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VIEIRA, Alberto (2000),

História e Historiografia da Madeira.


Do Egocentrismo e Insularização à
Atlanticidade,

COMO REFERENCIAR ESTE TEXTO:

VIEIRA, Alberto (2000), História e Historiografia da Madeira. Do Egocentrismo e Insularização à


Atlanticidade, Funchal, CEHA-Biblioteca Digital, disponível em: http://www.madeira-
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HISTÓRIA E HISTORIOGRAFIA NA MADEIRA.
DO EGOCENTRISMO E INSULARIZAÇÃO À ATLANTICIDADE

ALBERTO VIEIRA

"...O conjunto dos arquipélagos das Canárias, Madeira e Açores: escalas obrigatórias em todo esse sistema mundial,
uma vez que o globo se tornou em periferia desse centro dinâmico, empreendedor e avassalador, que é a Europa
ocidental dos séculos XVI-XVIII.(...) A Madeira situa-se no centro deste sistema de duplo sentido, e por isso de
certo modo comanda todo este espaço, porque vive sobretudo da riquissima produção própria." V. M. Godinho,
Mito e mercadoria, utopia e prática de navegar. séculos XIII-XVIII, Lisboa, 1990.

Algumas das grandes questões, com grande actualidade, definem este novo
e real rumo que é a investigação insular. Em primeiro lugar podemos citar o
enquadramento da Madeira, no contexto dos descobrimentos europeus, donde
ressalta, para além do protagonismo sócio-económico, a posição charneira nos
rumos da política expansionista. As funções de escala, e modelo projectam-na
nessa realidade e conduzem a que seja parte disso e não um mundo à parte. Por
outro lado a expansão europeia foi propícia a definição das teias de
subordinação e complementaridade que levaram a modelação de um mercado
insular aberto e vinculado, de acordo com uma lógica de complementaridade. É
isso, em certa medida, o que define o Mediterrâneo Atlântico nos séculos XV a
XVII.
A favor de tudo isto temos uma tese que vingou no seio da
Historiografia americana que define o Atlântico como uma unidade de análise.
Deste modo o período que decorre entre os inícios de expansão europeia, a
partir do século XV, e a plena abolição da escravatura, em 1888, delimitam
cronologicamente esta realidade1, tal como expressa a actual historiografia
norte-americana.
A par disso torna-se necessário dize-lo que é chegado o momento de
repensar a forma como se faz História entre nós. É chegado o momento de
repensar os últimos vinte anos de actividade para que seja possível a
definição de novos rumos adequados ao protagonismo e posicionamento que
assumimos na História. É isso que propomos aqui e agora com algumas incursões
sobre a historiografia e História madeirense.
A dimensão assumida pela Madeira no contexto da expansão
quatrocentista, quer como terra de navegadores, quer como principal centro
que modelou a realidade sócio-económico deste novo espaço atlântico, é a
evidência desta imprescindível dimensão atlântica da ilha.

1. Cf. Alan L. Kanas e J. R. Manell, Atlantic american societies-from Columbus through abolition
1492-1886, London, 1992; Alfred W. Crosby, the Columbian exchange, biological and cultural
consequences of 1492, Westport, 1972; S. Mintz, Sweetness and power, N. York, 1985. Michael
Meyerr, "The price of the new transnational history", the American Historical Review, 96, nº 4,
1991, 1056-1072; D.W. Meinig, Atlantic America 1492-1800, New Haven, 1980: Lan Stelle, The
english atlantic, 1675-1740 - An exploration & communication and community, N. Y. 1986.
1.A HISTORIOGRAFIA, OS HISTORIADORES E AS NOVAS
REALIDADES. A História das ilhas atlânticas tem merecido, na presente
centúria, um tratamento preferencial no âmbito da História do Atlântico.
Primeiro foram os investigadores europeus como F. Braudel (1949), Pierre
Chaunu (1955-1960), Frédéric Mauro (1960) e Charles Verlinden (1960) a
destacar a importância do espaço insular no contexto da expansão europeia. E
só depois surgiu a historiografia nacional a corroborar a ideia e a
equacioná-la nas dinâmicas da expansão insular. Neste caso são pioneiros os
trabalhos de Francisco Morales Padron (1955) e Vitorino de Magalhães Godinho
(1963).
Tal ambiência condicionou os rumos da historiografia insular nas últimas
décadas e contribuíu para a necessária abertura às novas teorias e
orientações do conhecimento histórico. Neste contexto as décadas de setenta e
oitenta demarcam-se como momentos importantes no progresso da investigação e
saber históricos, contribuindo para tal a definição de estruturas
institucionais e de iniciativas afins.
Note-se que a produção historiográfica insular é desigual, dependendo o
seu número da existência de literatos e de instituições capazes de
incentivarem a elaboração e divulgação de estudos nos diversos domínios.
Ainda, a similitude do processo vivencial aliada à sua permeabilidade às
prespectivas históricas peninsulares definiram uma certa unidade na forma e
conteúdo da historiografia insulana. Gaspar Frutuoso, em finais do século
XVI, com as Saudades da Terra, define e sintetiza essa unidade insular,
aproximando os arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias. Esta ímpar
situação na historiografia, só será retomada na década de quarenta do nosso
século pela historigrafia europeia e no presente pela nova geração de
historiadores insulares. Essa consciência histórica da unidade desta múltipla
realidade arquipelágica será definida de modo preciso na expressão
braudeliana de Mediterrâneo Atlântico .2
A historiografia insulana, permeável às suas origens europeias, surge,
na alvorada da revolução do conhecimento cosmológico, como a expressão
pioneira desta novidade e, ao mesmo tempo, como uma necessidade institucional
de justificação da intervenção e soberania peninsular. Deste modo o período
que medeia os séculos XV e XVI é marcado por uma produção historiográfica
mais europeia que local, próxima da crónica e da literatura de viagens, onde
esses ideais se expraiam. Os factos históricos e as impressões das viagens
atlânticas, perpetuados nas crónicas e relatos de diversa índole terão uma
utilização posterior de acordo com as exigências da época. A prosa histórica
é impregnada do ideal romântico servindo-se de perspectivas e formas
positivistas de justificação e fundamentação de certos meteoritos políticos
que a sociedade insular contemporânea é portadora.
No culminar deste processo as exigências académicas, com a expansão do
saber universitário, as solicitações do novo conhecimento histórico
condicionaram tal avanço qualitativo da historiografia, a partir da década de
quarenta. Assim, nas Canárias a tradição e vivência universitária propiciaram
o forte arranque, enquanto nos Açores o academismo cultural e, depois, a
universidade lançaram este arquipélago para uma posição similar. A Madeira,
prenhe em documentos manteve-se num segundo plano, mercê da falta de suporte

