas sofrimento e amargura,
a mulher voltou para junto do filho nascido do primeiro
casamento. Este possuía pequena propriedade, aqui nos
arredores; é lá que ele hoje proporciona uma vida
apertada à sua mãe, a si mesmo e a um único escravo,
criado fiel deixado por seu pai. Esse rapaz já é um
homenzinho e tem o espírito mais maduro que a idade.
Nada como a experiência da vida para formar as pessoas.

Quanto ao velhote, vive sozinho com a filha e uma velha


criada, carregando lenha, cavando a terra com a enxada,
para cima e para baixo o tempo todo e detestando todo o
mundo, por atacado, a começar aqui por seus vizinhos e
sua mulher até o pessoal de Colarges, lá embaixo. A moça
tornou-se o que seria de esperar de sua educação: ignora
tudo que é ruim. O zelo com que ela se dedica à sua
devoção e às homenagens às Ninfas companheiras, levou-

111
Everaldo Vasconcelos(org)

nos a pensar em fazer alguma coisa por ela. Um rapaz cujo


pai, muito rico, cultiva nesta região terras que valem
milhões mas vive na cidade, veio caçar por aqui com um
companheiro; chegou a esta paragens por acaso e fiz com
que ele começasse a perder a cabeça por ela. Aí estão as
linhas gerais da ação. Os detalhes vocês verão, se
quiserem. Mas é tempo de querer, pois parece que estou
vendo aproximar-se o apaixonado com seu companheiro
de caça; eles estão conversando sobre o assunto.

112
Crestomatia dramática

18 O MISANTROPO II

AUTOR - Menandro

PERSONAGENS – Simica, Sícon

DESCRIÇÃO – Cena 1 a 5 do quarto ato no qual Cnêmon


se arrepende de ser um velho rabugento.

TEXTO – (ver nota 11)

CENA 1

SIMICA (saindo apavorada da casa de Cnêmon.)

Socorro! Eu sou uma infeliz! Socorro!

SÍCON (saindo do santuário, atraído pelos gritos.)

Pelo amor dos deuses! Façam o favor de nos deixar


completar as libações em paz! Vocês ficam dizendo
impropérios, dão murros, se lamentam! Que casa
esquisita!

SIMICA

Meu patrão caiu no poço!

113
Everaldo Vasconcelos(org)

SÍCON

Como?

SIMICA

Como? Ele ia descer para tirar a enxada e o balde; aí


escorregou lá de cima e caiu.

SÍCON

Ele não é aquele velho rabugento?

SIMICA

É ele mesmo.

SÍCON

Bem feito! Velhinha querida, chegou a hora de você agir!

SIMICA

O que é que você está querendo dizer?

SÍCON

Pegue um pouco de cimento, um bloco de pedra ou coisa


parecida e jogue em cima dele aqui do alto!

SIMICA (apavorada.)

114
Crestomatia dramática

Desça lá no fundo, meu bom amigo!

SÍCON

Os deuses me livrem! Para que eu tenha de lutar com um


cachorro no fundo do poço, como no provérbio? Nunca!

SIMICA (gritando.)

Górgias! Onde é que você está?

CENA 2

GÓRGIAS (saindo da gruta.)

Onde eu estou? O que é que há, Simica?

SIMICA

O que é que há? Eu torno a dizer: meu patrão caiu no


poço!

GÓRGIAS

Sóstrato! Saia depressa!

(A Simica.)

Vá na frente! Entre já!

(Desaparecem todos na casa de Cnêmon.)

115
Everaldo Vasconcelos(org)

SÍCON (Só.)

Ainda existem deuses! Você não quis dar o caldeirão para


um sacrifício, ladrão de santuários! Você, não foi? Agora
que você caiu no poço, engula a água toda dele! Assim
você não terá de dar nem água a ninguém! Hoje as Ninfas
se vingaram dele por mim, e com justiça. Ninguém que
praticou crimes contra cozinheiros ficou impune. Nossa
arte tem qualquer coisa como uma sagrada imponência.
Quanto aos copeiros, faça deles o que quiser. Mas será que
ele já morreu? Estou ouvindo uma voz feminina que se
lamenta chamando baixinho “papaizinho querido”! Já
estou ficando comovido. É claro que os dois vão tirar o
velho do poço! Vocês já pensaram na cara que ele vai
fazer, todo molhado e tremendo de frio? Pois imaginem!
Ela vai ser um bocado bonita!... Eu, pelo meu gosto, já
queria estar olhando para ela.

(Dirigindo-se às mulheres que permaneciam no


santuário.)

E vocês, mulheres, façam suas libações com esta intenção!


Rezem pela vida do velho, para que ele se salve... em má
hora, estropiado e capenga. Assim ele vai ser um vizinho
inofensivo para o deus daqui e para as pessoas que vêm
fazer sacrifícios (pensando bem, pode ser até que algumas
delas contratem meus serviços...)

116
Crestomatia dramática

(Torna a entrar na gruta.)

CENA 3

SÓSTRATO (saindo da casa de Cnêmon.)

Pelos deuses, pessoal! Eu nunca vi na minha vida um


homem afogado – ou quase – em tão boa hora! Que
momentos agradáveis! Devo dizer que Górgias, logo que
nós entramos, saltou de um pulo no poço, sem perder um
instante. Eu e a pequena ficamos lá em cima sem fazer
nada, esperando não sei o quê, ou melhor, ela arrancava
os cabelos, chorava, batia no peito com toda a força,
enquanto eu, feliz como se fosse de ouro, plantado perto
dela, pedia a ela, como uma ama seca, para não fazer
aquilo, com o olhar fixo naquela estátua extraordinária. E
na vítima lá embaixo eu mal pensava, embora tenha tido
de puxar corda sem parar para tirá-lo do poço; isso me
amofinava um bocado. E quase que eu não conseguia!
Enquanto eu olhava a pequena, a corda me escapou três
vezes das mãos. Mas Górgias, forte como poucos,
agüentava firme e tanto fez que finalmente, a duras penas,
o velho apareceu na boca do poço. Logo que ele pôs os pés
fora do poço eu saí para vir aqui. É que eu já não podia me
dominar; por pouco não me atirei no colo da pequena; o
meu amor é forte assim. Estou me aprontando para... mas
estou ouvindo barulho na porta!

117
Everaldo Vasconcelos(org)

(Abre-se a porta e aparece Cnêmon, desfigurado,


amparado por Sua Filha e Górgias.)

Santos deuses! Que espetáculo raro!

CENA 4

GÓRGIAS

Você deseja alguma coisa, Cnêmon? Diga!

