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Ficha Técnica

Título: Baratas
Título original: Kakerlakkene
Autor: Jo Nesbø
Tradução do inglês: Maria Georgina Segurado
Capa: Gito Lima
Foto de capa: Shutterstock
Revisão: Catarina Sacramento
Edição: Maria da Piedade Ferreira
ISBN: 9789722059220

Publicações Dom Quixote


Uma editora do Grupo LeYa
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Fax. (+351) 21 427 22 01

© Jo Nesbø, 1998
© Publicações Dom Quixote, 2016
Publicado em Portugal com o acordo de Salomonsson Agency
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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www.leya.com

Este livro foi traduzido segundo o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


No seio da comunidade norueguesa na Tailândia, corre o boato de que um
dos seus embaixadores, dado como morto na sequência de um acidente de
viação, foi, na verdade, assassinado em circunstâncias verdadeiramente
misteriosas. Não existem quaisquer indícios que sustentem o rumor, contudo,
não deixa de dar uma boa história.
No entanto, nem as pessoas nem os acontecimentos mencionados neste
livro devem ser confundidos com pessoas ou acontecimentos verídicos. A
realidade é por demais estranha para isso.

Banguecoque, 23 de fevereiro de 1998


PARTE UM
1

Terça-feira, 7 de janeiro

A luz do semáforo ficou verde, e o ruído dos camiões, carros, motorizadas


e tuk-tuks foi aumentando exponencialmente ao ponto de Dim conseguir
ver a montra do grande armazém Robinson’s a vibrar. Depois, as filas
começaram a avançar e a montra, que exibia o vestido comprido de seda
vermelha, ficou para trás, na escuridão.
Ela apanhara um táxi. Não um autocarro apinhado nem um tuk-tuk todo
enferrujado, mas um táxi com ar condicionado e um motorista que sabia ficar
de boca fechada. Reclinou-se para trás, encostou a cabeça ao apoio, e tentou
desfrutar da viagem. Tudo tranquilo. Uma motocicleta passou acelerada e
uma rapariga que seguia no assento traseiro, agarrada a uma T-shirt vermelha
com um capacete com viseira, lançou-lhes um olhar vago. «Agarra-te bem»,
pensou Dim.
Na Rama IV Road, o taxista colocou-se atrás de um camião que libertava
um fumo tão espesso e negro que ela nem conseguia ver a chapa de
matrícula. Depois de circular pelo sistema de ar condicionado, o gás do
escape ficava frio e quase inodoro. Quase. Ela agitou discretamente a mão
para mostrar o seu desagrado, e o taxista olhou pelo espelho retrovisor e
mudou para a faixa exterior. Tudo tranquilo.
A sua vida sempre fora assim. Crescera numa quinta e era uma de seis
irmãs. Demasiadas, na opinião do pai. Tinha sete anos quando ficaram a
tossir e a acenar por entre a poeira amarela, enquanto a carroça que levava a
irmã mais velha ia avançando pela estrada rural ao longo do canal de água
castanha. A irmã recebera roupas lavadas, um bilhete de comboio para
Banguecoque e uma morada no Patpong1 escrita no verso de um cartão de
visita, e chorara como uma Madalena, apesar de Dim lhe ter acenado tão
vigorosamente que chegou a pensar que lhe fosse cair a mão. A mãe fizera-
lhe festas na cabeça e dissera-lhe que não era fácil, mas também não era mau.
Pelo menos, a irmã não teria de andar de quinta em quinta como kwai, à
semelhança do que sucedera à mãe antes de se casar. Além disso, a menina
Wong prometera cuidar bem dela. O pai assentira, cuspira sumo de bétele2
por entre os dentes pretos e acrescentara que nos bares os farangs3 pagavam
bom dinheiro por raparigas jovens.
Dim não percebera o que a mãe entendia por kwai, e também não ia
perguntar. Claro que sabia que kwai era um búfalo. À semelhança da maior
parte das pessoas nas quintas das redondezas, eles não tinham dinheiro para
um búfalo, de modo que alugavam aqueles que circulavam pela zona quando
era necessário sulcar o campo alagado para plantar arroz. Só mais tarde
descobriu que a rapariga que acompanhava o búfalo também se designava
kwai, uma vez que os seus serviços faziam parte do acordo. Era essa a
tradição. Esperava encontrar um agricultor que a quisesse antes de ser
demasiado velha.
Quando Dim tinha quinze anos, o pai chamara-a enquanto esquadrinhava o
arrozal, com o sol a incidir-lhe nas costas e o chapéu na mão. Ela não
respondera logo; endireitara-se e olhara com atenção para as colinas verdes
que rodeavam a pequena quinta, fechara os olhos, escutara o som do
jacamim4 na folhagem e inalara o cheiro a eucalipto e árvores-da-borracha.
Durante o primeiro ano, viviam quatro raparigas num quarto e partilhavam
tudo: cama, comida e roupas. Estas últimas eram particularmente
importantes, pois sem roupas bonitas não conseguiam os melhores clientes.
Ela aprendera sozinha a dançar, a sorrir, a perceber quais os homens que
queriam oferecer bebidas e os que queriam comprar sexo. O pai já tinha
combinado com a menina Wong que o dinheiro seria enviado para casa, pelo
que ela viu muito pouco do que ganhou durante os primeiros anos. Contudo,
a menina Wong estava satisfeita e, com o passar do tempo, punha mais de
parte para Dim.
A menina Wong tinha motivos para estar satisfeita. Dim era muito
trabalhadora e os clientes pagavam-lhe bebidas. A menina Wong devia estar
satisfeita por ela continuar ali, pois, em duas ocasiões, não a perdeu por
pouco. Um japonês quisera casar-se com Dim, mas retirara a proposta quando
ela exigira dinheiro para o bilhete de avião. Um americano levara-a para
Phuket, adiara o regresso ao seu país e oferecera-lhe um anel de diamantes.
Ela pusera-o no prego um dia depois de ele partir.
Alguns pagavam mal e se ela se queixava mandavam-na ir dar uma curva;
outros reclamavam junto da menina Wong se ela não acedia a tudo o que eles
queriam. Não percebiam que, assim que pagavam pela companhia dela no
bar, a menina Wong recebia o dinheiro e Dim era senhora de si. Senhora de
si. Pensou no vestido vermelho na montra. A mãe tinha razão: não era fácil,
mas também não era assim tão mau.
E ela conseguira conservar o sorriso inocente e a gargalhada de satisfação.
Eles gostavam. Talvez por isso lhe tivessem oferecido o trabalho que Wang
Lee anunciara no Thai Rath5 sob o título de ERP, ou encarregada de Relações
Públicas. Wang Lee era um chinês pequeno, de tez escura, dono de um motel
na Sukhumvit Road e a clientela era principalmente estrangeira, com
exigências especiais, mas não tão especiais que ela não as pudesse satisfazer.
Em abono da verdade, ela gostava mais do que fazia ali do que ficar horas a
fio a dançar no bar. Além disso, Wang Lee pagava bem.
A única desvantagem era o tempo que demorava a chegar lá desde o seu
apartamento no bairro de Banglamphu.
Maldito tráfego! Estava outra vez parado, e ela comunicou ao taxista que ia
apear-se, muito embora isso implicasse atravessar seis faixas de rodagem
para chegar ao motel do lado oposto da via. Quando saiu do táxi, o ar
envolveu-a como uma toalha quente e húmida. Tentou fazer uma pausa, e
tapou a boca e o nariz com a mão, consciente de que não fazia diferença, não
se respirava outro ar em Banguecoque, mas pelo menos era poupada ao
cheiro.
Esgueirou-se por entre os veículos, teve de se desviar de uma carrinha com
a carroçaria cheia de rapazes a assobiar e por pouco um Toyota suicida não
lhe arrancou as tiras das sandálias dos tornozelos. Depois, chegou finalmente
ao outro lado.