2. Foi esse o objectivo dos nossos estudos: Comércio inter-insular nos séculos XV e XVI. Madeira,
Açores e Canárias, Funchal, 1987; Portugal y las islas del Atlántico, Madrid, 1992.
institucional e académico. Todavia, as condições emanentes da dinâmica
autonómica com o aparecimento de suportes institucionais definiram um futuro
promissor.
Podemos assim a firmar que a Historiografia insulana desenvolve-se por
três épocas distintas, marcadas por um modo diferente de equacionar e relatar
o facto histórico: nos séculos XV e XVIII, em que o discurso se formaliza na
crónica; o século XIX e primeiras décadas do seguinte, marcado pela vaga
romântica; por fim, o defrontar de uma nova era, a partir da década de
quarenta do nosso século, que condicionou a política arquivística e a
investigação universitária.
O primeiro momento é definido por uma situação ímpar no equacionar da
realidade histórica insular, pela primeira vez alguém ousou encarar estas
ilhas do Atlântico Oriental (Madeira, Açores, Canárias, Cabo Verde) como uma
unidade indelével e afim, marcada por momentos de grande importância para o
devir histórico do Atlântico nos séculos XV e XVI. Note-se que, só a partir
de meados do nosso século, a Historigrafia europeia se deu conta dessa
realidade, merecendo assim o trabalho de Gaspar Frutuoso - Saudades da Terra
- uma posição de relevo no panorama historiográfico insular. A este texto
juntam-se outros de carácter restrito em que o seu autor relata de uma forma
cronista os acontecimentos que presenciou ou que teve conhecimento por
intermédio de outros testemunhos. Tais testemunhos não são mais do que uma
visão impressionista das primeiras abordagens ou de deslumbramento em face
das novas realidades que emergem neste espaço. No primeiro caso, na Madeira,
Francisco Alcoforado (1427?), Jerónimo Dias Leite (1574), para os Açores,
Frei Diogo Chagas, Frei Agostinho de Montalverne e o Padre Manuel Maldonado,
enquanto nas Canárias surgem Le Canarien, Frei Alonso de Espinosa e Frei Juan
de Abreu y Galindo, ao segundo podemos apontar os textos de Cadamosto, Giulio
Landi (1530), T. Nichols (1552-1561), Pompeo Arditi (1567), L. Torriani
(1580).
De um modo geral, esta produção historiográfica está marcada pela forte
presença do clero regular e secular, pois estes eram os homens das letras da
época. Com o segundo momento é marcante a laicização do saber histórico com o
aparecimento de destacadas figuras empenhadas no conhecimento e divulgação do
saber histórico, muitas vezes, com objectivos pragmáticos. Estamos perante a
afirmação do positivismo histórico que condicionou esse desmesurado apelo ao
documento. Aqui são de particular importância as iniciativas de Álvaro
Rodrigues de Azevedo, na Madeira, de Ernesto do Canto nos Açores e de A.
Millares Torres e Gregorio Chil y Naranjo nas Canárias. Este último foi o
principal impulsionador da Sociedade El Museo Canario (1879), fundamental na
recolha e valorização da documentação histórica de Canárias. Com o mesmo
intuito trabalhou Ernesto do Canto ao lançar em 1878 em Ponta Delgada (S.
Miguel) uma publicação periódica, o Arquivo dos Açores, onde se reunia e
divulgava as principais peças documentais.
O presente século é sem dúvida o momento de afirmação da Historiografia
insulana. Um conjunto variado de realizações públicas, o lançamento de
publicações da especialidade e a criação dos arquivos distritais ou
provinciais alicerçaram a nova realidade. Na Madeira(1919-1921) e nos
Açores(1932) as comemorações da respectiva descoberta associadas às
efemérides nacionais de 1940 e 1960 contribuiram de modo decisivo para a
afirmação e divulgação da História. Para as Canárias essa animação ficou a
dever-se ao impulso dado por Elias Serra Ráfols, a partir dos anos quarenta,
na Universidade de La Laguna. Esta instituição conseguiu motivar um numeroso
grupo de entusiastas pela história do arquipélago, encaminhando-os para a
carreira científica e para a valorização dos vestígios documentais levado a
cabo com a criação dos arquivos provinciais.
As três últimas décadas foram decisivas para este salto qualitativo da
Historiografia insulana, demarcando em todos os arquipélagos uma ambiência
favorável à sua afirmação. Aqui, assumem particular importância as
instituições culturais, as publicações periódicas e, a inovação desta época,
os colóquios de História.
Os colóquios são na actualidade um momento privilegiado da divulgação
do saber histórico. Esta é uma nova dimensão neste domínio a partir da década
de setenta, firmando-se nos últimos anos como uma realidade insofismável.
Primeiro foram os investigadores das Canárias a reconhecer a necessidade
deste tipo de realização ao lançarem em 1976 o Colóquio de História Canario
Americana, sob a égide da Casa de Colón, com a coordenação do Prof. Doutor
Francisco Morales Padron. Os resultados desta primeira iniciativa terão
contribuido para a sua continuidade e para a concretização de idêntica
iniciativa nos Açores (1983), em Fuerteventura (1984) e, por último, na
Madeira (1986). A década de oitenta emerge assim como o momento de maior
relevância na investigação histórica insular, que condicionou os rumos da
Historiografia nas décadas seguintes.
Na actualidade depara-se perante nós como um momento de grande
valorização da História no nosso quotidiano. Dispomos de tudo o necessário
para isso: publicações periódicas, colóquios e conferências e um desusado
interesse do publico em geral pela temática. Falta, todavia, um adequado
ajustamento arquivístico a esta nova realidade. Mas será que isso tem
favorecido, em simultâneo, a afirmação da investigação e consequente avanço
do conhecimento do nosso passado histórico ?
2.UMA EVIDÊNCIA: PROJECÇÃO DA ILHA NO NOVO MUNDO.

"...porque a ilha da Madeira meu bisavô a povoou, e meu avô a de São Miguel, e meu tio a de São
Tomé, e com muito trabalho, e todas do feito que vê..."João de Melo da Camara, 1532.

