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A igreja evangélica está doente e precisa de uma reforma. Os pastores se tornaram intermediários entre Deus e os homens e cometem abusos emocionais apoiados
em textos bíblicos. Essas são algumas das afirmações polêmicas da jornalista Marília de Camargo César em seu livro de estreia, Feridos em nome de Deus (editora
Mundo Cristão), que será lançado no dia 30. Marília é evangélica e resolveu escrever depois de testemunhar algumas experiências religiosas com amigos de sua
antiga congregação.
QUEM É
Marília de Camargo César, 44 anos, jornalista, casada, duas filhas
O QUE FEZ
Editora assistente do jornal O Valor , formada pela Faculdade de
Comunicação Social Cásper Líbero
O QUE PUBLICOU
Seu livro de estreia é Feridos em nome de Deus (editora Mundo
Cristão)
ÉPOCA – Que tipo de experiência você considera como abuso religioso e que marcas são essas?
Marília – Meu livro é sobre abusos emocionais que acontecem na esteira do crescimento acelerado da população de evangélicos no Brasil. É a intromissão radical do
pastor na vida das pessoas. Um exemplo: uma missionária que apanha do marido sistematicamente e vai parar no hospital. Quando ela procura um pastor para se
aconselhar, ele fala assim para ela: “Minha filha, você deve estar fazendo alguma coisa errada, é por isso que o teu marido está se sentindo diminuído e por isso ele
está te batendo. Você tem de se submeter a ele, porque biblicamente a mulher tem de se submeter ao cabeça da casa. Então, essa mulher, que está com a
autoestima lá embaixo, que apanha do marido - inclusive pelo Código Civil Brasileiro ele teria de ser punido - pede um conselho pastoral e o pastor acaba pisando
mais nela ainda. E ele usa a Bíblia para isso. Esse é um tipo de abuso que não está apenas na igreja pentecostal ou neopentecostal, como dizem. É um caso da Igreja
Batista, em que, teoricamente, os protestantes históricos têm uma reputação melhor.
ÉPOCA – Por que demora tanto tempo para a pessoa perceber que está sendo vítima?
Marília – Os abusos não acontecem da noite para o dia. A pessoa que está sendo discipulada, que aprende com o pastor o que a Bíblia diz, desenvolve esse
relacionamento aos poucos. No primeiro momento, ela idealiza a figura do líder, como alguém maduro, bem preparado. É aquilo que fazemos quando estamos
apaixonados: não vemos os defeitos. O fiel vê esse líder como um intermediário, como um representante de Deus que tem recados para a vida dele, um guru. E o
pastor vai ganhando a confiança dele num crescendo, como numa amizade. Esse líder, que acredita que Deus o usa para mandar recados para sua congregação,
passa a ser uma referência na vida do fiel. O fiel, pro sua vez, sente uma grande gratidão por aquele que o ajudou a mudar sua vida para melhor. Ele se sente
devedor do pastor e começa, então, a dar presentes. O fiel quer abençoar o líder porque largou as drogas, ou parou de beber, ou parou de bater na mulher, ou
porque arrumou um emprego e está andando na linha. E começa a dar presentes de acordo com suas posses. Se for um grande empresário, ele dá um carro
importado para o pastor. Isso eu vi acontecer várias vezes. O pastor, por sua vez, gosta de receber esses presentes. É quando a relação se contamina, se torna
promíscua. E o pastor usa a Bíblia para dizer que esse ato é bíblico. O poder está no uso da Bíblia para legitimar essas práticas.
ÉPOCA – Você afirma que muitos dos pastores não agem por má-fé, mas por uma visão messiânica. Explique.
Marília – É uma visão messiânica para com seu rebanho. Lutero (teólogo alemão responsável pela reforma protestante no século XVI) deve estar dando voltas na
tumba. Porque o pastor evangélico virou um papa que é a figura mais criticada no catolicismo, o inerrante. E não existe essa figura, porque somos todos errantes,
seres faltantes, como já dizia Freud. Pastor é gente. E é esse pastor messiânico que está crescendo no evangelismo. Existe uma ruptura entre o Antigo e o Novo
Testamento, que é a cruz. A reforma de Lutero veio para acabar com a figura intermediária e a partir dela veio a doutrina do sacerdócio universal. Todos têm acesso
a Deus. Uma das fontes do livro disse que precisamos de uma nova reforma e eu concordo com ela. Essa hierarquização da experiência religiosa, que o protestante
tanto combateu no catolicismo, está se propagando. Você não pode mais ter a conversa direta com o divino. Porque tem aquela coisa da “oração forte” do pastor.
Você acha que ele ora mais que você, que ele tem alguma vantagem espiritual e, se você gruda nele, pega uma lasquinha. Isso não existe. Somos todos iguais
perante Deus.
ÉPOCA – Se a igreja for questionada em seus dogmas, ela não deixará de ser igreja?
Marília – Eu não acho isso. A igreja tem mesmo de ser questionada, inclusive há pensadores cristãos contemporâneos que questionam o modelo de igreja que
estamos vivendo e as teologias distorcidas, como a teologia da prosperidade, que são predominantemente neopentecostais e ensinam essa grande barganha. Se você
não der o dízimo, Deus vai mandar o gafanhoto. Simbolicamente falando, Ele vai te amaldiçoar. Hoje o fiel se relaciona com o Divino para as coisas darem certo. Ele
não se relaciona pelo amor. Essa é uma das grandes distorções.
ÉPOCA – Por que você diz que existe uma questão cultural no abuso religioso?
Marília – Porque o brasileiro procura seus xamãs, e isso acontece em todas as religiões. O brasileiro é extremamente religioso. A ÉPOCA até publicou uma matéria
sobre isso, dizendo que a maioria acredita em algo e se relaciona com isso, tentando desenvolver seu lado espiritual. O brasileiro gosta de ter seu oráculo. A pessoa
que vem do catolicismo, onde há centenas de santos, e passa a ser evangélica transfere aquela prática e cultura do intermediário para o protestantismo, e muitas
igrejas dão espaço para isso. O pastor Edir Macedo (da igreja Universal) trouxe vários elementos da umbanda, do candomblé, porque ele é convertido. Ele diz que o
povo precisa desses elementos -que ele chama de pontos de contato - para ajudar a materializar a experiência religiosa. A Bíblia condena tudo isso.
ÉPOCA – No livro você dá alguns alertas para não cair no abuso religioso. Fale deles.
Marília – Desconfie de quem leva a glória para si. Um conselho é prestar atenção nas visões megalomaníacas. Uma das características de quem abusa é querer que
a igreja se encaixe em suas visões, como quere ganhar o Brasil para Cristo e colocar metas para isso. E aquele que não se encaixar é um rebelde, um feiticeiro. Tome
cuidado com esse homem. Outra estratégia é perguntar a si mesmo se tem medo do pastor ou se pode discordar dele. A pessoa que tem potencial para abusar não
aceita que discorde dela, porque é autoritária. Outra situação é observar se o pastor gosta de dinheiro e ver os sinais de enriquecimento ilícito. São esses geralmente
os que adoram ser abençoados e ganhar presentes. Cuidado com esse cara.