CNÊMON

O que é que eu vou dizer? Estou arrasado!

GÓRGIAS

Anime-se!

CNÊMON

Estou animado... De agora em diante Cnêmon não


aborrecerá mais vocês.

GÓRGIAS

Este é o mal da solidão. Você está vendo? Você esteve a


ponto de morrer a poucos instantes. Com sua idade você
deve viver cercado de cuidados o resto de seus dias.

CNÊMON

118
Crestomatia dramática

Isto me desagrada, não há dúvida, mas vá chamar sua


mãe, Górgias.

GÓRGIAS

Com muito gosto!

(À parte.)

Parece que a gente só aprende sofrendo.

(Sai.)

CNÊMON

Você quer passar seu braço por aqui e me ajudar a ficar


em pé, filhinha?

SÓSTRATO

Meu caro senhor...

CNÊMON

O que é que você está fazendo aí plantado, desgraçado?

CENA 5

CNÊMON

Mirrina e Górgias... eu queria... justificar minha escolha


quanto a esta vida solitária; eu sei que não é justo, mas

119
Everaldo Vasconcelos(org)

nenhum de vocês pode mudar minha opinião; ao


contrário, vocês devem concordar comigo neste ponto.
Meu único erro, na verdade, era crer que somente eu,
entre todos os homens, podia bastar-me a mim mesmo,
sem ter a necessidade de ninguém; agora que eu vi que a
vida pode acabar quando menos se espera, num instante,
achei que estava errado pensando como até agora. É
preciso ter perto da gente alguém que esteja pronto para
nos socorrer. Mas qual o quê! A minha cabeça estava tão
virada de tanto ver as pessoas viverem cada uma de um
jeito, agindo por interesse, que eu não podia imaginar que
pudesse haver alguém no mundo capaz de agir
desinteressadamente, por simpatia para com seus
semelhantes. Eu parava sempre nessa barreira, até que
hoje apareceu um homem para me dar a prova – Górgias –
que por sua conduta demonstrou toda a nobreza de seu
caráter. Ele salvou justamente aquele que não deixava que
ele chegasse à sua porta, que nunca o auxiliou, que nem
falava com ele! Outro podia ter dito com toda a razão:
“Você não queria que eu chegasse perto; pois então eu não
chego. Você nunca nos ajudou; pois hoje eu também não
vou ajudar você!” E agora, rapaz? Que eu morra neste
instante – e haveria de ser um modo miserável, no estado
em que me encontro – quer eu sobreviva, declaro você
meu filho. Considere seu tudo o que eu possuo.

120
Crestomatia dramática

(Indicando a filha.)

Confio a você a guarda desta aqui. Arranje um marido


para ela, pois mesmo que eu por sorte recupere todas as
minhas forças seria incapaz, por mim mesmo de arranjar
um para ela; nunca haveria de aparecer um de quem eu
gostasse. Quanto a mim, se eu escapar me deixe viver ao
meu modo. Tome conta e trate de minhas coisas. Graças
aos deuses você é sensato; você é o guarda natural de sua
irmã. Divida meus bens em duas partes iguais: uma será o
dote dela; fique com a outra para você trabalhar e tirar
dela o seu sustento e o de sua mãe. Agora me ajude a
deitar, minha filha. Falar mais do que o necessário não é
para homem. Mas ainda há uma coisa que você deve
saber, meu filho. Só tenho umas poucas palavras a dizer
sobre o meu modo de ser: se todos os homens fossem
como eu, não haveria esses tribunais, nem essas prisões
para onde eles levam seus semelhantes, não haveria
guerra; cada qual viveria contente com o pouco que
tivesse. Mas está-se vendo que vocês preferem as coisas
assim. Pois vivam assim mesmo! O velho ranheta e difícil
não vai mais atrapalhar os passos de vocês.

121
Everaldo Vasconcelos(org)

19 AULULARIA

AUTOR – Plauto.

PERSONAGENS – Euclião, Estáfila

DESCRIÇÃO – Também conhecida como a comédia da


Marmita.

TEXTO – tradução de Agostinho da Silva. (ver nota 12)

EUCLIÃO

Já lá para fora, vamos! Lá para fora, já disse! Tens que ir


mesmo lá para fora, minha espiã, sempre de olho
esbugalhado!

ESTAFILA

Ah, pobre de mim! Por que é que me bates?

EUCLIÃO

Para que sejas mesmo uma "pobre de mim!" e para que,


por seres má, tenhas a má vida que é digna de ti.

122
Crestomatia dramática

ESTÁFILA

Mas por que é que me puseste assim fora de casa?

EUCLIAO

Terei eu que te dar alguma explicação; minha arca de


pancada? Sai para longe da porta. Para ali, se quiseres.
(MOSTRA-LHE O LADO OPOSTO À CASA.) Ora vejam,
como ela anda! E agora, sabes tu o que há? Por Hércules!
se hoje pego num pau ou num chicote, acho que te vou
alargar esse passo de tartaruga!

ESTAFILA

(À PARTE): Era bem melhor que os deuses me


enforcassem do que fazer-me servir-te a troco disto.

EUCLIAO

Olha esta malvada, como resmunga lá consigo! Por


Hércules, ainda te vou arrancar os olhos, minha sem-
vergonha, para que não possas espiar o que eu vou fazer!
Vai lá para trás! Mais... Mais... Mais... Bom, aí podes parar.
Mas, por Hércules, olha que se sais desse lugar nem que
seja um dedo travesso ou a largura duma unha ou se
olhares para trás sem que eu te dê licença, então, por

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Everaldo Vasconcelos(org)

Hércules, mando-te logo para a cruz, para te ensinar. (À


PARTE.) Acho que nunca vi ninguém mais danado do que
esta velha! Do que eu tenho um medo terrível é que ela
não me tenha caçado alguma palavra por descuido meu e
não lhe tenha chegado o cheiro do lugar em que escondo o
ouro; porque esta malvada até parece que tem olhos na
nuca. E agora vou ver se o ouro ainda está aonde eu o
escondi; pobre de mim! é o que mais me preocupa! ( SAI.)

ESTÁFILA

(SÓ) Por Castor, não sei que desgraça é que aconteceu a


meu senhor! Não posso perceber que loucura lhe terá
dado! Tem-me feito a vida negra! Num só dia, já me pôs
dez vezes fora de casa! Por Pólux! Não sei que fúrias se
apoderaram dele! Está de vela durante toda a noite;
depois fica sentado em casa o dia inteiro, corno se fosse
um sapateiro coxo. Não sei já de que maneira se lhe há de
esconder o que aconteceu à filha, por que já se aproxima a
hora do parto. Não percebo nada disto! E acho que o
melhor para mim será atar uma corda ao pescoço e
transformar-me numa letra comprida.