Foi o arquipélago o início da presença portuguesa no Atlântico, e o


primeiro e mais proveitoso resultado desta aventura. Vários são os factores
que se conjugaram para este protagonismo. A inexistência de população, em
consonância com a extrema necessidade de valorização para o avanço das
navegações ao longo da costa africana, favoreceram a rápida ocupação e
crescimento económico da Madeira. Por isso, a afirmação do arquipélago
madeirense, nos primeiros anos dos descobrimentos, foi evidente: porto de
escala ou apoio para as precárias embarcações quatrocentistas, que sulcavam o
oceano; importante área económica, fornecedora de cereais, vinho e açúcar;
modelo económico, social e político para as demais intervenções portuguesas
no Atlântico.
A juntar a tudo isso temos que o rápido progresso social, resultado do
porvir económico, condicionou o aparecimento de uma aristocracia-terratenente
que, imbuída do ideal cavalheiresco e do espírito de aventura, se embrenhou
na defesa das praças marroquinas, na disputa pela posse das Canárias e
viagens de exploração e comércio ao longo da costa africana e, até mesmo,
para Ocidente.
A proximidade da Madeira ao vizinho arquipélago das Canárias, em
conjugação com o rápido surto do povoamento e valorização sócio-económica do
solo, orientaram as atenções do madeirense para as ilhas. Assim, decorridos
apenas vinte e seis anos sob a ocupação, os moradores da Madeira empenharam-
se na disputa pela posse das Canárias, ao serviço do infante D. Henrique. Em
1446 João Gonçalves Zarco, foi enviado a Lanzarote, como plenipotenciário
para afirmar o contrato de compra da ilha. Acompanham-no as caravelas de
Tristão Vaz, capitão do donatário em Machico e de Garcia Homem de Sousa,
genro de Zarco3. Mais tarde em 1451, o infante enviou nova armada, em que participaram gentes
de Lagos, Lisboa e Madeira, sendo de salientar, no último caso, Rui Gonçalves filho do capitão do
donatário do Funchal.
Para a aristocracia madeirense o empenhamento nas acções marítimas e
bélicas é, ao mesmo tempo, uma forma de homenagem ao senhor (monarca,
donatário) e de aquisição de benesses e comendas. Zurara na «Crónica da
Guiné» confirma isso, referindo que a participação madeirense ia ao encontro
dos princípios e tradições da cavalaria do reino. O que não invalida a sua
presença com outros objectivos, como sucede a partir de meados do século XV.
Os principais obreiros do reconhecimento e ocupação da Madeira, como
criados da casa do infante D. Henrique, foram impelidos para a aventura
africana, com participação activa nas viagens henriquinas de 1445 e 1460 e
nas aventuras bélicas nas praças africanas do norte, nos séculos XV e XVI.
Esta presença de gentes da Madeira continuará por todo o século XV em três
frentes: Marrocos, litoral africano além do Bojador e terras ocidentais. Na
primeira e última a presença dos madeirenses foi fundamental. A tradição

3 José PEREZ VIDAL, «Aportación portuguesa a la población de Canarias. Datos», in Anuario de


Estudios Atlânticos, nº 14, 1968; A. SARMENTO, «Madeira & Canárias», in Fasquias e Ripas da
Madeira, Funchal, 1931, 13-14.
refere que o primeiro homem a lançar-se à aventura do descobrimento das
terras ocidentais foi Diogo de Teive, que em 1451 terá saído do Faial à
procura da ilha das Sete Cidades, mas que no regresso apenas descobriu as
ilhas de Flores e Corvo. Seguiram o seu exemplo outros madeirenses que
gastaram muito de sua fazenda para abrir o caminho, mais tarde, trilhado por
Colombo.
A valorização da Madeira no contexto da expansão europeia tem sido
diversa. A historiografia nacional considera-a um simples episódio de todo o
processo e, em face da posição geográfica, hesita no seu enquadramento, sendo
levada, por vezes ao esquecimento. A historiografia europeia, ao invés, não
duvida em realçar a singularidade do seu processo neste contexto.
A Madeira, arquipélago e Ilha, afirma-se no processo da expansão
europeia pela singularidade do seu protagonismo. Vários são os factores que o
propiciaram, no momento de abertura do mundo atlântico, e que fizeram com que
ela fosse, no século XV, uma das peças-chave para a afirmação da hegemonia
portuguesa no Novo Mundo. O Funchal foi uma encruzilhada de opções e meios
que iam ao encontro da Europa em expansão. Além disso ela é considerada a
primeira pedra do projecto, que lançou Portugal para os anais da História do
oceano que abraça o seu litoral abrupto. A fundamentação de tudo isto está
patente no real protagonismo da ilha e das suas gentes.
À função de porta-estandarte do Atlântico, a Madeira associou outras,
como "farol" Atlântico, o guia orientador e apoio para as delongas incursões
oceânicas. Por isso nos séculos que nos antecederam, ela foi um espaço
privilegiado de comunicações, tendo a seu favor as vias traçadas no oceano
que a circunda e as condições económicas internas, propiciadas pelas culturas
da cana sacarina e vinha. Uma e outra condições contribuíram para que o
isolamento definido pelo oceano fosse quebrado e se mantivesse um permanente
contacto com o velho continente europeu e o Novo Mundo.
Como corolário desta ambiência a Madeira firmou uma posição de relevo
nas navegações e descobrimentos no Atlântico. O rápido desenvolvimento da
economia de mercado, em uníssono com o empenhamento dos principais povoadores
em dar continuidade à gesta de reconhecimento do Atlântico, reforçaram a
posição da Ilha e fizeram avolumar os serviços prestados pelos madeirenses.
Aqui surgiu uma nova aristocracia dos descobrimentos, cumulada de títulos e
benemesses pelos serviços prestados no reconhecimento da costa africana,
defesa das praças marroquinas, ou nas campanhas brasileiras e índicas.