Wang Lee levantou a cabeça quando ela entrou na receção deserta.


– Uma noite tranquila? – perguntou ela.
Ele anuiu, com ar descontente. Mostrara-o algumas vezes ao longo do
último ano.
– Já comeste?
– Já – mentiu.
Lee era bem-intencionado, mas não lhe apetecia a aletria aguada que ele
preparava na divisão das traseiras.
– Vais ter de esperar – disse ele. – O farang primeiro quis dormir um
pouco. Ele telefona quando estiver preparado.
Ela soltou um gemido.
– Sabes que tenho de regressar ao bar antes da meia-noite, Lee.
Ele olhou para o seu relógio de pulso.
– Dá-lhe uma hora.
Dim encolheu os ombros e sentou-se. Se fosse há um ano, provavelmente
ele tinha-a expulsado por lhe falar naqueles termos, porém, naquele momento
ele precisava de ganhar o máximo possível. Claro que ela podia ir-se embora,
mas nesse caso a longa viagem teria sido um desperdício. E também devia
um favor a Lee; já trabalhara para chulos piores.

Depois de apagar o terceiro cigarro, lavou a boca com o amargo chá chinês
de Lee e levantou-se para uma última inspeção da maquilhagem no espelho
por cima do balcão.
– Vou acordá-lo – anunciou.
– Hum. Trouxeste os patins?
Ela ergueu o saco.
Os saltos altos faziam ruído na gravilha do acesso entre os quartos baixos
do motel. O quarto 120 ficava mesmo lá ao fundo; não conseguia ver nenhum
carro no exterior, mas havia uma luz na janela. Por isso, talvez ele estivesse
acordado. Uma brisa ligeira levantou-lhe a saia curta, mas não chegou a
refrescá-la. Estava ansiosa por que chegasse a monção, a chuva. Tal como,
após algumas semanas de chuva torrencial, ruas enlameadas e bolor na roupa
lavada, ansiava pelos meses secos, sem vento.
Bateu ao de leve à porta com os nós dos dedos e pôs o seu sorriso tímido
enquanto levava nos lábios a pergunta «Como se chama?». Ninguém
respondeu. Bateu novamente e olhou para o relógio de pulso. Talvez
conseguisse regatear algumas centenas de bahts no preço do vestido, ainda
que fosse no Robinson’s. Rodou o manípulo da porta e descobriu, para sua
surpresa, que não estava trancada.
Ele estava deitado de bruços na cama, e a primeira impressão que teve foi
de que estaria a dormir. Viu depois o brilho no cabo azul do punhal que lhe
saía do casaco amarelo garrido. Era difícil dizer qual dos pensamentos lhe
invadiu primeiro o cérebro, mas um deles foi, sem dúvida, que a viagem até
Banglamphu fora mesmo um desperdício. Depois, recuperou o controlo das
cordas vocais. Todavia, o grito dela foi abafado pela buzina estridente de um
camião ao desviar-se de um tuk-tuk desatento na Sukhumvit Road.
1 O bairro vermelho de Banguecoque. (N. da T.)

2 Planta aromática da família das Piperáceas, cujas folhas são muito empregadas em mistura
mastigatória no Sudeste Asiático. (N. da T.)