EUCLIAO

(À PARTE): Agora saio de casa já com o espírito bem


descansado: vi que lá dentro tudo está a salvo.

124
Crestomatia dramática

(A ESTÁFILA.) Volta já para casa e deixa-te estar de


guarda.

ESTAFILA

(IRONICAMENTE)

De guarda a quê? É para que ninguém leve a casa?


Porque realmente nós já não temos mais nada que sirva
para ladrões: o que há lá por dentro é só coisa nenhuma e
teias de aranha.

EUCLIAO

Pois, como se agora por tua causa Júpiter fizesse de mim


um rei Filipe ou um Dario! Grande megera! Eu quero que
me guardes as minhas aranhas. Confesso que sou pobre:
mas suporto a pobreza. Aceito o que os deuses me dão.
Vai lá para dentro. Fecha a porta. Eu volto já. Cuidado,
não deixes entrar nenhum estranho em casa.

ESTAFILA

E se vier alguém por brasas?

EUCLIAO

Para que ninguém tas venha pedir, apaga já o lume. Se


ficar aceso és tu que te apagas logo. Se alguém vier pedir
água dizes que se derramou. Se vierem pedir facas ou

125
Everaldo Vasconcelos(org)

machado ou pilão ou almofariz, dessas coisas de que os


vizinhos sempre precisam, dirás que vieram os ladrões e
que roubaram tudo. Mas principalmente o que eu não
quero é que entre alguém em minha casa enquanto eu
estou ausente. E até te digo mais: mesmo que a Sorte
venha não a deixes entrar.

ESTAFILA

Por Pólux, acho que ela tomará cuidado em não vir;


nunca se aproximou da nossa casa, embora more na
vizinhança.

EUCLIAO

Cala-te e vai lá para dentro.

ESTAFILA: Calo-me e vou lá para dentro.

EUCLIAO: Vê lá se fechas a porta com os dois ferrolhos.


Eu volto já.

{ESTÁFILA SAI.)

Estou inquietíssimo por me ter de afastar de casa. Por


Hércules, vou mesmo contra vontade. Mas sei que tenho
que fazer. O chefe da nossa cúria2 disse que ia distribuir
dinheiro pelos homens. Se eu não for lá e não reclamar a
minha parte, todos vão julgar, creio eu, que tenho ouro em

126
Crestomatia dramática

casa. Não é verossímil que um homem pobre despreze o


que lhe dão, mesmo que seja pouco. E mesmo agora,
quando faço o possível por ocultá-lo a todos, parece que
todos o sabem, e que todos me saúdam com mais
amabilidade do que dantes. Aproximam-se, param,
estendem a mão. Perguntam-me como vou de saúde, de
que ando a tratar e como vão as minhas coisas. Mas deixa-
me ir aonde tenho de ir. Depois, voltarei para casa o mais
depressa que puder, (SAI.)

127
Everaldo Vasconcelos(org)

20 O EUNUCO I

AUTOR - Terêncio

PERSONAGENS – Prólogo,

DESCRIÇÃO –

TEXTO – tradução de Nahim Santos Carvalho na


dissertação de mestrado, Eunuchus de Terêncio: estudo e
tradução, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas, do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.

PRÓLOGO

Se há alguém que se esforça por agradar o maior número


possível de pessoas de bem e lesar o mínimo possível a
muitos, este poeta proclama seu nome entre eles. Por
outro lado, se há alguém que julgou ter sido tão
duramente atacado, do mesmo modo deve julgar que se
trata de uma resposta, não de um ataque, porque atacou
primeiro: ele, traduzindo bem e escrevendo mal, fez de
boas comédias gregas, comédias latinas nada boas. Ele
apresentou [10] recentemente “O Fantasma” de
Menandro, e escreveu em “O Tesouro” que o acusado

128
Crestomatia dramática

explica primeiro por qual motivo o tesouro é seu antes


que aquele que acusa explique como o tesouro lhe
pertence ou como foi parar no túmulo de sua família. A
partir deste momento, que ele não se engane ou pense
assim: “já me desobriguei: não há nada que ele possa me
dizer”. Advirto para que ele não se engane e deixe de
provocar. Tenho muitas outras coisas pelas quais ele é
agora desculpado, mas que serão mostradas depois se ele
continuar a injuriar, assim como começou a fazer. A
comédia que vamos representar, o “Eunuco” de
Menandro, depois que os edis a compraram, ele conseguiu
obter a permissão para examiná-la. Visto que o
magistrado aí estivesse presente, começou a
representação. Então ele grita que um ladrão, não um
poeta escreveu a peça, e que o mesmo todavia não
escreveu nenhuma palavra; que há um “Cólax”, de Névio,
e uma velha comédia de Plauto: daí teriam sido tiradas
aspersonagem do parasito e do soldado. Se isto é um
crime, o crime é o descuido do poeta, não porque
desejasse cometer um plágio. Agora vocês julgar se isto é
assim. Há um “Cólax” de Menandro, nesta comédia há
um parasita bajulador e um soldado fanfarrão. O poeta
não nega que transladou estas personagem da peça grega
para seu “Eunuco”. Mas que ele soubesse que estas peças
tivessem sido traduzidas para o latim antes, isso ele nega
deveras. Mas se não lhe é permitido usar aqui as mesmas
personagens, como seria possível descrever o escravo
apressado, apresentar as boas matronas, as cortesãs
maldosas, o parasita glutão, o soldado fanfarrão, o bebê
que é trocado, o velho que é enganado pelo escravo, o

129
Everaldo Vasconcelos(org)

amor, o ódio, a suspeita? Em suma, não há nada dito


agora que não tenha sido dito antes. Por isso é justo que
vocês reconheçam e desculpem se os novos fazem o que
os velhos já fizeram muitas vezes. Prestem atenção,
fiquem atentos e em silêncio, para que possam entender o
que o “Eunuco” tem a dizer.

130
Crestomatia dramática

21 O EUNUCO II

AUTOR - Terêncio

PERSONAGENS – Fédria, Parmenão

DESCRIÇÃO –

TEXTO – tradução de Nahim Santos Carvalho na


dissertação de mestrado, Eunuchus de Terêncio: estudo e
tradução, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Clássicas, do Departamento de Letras Clássicas e
Vernáculas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo.