2.1.MODELO DA EXPANSÃO. A par disso a Madeira surge, nos alvores do século


XV, como a primeira experiência de ocupação em que se ensaiaram produtos,
técnicas e estruturas institucionais. Tudo isto foi, depois, utilizado, em
larga escala, noutras ilhas e no litoral africano e americano. O arquipélago
foi, assim, o centro de divergência dos sustentáculos da nova sociedade e
economia do mundo atlântico: primeiro os Açores, depois os demais
arquipélagos e regiões costeiras onde os portugueses aportaram.
O sistema institucional madeirense apresentava uma estrutura peculiar,
definido pelas capitanias. Foi a 8 de Maio de 1440 que o Infante D. Henrique
lançou a base da nova estrutura ao conceder a Tristão Vaz a carta de capitão
de Machico. A partir daqui ficou definido o sistema institucional que deu
corpo ao governo português no Atlântico insular e brasileiro.
Sem dúvida que o facto mais significativo desta estrutura institucional
deriva de a Madeira ter servido de modelo referencial para o seu delineamento
no espaço atlântico. O monarca insiste, nas cartas de doação de capitanias
posteriores, na fidelidade ao sistema traçado para a Madeira. Assim o
comprovam idênticas cartas concedidas aos novos capitães das ilhas dos Açores
e Cabo Verde. O mesmo sucede com a demais estrutura institucional que chegou
também a S. Tomé e Brasil.
Também os castelhanos vieram á ilha receber alguns ensinamentos para a
sua acção institucional no Atlântico, como se depreende do desejo manifestado
em 1518 pelas autoridades antilhanas em resolver a difícil situação das ilhas
de Curaçau, Aruba e La Margarita com o recurso ao modelo madeirense de
povoamento. Isto prova, mais uma vez, a presença modelar da ilha no contexto
da expansão europeia e demonstra o interesse que ela assumiu para a Europa.
João de Melo da Camara, irmão do capitão da ilha de S. Miguel, resumia
em 15324 de uma forma perspicaz o protagonismo madeirense no espaço atlântico, pois a sua
família era portadora de uma longa e vasta experiência. Isso dava-lhe o alento necessário e abri-
lhe perspectivas para uma sua iniciativa no Brasil. Ele reclamava o protagonismo do seu ancestral
Rui Gonçalves da Câmara que em 1474 comprara a ilha de S. Miguel, dando início ao seu verdadeiro
povoamento. A mesma percepção surge em Gilberto Freire que em 1952 não hesita em afirmar o
seguinte:" A irmã mais velha do Brasil é o que foi verdadeiramente a Madeira. E irmã que se
estremou em termos de mãe para com a terra bárbara que as artes dos seus homens,... concorreram
para transformar rápida e solidamente em nova lusitania"5.
Outra componente importante da afirmação da ilha como modelo de
referência tem a ver com a organização da sociedade no espaço atlântico e da
importância aí assumida pelo escravo. Mais uma vez a Madeira é o ponto de
partida para esta transformação social. De acordo com S. Greenfield6 ela serviu
de trampolim entre o "Mediterranean Sugar Production" e a "Plantation Slavery" americana. O autor
não faz mais do que retomar os argumentos aduzidos por Charles Verlinden7 desde a década de
sessenta. Note-se que esta argumentação mereceu alguns reparos na sua formulação, mercê de novos
estudos8.
Na verdade tudo o concretizado em termos do mundo atlântico português
teve por matriz o sucedido na Madeira. A Madeira foi ao nível social,
politico e económico, o ponto de partida para o "mundo que o português
criou..." nos trópicos. Neste contexto é sumamente importante o conhecimento
do sucedido na Madeira quando pretendemos estudar e compreender as outras
situações.

3.DA ILHA AO ATLÂNTICO E AO NOVO MUNDO.

4 História da Colonização Portuguesa do Brasil, vol. III, p.90; cf Vera Jane GILBERT, "Os
primeiros engenhos de açúcar"in Sacharum, nº.3, São Paulo, 1978, pp. 5-12.

5 Aventura e Rotina, 2ªed., pp 440-446, 448-449

6 "Madeira and the beginings of New World sugar cane cultivation and plantation slavery: a study
in constitution building", in Vera RUBIN e Artur TUNDEN(eds.), Comparative perspectives on
slavery in New World Plantation Societies, N. York, 1977.

7 "Précédents et paralèlles europeéns de l'esclavage colonial", in Instituto, vol.113, Coimbra,


1949; "Les origines coloniales de la civilization atlantique. antécédents et types de structure",
in Journal of World History, 1953, pp. 378-398; Précédents médiévaux de la colonie emn Amérique,
México, 1954; Les origines de la civilization atlantique, Nêuchatel, 1966.

8 Confronte-se Alfonso FRANCO SILVA, "La eclavitud en Andalucia...", in Studia, nº.47, Lisboa,
1989, pp.165-166; Alberto VIEIRA, Os escravos no arquipélago da Madeira. séculos XV a XVII,
Funchal, 1991.
"Constroem-se em definitivo, a partir da Madeira, as linhas e redes de comércio atlanticos atraindo de
modo decisivo as áreas e mercados europeus mais nevrálgicos e mais importantes e criando nas áreas
ribeirinhas metropolitanas, insulares(Canárias, Açores, Cabo Verde) e continentais(Costa de Marfim-
Magreb-Arguim-Fez) fortes relações de dependência e de solidariedade". Aurélio de Oliveira, "A Madeira
nas linhas de comércio do Atlânticio. séculos XV- XVII", III CIHM, Funchal, 1993, 923.

