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HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA MADEIRA.
DO EGOCENTRISMO E INSULARIZAÇÃO À ATLANTICIDADE
ALBERTO VIEIRA
"...O conjunto dos arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores: escalas obrigatórias em todo esse sistema mundial,
uma vez que o globo se tornou em periferia desse centro dinâmico, empreendedor e avassalador, que é a Europa
ocidental dos séculos XVI-XVIII.(...) A Madeira situa-se no centro deste sistema de duplo sentido, e por isso de
certo modo comanda todo este espaço, porque vive sobretudo da riquissima produção própria." V. M. Godinho,
Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar. séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990.
Algumas das grandes questões, com grande actualidade, definem este novo
e real rumo que é a investigação insular. Em primeiro lugar podemos citar o
enquadramento da Madeira, no contexto dos descobrimentos europeus, donde
ressalta, para além do protagonismo sócio-económico, a posição charneira nos
rumos da política expansionista. As funções de escala, e modelo projectam-na
nessa realidade e conduzem a que seja parte disso e não um mundo à parte. Por
outro lado a expansão europeia foi propícia a definição das teias de
subordinação e complementaridade que levaram a modelação de um mercado
insular aberto e vinculado, de acordo com uma lógica de complementaridade. É
isso, em certa medida, o que define o Mediterrâneo Atlântico nos séculos XV a
XVII.
A favor de tudo isto temos uma tese que vingou no seio da
Historiografia americana que define o Atlântico como uma unidade de análise.
Deste modo o período que decorre entre os inícios de expansão europeia, a
partir do século XV, e a plena abolição da escravatura, em 1888, delimitam
cronologicamente esta realidade1, tal como expressa a actual historiografia
norte-americana.
A par disso torna-se necessário dize-lo que é chegado o momento de
repensar a forma como se faz História entre nós. É chegado o momento de
repensar os últimos vinte anos de actividade para que seja possível a
definição de novos rumos adequados ao protagonismo e posicionamento que
assumimos na História. É isso que propomos aqui e agora com algumas incursões
sobre a historiografia e História madeirense.
A dimensão assumida pela Madeira no contexto da expansão
quatrocentista, quer como terra de navegadores, quer como principal centro
que modelou a realidade sócio-económico deste novo espaço atlântico, é a
evidência desta imprescindível dimensão atlântica da ilha.
1. Cf. Alan L. Kanas e J. R. Manell, Atlantic american societies-from Columbus through abolition
1492-1886, London, 1992; Alfred W. Crosby, the Columbian exchange, biological and cultural
consequences of 1492, Westport, 1972; S. Mintz, Sweetness and power, N. York, 1985. Michael
Meyerr, "The price of the new transnational history", the American Historical Review, 96, nº 4,
1991, 1056-1072; D.W. Meinig, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980: Lan Stelle, The
english atlantic, 1675-1740 - An exploration & communication and community, N. Y. 1986.
1.A HISTORIOGRAFIA, OS HISTORIADORES E AS NOVAS
REALIDADES. A História das ilhas atlânticas tem merecido, na presente
centúria, um tratamento preferencial no âmbito da História do Atlântico.
Primeiro foram os investigadores europeus como F. Braudel (1949), Pierre
Chaunu (1955-1960), Frédéric Mauro (1960) e Charles Verlinden (1960) a
destacar a importância do espaço insular no contexto da expansão europeia. E
só depois surgiu a historiografia nacional a corroborar a ideia e a
equacioná-la nas dinâmicas da expansão insular. Neste caso são pioneiros os
trabalhos de Francisco Morales Padron (1955) e Vitorino de Magalhães Godinho
(1963).
Tal ambiência condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas
décadas e contribuíu para a necessária abertura às novas teorias e
orientações do conhecimento histórico. Neste contexto as décadas de setenta e
oitenta demarcam-se como momentos importantes no progresso da investigação e
saber históricos, contribuindo para tal a definição de estruturas
institucionais e de iniciativas afins.
Note-se que a produção historiográfica insular é desigual, dependendo o
seu número da existência de literatos e de instituições capazes de
incentivarem a elaboração e divulgação de estudos nos diversos domínios.