FÉDRIA

Que devo fazer, então? Não ir a casa dela, nem mesmo


agora quando ela me mandou chamar, por sua livre
vontade? Ou, antes, eu deveria preparar-me de modo a
não sofrer insultos de prostitutas? Ela me expulsou e
agora me chama de volta: devo voltar? Não, a menos que
ela me implore. Realmente, por Hércules, se você pudesse,
nada seria mais importante e mais certo. Mas, se você
começar e não persistir com empenho e, se não puder

131
Everaldo Vasconcelos(org)

suportar tudo isso, quando ninguém mais o procurar, se


vier à casa dela, mesmo sem ter feito as pazes, mostrando
que a ama e que não pode resistir a ela, a coisa está feita,
está tudo acabado, você está perdido. Ela zombará de você
quando perceber que você foi vencido. Assim, você reflita
mais e mais enquanto é tempo.

PARMENÃO

Patrão, uma coisa que não tem em si nem prudência nem


moderação, você não pode governá-la pela prudência. No
amor estão presentes todos estes vícios: injúrias, suspeitas,
inimizades, tréguas, guerra e paz novamente. Se você
pretende tornar certas pela razão essas coisas incertas não
faça mais nada a não ser que você se esforce para
enlouquecer com a razão. E é isto que agora seguramente
você está pensando, irado consigo mesmo: “Eu a... ela que
o... que me... que não! Sem dúvida, porém, prefiro perecer!
Ela perceberá que homem sou eu!” Por Hércules, uma
única lagriminha falsa, que ela terá extraído com muito
custo esfregando os olhos com força, destruirá estas
palavras e, além disso, ela te acusará, e mais, você vai se
oferecer ao suplício.

FÉDRIA

Oh! Crime indigno! Agora percebo que ela é uma


criminosa e eu um infeliz. Isto me aborrece, mas, ao
mesmo tempo, ardo de amor, estou morrendo consciente,
vivo e vendo, e não sei o que fazer.

132
Crestomatia dramática

PARMENÃO: O que fazer? Nada senão se resgatar da


escravidão pelo menor preço que puder. [75] Se você não
puder por pouquinho, pelo quanto puder. E não se aflija.

FÉDRIA

É assim que você me aconselha?

PARMENÃO

Se você for sensato, não acrescente desgostos além dos


que o próprio amor já tem, e mesmo aqueles que já tem,
suporte-os bem. Mas ei-la em pessoa saindo, a ruína de
nossos fundos. Pois o que nos cabe conservar, ela nos
subtrai.

133
Everaldo Vasconcelos(org)

22 ADVOGADO PATHELIN

AUTOR - Anônimo

PERSONAGENS – Pathelin, advogado, esperto e ardiloso;


Guilhermina, esposa de Pathelin, astuciosa; Guilherme,
comerciante, simplório.

DESCRIÇÃO – Cena 4 - O comerciante Guilherme vai


para casa do Advogado Pathelin para um jantar depois de
ter-lhe vendido uma peça de tecido fiado.

TEXTO – Tradução de Luiz Hasselmann

GUILHERME

(NA RUA) - Creio que já está na hora de beber o vinho e


comer o pato lá do tal doutor Pathelin! Ah! Meu querido
dinheiro, até que enfim vou te ver. Meu coração quase
pára quando me lembro que vendi fiado uma peça de
fazenda. Ho! Ho! Dr. Pedro Pathelin.

GUILHERMINA

Que barulho é esse? Se o senhor tem alguma coisa a dizer,


fale baixo.

GUILHERME

134
Crestomatia dramática

Deus vos guarde, minha senhora.

GUILHERMINA

Fale baixo.

GUILHERME

Mas o que há?

GUILHERMINA

Eu lhe peço, pelo amor de Deus, não grite!

GUILHERME

Onde está seu marido?

GUILHERMINA

Meu Deus, onde é que o senhor queria que ele estivesse?

GUILHERME

O doutor Pathelin não está aí?

GUILHERMINA

Quisera Deus que ele estivesse com bastante saúde para


não estar aqui.

GUILHERME

Mas o que quer dizer com isto?

135
Everaldo Vasconcelos(org)

GUILHERMINA

Coitado do homem... Ele está na cama... Onze meses de


martírio!

GUILHERME

Quem?

GUILHERMINA

Desculpe, mas não posso ficar aqui muito tempo. Tenho


que voltar para perto do meu doente.

GUILHERME

Mas quem é o seu doente?

GUILHERMINA

Quem há de ser senão o meu marido?

GUILHERME

O doutor Pedro Pathelin?

GUILHERMINA

Não consta que eu tenha outro marido.

GUILHERME

Mas não há quinze minutos que ele esteve comigo, e por


sinal me comprou fiado uma peça de tecido. Vim aqui
para receber o dinheiro.

136
Crestomatia dramática

GUILHERMINA

Que brincadeira mais sem graça! Não se está em hora de


diversões...

GUILHERME

São 84 escudos. Quero já o meu dinheiro!

GUILHERMINA

O senhor está doido? Vá contar suas lorotas a outra, ou se


é uma brincadeira, ela está muito fora de hora.

GUILHERME

Faça o favor de acabar com as suas lorotas e vá chamar o


doutor Pathelin.

GUILHERMINA

Diabos levem o senhor! Então é o momento de fazer um


homem agonizante sair da cama?

GUILHERME

Mas não é aqui a casa do doutor Pedro Pathelin?

GUILHERMINA

Quantas vezes o senhor quer que lhe diga que sim? Está
louco, vá para o hospício.

GUILHERME

137
Everaldo Vasconcelos(org)

A senhora me diz para falar baixo e grita mais que um


general em manobras...

GUILHERMINA

É que o senhor me faz perder a paciência.

GUILHERME

Basta de histórias. Já lhe disse que o doutor Pathelin me


comprou sete varas de tecido hoje, agora mesmo.

GUILHERMINA

Que? O senhor continua na sua loucura? Meu pobre


marido há onze meses está doente, pregado na cama,
gemendo de cortar o coração, havia de ter hoje que
comprar tecido na sua loja? Meu Deus! Como o mundo
está cheio de gente perversa!

GUILHERME

Vamos! Meu dinheiro!

GUILHERMINA

O senhor está bêbado? Só pode ser isso.

GUILHERME

Bêbado eu? Que desaforo!

GUILHERMINA

138
Crestomatia dramática

Só um bêbado pode dizer que um homem doente,


paralisado pelo sofrimento, saiu para comprar tecido. Só
se fosse uma mortalha.

GUILHERME

Esta história vai continuar?