3.1.A REVELAÇÃO DAS ILHAS À CRIAÇÃO DO ESPAÇO ATLÂNTICO. A definição dos


espaços económicos não resultou apenas dos interesses políticos e económicos
derivados da conjuntura expansionista europeia mas também das condições
internas, oferecidas pelo meio. Elas tornam-se por demais evidentes quando
estamos perante um conjunto de ilhas dispersas no oceano. No conjunto
estávamos perante ilhas com a mesma origem geológica, sem quaisquer vestígios
de ocupação humana, mas com diferenças marcantes ao nível climático. Os
Açores apresentavam-se como uma zona temperada, a Madeira como uma réplica
mediterrânica, enquanto nos dois arquipélagos meridionais eram manifestas as
influências da posição geográfica, que estabelecia um clima tropical seco ou
equatorial. Daqui resultou a diversidade de formas de valorização económica e
social. As condições morfológicas estabelecem as especificidades de cada ilha
e tornam possível a delimitação do espaço e a sua forma de aproveitamento
económico. Aqui o recorte e relevo costeiro foram importantes. A
possibilidade de acesso ao exterior através de bons ancoradouros era um
factor importante. É a partir daqui que se torna compreensível a situação da
Madeira definida pela excessiva importância da vertente sul em detrimento da
norte.
De acordo com as condições geo-climáticas é possível definir a mancha de
ocupação humana e agrícola das ilhas. Isto conduziu a uma variedade de
funções económicas, por vezes complementares. Deste modo nos arquipélagos
constituídos por maior número de ilhas a articulação dos vectores da
subsistência com os da economia de mercado foi mais harmoniosa e não causou
grandes dificuldades. Os Açores apresentam-se como a expressão mais perfeita
da realidade, enquanto a Madeira é o reverso da medalha.
O processo de povoamento das ilhas definiu-lhes uma vocação de áreas
económicas sucedâneas do mercado e espaço mediterrânicos. Assim o que sucedeu
nos séculos XV e XVI foi a lenta afirmação do novo espaço, tendo como ponto
de referência as ilhas.
A mudança de centros de influência foi responsável porque os
arquipélagos atlânticos assumissem uma função importante. A tudo isso poderá
juntar-se a constante presença de gentes ribeirinhas do Mediterrâneo,
interessadas em estabelecer os produtos e o necessário suporte financeiro. A
constante premência do Mediterrâneo nos primórdios da expansão atlântica
poderá ser responsabilizada pela dominante mercantil das novas experiências
de arroteamento aqui lançadas.
Certamente que os povos peninsulares e mediterrânicos, ao comprometerem-
se com o processo atlântica, não puseram de parte a tradição agrícola e os
incentivos comerciais dos mercados de origem. Por isso na bagagem dos
primeiros cabouqueiros insulares foram imprescindíveis as cepas, as socas de
cana, alguns grãos do precioso cereal, de mistura com artefactos e
ferramentas. A afirmação das áreas atlânticas resultou deste transplante
material e humana de que os peninsulares foram os principais obreiros. Este
processo foi a primeira experiência de ajustamento das arroteias às
directrizes da nova economia de mercado. A sociedade e economia insulares
surgem na confluência dos vectores externos com as condições internas dos
multifacetado mundo insular. A sua concretização não foi simultânea nem
obedeceu aos mesmos princípios organizativos pelo facto de a mesma resultar
da partilha pelas coroas peninsulares e senhorios ilhéus. Por outro lado a
economia insular é resultado da presença de vários factores que intervêm
directamente na produção e comércio.
Ao nível do sector produtivo deverá ter-se em conta a importância
assumida, por um lado, pelas condições geofísicas e, por outro, pela política
distributiva das culturas. É da conjugação de ambas que se estabelece a
necessária hierarquia. Os solos mais ricos eram reservados para a cultura de
maior rentabilidade económica (o trigo, a cana de açúcar, o pastel), enquanto
os medianos ficavam para os produtos hortícolas e frutícolas, ficando os mais
pobres como pasto e área de apoio aos dois primeiros.
A Madeira, que se encontrava a pouco mais de meio século de existência
como sociedade insular, estava em condições de oferecer os contingentes de
colonos habilitados para a abertura de novas arroteias e ao lançamento de
novas culturas nas ilhas e terras vizinhas. Assim terá sucedido com o
transplante da cana- de-açúcar para Santa Maria, S.Miguel, Terceira, Gran
Canária, Tenerife, Santiago, S. Tomé e Brasil.
A tendência uniformizadora da economia agrícola do espaço insular
esbarrou com vários obstáculos que, depois, conduziram a um reajustamento da
política económica e à definição da complementaridade entre os mesmos
arquipélagos ou ilhas. Nestas circunstâncias as ilhas conseguiram criar no
seu seio os meios
necessários para solucionar os problemas quotidianos -- assentes quase sempre
no assegurar os componentes da dieta alimentar --, à afirmação nos mercados
europeu e atlântico. Assim sucedeu com os cereais que, produzidos apenas
nalgumas ilhas, foram suficientes, em condições normais, para satisfazer as
necessidades da dieta insular, sobrando um grande excedente para suprir as
carências do reino.
Um dos iniciais objectivos que norteou o povoamento da Madeira foi a
possibilidade de acesso a uma nova área produtora de cereais, capaz de suprir
as carências do reino e depois as praças africanas e feitorias da costa da
Guiné. A última situaçäo era definida por aquilo a que ficou conhecida como o
"saco de Guiné". Entretanto os interesses em torno da cultura açucareira
recrudesceram e a aposta na cultura era óbvia. Esta mudança só se tornou
possível quando se encontrou um mercado substitutivo. Assim sucedeu com os
Açores que, a partir da segunda metade do século dezasseis, passaram a
assumir o lugar da Madeira .
O cereal foi o produto que conduziu a uma ligação harmoniosa dos
espaços insulares, o mesmo não sucedendo com o açúcar, o pastel e o vinho,
que foram responsáveis pelo afrontamento e uma crítica desarticulação dos
mecanismos económicos. A par disso todos os produtos foram o suporte, mais
que evidente, do poderoso domínio europeu na economia insular. Primeiro o
açúcar, depois o pastel e o vinho exerceram uma acção devastadora no
equilíbrio latente na economia das ilhas.
A incessante procura e rendoso negócio conduziram à plena afirmação,
quase que exclusiva destes produtos, geradora da dependência ao mercado
externo. Este para além de ser o consumidor exclusivo destas culturas, surge
como o principal fornecedor dos produtos ou artefactos de que os insulares
carecem. Perante isto qualquer eventualidade que pusesse em causa o sector
produtivo era o prelúdio da estagnação do comércio e o prenúncio evidente de
dificuldades, que desembocavam quase sempre na fome.
A estrutura do sector produtivo de cada ilha moldou-se de acordo com
isto, podendo definir-se em componentes da dieta alimentar (cereais, vinha,
hortas, fruteiras, gado) e de troca comercial (pastel, açúcar). Em
consonância com a actividade agrícola verificou-se a valorização dos recursos
disponibilizados por cada ilha, que integravam a dieta alimentar (pesca e
silvicultura) ou as trocas comerciais (urzela, sumagre, madeiras).