3 Termo genérico tailandês para alguém de ascendência europeia. (N. da T.)

4 Ave gruiforme que emite um ruído forte e crepitante. (N. da T.)

5 Diário tailandês fundado em 1962. (N. da T.)


2

Quarta-feira, 8 de janeiro

–T eatro Nacional – anunciou uma voz nasalada e sonolenta pelos


altifalantes, antes de as portas do elétrico se abrirem rapidamente e
Dagfinn Torhus sair para a escuridão húmida e
fria.
O ar fez-lhe arder as faces recentemente escanhoadas, e conseguiu ver, à
luz da parca iluminação de néon de Oslo, a respiração gelada que lhe saía da
boca.
Estavam no início de janeiro e ele sabia que o tempo iria melhorar lá mais
para diante no inverno, quando o fiorde ficasse gelado e o ar se tornasse mais
seco. Começou a subir a Drammensveien em direção ao Ministério dos
Negócios Estrangeiros. Passaram por ele dois táxis solitários; de outro modo,
as ruas estavam praticamente desertas. O relógio da Gjensidig6 projetava um
brilho vermelho no negro céu invernoso por cima do edifício em frente,
informando-o de que eram apenas seis horas.
Do lado de fora da porta, tirou o cartão de acesso. «Cargo: Diretor» lia-se
por cima de uma fotografia de Dagfinn Torhus cerca de dez anos mais novo,
fitando a câmara, de queixo espetado e olhar determinado, por detrás de uns
óculos com armação de metal.

Passou o cartão, introduziu o código e empurrou a pesada porta de vidro do


Viktoria Terrasse7.
Nem todas as portas se tinham aberto com tanta facilidade quando ali
chegara há quase três décadas, então um jovem de vinte e cinco anos. Não se
adaptara propriamente ao ambiente que o rodeava no Instituto Diplomático, o
organismo do Ministério dos Negócios Estrangeiros para os candidatos a
funcionários, por causa da sua pronúncia carregada de Østerdal e atitude
provinciana, como frisara um dos betinhos de Bærum8 que se candidatara ao
curso no mesmo ano que ele. Os outros candidatos tinham estudado Política,
Economia e Direito e os pais eram académicos, políticos e eles mesmos
membros da aristocracia do MNE. Ele era filho de um agricultor formado pela
Escola Profissional Agrícola em Ås. Não que isso o afetasse muito, porém
sabia que os amigos verdadeiros eram importantes para a sua carreira. Ia
tentando aprender os códigos sociais, enquanto procurava compensar a
lacuna com uma maior perseverança. Apesar das diferenças, tinham todos
algo em comum, uma vaga noção do rumo que queriam seguir na vida e a
certeza de que só um sentido contava: o ascendente.
Torhus suspirou e cumprimentou o segurança, que lhe fez chegar os jornais
e um envelope por baixo do vidro do guiché.
– Mais alguma…?
O segurança abanou a cabeça.
– Sempre o primeiro a chegar, Torhus. O envelope é das Comunicações.
Foi entregue ontem à noite.
Torhus ia olhando para os números dos pisos que se acendiam à medida
que o elevador subia no edifício. Tinha consciência de que cada piso
correspondia a um determinado período na sua carreira e, por conseguinte,
todas as manhãs o relembrava.

O primeiro andar correspondia aos dois primeiros anos do curso do


Instituto Diplomático, as longas discussões descomprometidas sobre Política
e História e as aulas de Francês que ele fora vencendo à sua própria custa.
O segundo piso correspondia à colocação. Fora destacado dois anos para
Camberra e depois três para a Cidade do México. Cidades maravilhosas, não
se podia queixar, não. Na verdade, indicara Londres e Nova Iorque como as
duas primeiras opções, mas como estas correspondiam aos cargos de
prestígio a que todos os outros se candidataram, decidira não o considerar
uma derrota.
O terceiro andar correspondia ao regresso à Noruega sem as generosas
ajudas de custo e subsídios de alojamento que lhe tinham permitido viver
uma vida despreocupada e próspera. Conhecera Berit, ela engravidara, e
quando chegou a altura de se candidatar de novo a uma colocação no
estrangeiro já o segundo filho vinha a caminho. Berit era da mesma região
que ele e conversava todos os dias com a mãe. Ele decidira esperar um pouco
mais e trabalhar como um mouro, escrevendo relatórios intermináveis sobre o
comércio bilateral nos países em vias de desenvolvimento, preparando
discursos para o ministro dos Negócios Estrangeiros e granjeando
reconhecimento enquanto ia subindo na hierarquia. Em nenhum outro