GUILHERMINA

Vamos, fale baixo ou vá embora. As pessoas maledicentes


vão dizer que o senhor veio aqui por minha causa. Os
médicos vão chegar a qualquer momento.

GUILHERME

Pouco me importa se pensem bem ou mal. Já que não sei o


que penso.

PATHELIN

(DE DENTRO) - Guilhermina, um pouco de água de rosa.


Meu Deus, você me deixa sozinho aqui! Água, venha
depressa!

GUILHERMINA

Aí está o que o senhor fez. O pobre homem acordou.

GUILHERME

Ainda bem.

PATHELIN

139
Everaldo Vasconcelos(org)

Guilhermina, vem depressa expulsar toda esta gente preta


que está aqui fazendo caretas para mim. Socorro!

GUILHERMINA

Que é isso, meu bem? Você não tem juízo de levantar


assim?

PATHELIN

Olha esse frade preto que está voando. Vocês não estão
vendo? Peguem, peguem! Ponham-me uma estola para o
exorcismo. Meu Deus, como ele voa...

GUILHERMINA

Veja como ele sofre, coitado!

GUILHERME

Mas ele caiu doente ao voltar da feira?

GUILHERMINA

Que feira?

GUILHERME

Onde tenho minha loja de tecidos.

PATHELIN

Ah! É o senhor, doutor João? Chegou a tempo. Seus


remédios me deram tanta

140
Crestomatia dramática

cólica que estou que não posso. Hoje pus para fora duas
coisinhas pretas, mais duras que pedras, redondas como
bolotas. Não aguento estas cólicas!

GUILHERME

Que é isso? O senhor não se lembra de mim? Meu


dinheiro?

PATHELIN

Eu não tomo mais nenhum remédio que o senhor me


receitar. Além de serem amargos como fel, fazem uma tal
revolta no meu ventre que parece que tenho um exército
na barriga.

GUILHERME

Que é isso? Sou eu quem está louco ou é o senhor? Mas o


meu dinheiro, onde está?

PATHELIN

Corram, corram! Aí vem eles, socorro! Eles estão me


matando...

GUILHERMINA

Coitadinho, em que estado está.

141
Everaldo Vasconcelos(org)

GUILHERME

Não sei o que diga, nem o que pense. Foi ele que veio à
minha loja? Foi outro? Só se fosse o diabo. Vamos, minha
senhora, diga-me, a senhora não tem um pato
cozinhando?

GUILHERMINA

Ora vejam, que pergunta! Havia eu de ter um pato


cozinhando, quando meu marido está neste estado?
Mestre Guilherme, procure um médico, o senhor não está
bem da cabeça.

GUILHERME

É possível, é possível... A senhora me estonteou tanto que


já nem sei onde estou. Foi ele? Não sei, meu Deus! Ah!
Meu rico dinheiro! Que pesadelo! Enfim, creio que não há
mais nada a fazer... Adeus... Será possível? (SAI)

PATHELIN

Ele já foi?

GUILHERMINA

Psiu! Ele está perto... Rosna mais que um velho cão de


caça. Parece que está sonhando acordado.

PATHELIN

Quero sair da cama.

142
Crestomatia dramática

GUILHERMINA

Espere um pouco, ele pode ouvir.

PATHELIN

Ele, tão desconfiado, acabou caindo como um patinho.

GUILHERMINA

É para descontar o que ele rouba dos outros. O homem só


falava de pato, sem perceber que ele era um, e de que
tamanho! (RI MUITO)

PATHELIN

Não ria assim, ele pode escutar.

GUILHERMINA

Não posso me conter quando me lembro da cara dele.


Enfim, consegui pô-lo para fora daqui.

PATHELIN

Silêncio, que ele pode voltar.

GUILHERME

(NA RUA) - Será possível que eu tenha sido enganado por


um advogado chinfrim? Um joão-ninguém? Não! Volto lá
e hei de arrancar o meu dinheiro custe o que custar.

143
Everaldo Vasconcelos(org)

Vejam só a tal mulher dele está rindo... Esperem aí. Estou


muito grosso para pavio.

GUILHERMINA

Meu Deus, ele me ouviu. Está voltando. Depressa, vá se


deitar.

GUILHERME

Ho, ho, abram a porta.

GUILHERMINA

Que gritaria!

GUILHERME

A senhora está rindo, ou pensa que não ouvi?

GUILHERMINA

Tenho muito motivo para rir, na verdade.

GUILHERME

Meu dinheiro. Exijo o meu dinheiro.

GUILHERMINA

Lá vem o senhor com sua história. É para me divertir?


Escolheu muito mal o momento. Meu marido já me dá
bastante diversão de um outro gênero. Ele canta, chora, ri,

144
Crestomatia dramática

dança, fala em línguas diferentes, de maneira que choro e


rio ao mesmo tempo.

GUILHERME

Não tenho nada que a faça rir ou chorar, o que eu quero é


ser pago, ouviu?

GUILHERMINA

O senhor continua com sua extravagância?

GUILHERME

Não estou habituado a ser pago com palavras. A senhora


pensa que tomo gato por lebre?

PATHELIN

Vamos rápido! De pé. A rainha das guitarras deu à luz


vinte e quatro guitarrinhas. Ela está aí, façam-na entrar.
Ela vem me convidar para o batismo. Quero ser seu
compadre.

GUILHERMINA

Ah, pense em sua alma, meu bem. Deixe em paz as


guitarras.

GUILHERME

- Que contadores de sandices são esses dois. Vamos, meu


dinheiro em ouro ou prata.

145
Everaldo Vasconcelos(org)

GUILHERMINA

Será possível que o senhor ainda não se convenceu do seu


engano?

GUILHERME

A senhora já pensou, bela dama, o que significa tudo isso?


Nunca fui enganado. Mas, palavra de honra, ou o tecido
será pago ou restituído ou então a senhora e seu marido
serão enforcados. Juro por Deus!

GUILHERMINA

Que coragem, atormentar assim um doente! Estou vendo


bem pelos seus modos que o senhor está fora do seu juízo.
Valha-me Deus! Não bastava meu marido.

GUILHERME

Que raiva que tenho de perder assim o meu dinheiro...

GUILHERMINA

Que loucura! Faça o sinal da cruz. O senhor deve estar


com uma legião de demônios avarentos no corpo.
Abrenúncio!

GUILHERME

Quero ser esquartejado se tornar a vender tecido fiado em


minha vida.

PATHELIN

146
Crestomatia dramática

Madre de Dios, por mi fé, quiero irme. Que me quieres


niña? Venga. Vote monstro. Quieres dinero? No lo tengo,
no lo tengo...