3.2.0S PARDIGMAS- AÇÚCAR. A cana-de-açúcar, pelo alto valor económico no


mercado europeu-mediterrânico, foi um dos primeiros e principais produtos que
a Europa legou e definiu para as novas áreas de ocupação no Atlântico.
O percurso iniciou-se na Madeira, alargando-se depois às restantes ilhas
e continente americano. Nesta primeira experiência além-Europa a cana
sacarina evidenciou as possibilidades de desenvolvimento fora do habitat
mediterrânico. Tal evidência catalisou os interesses do capital nacional e
estrangeiro, que apostou no crescimento da cultura e comércio. Se nos
primeiros anos de vida no solo insular a cana sacarina se apresentava como
subsidiária, a partir de meados do século XV já aparecia como o produto
dominante, situação que perdurou na primeira metade do século seguinte.
As socas de cana madeirense foram levadas para os Açores pelos
primitivos cabouqueiros, promovendo-se o cultivo em Santa Maria, S. Miguel,
Terceira e Faial. Aqui a cultura foi tentada várias vezes, mas sem surtir os
efeitos desejados. As condições geofísicas aliadas à inexistência ou reduzida
dimensão dos capitais estrangeiros travaram o seu desenvolvimento.
Diferente foi o que sucedeu em S. Tomé onde a abundância de águas e
lenhas associada às condições do solo foram de molde a
propiciar os meios indispensáveis ao cultivo da cana. O açúcar aí produzido,
tornou-se, por isso mesmo, concorrencial do madeirense, embora sem nunca
atingir a sua qualidade.Um dos factos que contribuiu para que ele se tornasse
concorrencial do madeirense foi a elevada produtividade. Segundo Jerónimo
Munzer9 ela seria três vezes superior à madeirense. No começo só se produzia melaço, que depois
era levado a Lisboa para ser refinado, mas a partir de 1506 a ilha passou também a fazer açúcar
branco, tendo-se para o efeito construído o primeiro engenho10.
Se nos preocuparmos em comparar o ciclo evolutivo da cultura da cana
nos diversos espaços do Atlântico onde foi cultivada concluiremos pela
existência de afinidades entre a sua afirmação numa área e a decadência
noutras. Assim sucedeu na Madeira com S.Tomé e desta para com o Brasil. O
cultivo dos canaviais surge em S. Tomé em finais do século XV, isto é no
momento de apogeu da produção madeirense, que atinge em 1510 o valor mais
elevado, entrando depois num movimento descendente. Esta fase depressionária,
que se acentua a partir de 1525, coincide com o momento de afirmação do
açúcar sãotomense. É precisamente nas décadas decorrentes até meados do
século que se atingem os valores mais elevados.
A partir do último quartel do século dezasseis foi a concorrência
desenfreada do açúcar brasileiro que definiu uma acentuada quebra no período
de 1595 a 1600. A esta conjuntura deverá juntar-se a revolta dos escravos
(1595), agravada pela destruição dos engenhos provocada pelo saque holandês.
Na verdade este momento coincide com a plena afirmação do açúcar brasileiro,
cuja colheita continuava a subir em flecha, nas décadas posteriores.
O domínio holandês de Recife, ao contrário do que habitualmente se
pensa, não provocou uma quebra deste ritmo mas apenas quebras pontuais, que
se reflectiram nos valores dos anos de 1618 e 1645. Este período, de menor
oferta do açúcar brasileiro nos portos peninsulares, não deverá ser entendido

9. Monumenta Missionária Africana, IV, 1954, nº 6, 16-20.

10. O Manuscrito de Valentim Fernandes, Lisboa, 1940, 128.


como uma quebra da produção mas apenas um desvio dos circuitos comerciais.
Esta conjuntura coincide com o retorno da cultura na Madeira e em S. Tomé,
atingindo-se na última, entre 1641-1645 as cem mil arrobas. Tal ritmo de
reabilitação da economia açucareira insular teve que enfrentar as
dificuldades levantadas pelos holandeses, interessados em manter o exclusivo
do açúcar pernambucano.

4.A CONTEXTUALIDADE ATLÂNTICA.

"A ilha da Madeira... que Deus pos no mar ocidental para escala, refúgio, colheita e remédio dos
navegantes, que de Portugal e de outros regnos vão, e de outros portos e navegações vêm para
diversas partes,além dos que para ela somente navegam, levando-lhe mercadorias estrangeiras e muito
dinheiro para se aproveitar do retorno que dela levam para suas terras...".(Gaspar Frutuoso, Livro
segundo das Saudades da Terra, P.Delgada, 1979, pp.99-100)

A valorização do Atlântico nos séculos XV e XVI conduziu a um


intrincado liame de rotas de navegação e de comércio que ligavam o Velho
Continente ao litoral atlântico. Esta multiplicidade de rotas resultou das
complementaridades económicas e de formas de exploração adoptadas. Se é certo
que esses vectores geraram as referidas rotas, não é menos certo que as
condições mesológicas deste oceano, dominadas pelas correntes, ventos e
tempestades, delinearam o seu rumo. As mais importantes e duradouras de todas
as traçadas neste mar foram sem dúvida a da Índia e a das Índias, que
galvanizaram as atenções dos monarcas, da população europeia e insular, dos
piratas e corsários.
No traçado de ambas situava-se o Mediterrâneo Atlântico com uma
actuação primordial na manutensão e apoio à navegação atlântica. As ilhas da
Madeira e das Canárias surgem nos séculos XV e XVI como entreposto para o
comércio no litoral africano, americano e asiático. Os portos principais da
ilha da Madeira, Gran Canaria, La Gomera, Hierro, Tenerife e Lanzarote
animam-se de forma diversa com o apoio a essa navegação e comércio nas rotas
da ida, enquanto nos Açores, com as ilhas de Flores, Corvo, Terceira, e S.
Miguel, surgem como a escala necessária e fundamental da rota de retorno.
Segundo Pierre Chaunu a rota das Índias de castela assentou em quatro
vértices fundamentais: Sevilha, Canárias, Antilhas, Açores11. Neste traçado,
portanto, a Madeira mantinha-se numa posição excêntrica, pois apenas servia as rotas portuguesas
do Brasil e da costa africana.
A participação madeirense na carreira das Índias foi esporádica,
justificando-se esta ausência pela posição marginal em relação à sua rota.
Todavia a Madeira representa um porto de escala muito importante para as
navegações portuguesas para o Brasil, Golfo da Guiné e Índia. Desde o século
XV que ficou demarcada essa posição da escala madeirense para as explorações