ministério existe uma competição tão feroz como no dos Negócios
Estrangeiros, onde a hierarquia é por demais óbvia. Dagfinn Torhus fora para
o trabalho como um soldado vai para a Frente, evitara dar nas vistas,
protegera a retaguarda e disparara sempre que tinha alguém na mira. Tivera
direito a algumas palmadas nas costas, sabia que fora «notado» e procurara
explicar a Berit que provavelmente lhe atribuiriam Paris ou Londres, no
entanto, pela primeira vez no seu casamento até ali sensaborão, ela batera o
pé. E ele tivera de ceder.
A sua tendência ascendente desaparecera quase sem deixar rasto e, de
repente, certa manhã, ao olhar-se no espelho da casa de banho, viu um diretor
na prateleira, um burocrata medianamente influente que nunca conseguiria
dar o salto para o quinto andar, apesar de estar sensivelmente a dez anos da
idade da reforma. A menos que conseguisse montar um esquema sensacional,
claro. Mas, se por um lado, essa proeza lhe podia trazer uma promoção, por
outro, muito facilmente o levaria ao olho da rua.
Ainda assim, continuou, tal como antes, a tentar levar vantagem sobre os
outros. Era o primeiro a chegar ao trabalho todas as manhãs, pelo que podia
ler os jornais e os faxes em paz e sossego, e levava já as suas conclusões para
as reuniões matinais, enquanto os outros ainda esfregavam os olhos,
ensonados. Era como se o seu esforço lhe tivesse entrado na corrente
sanguínea. Destrancou a porta do gabinete e hesitou um instante antes de
acender a luz. Também isso tinha uma história. Infelizmente, espalhara-se, e
ele soube que acabaria por se tornar uma lenda nos círculos do Ministério. Há
muitos anos, o embaixador americano em Oslo ligara a Torhus uma manhã, e
pedira-lhe uma opinião sobre os comentários do presidente Carter na noite
anterior. Torhus acabara de entrar no gabinete; não tinha lido os jornais nem
os faxes e não soubera o que responder. Escusado será dizer que ficou com o
dia estragado. E as coisas ainda viriam a piorar. Na manhã seguinte, o
embaixador telefonara quando ele estava a abrir o jornal e perguntara-lhe de
que forma os acontecimentos da véspera poderiam afetar a situação no Médio
Oriente. Na manhã seguinte, sucedera o mesmo. Torhus, atacado pelas
dúvidas e pela falta de informações, balbuciara uma resposta incoerente.
Começara a chegar ainda mais cedo ao trabalho, no entanto, o embaixador
parecia ter um sexto sentido, pois todas as manhãs telefonava no preciso
instante em que ele se ia sentar na cadeira.
Só quando descobriu que o embaixador estava alojado no pequeno Hotel
Aker, mesmo defronte do Ministério dos Negócios Estrangeiros, é que
percebeu a ligação. O embaixador que, como era do conhecimento geral,
gostava de se levantar cedo, tinha reparado que a luz do gabinete de Torhus
se acendia antes da dos outros e quisera enervar o zeloso diplomata. Torhus
saíra para comprar uma lanterna de colocar na cabeça e, na manhã seguinte,
lera todos os jornais e faxes antes de acender a luz do gabinete. Fizera-o
durante quase três semanas antes de o embaixador desistir.
Naquele momento, porém, Dagfinn Torhus não queria saber do embaixador
brincalhão para nada. Abrira o envelope das Comunicações e, na cópia
descodificada do criptofax com o carimbo de CONFIDENCIAL, encontrava-se
uma mensagem que o fez entornar o café nas notas espalhadas em cima da
secretária. O curto texto não deixava muita margem para a imaginação,
porém a essência era basicamente a seguinte: o embaixador da Noruega na
Tailândia, Atle Molnes, fora encontrado morto num bordel em Banguecoque
com um punhal espetado nas costas.
Torhus leu mais uma vez o fax antes de o pousar.
Atle Molnes, ex-político democrata-cristão, ex-presidente da Comissão de
Finanças, era agora um ex em tudo o resto também. Era tão incrível que se
sentiu impelido a olhar para o Hotel Aker para ver se havia alguém de pé por
detrás dos cortinados. Como seria de esperar, a mensagem era proveniente da
Embaixada da Noruega em Banguecoque. Torhus soltou uma imprecação.
Porque tinha isto de acontecer logo agora e logo em Banguecoque? Deveria
informar primeiro o secretário de Estado Askildsen? Não, ele não tardaria a
saber. Torhus olhou para o relógio de pulso e pegou no auscultador para ligar
ao ministro dos Negócios Estrangeiros.