Ainda, a similitude do processo vivencial aliada à sua permeabilidade às
prespectivas históricas peninsulares definiram uma certa unidade na forma e
conteúdo da historiografia insulana. Gaspar Frutuoso, em finais do século
XVI, com as Saudades da Terra, define e sintetiza essa unidade insular,
aproximando os arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias. Esta ímpar
situação na historiografia, só será retomada na década de quarenta do nosso
século pela historigrafia europeia e no presente pela nova geração de
historiadores insulares. Essa consciência histórica da unidade desta múltipla
realidade arquipelágica será definida de modo preciso na expressão
braudeliana de Mediterrâneo Atlântico .2
A historiografia insulana, permeável às suas origens europeias, surge,
na alvorada da revolução do conhecimento cosmológico, como a expressão
pioneira desta novidade e, ao mesmo tempo, como uma necessidade institucional
de justificação da intervenção e soberania peninsular. Deste modo o período
que medeia os séculos XV e XVI é marcado por uma produção historiográfica
mais europeia que local, próxima da crónica e da literatura de viagens, onde
esses ideais se expraiam. Os factos históricos e as impressões das viagens
atlânticas, perpetuados nas crónicas e relatos de diversa índole terão uma
utilização posterior de acordo com as exigências da época. A prosa histórica
é impregnada do ideal romântico servindo-se de perspectivas e formas
positivistas de justificação e fundamentação de certos meteoritos políticos
que a sociedade insular contemporânea é portadora.
No culminar deste processo as exigências académicas, com a expansão do
saber universitário, as solicitações do novo conhecimento histórico
condicionaram tal avanço qualitativo da historiografia, a partir da década de
quarenta. Assim, nas Canárias a tradição e vivência universitária propiciaram
o forte arranque, enquanto nos Açores o academismo cultural e, depois, a
universidade lançaram este arquipélago para uma posição similar. A Madeira,
prenhe em documentos manteve-se num segundo plano, mercê da falta de suporte
2. Foi esse o objectivo dos nossos estudos: Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI. Madeira,
Açores e Canárias, Funchal, 1987; Portugal y las islas del Atlántico, Madrid, 1992.
institucional e académico. Todavia, as condições emanentes da dinâmica
autonómica com o aparecimento de suportes institucionais definiram um futuro
promissor.
Podemos assim a firmar que a Historiografia insulana desenvolve-se por
três épocas distintas, marcadas por um modo diferente de equacionar e relatar
o facto histórico: nos séculos XV e XVIII, em que o discurso se formaliza na
crónica; o século XIX e primeiras décadas do seguinte, marcado pela vaga
romântica; por fim, o defrontar de uma nova era, a partir da década de
quarenta do nosso século, que condicionou a política arquivística e a
investigação universitária.
O primeiro momento é definido por uma situação ímpar no equacionar da
realidade histórica insular, pela primeira vez alguém ousou encarar estas
ilhas do Atlântico Oriental (Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde) como uma
unidade indelével e afim, marcada por momentos de grande importância para o
devir histórico do Atlântico nos séculos XV e XVI. Note-se que, só a partir
de meados do nosso século, a Historigrafia europeia se deu conta dessa
realidade, merecendo assim o trabalho de Gaspar Frutuoso - Saudades da Terra
- uma posição de relevo no panorama historiográfico insular. A este texto
juntam-se outros de carácter restrito em que o seu autor relata de uma forma
cronista os acontecimentos que presenciou ou que teve conhecimento por
intermédio de outros testemunhos. Tais testemunhos não são mais do que uma
visão impressionista das primeiras abordagens ou de deslumbramento em face
das novas realidades que emergem neste espaço. No primeiro caso, na Madeira,
Francisco Alcoforado (1427?), Jerónimo Dias Leite (1574), para os Açores,
Frei Diogo Chagas, Frei Agostinho de Montalverne e o Padre Manuel Maldonado,
enquanto nas Canárias surgem Le Canarien, Frei Alonso de Espinosa e Frei Juan
de Abreu y Galindo, ao segundo podemos apontar os textos de Cadamosto, Giulio
Landi (1530), T. Nichols (1552-1561), Pompeo Arditi (1567), L. Torriani
(1580).
De um modo geral, esta produção historiográfica está marcada pela forte
presença do clero regular e secular, pois estes eram os homens das letras da
época. Com o segundo momento é marcante a laicização do saber histórico com o
aparecimento de destacadas figuras empenhadas no conhecimento e divulgação do
saber histórico, muitas vezes, com objectivos pragmáticos. Estamos perante a
afirmação do positivismo histórico que condicionou esse desmesurado apelo ao
documento. Aqui são de particular importância as iniciativas de Álvaro
Rodrigues de Azevedo, na Madeira, de Ernesto do Canto nos Açores e de A.