11. Sevilla y América. Siglos XVI y XVII, 43-48.


geográficas e comerciais dos portugueses na costa ocidental madeirense para
as explorações geográficas e comerciais dos portugueses na costa ocidental
africana. Esta opção pela Madeira adveio dos conflitos latentes com Castela
pela posse das Canárias. A expansão comercial de finais do século XV, com a
abertura da rota do Cabo, veio valorizar mais uma vez esta escala aquém
equador, surgindo inúmeras referências, em roteiros e relatos de viagens, à
escala madeirense. Os mesmos ingleses que utilizaram as Canárias tocavam com
assiduidade a Madeira, onde se proviam de vinho para a viagem.
A Madeira, como as Canárias muito raramente foi escolhida como escala
de retorno - uma vez que essa missão estava, por condicionalismos
geográficos, reservada aos Açores. Todavia verificou-se ocasionalmente a
escala das embarcações vindas da Mina Índias e Índias na Madeira.
A posição demarcada do Mediterrâneo Atlântico no comercio e na
navegação atlântica fez com que as coroas peninsulares investissem aí todas
as tarefas de apoio, defesa e controle do trato comercial. As ilhas eram os
bastiões avançados, suportes e símbolos da hegemonia peninsular no Atlântico.
A disputa pela riqueza em movimento neste oceano será feita na área definida
por elas, pois para aí incidiam piratas e corsários ingleses, franceses e
holandeses, ávidos das riquezas em circulação nas rotas americanas e índicas.
Uma das maiores preocupações das coroas peninsulares terá sido a defesa das
embarcações que sulcavam o Atlântico em relação às investidas dos corsários
europeus. A área definida pela Península Ibérica, Canárias e Açores era o
principal foco de intervenção do corso europeu sobre os navios que
transportavam açúcar ou pastel ao velho continente.

4.1. UMA NOVA REALIDADE. A DIMENSÃO INSULAR E ATLÂNTICA


DA ECONOMIA. A historiografia vem defendendo única e exclusivamente a
vinculação da ilha ao Velho Mundo, realçando apenas a importância desta
relação umbilical com a mãe-pátria. Neste sentido os séculos XV e XVI seriam
definidos como os momentos áureos deste relacionamento, enquanto a conjuntura
setecentista seria a expressão da viragem para o Novo Mundo, em que o vinho
assume o papel de principal protagonista e responsável destas trocas
comerciais.
Os estudos por nós realizados vieram a confirmar que a situação do
relacionamento exterior da ilha não se resumia apenas a estas situações12. À
margem destas importante vias e mercados subsistem outras que activaram também a economia
madeirense, desde o séc. XV. Neste contexto as conexões com os arquipélagos próximos (Açores e
Canárias) ou afastados (Cabo Verde, S.Tomé e Príncipe) foram já motivo de uma aprofundada
explanação, que propiciou a sua necessária valorização na estrutura comercial madeirense13. Aqui
ficou demonstrada a importância assumida por estes contactos humanos e comerciais, que no
primeiro caso, resultou da necessidade de abastecimento de cereais e, no segundo, das
possibilidades de intervenção no trafico negreiro, mercê da sua vinculação às áreas africanas da
Costa da Guiné, Mina e Angola.
Para além deste privilegiado relacionamento com o mundo insular, a praça
comercial madeirense foi protagonista de outros destinos no litoral africano
ou americano e rosário de ilhas da América Central. No primeiro rumo ressalta

12. "O comércio de cereais dos Açores para a Madeira no século XVII", in Os Açores e o
Atlântico(séculos XIV-XVII), A. Heroismo, 1984; "O comércio de cereais das Canárias para a
Madeira nos séculos XVI e XVII", in VI Colóquio de História Canario Americana, Las Palmas, 1984;
"Madeira e Lanzarote. comércio de escravos e cereais no século XVII", in IV Jornadas de História
de Lanzarote e Fuerteventura, Arrecife de Lanzarote, 1989.

13.O comércio inter-insular(Madeira, Açores e Canárias) nos séculos XV e XVI, Funchal, 1987.
a costa marroquina, onde os portugueses assentaram algumas praças,
defendidas, a ferro e fogo, pelas gentes da ilha14.
No século XVI, com a paulatina afirmação do novo mundo americano
costeiro e insular, depara-se à ilha um novo destino e mercado, que pautará o
seu relacionamento externo nas centurias posteriores. Este novo mundo e
mercado foi para muitos uma esperança de enriquecimento ou a forma de
assegurar a posse de bens fundiários.
Em qualquer das situações o estreitamento dos contactos depende,
primeiro, da presença de uma comunidade madeirense que pretende manter o
contacto com a terra-mãe e depois das possibilidades de uma troca favorável.
Neste contexto a oferta de vinho por parte do madeirense e a sua procura
pelos agentes do trafico negreiro, para enganadoramente oferecerem aos sobas
africanos, ou do outro lado do Atlântico saciar a sede do europeu a troco do
açúcar, foi o principal motor deste relacionamento. Esta situação influenciou
decisivamente a estrutura comercial da ilha, a partir da segunda metade do
século XVI. Desde então as conexões comerciais adquiriram uma maior
complexidade, fazendo com que a Madeira, através do seu vinho, se
transformasse num ponto importante do circuito de triangulação, que passou a
dominar os contactos entre os portos da costa ocidental africana a americana
e as Antilhas. Neste contexto foi exemplar e decisiva a acção de dois
madeirenses-Diogo Fernandes Branco e Francisco Dias- que aqui e agora
pretendemos revelar. A eles associam-se dois ingleses- Bartolome Cuello e
William Bolton- que matizaram de forma diversa esse relacionamento externo da
ilha.

4.2. ESCRAVOS. Insiste-se no facto de que as Canárias e os Açores foram os


principais protagonistas do comércio com o Novo Mundo, deslocando-se a
Madeira para uma posição excêntrica. Todavia o confronto dos dados
disponíveis na documentação revelam o contrario, contribuindo para isso o
facto de a Madeira ter servido de modelo para todas as tentativas de
valorização económica do Novo Mundo. Esta última situação favoreceu uma
pronta emigração de madeirenses, especializados nas diversas tarefas, e
propiciou a manutenção do relacionamento, ainda que por vezes sentimentais.
Além disso esta situação saiu reforçada com a oferta madeirense de produtos
demandados por estes novos mercados. E, finalmente, deverá juntar-se a activa
participação dos mercadores da ilha nesses circuitos comerciais, então
traçados para o fornecimento de mão-de-obra escrava ou escoamento do açúcar.
O mercado negreiro da costa ocidental africana foi alvo da atenção dos
madeirenses, que cedo se intrometeram neste trafico com destino à ilha, ao
velho continente e, mais tarde, ao novo mundo americano. Os madeirenses
participaram activamente no processo de reconhecimento das terras do Sul.
Aliás, desde 1470 o Funchal funcionou como um importante entreposto para o
comércio africano.
Este relacionamento progrediu mercê de uma conjuntura favorável aos
contactos com estas paragens: em 1483 D. Manuel recomendou as maiores
facilidades no porto do Funchal para os navios de Cabo Verde, depois, a
partir de 1507, foi a isenção do pagamento de direitos nos produtos
exportados de Cabo Verde para as ilhas e reino. Tudo isto facilitou o acesso
do madeirense ao mercado de escravos. Deste modo a ilha foi um dos primeiros