Bjarne Møller bateu delicadamente à porta e abriu-a. As vozes na sala de


reuniões calaram-se e os rostos viraram-se para ele.
– Apresento-lhes Bjarne Møller, chefe da Brigada Anticrime – anunciou a
comissária da Polícia, fazendo sinal a Møller para se sentar. – Møller,
apresento-lhe o secretário de Estado Bjørn Askildsen, do gabinete do
primeiro-ministro, e o diretor de RH do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, Dagfinn Torhus.
Møller baixou a cabeça em sinal de cumprimento aos presentes, puxou uma
cadeira e tentou ajeitar as suas pernas incrivelmente compridas debaixo da
enorme mesa oval de carvalho. Pareceu-lhe reconhecer o rosto magro e
jovem de Askildsen da TV. Gabinete do primeiro-ministro? Só podiam ser
sarilhos, e dos grandes.
– Ainda bem que pôde vir tão depressa – disse o secretário de Estado,
enrolando os erres e tamborilando nervosamente com os dedos na mesa. –
Senhora comissária, pode fazer um breve resumo do que temos estado a
tratar?
Møller recebera um telefonema da comissária da Polícia vinte minutos
antes. Sem qualquer explicação, ela dera-lhe quinze minutos para se dirigir ao
Ministério dos Negócios Estrangeiros.
– O Atle Molnes foi encontrado sem vida, presumivelmente assassinado,
em Banguecoque – começou a comissária da Polícia.
Møller viu o diretor Torhus revirar os olhos por detrás dos óculos com
armação de metal e, depois de lhe ter sido dado a conhecer o resto da história,
percebeu a reação dele. Só mesmo um agente da autoridade para afirmar que
um homem que fora encontrado com um punhal espetado de um lado da
coluna, atravessando um pulmão e perfurando o coração, fora
«presumivelmente» assassinado.
– Foi encontrado num quarto de hotel por uma mulher…
– Num bordel – interrompeu-o o homem dos óculos de armação de metal. –
Por uma prostituta.
– Tive uma conversa com o meu colega em Banguecoque – disse a
comissária da Polícia. – Um homem imparcial. Prometeu manter o assunto
sob controlo por uns tempos.
O primeiro instinto de Møller fora perguntar porque deveriam esperar antes
que o homicídio viesse a público. Uma cobertura imediata da comunicação
social dava, com frequência, origem a informações das pessoas à Polícia,
tendo em conta que as memórias eram claras e as provas ainda estavam
frescas. Contudo, algo lhe disse que a pergunta seria considerada muito
ingénua. Preferiu perguntar durante quanto tempo esperavam conseguir que
um assunto daquela natureza fosse abafado.
– O suficiente para elaborarmos uma versão aceitável dos acontecimentos,
espero eu – afirmou o secretário de Estado. – Sabe, a presente não servirá.
A presente? Então, a versão verdadeira fora considerada e rejeitada. Sendo
que Møller assumira há relativamente pouco tempo o cargo de
politiavdelingssjef, PAS na forma abreviada, ou seja o chefe da Brigada
Anticrime, tinha, até ao momento, sido poupado a quaisquer contactos com
políticos, no entanto, sabia que, quanto mais se subia na carreira, mais difícil
era mantê-los à distância.
– Presumo que a presente versão cause desconforto, mas o que quer dizer
com «não servirá»?
A comissária da Polícia lançou um olhar admonitório a Møller.
O secretário de Estado não pareceu muito impressionado.
– Não temos muito tempo, Møller, mas deixe-me dar-lhe um breve curso
de prática política. Tudo o que eu disser agora é estritamente confidencial,
entendido?
Askildsen ajustou instintivamente o nó da gravata, um movimento que
Møller reconheceu das suas entrevistas na televisão.
– Bem, pela primeira vez na história do pós-guerra, temos um partido de
centro com uma hipótese razoável de sobrevivência. Não porque exista
qualquer base parlamentar para isso, mas porque o primeiro-ministro está
prestes a tornar-se um dos políticos menos impopulares do país.
A comissária da Polícia e o diretor do Ministério dos Negócios
Estrangeiros sorriram.
– Todavia, a sua popularidade depende da mesma base frágil que é a mais-
valia de todos os políticos: a confiança. O aspeto mais importante não é ser
agradável ou carismático, é inspirar confiança. Sabe porque é que a Gro
Harlem Brundtland9 foi uma primeira-ministra popular, Møller?
Møller não fazia ideia.