GUILHERMINA

Ele tem um tio espanhol, que era irmão do filho da tia-avó


dele, por isso ele fala espanhol...

GUILHERME

Ele veio de mansinho e carregou a peça debaixo do braço.


Será possível?

PATHELIN

Kome hier. Komme hier. Ach! Was ist das? Mein Gott!
Gott! Wie ist dieser kaufmann!

GUILHERME

Mas como ele fala tantas línguas, meu Deus...

GUILHERMINA

Sua mãe era sobrinha de um neto de alemão. É por essa


razão que ele fala essa língua...

PATHELIN

Ho! Signore mio, que me vol cose mercatore? Argento?


Nom abiamo noi e si volio uno piccolo asso, lo daré,
stupido huomo!

147
Everaldo Vasconcelos(org)

GUILHERME

Que é isso? Deu-lhe na teima de falar todas as línguas do


mundo? Se ao menos ele me desse meu dinheiro eu ia
embora.

GUILHERMINA

Que homem o senhor é! Já se viu maior maldade? Quando


há de se convencer da verdade?

PATHELIN

If you please, sir. What will you? Money? I don't... Get


out... Get out... Oh God! Oh God!

GUILHERME

Que língua renegada. Será possível que ele nunca se cale?

GUILHERMINA

O avô do irmão do cunhado dele era inglês e lhe ensinou a


falar a língua.

GUILHERME

Minha nossa senhora, estarei sonhando? Foi ele ou foi


outro que foi à minha loja, ou foi o demo por ele? Juraria
que foi ele quem esteve comigo há meia hora... Estou
tonto... Não sei o que pensar...

148
Crestomatia dramática

PATHELIN

Et bona dies sit vobis - Magister amantissime, Pater


reverendissine. Quomode bralis, quae nova? Parisius non
sunt ova.

GUILHERMINA

Meu Deus, ele está falando latim. É sinal próximo da


morte, que os anjos e serafins da corte celeste o assistam...

GUILHERME

Mas que será isso, meu Deus? Ele vai morrer falando, não
há sombra de dúvida, ele está muito mal. Pobre homem. É
melhor que eu me vá, ele pode dizer segredos que eu não
deva ouvir. Certamente não foi ele quem me tirou o
tecido. Deus vos guarde, bela dama. Desculpe-me pelo
incômodo. Mas jurava que era ele que tinha me comprado
o tecido fiado...

GUILHERMINA

Adeus, que os anjos o acompanhem. Reze por mim. O


senhor bem vê em que sofrimento estou. (GUILHERME
SAI) Então sou ou não sou uma digna esposa? Meu Deus,
como conseguimos enganá-lo...

PATHELIN

Ele saiu resmungando, estonteado, jurando ter visto o


diabo em meu lugar. Bom

149
Everaldo Vasconcelos(org)

proveito lhe faça.

GUILHERMINA

Há-há-há! (ENTRA E VIRA-SE MEIO CONFUSA PARA


PATHELIN) Você não acha que o que nós fizemos foi
muito feio?

PATHELIN

(EMBARAÇADO) - Bem... eu... Ora, ladrão que rouba


ladrão...

150
Crestomatia dramática

23 ODOUTOR DESESPERADO

AUTOR – Flamínio Scala. (ver nota 13)

TEXTO – XIII Jornada do livro As Loucuras de Isabella.

PERSONAGENS – Pantalone; Ardélia; Pedrolino ;


Doutor; Horácio; Capitão Spavento; Cassandro; Isabella;
Flávio; Arlequim; Flamínia( que não se vê);
Francisquinha ; Beleguins; Delegado.

ARGUMENTO

Vivia em Bolonha um certo Doutor, que de um jovem,


chamado Horário, era o pai. Vendo o filho se perder
inteiramente no amor de uma fidalga, certa Flamínia,
mandou-o para longe, acreditando assim poder distrair o
jovem daquele pensamento. Assim em Pavia, para que ali
seguisse os estudos, mandou-o. Ali, logo que chegou, o
jovem pôs-se a morar diante da casa de um certo Senhor
Cassandro. Tinha este Cassandro um filho, Flávio, e uma
filha, Isabella, a qual, enamorando-se de Horácio, induziu
o jovem a ser o seu amante. A. este, totalmente esquecido
de Flamínia, nada importava senão agradar Isabella. E
enquanto vivia assim despreocupado, recebeu de certos
amigos seus algumas cartas, dizendo que o seu pai,

151
Everaldo Vasconcelos(org)

embora velho, desejava casar-se novamente. Ao tomar


conhecimento disso, sem alardear Isabella, para perturbar
as núpcias dopai, regressou à pátria.

Ali, tendo desviado o pai do casamento, o adormecido


amor por Flamínia despertou novamente, e no
esquecimento o amor por Isabella quase mergulhou. Esta,
não tendo notícias de seu amante, junto com um criado,
para reencontrá-lo, fugiu para Bolonha. Segui-os o velho
Cassandro, que por sua vez foi seguido por seu filho
Flávio, o qual, deitando-se acidentalmente com Flamínia,
depois a desposou.

COISAS PARA A COMÉDIA - Caixa com jóias; Anel; Um


punhado de velas; Duas lanternas.

PRIMEIRO ATO

HORÁCIO, [CAPITÃO]

Horácio narra ao Capitão que veio de Pavia a Bolonha


para perturbar as núpcias de seu pai e para rever
Flamínia, viúva sua namorada. Capitão persuade-o a fazê-
lo, pois ele é apaixonado pela noiva, certa Ardélia; de
acordo saem.

PANTALONE [DOUTOR]

152
Crestomatia dramática

com o Doutor, pai de Horácio, vem com ele para obter a


mão de Ardélia, sua noiva; batem.

ARDÉLIA

zomba do Doutor; nisto

PEDROLINO

que ouviu tudo, maltrata o Doutor de muitas maneiras, a


ponto de induzi-lo a ir embora aos prantos; Ardélia em
casa; Pantalone e Pedrolino seguem-no.