14.A.A.SARMENTO, A Madeira e as praças de África. dum caderno de apontamentos, Funchal, 1932:


Robert RICARD, "Les places luso-marocaines et les Iles portugaises de l'Atlantique", in Anais da
Academia Portuguesa de História, II série, vol.II, 1949; António Dias FARINHA, "A Madeira e o
Norte de África nos séculos XV e XVI", in Actas do I Colóquio Internacional de História da
Madeira.1986, vol.I, Funchal, 1989, pp.360-375.
destino dos escravos resultantes das primevas razias na costa ocidental
africana.
Nos entrepostos do trafico negreiro em Santiago, S.Tomé ou Angola, a
presença de madeirenses era frequente. Eles gozavam mesmo, desde 1562, de
privilégios especiais na captura de escravos para as suas fazendas ou venda
aos seus compatrícios que as possuíam. Outros procuravam intervir no rendoso
contrabando, alargando os seus negócios até ao Brasil ou Antilhas.
Muitos, fascinados pela aventura destas paragens, decidiram-se por uma
intervenção directa, fixando-se em Santiago ou na Costa da Guiné. Note-se que
a situação de vizinho era condição obrigatória para participar neste trafico
negreiro15. Eles privavam-se da família e da vida amena da Madeira e sujeitam-se a uma aventura
de solidão e de dificuldades, motivadas pelas condições climáticas da zona.
A Madeira, porque próxima do continente africano e envolvida no seu
processo de reconhecimento, ocupação e defesa do controlo lusíada, tinha as
portas abertas a este vantajoso comércio. Deste modo a ilha e os madeirenses
demarcaram-se nas iniciais centúrias pelo empenho na aquisição e comércio
desta pujante e promissora mercadoria do espaço atlântico. À ilha chegaram os
primeiros escravos guanches, marroquinos e africanos, que contribuiram para o
arranque económico do arquipélago.
O comércio entre a ilha e os principais mercados fornecedores existiu,
desde o começo da ocupação do arquipélago, e foi em alguns momentos
fulgurante. Impossível é estabelecer com exactidão a quantidade de escravos
envolvida. A deficiente disponibilidade documental, para os séculos XV a
XVII, não o permite. Carecemos dos registos de entrada da alfândega do
Funchal e dos contratos exarados nas actas notariais.
Os escravos que surgem no mercado madeirense são na quase totalidade de
origem africana, sendo reduzida ou nula a presença daqueles de outras
proveniências, como o Brasil, América Central e India. Isto pode ser
resultado, por um lado, da distância ou das dificuldades no trafico e, por
outro, das assíduas medidas limitativas ou de proibição, como sucedeu no
Brasil e India. Apenas o mercado africano, dominado pela extensa costa
ocidental, em poder dos portugueses, não foi alvo de quaisquer proibições. Aí
as únicas medidas foram no sentido de regular o tráfico, como sucedeu com os
contratos e arrendamentos.
O litoral Atlântico do continente africano, definido, primeiro, pelas
Canárias e Marrocos e, depois, pela Costa e Golfo da Guiné e Angola, era a
principal fonte de escravos. E aí a Madeira foi buscar a mão-de-obra
necessária para abrir os poios e, depois, plantar os canaviais. Primeiro
foram os escravos brancos das Canárias e Marrocos. Depois os negros das
partes da Guiné e Angola.
As condições particulares da presença portuguesa no Norte de África
definiram aí uma forma peculiar de aquisição. Os escravos eram sinónimo de
presas de guerra, resultantes das múltiplas pelejas, em que se envolviam
portugueses e mouros. Para os madeirenses, que defenderam com valentia a
soberania portuguesa nestas paragens, os escravos mouros surgem ao mesmo
tempo como prémio e testemunho dos seus feitos bélicos. Eram poucos os que
podiam ostentar os seus triunfos de guerra. Outra forma de aquisição era o
corso marítimo e costeiros, prárica de represália comum a ambas as
partes.Idêntica situação ocorreu na India onde os madeirenses também se
evidenciaram nas diversas batalhas aí travadas, como sucedeu com Tristão Vaz
da Veiga. Na Costa Africana, além do Bojador, os meios de abastecimento de
escravos eram outros: primeiro tivemos os assaltos e razias, depois o trato
pacífico com as populações indígenas. Tudo isto implicava uma dinâmica

15.Confronte-se António Carreira, Cabo Verde, Lisboa, 1983, pp.29-53.


diferente para os circuitos de comércio e transporte. Aqui os cavaleiros e
corsários são substituídos pelos mercadores.

CONCLUSÃO

Por tudo isto é forçoso afirmar que a ilha não se reduz à sua dimensão
geográfica. À sua volta palpita um mundo que gera multiplas conexões e que
não pode ser descurado sob pena de estarmos a atraiçoar o próprio devir
histórico. Há que rasgar o casulo da ilha e postar-se nas torres avista-
navios e vislumbrar o imenso firmamento que nos conduz a ilhas e continentes.
Isto só será possível quando ultrapassarmos a fase do egocentrismo e
mergulharmos na profundeza do Atlântico à busca da atlanticidade.
Se tomarmos alguns dos temas comuns da nossa história- o vinho, o
açúcar e a escravatura- seremos forçados a concluir que foram eles. em boa
parte, os responsáveis por esta opção atlântica da Madeira e que nos obrigam
sempre e em qualquer momento a dar atenção ao meio que nos envolve. As rotas
comerciais, os mercados europeu e colonial, e, acima de tudo, o oceano como
um mar aberto.
A História insular carece de uma revolução temática, o chamado
território do historiador precisa de ser alargado além dos "solos" ricos e
tradicionais. A par disso o ofício de historiador precisa de ser dignificado,
expresso na perícia no manejo dos seus instrumentos de trabalho. A próxima
realização do Colóquio Internacional das ilhas Atlânticas vai ao encontro
deste desafio e poderá ser o ponto de partida para uma viragem na História
insular. Mas tudo isto só será possível se houver disponibilidades dos
diversos agentes para aceitarem e actuarem em favor desta mudança.

BIBLIOGRAFIA FUNDAMENTAL

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