Millares Torres e Gregorio Chil y Naranjo nas Canárias. Este último foi o
principal impulsionador da Sociedade El Museo Canario (1879), fundamental na
recolha e valorização da documentação histórica de Canárias. Com o mesmo
intuito trabalhou Ernesto do Canto ao lançar em 1878 em Ponta Delgada (S.
Miguel) uma publicação periódica, o Arquivo dos Açores, onde se reunia e
divulgava as principais peças documentais.
O presente século é sem dúvida o momento de afirmação da Historiografia
insulana. Um conjunto variado de realizações públicas, o lançamento de
publicações da especialidade e a criação dos arquivos distritais ou
provinciais alicerçaram a nova realidade. Na Madeira(1919-1921) e nos
Açores(1932) as comemorações da respectiva descoberta associadas às
efemérides nacionais de 1940 e 1960 contribuiram de modo decisivo para a
afirmação e divulgação da História. Para as Canárias essa animação ficou a
dever-se ao impulso dado por Elias Serra Ráfols, a partir dos anos quarenta,
na Universidade de La Laguna. Esta instituição conseguiu motivar um numeroso
grupo de entusiastas pela história do arquipélago, encaminhando-os para a
carreira científica e para a valorização dos vestígios documentais levado a
cabo com a criação dos arquivos provinciais.
As três últimas décadas foram decisivas para este salto qualitativo da
Historiografia insulana, demarcando em todos os arquipélagos uma ambiência
favorável à sua afirmação. Aqui, assumem particular importância as
instituições culturais, as publicações periódicas e, a inovação desta época,
os colóquios de História.
Os colóquios são na actualidade um momento privilegiado da divulgação
do saber histórico. Esta é uma nova dimensão neste domínio a partir da década
de setenta, firmando-se nos últimos anos como uma realidade insofismável.
Primeiro foram os investigadores das Canárias a reconhecer a necessidade
deste tipo de realização ao lançarem em 1976 o Colóquio de História Canario
Americana, sob a égide da Casa de Colón, com a coordenação do Prof. Doutor
Francisco Morales Padron. Os resultados desta primeira iniciativa terão
contribuido para a sua continuidade e para a concretização de idêntica
iniciativa nos Açores (1983), em Fuerteventura (1984) e, por último, na
Madeira (1986). A década de oitenta emerge assim como o momento de maior
relevância na investigação histórica insular, que condicionou os rumos da
Historiografia nas décadas seguintes.
Na actualidade depara-se perante nós como um momento de grande
valorização da História no nosso quotidiano. Dispomos de tudo o necessário
para isso: publicações periódicas, colóquios e conferências e um desusado
interesse do publico em geral pela temática. Falta, todavia, um adequado
ajustamento arquivístico a esta nova realidade. Mas será que isso tem
favorecido, em simultâneo, a afirmação da investigação e consequente avanço
do conhecimento do nosso passado histórico ?
2.UMA EVIDÊNCIA: PROJECÇÃO DA ILHA NO NOVO MUNDO.
"...porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel, e meu tio a de São
Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que vê..."João de Melo da Camara, 1532.
4 História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol. III, p.90; cf Vera Jane GILBERT, "Os
primeiros engenhos de açúcar"in Sacharum, nº.3, São Paulo, 1978, pp. 5-12.
6 "Madeira and the beginings of New World sugar cane cultivation and plantation slavery: a study
in constitution building", in Vera RUBIN e Artur TUNDEN(eds.), Comparative perspectives on
slavery in New World Plantation Societies, N. York, 1977.
8 Confronte-se Alfonso FRANCO SILVA, "La eclavitud en Andalucia...", in Studia, nº.47, Lisboa,
1989, pp.165-166; Alberto VIEIRA, Os escravos no arquipélago da Madeira. séculos XV a XVII,
Funchal, 1991.
"Constroem-se em definitivo, a partir da Madeira, as linhas e redes de comércio atlanticos atraindo de
modo decisivo as áreas e mercados europeus mais nevrálgicos e mais importantes e criando nas áreas
ribeirinhas metropolitanas, insulares(Canárias, Açores, Cabo Verde) e continentais(Costa de Marfim-
Magreb-Arguim-Fez) fortes relações de dependência e de solidariedade". Aurélio de Oliveira, "A Madeira
nas linhas de comércio do Atlânticio. séculos XV- XVII", III CIHM, Funchal, 1993, 923.