– Não porque fosse uma pessoa encantadora, mas porque o povo confiava
que ela era quem afirmava ser. Confiança, eis a palavra-chave.
Os presentes à volta da mesa anuíram. Isto fazia, sem dúvida, parte dos
requisitos do currículo.
– Ora, o embaixador Molnes e o nosso atual primeiro-ministro eram muito
próximos, não só pelos laços de amizade mas também por causa das carreiras
políticas. Estudaram juntos, subiram juntos nas fileiras do partido, lutaram
pela modernização do movimento estudantil e chegaram a partilhar um
apartamento quando foram ambos eleitos para o Storting10, ainda muito
jovens. O Molnes abandonou voluntariamente a ribalta quando disputaram
juntos a liderança do partido. Ele deu todo o seu apoio ao primeiro-ministro
e, assim, fomos poupados a um agonizante duelo no seio do partido. Tudo
isto significa, obviamente, que o primeiro-ministro tinha uma enorme dívida
de gratidão para com o Molnes.
Askildsen humedeceu os lábios e olhou pela janela.
– Por outras palavras, o embaixador Molnes não tinha experiência
diplomática e não teria ido para Banguecoque se o primeiro-ministro não
mexesse os cordelinhos. Talvez isto se lhe afigure nepotismo, mas é a sua
forma aceitável, apresentada e instituída como prática corrente pelo Partido
Socialista. O Reiulf Steen não tinha qualquer experiência no Ministério dos
Negócios Estrangeiros quando foi nomeado para o cargo de embaixador no
Chile.
Os olhos voltaram a fixar-se em Møller, um lampejo malicioso a bailar
algures lá dentro.
– Não será demais frisar que esta situação poderia prejudicar a confiança
no primeiro-ministro, se viesse a saber-se que um amigo e camarada de
partido, que ele próprio nomeou, foi apanhado em flagrante num bordel. E,
como se isso não bastasse, assassinado.
O secretário de Estado fez sinal à comissária da Polícia para que
prosseguisse, todavia, Møller não conseguiu conter-se.
– E há alguém que não tenha um amigo que frequentou um bordel?
O sorriso de Askildsen rasgou-se.
O diretor do Ministério dos Negócios Estrangeiros com os seus óculos de
aço tossiu.
– Foi informado do que necessita de saber, Møller. Por favor, deixe os
juízos para nós. Na verdade, precisamos de alguém que garanta que a
investigação deste assunto não sofra… um malogrado revés. Naturalmente,
todos queremos que o assassino, ou assassinos, sejam detidos, mas as
circunstâncias que rodeiam o homicídio devem permanecer em segredo até
indicação em contrário. Para o bem do país. Estamos entendidos?
Møller olhou para as mãos. Para o bem do país. O tanas. Na sua família,
nunca tinham conseguido fazer o que lhes mandavam.
O pai nunca subira nas fileiras da Polícia.
– Diz-nos a experiência que a verdade acaba por vir sempre ao de cima,
herr11 Torhus.
– Efetivamente. Assumirei a responsabilidade desta operação em nome do
Ministério dos Negócios Estrangeiros. Como referi, trata-se de um assunto
um tanto delicado que exigirá a estreita cooperação com a Polícia tailandesa.
Como a embaixada se encontra envolvida, temos uma certa liberdade de
ação... imunidade diplomática e tudo isso... sem esquecer a necessária
cautela. Assim, gostaríamos de enviar alguém dotado de excelentes
capacidades de investigação, experiência internacional e capaz de apresentar
resultados.
Fez uma pausa e olhou para Møller, que se perguntava por que razão sentia
uma instintiva falta de boa vontade em relação ao diplomata de queixo
hostil.
– Podíamos reunir uma equipa com…
– Nada de equipa, Møller. Dá demasiado nas vistas. Além disso, a nossa
comissária é de opinião que uma divisão inteira dificilmente conduziria a um
bom relacionamento com a Polícia local. Um homem.
– Um homem?
– A comissária já indicou um nome, e considerámo-lo uma boa sugestão.
Agora, gostaríamos de saber a sua opinião. Pelas conversas que a comissária
da Polícia teve com o seu colega em Sydney, parece que este inverno ele fez
lá um excelente trabalho na investigação do caso da Inger Holter.
– Li a notícia nos jornais – afirmou Askildsen. – Um caso e tanto. Tem a
certeza de que ele deve ser o nosso homem?
Bjarne Møller engoliu em seco. Pelos vistos, a comissária da Polícia
sugerira que enviassem Harry Hole a Banguecoque. Ele fora chamado para
lhes asseverar que Hole era o melhor que a Polícia tinha a oferecer, o homem
perfeito para o caso.
Observou os presentes sentados à volta da mesa. Política, poder e
influência. Este era um jogo que não conseguia mesmo compreender, no
entanto, tinha consciência de que, de uma maneira ou de outra, acabaria por
lhe cair em cima, e que tudo o que pudesse dizer naquele momento teria
consequências para a sua carreira. A comissária da Polícia arriscara a pele ao
sugerir um nome. Provavelmente, um dos outros solicitara posteriormente
que as competências de Hole fossem reiteradas pelos seus superiores
hierárquicos. Olhou para a sua chefe e procurou interpretar a expressão dela.
Claro que Hole podia vir a fazer um bom trabalho. E se ele os dissuadisse de
o enviarem, isso não daria uma má imagem da comissária? Pedir-lhe-iam que
sugerisse uma alternativa e depois a sua cabeça estaria no cepo se o agente
em questão falhasse.
Møller olhou para o quadro por cima da comissária da Polícia: Trygve Lie,
o secretário-geral das Nações Unidas, fitava-o lá de cima com arrogância.
Também um político. Da janela viam-se os telhados dos prédios iluminados
pela ténue luz de inverno, a fortaleza de Akershus12 e um catavento que
tremelicava fustigado pelas rajadas de vento gélido, no cimo do Hotel
Continental.
Bjarne Møller sabia que era um agente competente, no entanto, nesta
situação, o caso mudava de figura e ele não conhecia as regras. O que lhe
teria aconselhado o pai a fazer? Bem, o agente Møller nunca tivera de lidar
com política, mas sempre soubera o que era importante se queria ser levado a
sério e proibira o filho de entrar para a Escola Superior de Polícia enquanto
não concluísse a primeira parte de um curso de Direito. Ele acatara a decisão
do pai e, após a cerimónia de formatura, o pai não parara de pigarrear,
embargado pela emoção, ao mesmo tempo que dava palmadas nas costas do
filho até ele ter de lhe pedir que parasse.
– Uma excelente sugestão – ouviu-se Bjarne Møller dizer alto e bom som.
– Ótimo – respondeu Torhus. – O motivo pelo qual queríamos uma opinião
tão rapidamente deve-se, como é óbvio, ao caráter urgente do assunto. Ele vai
ter de deixar todo o trabalho que tiver em mãos; partirá amanhã.
«Bem, talvez seja o tipo de trabalho de que o Harry precisa neste
momento», pensou Møller.
– Lamento termos de o privar de um homem tão importante – disse
Askildsen.
O PAS Bjarne Møller teve de fazer um esforço para não desatar às
gargalhadas.
6 Companhia de seguros norueguesa. (N. da T.)