HORÁCIO

que apartado viu tudo, alegra-se, dizendo que aquela é


uma boa ocasião para servir o Capitão; nisto

ARLEQUIM

o qual chega para encontrar alojamento para Isabella, sua


patroa; vê Horácio, pergunta-lhe se tem quartos para
alugação. Horácio maltrata-o. Arlequim lamuria-se.
Horácio, indo-se, diz que lhe parece ter visto aquele criado
em algum outro lugar, sai. Arlequim fica; nisto

CAPITÃO

chega, Arlequim lhe faz a mesma pergunta. Capitão


golpeia-o repetidamente, sai. Arlequim demora-se; nisto

153
Everaldo Vasconcelos(org)

PEDROLINO

chega, Arlequim faz o mesmo com ele, dizendo-lhe ter


uma bela patroa. Pedrolino: que vai lhe dar um quarto,
mostrando-lhe a casa de Pantalone. Arlequim vai embora
para buscar a patroa. Pedrolino: que quer lhe pregar uma
peça; nisto

ISABELLA

a qual chega de Pavia atrás de Horácio, desconfia que


Arlequim tenha lhe pregado uma peça, pergunta a
Pedrolino para ter uma prova, e este diz ser seu parente, a
conduz à casa de Pantalone, para colocá-la em um
apartamento separado dos outros, e entram.

HORÁCIO, [CAPITÃO]

diz ao Capitão que quer dar-lhe Ardélia. Ouvem


Pantalone conversando, Capitão recolhe-se, Horácio fica;
nisto

PANTALONE

espanta-se. Horácio: diz que chegou para prestigiar as


núpcias. Pantalone: que Ardélia está esquiva. Horácio: que
a fará concordar e que a levará ao seu pai. Pantalone: que
a leve quando quiser, e lhe dá o seu anel como sinal.
Horácio sai. Pantalone fica; nisto

154
Crestomatia dramática

ARLEQUIM

que não encontra Isabella, alegra-se pois tem em seu


poder todas as jóias e o dinheiro. Pantalone toma-o por
um ladrão; diz que quer contratar os seus serviços, para
lhe tirar tudo; requisita-o. Arlequim concorda, e aqui cada
um deles muda o próprio nome; nisto

CASSANDRO

pai de Isabella, seguindo-a; vê Arlequim, chama-o pelo


nome. Arlequim finge não conhecer Cassandro, dizendo
que seu nome é outro, Pantalone testemunha por ele, os
dois vão embora juntos; Cassando atrás, sai.

HORÁCIO[CAPITÃO]

novamente com o Capitão, para fazer com que ele tenha


Ardélia; bate à sua porta.

PEDROLINO

fora; Horácio pergunta por Ardélia, para levá-la ao seu


pai, mostrando-lhe o anel de Pantalone como sinal.
Pedrolino pega o anel, depois a chama.

ARDÉLIA

fora; Pedrolino entrega-a a Horácio, seu enteado, entra.


Ela aflige-se por ter de ser do Doutor. Horácio chama o
Capitão e abraçando-se vão todos à casa do Capitão,

E aqui termina o primeiro ato.

155
Everaldo Vasconcelos(org)

SEGUNDO ATO

PEDROLINO

que induziu Isabella a fazer vontade dele, e que lhe deu


algumas jóias, e que quer fazer o velho se desesperar;
chama-a.

ISABELLA

fora; Pedrolino impõe-lhe que não deixe ninguém entrar


em casa, porque ele é o dono. Ela: que assim fará, e que
encontre o criado. Pedrolino sai, e ela fica, discorrendo de
seu amor, dizendo o nome de Horácio; nisto

PANTALONE

com as jóias tiradas de Arlequim, vê Isabella, pergunta-lhe


o que ela faz naquela casa. Isabella diz o nome do dono;
nisto

ARLEQUIM

chega, dizendo que é o dono e que se chama Pantalone,


depois parte para cima dele e lhe tira as jóias, chamando-o
de ladrão e acusando-o de falsear o nome. Isabella e
Arlequim, insultando Pantalone, vão para dentro de casa,
e ele, ridicularizado, recorre à justiça, sai.

DOUTOR

diz que já não quer Flamínia, e sim Ardélia; nisto

156
Crestomatia dramática

HORÁCIO

é visto pelo pai, e repreendido por ter abandonado os


estudos. Horácio: diz que está enamorado por Flamínia, e
repreende o pai por querer se casar, sendo velho. Doutor,
encolerizado, amaldiçoa-o. Horácio sai. Doutor fica; nisto

FRANCISQUINHA

contende com o Doutor, e diz que sua patroa Flamínia


será mulher de Horácio seu filho, e vai-se para dentro de
casa. Doutor encolerizado; nisto

PANTALONE [PEDROLINO]

vem conversando com Pedrolino sobre a mulher que


encontrou em casa; vêem o Doutor e lhe fazem votos de
felicidades para as núpcias. Doutor considera-se
zombado. Pantalone conta-lhe de sua filha. Doutor: que
não sabe de nada. Pantalone dirige-se a Pedrolino, o qual
lhe mostra o anel de sinal, que lhe foi dado por Horácio, e
que ele levou Ardélia embora. Doutor, encolerizado, soca
Pedrolino, que foge; Doutor atrás; Pantalone segue-os pela
rua, saem.

CAPITÃO

quer que Pantalone saiba que a filha dele está em seu


poder; bate.

ARLEQUIM

157
Everaldo Vasconcelos(org)

fora; Capitão admira-se de vê-lo, depois pergunta-lhe por


Pantalone. Ele: que não o conhece. Capitão diz o nome de
Horácio. Arlequim pergunta se aquele Horácio teria
estado em Pavia? Capitão: que sim. Arlequim chama
Isabella.

ISABELLA

toma conhecimento de que aquele Capitão conhece


Horácio, e, conversando com ele, chega a lhe contar a
história de seu amor. Capitão promete-lhe ajuda, e que irá
acomodá-la em sua casa, corn a sua mulher, até encontrar
Horácio; nisto

PEDROLINO

esbraveja com Isabella. Capitão diz que ela pertence a


Horácio; no final se põem de acordo. Pedrolino entra para
buscar as jóias, e volta; o para a casa do Capitão,
agradecendo Pedrolino, o qual fica; nisto

PANTALONE

que o Doutor já não atina; vê Pedrolino, pergunta-lhe que


gente é aquela que está em sua casa. Pedrolino: que não há
ninguém lá. Pantalone entra em casa, depois volta.
Pedrolino diz que ele está louco. Pantalone: que viu uma
mulher lá. Pedrolino nega. Pantalone: que é verdade,
depois gritando diz: "Será possível que ninguém a viu?";
nisto,

CAPITÃO

158
Crestomatia dramática

chega dizendo: "Eu a vi". Pantalone esbraveja com


Pedrolino e entre si levam conversa ambígua; no fim
Pantalone percebe que o Capitão fala de Ardélia sua filha;
ameaçando-os vai à justiça. Pedrolino toma o partido dele;
todos saem,

E aqui termina o segundo ato.