"A ilha da Madeira... que Deus pos no mar ocidental para escala, refúgio, colheita e remédio dos
navegantes, que de Portugal e de outros regnos vão, e de outros portos e navegações vêm para
diversas partes,além dos que para ela somente navegam, levando-lhe mercadorias estrangeiras e muito
dinheiro para se aproveitar do retorno que dela levam para suas terras...".(Gaspar Frutuoso, Livro
segundo das Saudades da Terra, P.Delgada, 1979, pp.99-100)
12. "O comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII", in Os Açores e o
Atlântico(séculos XIV-XVII), A. Heroismo, 1984; "O comércio de cereais das Canárias para a
Madeira nos séculos XVI e XVII", in VI Colóquio de História Canario Americana, Las Palmas, 1984;
"Madeira e Lanzarote. comércio de escravos e cereais no século XVII", in IV Jornadas de História
de Lanzarote e Fuerteventura, Arrecife de Lanzarote, 1989.
13.O comércio inter-insular(Madeira, Açores e Canárias) nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987.
a costa marroquina, onde os portugueses assentaram algumas praças,
defendidas, a ferro e fogo, pelas gentes da ilha14.
No século XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano
costeiro e insular, depara-se à ilha um novo destino e mercado, que pautará o
seu relacionamento externo nas centurias posteriores. Este novo mundo e
mercado foi para muitos uma esperança de enriquecimento ou a forma de
assegurar a posse de bens fundiários.
Em qualquer das situações o estreitamento dos contactos depende,
primeiro, da presença de uma comunidade madeirense que pretende manter o
contacto com a terra-mãe e depois das possibilidades de uma troca favorável.
Neste contexto a oferta de vinho por parte do madeirense e a sua procura
pelos agentes do trafico negreiro, para enganadoramente oferecerem aos sobas
africanos, ou do outro lado do Atlântico saciar a sede do europeu a troco do
açúcar, foi o principal motor deste relacionamento. Esta situação influenciou
decisivamente a estrutura comercial da ilha, a partir da segunda metade do
século XVI. Desde então as conexões comerciais adquiriram uma maior
complexidade, fazendo com que a Madeira, através do seu vinho, se
transformasse num ponto importante do circuito de triangulação, que passou a
dominar os contactos entre os portos da costa ocidental africana a americana
e as Antilhas. Neste contexto foi exemplar e decisiva a acção de dois
madeirenses-Diogo Fernandes Branco e Francisco Dias- que aqui e agora
pretendemos revelar. A eles associam-se dois ingleses- Bartolome Cuello e
William Bolton- que matizaram de forma diversa esse relacionamento externo da
ilha.
CONCLUSÃO
Por tudo isto é forçoso afirmar que a ilha não se reduz à sua dimensão
geográfica. À sua volta palpita um mundo que gera multiplas conexões e que
não pode ser descurado sob pena de estarmos a atraiçoar o próprio devir
histórico. Há que rasgar o casulo da ilha e postar-se nas torres avista-
navios e vislumbrar o imenso firmamento que nos conduz a ilhas e continentes.
Isto só será possível quando ultrapassarmos a fase do egocentrismo e
mergulharmos na profundeza do Atlântico à busca da atlanticidade.
Se tomarmos alguns dos temas comuns da nossa história- o vinho, o
açúcar e a escravatura- seremos forçados a concluir que foram eles. em boa
parte, os responsáveis por esta opção atlântica da Madeira e que nos obrigam
sempre e em qualquer momento a dar atenção ao meio que nos envolve. As rotas
comerciais, os mercados europeu e colonial, e, acima de tudo, o oceano como
um mar aberto.
A História insular carece de uma revolução temática, o chamado
território do historiador precisa de ser alargado além dos "solos" ricos e
tradicionais. A par disso o ofício de historiador precisa de ser dignificado,
expresso na perícia no manejo dos seus instrumentos de trabalho. A próxima
realização do Colóquio Internacional das ilhas Atlânticas vai ao encontro
deste desafio e poderá ser o ponto de partida para uma viragem na História
insular. Mas tudo isto só será possível se houver disponibilidades dos
diversos agentes para aceitarem e actuarem em favor desta mudança.
BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL
CURTIN, Philip D., The rise and face of the plantation complex. Essays in
Atlantic History, Cambridge, 1990.