7 A atual sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros norueguês. O conjunto de edifícios situa-se no
centro de Oslo e foi construído no século XIX por Henrik Thrap-Meier. (N. da T.)
8 Município da Noruega localizado na zona metropolitana de Oslo. (N. da T.)

9 (n.1939) Política, diplomata e médica norueguesa, líder internacional em desenvolvimento


sustentável e saúde pública. Foi membro do Partido dos Trabalhadores da Noruega desde muito jovem.
Em 1981, tornou-se a primeira mulher chefe de Estado do seu país. (N. da T.)

10 Designação do parlamento norueguês. (N. da T.)

11 Termo norueguês para Senhor. (N. da T.)

12 Situada no centro da cidade, junto ao fiorde de Oslo, a sua construção iniciou-se em 1299, sob as
ordens do rei Haakon V. Conseguiu resistir aos cercos das forças suecas. Foi modernizada no início do
século XVIII, durante o reinado de Cristiano IV. (N. da T.)
3

Quarta-feira, 8 de janeiro

E ncontraram-no no Schrøder, na Waldemar Thranes Gate, um venerável e


velho tasco no cruzamento onde Oslo Este e Oslo Oeste se encontram.
Era mais velho do que venerável, em verdade se diga. O cariz venerável
ficava sobretudo a dever-se à decisão das autoridades de obrigar à
conservação das salas castanhas cheias de fumo. Contudo, essa
obrigatoriedade não abrangia a clientela: velhos beberrões, um grupo
perseguido e ameaçado de extinção; eternos estudantes; e sedutores cansados,
há muito fora do prazo de validade.
Os dois agentes avistaram o seu homem, sentado debaixo de um quadro da
igreja de Aker, quando a corrente de ar da porta permitiu um fugaz vislumbre
através da cortina de fumo. O cabelo louro estava tão curto que ficava
espetado e a barba de três dias no seu rosto magro sulcado apresentava um
aspeto grisalho, embora ele não devesse ter mais de trinta e cinco anos.
Estava sentado sozinho, de costas direitas, vestindo o seu casaco assertoado,
como se a postos para sair a qualquer instante. Como se a cerveja à sua
frente, em cima da mesa, não fosse uma fonte de prazer mas uma tarefa que
se impunha.
– Disseram-nos que íamos encontrá-lo aqui – disse o mais velho dos dois,
que se sentou diante dele. – Sou o Whaaler.
– Está a ver o tipo ali sentado ao canto? – disse Hole, sem levantar os
olhos.
Waaler virou-se e viu um velho escanzelado de olhos fixos no copo de
vinho tinto enquanto se baloiçava para trás e para a frente. Parecia estar
enregelado.
– Chamam-lhe o último moicano.
Hole ergueu a cabeça e sorriu. Os seus olhos eram como berlindes azuis e
brancos por detrás de um feixe de veios vermelhos, e estavam focados na
camisa de Whaaler.
– Da marinha mercante – articulou, a sua dicção meticulosa. – Ao que tudo
indica, costumavam reunir-se montes deles aqui há alguns anos, mas agora já
quase não restam nenhuns. Foi atingido duas vezes durante a guerra. Julga-se
imortal. A semana passada, depois de isto fechar, encontrei-o a dormir num
monte de neve lá em baixo na Glückstadsgata. Não se via vivalma nas ruas,
estava escuro como breu e dezoito graus negativos. Quando lhe dei uma
sacudidela, limitou-se a olhar-me e mandar-me para o inferno. – Deu uma
gargalhada.
– Oiça, Hole…
– A noite passada, aproximei-me da mesa dele e perguntei-lhe se se
recordava do que tinha acontecido, ou seja, que eu evitara que morresse
congelado. Sabe o que me respondeu?
– O Møller quer vê-lo, Hole.
– Respondeu-me que era imortal. «Consigo aceitar ser um marinheiro
mercante indesejado neste país de merda», disse. «Mas é triste quando nem
sequer o S. Pedro quer saber de mim.» Está a ouvir? «Nem sequer o S.
Pedro…»
– Temos instruções para o levar para a sede.
Com uma pancada surda, apareceu outra cerveja em cima da mesa diante
de Hole.
– Vamos lá fazer contas, Rita – disse ele.
– Duzentas e oitenta – respondeu ela, sem precisar de ir confirmar aos seus
papelinhos.
– Jesus Cristo! – murmurou o jovem agente.
– Fica assim, Rita.
– Oh, obrigada. – E desapareceu.
– O melhor atendimento da cidade – explicou Harry. – Às vezes, ela
consegue ver-nos mesmo sem precisarmos de agitar os dois braços no ar.
A pele na testa de Waaler contraiu-se e apareceu um vaso sanguíneo que
fez lembrar uma minhoca azul e nodosa.
– Não temos tempo para ficar aqui sentados a ouvir o seu palavreado ébrio,
Hole. Sugiro-lhe que esqueça a última cerveja…
Hole levara já o copo cuidadosamente aos lábios e começara a beber.
Waaler debruçou-se e procurou falar em voz baixa.
– Conheço o seu caso, Hole. E não gosto de si. Penso que há muito que o
deviam ter expulsado da Polícia. Tipos como você fazem com que as pessoas
percam o respeito pela Polícia. Mas não foi isso que nos trouxe aqui. Viemos
buscá-lo. O PAS é um homem simpático. Pode ser que lhe dê outra
oportunidade.
Hole arrotou e Waaler recuou.
– Outra oportunidade de fazer o quê?
– De mostrar do que é capaz – respondeu o agente mais jovem, com um
sorriso pueril.
– Vou mostrar-lhe do que sou capaz.
Harry sorriu, levou o copo à boca e inclinou a cabeça para trás.
– Pare lá com isso, Hole! – As faces de Waaler ruborizaram-se enquanto
via a maçã de Adão de Hole subir e descer sob o queixo por barbear.
– Satisfeito? – perguntou Hole, pousando o copo vazio diante dele.
– O nosso trabalho…
– Estou-me nas tintas para o vosso trabalho. – Hole abotoou o casaco
assertoado. – Se o Møller quer alguma coisa, ele que me telefone ou espere
que eu vá trabalhar amanhã. Agora vou para casa e não quero ver as vossas
caras nas próximas doze horas. Cavalheiros… – Harry ergueu-se na
totalidade dos seus 192 centímetros e desequilibrou-se.
– Seu estúpido arrogante – disse Waaler, baloiçando-se na cadeira. – Seu
falhado de merda. Se os repórteres que escreveram a seu respeito depois da
Austrália soubessem que não tem tomates…
– Tomates para fazer o quê, Waaler? – Hole continuava a sorrir. – Prender
jovens de dezasseis anos bêbedos só porque usam penteados à moicano?
O agente mais jovem olhou para Waaler. No ano anterior, tinham circulado
boatos na Escola Superior de Polícia de que alguns punks tinham sido detidos
por beberem cerveja em locais públicos e espancados nas celas com laranjas
embrulhadas em toalhas molhadas.
– Você nunca compreendeu o esprit de corps13, Hole – disse Waaler. – Só
pensa em si. Todos sabem quem ia a conduzir o carro no Vinderen e por que
razão um polícia honesto ficou com a cabeça esmagada contra um poste de
vedação. Porque você é um borrachão, Hole, e ia a conduzir sob o efeito do
álcool. Você devia dar-se por muito feliz por a Polícia ter abafado o caso. Se
não estivessem tão preocupados com a família e a reputação da Polícia…
Todos os dias o jovem agente que acompanhava Waaler aprendia algo
novo. Naquela tarde, por exemplo, ficara a saber que é uma estupidez fazer
baloiçar uma cadeira enquanto se insulta alguém, porque se fica
completamente indefeso, sobretudo se a parte insultada se aproximar e
desferir um direto com o punho direito entre os olhos. Como no Schrøder os
clientes caem com frequência, fez-se silêncio apenas por breves segundos
antes de ser retomado o burburinho das conversas.
O jovem agente ajudou Waaler a pôr-se em pé enquanto via as abas do
casaco de Harry desaparecerem pela porta.
– Ena, com oito cervejas no bucho, nada mal, hum? – disse, calando-se de
imediato perante o olhar de Waaler.