TERCEIRO ATO

PEDROLINO

que Pantalone está à procura de beleguins; nisto

FRANCISQUINHA

a qual está à procura de Horácio por (conta de) Flamínia;


vê Pedrolino, tratam de seus amores, depois lhe diz que
naquela noite conduzirá Horácio, vestido de mulher, até
Flamínia, e que desfrutarão juntos; nisto

ARLEQUIM

à parte; diz que ouviu tudo, e que quer lhes pregar uma
peça; retira-se. Francisquinha sai, Pedrolino fica; nisto

CASSANDRO

diz ter ouvido que aquele velho que estava com o senhor
se chama Pantalone de' Bisognosi; vê Pedrolino, pergunta-
lhe do tal Pantalone. Pedrolino: diz conhecê-lo por grande
malandro e que quer que ele seja apanhado pela justiça;
faz Cassandro lhe emprestar seus trajes, para ir incógnito,

159
Everaldo Vasconcelos(org)

depois coloca-o na casa de Pantalone, dizendo que aquela


é a sua casa, e que não deixe ninguém entrar. Cassandro
entra. Pedrolino: que naqueles trajes quer ir à casa de
Francisquinha, e sai.

HORÁCIO

que seu pai será a causa de sua morte, lamuria-se dizendo


os nomes de Flamínia e Francisquinha; nisto

ARLEQUIM

que vai procurar velas, ouve tudo, retira-se; depois é


descoberto por Horácio, dizendo-lhe que naquela noite
seu pai tem de ir desfrutar Flamínia. Horácio,
desesperado, vai embora e Arlequim, rindo, vai-se.

(NOITE)

PANTALONE

de lanterna acesa: que deu a ordem aos beleguins, bate à


casa.

CASSANDRO

à janela, contende com Pantalone, dizendo que ele foi


posto naquela casa pelo dono. Panialone: que ele é o dono.
Cassandro diz,-lhe impropérios, recolhe-se, e ele vai à
justiça, sai.

FLÁVIO

160
Crestomatia dramática

filho de Cassandro, seguindo o seu pai; nisto

FRANCISQUINHA

à janela, esperando Horácio, faz sinal, dizendo: "E o


senhor? Minha patroa está à sua espera". Flávio se presta
ao jogo, dizendo que aceita a aventura de uma noite
apenas; nisto

PEDROLINO

chega, à parte.

FRANCISQUINHA

fora, guia Flávio, pensando ser Horácio, para dentro da


casa; depois volta, leva Pedrolino para dentro, e diz que
Horácio está em casa com Flamínia. Ele espanta-se, e
entram em casa.

ARLEQUIM

com as velas, diz que ouviu tudo; entra em casa.

HORÁCIO

desesperado lamuria-se; nisto

ISABELLA

à janela, e aqui, não se ouvindo, fazem dueto queixando-


se de Amor. No final Horácio cai ao chão, desmaiado.
Isabella diz que, pela voz, parece ser Horácio; retira-se.

161
Everaldo Vasconcelos(org)

ARLEQUIM

sai de casa, não o vê e cai em cima dele, depois se


apavora, chama por socorro; nisto

ISABELLA

com a candeia acesa, vê Horácio, acredita-o morto, chora


por ele; nisto

CAPITÃO

faz o mesmo; nisto

ARDÉLIA

faz o mesmo; Horácio volta a si, e, rogado por todos,


resolve se casar com Isabella; depois todos entram em
casa. Arlequim fica; nisto

BARIGELLO[BELEGUINS]

pergunta a Arlequim pela casa de Pantalone, e ele mostra


a casa de Flamínia; beleguins dentro para a captura.
Arlequim, rindo, fica; nisto

PANTALONE [DOUTOR ]

contrastando, por que sua filha levou-lhe embora o filho;


nisto

FLÁVIO

162
Crestomatia dramática

de camisolão; Doutor lhe pergunta o que ele está fazendo


naquela casa. Flávio narra sua vicissitude, dizendo que
dormiu com Flamínia. Doutor desespera-se ainda mais,
dizendo que ele é filho de um cabrão. Arlequim, que o
reconheceu, desmente e censura-o. Todos esbravejam.
Flávio reconhece-o, Doutor grita e faz todos virem para
fora.

BELEGUINS

levam para fora

HORÁCIO, CAPITÃO, ISABELLA, ARDÉLIA

Ardélia pede perdão ao pai, Isabella ao irmão, Horácio ao


pai, e todos ficam contentes. Beleguins vão à casa de
Pantalone, e levam para fora

CASSANDRO

o qual imediatamente reconhece os filhos, que correm


para abraçá-lo. Pantalone pergunta quem o colocou
naquela casa. Ele diz. Arlequim: que peguem todos os que
estão naquela casa; beleguins entram, e levam para fora

PEDROLINO, FRANCISQUINHA

de camisolão; Pedrolino revela tudo, e eles o perdoam,

E aqui termina a fábula.

163
Everaldo Vasconcelos(org)

NOTAS

1 – Informações sobre Ésquilo


http://pt.wikipedia.org/wiki/%C3%89squilo#cite_note-
10

2 – Freire, Antônio. Capitulo IV, Ésquilo in O teatro


Grego. Braga: Publicações da Faculdade de Braga, 1985.

3 – Agamenon
http://www.jorgeteles.com.br/site/index.php?option=co
m_content&view=article&id=190:agamenon-de-
esquilo&catid=38:traducoes-e-adaptacoes&Itemid=

4 – Prometeu Acorrentado
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/prometeu.html

5 – Édipo-Rei
http://virtualbooks.terra.com.br/freebook/traduzidos/download/Edi
po_Rei.pdf

6 – Antigona

http://pt.scribd.com/doc/6012901/sofocles-antigona

164
Crestomatia dramática

7 – Electra
http://oficinadeteatro.com/component/jdownloads/view.download/
4/64

8 – As bacantes

http://oficinadeteatro.com/component/jdownloads/view.download/
4/64

9 - Medéia

http://oficinadeteatro.com/component/jdownloads/view.download/
4/63

10 – Lisistrata

http://oficinadeteatro.com/component/jdownloads/view.download/
4/73

11 – O Misantropo

http://oficinadeteatro.com/component/jdownloads/view.download/
4/71

12 –PLAUTO e TERÊNCIO, A comédia latina.Clássicos de


Bolso. Tradução de Agostinho da Silva .Rio de Janeiro:
Ediouro.

13 – SCALLA, Flamínio. As Loucuras de Isabella. Título


original, Coomedia dell’Arte. Tradução de Roberta Barni.
São Paulo: Editora Iluminuras. 2003.

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