As pernas de Harry iam percorrendo o passeio gélido da Dovregata. Não


sentia dores nos nós dos dedos; só ao início da manhã seguinte se abateria a
sensação de dor ou arrependimento.
Não bebia nas horas de serviço. Embora o tivesse feito antes, e o Dr. Aune
o alertasse para que cada nova recaída começava onde a anterior terminara.
O clone gordalhufo e de cabelo branco de Peter Ustinov gargalhara tanto
que o seu duplo queixo ondulara enquanto Harry lhe explicava que se ia
afastar do seu velho inimigo Jim Beam e ficar-se pela cerveja. Porque ele não
gostava lá muito de cerveja.
– Você passou um mau bocado e, mal abre a garrafa, volta para lá. Não
existe um estado intermédio, Harry.
Bem. Com esforço, lá ia para casa pelo seu próprio pé, conseguindo, de um
modo geral, despir-se e ir trabalhar no dia seguinte. Nem sempre fora assim.
Harry chamara-lhe um estádio intermédio. Só precisava de umas gotinhas
para adormecer, mais nada.
Uma mulher toda embrulhada num casaco de pele preto cumprimentara-o
lá das profundezas ao passar por ele. Era alguma conhecida sua? No ano
anterior, havia muitas pessoas que o saudavam, em particular depois da
entrevista na televisão quando Anne Grosvold14 lhe perguntara qual era a
sensação de matar um assassino em série.
«Bem, sempre é melhor do que estar aqui sentado a responder a perguntas
como essa», respondera com um sorriso de esguelha, e tinha sido o sucesso
da primavera, a citação mais repetida a par da defesa de uma política agrícola
por parte de um político: «Os carneiros são animais simpáticos.»
Harry introduziu a chave na fechadura do seu apartamento na Sofies Gate.
Não percebia porque se mudara para o Bislet. Talvez tivesse sido pelo facto
de os vizinhos do Tøyen terem começado a olhá-lo de lado e a evitá-lo, o que,
inicialmente, tomara por uma demonstração de respeito.
Felizmente, aqui os vizinhos deixavam-no em paz, apesar de aparecerem
no corredor esporadicamente, para ver se estava tudo bem, não fosse ele
escorregar num degrau e rebolar até ao patamar mais próximo.
As cambalhotas à retaguarda só tinham começado em outubro, por causa
do que sucedera a Sis15. Depois chegara a um impasse e voltara a sonhar. E
sabia que só existia uma maneira de deixar de sonhar.
Fizera um esforço para se recompor, levara Sis para a cabana em Rauland,
porém, ela ficara muito retraída após a agressão, e não se ria tão facilmente
como antes. Então, ele telefonara duas vezes ao pai, apesar de as conversas
não terem sido muito longas, apenas o tempo suficiente para perceber que o
pai queria que o deixassem em paz.
Harry fechou a porta do seu apartamento, gritou que tinha chegado a casa e
anuiu de satisfação quando não obteve resposta. Os monstros surgiam de
todos os tamanhos e feitios, no entanto, desde que não estivessem à espera
dele na cozinha quando chegava a casa, havia a possibilidade de ter uma
noite de sono tranquilo.
13 Em francês no original. Espírito de equipa. (N. da T.)

14 Jornalista norueguesa da NRK. Foi correspondente em Pequim, apresentadora de talk shows.


Recebeu um prémio de jornalismo da Norwegian Press Association em 1998. (N. da T.)

15 Abreviatura de sister, forma carinhosa como Harry trata a irmã. (N. da E.)
4

Quinta-feira, 9 de janeiro

Q uando Harry transpôs a porta, a onda de frio atingiu-o de forma tão


repentina, que lhe faltou o ar. Olhou para o céu avermelhado lá em cima
entre as casas e abriu a boca para libertar o travo a bílis e Colgate.
Na Holberg Plass apanhou o elétrico que descia ruidosamente a
Welhavensgate. Arranjou um lugar sentado e abriu o Aftenposten. Outro caso
de pedofilia. Era o terceiro nos últimos meses, todos de noruegueses
apanhados em flagrante na Tailândia.
O editorial recordava aos leitores a promessa do primeiro-ministro, durante
a campanha eleitoral, de que iria intensificar a investigação dos crimes
sexuais, inclusive daqueles que envolviam cidadãos noruegueses no
estrangeiro, e exigia saber quando se veriam os resultados.
O secretário de Estado Bjørn Askildsen, do gabinete do primeiro-ministro,
comentara que estavam a trabalhar com o governo tailandês no sentido de
aumentar os poderes de investigação.
«Isto é urgente!» escrevera o editor do Aftenposten. «As pessoas esperam
ver alguma ação. Não é aceitável que um ministro cristão permita que este
ultraje continue.»

***

– Entre!
Harry abriu a porta e deu de caras com a boca escancarada de Bjarne
Møller. Estava recostado na sua cadeira com as pernas compridas esticadas
debaixo da secretária.
– Até que enfim! Ontem estive à sua espera, Harry.
– Assim me disseram. – Harry sentou-se. – Não trabalho quando estou
bêbedo. Ou vice-versa. É uma espécie de princípio. – Havia uma certa ironia
implícita.
– Um agente da Polícia é um agente da Polícia vinte e quatro horas por dia,
Harry, sóbrio ou não. Tive de convencer o Waaler a não apresentar queixa
sua, sabe?
Harry encolheu os ombros, dando a entender que já dissera tudo o que tinha
a dizer sobre aquele assunto.
– Muito bem, Harry, não vamos discutir isso agora. Tenho uma missão para
si. Na minha opinião não a merece, mas vou confiar-lha na mesma.
– Ficaria satisfeito se eu dissesse que não a quero?
– Deixe lá de se armar em Philip Marlowe16. Não combina consigo –
retorquiu Møller, com brusquidão. Harry esboçou um sorriso afetado. Sabia
que o PAS gostava dele. – Eu ainda não lhe disse do que se trata.
– Uma vez que enviou um carro para me ir buscar durante o meu tempo
livre, presumo que não seja para me pôr a fazer de polícia sinaleiro.
– E presume bem, por isso, agradeço que me deixe terminar.
Harry soltou uma gargalhada seca e breve debruçando-se na cadeira.
– Podemos deixar-nos de rodeios, PAS?
«Mas que rodeios?» quase perguntou Møller, no entanto, limitou-se a
anuir.
– Neste momento, não sou o homem indicado para missões importantes,
chefe. Calculo que tenha reparado como estão as coisas presentemente. Ou
como não estão as coisas. Ou quase não estão. Faço o meu trabalho, tarefas
de rotina, procuro não atrapalhar ninguém e pico o ponto sóbrio à entrada e à
saída. Se eu fosse a si, escolhia um dos outros rapazes.
Møller suspirou, recolheu laboriosamente as pernas e levantou-se.
– Posso deixar-me de rodeios, Harry? Se dependesse de mim, incumbia
outra pessoa. Mas eles querem-no. Por isso, o Harry far-me-ia um enorme
favor…
Harry ergueu o olhar, desconfiado. Ao longo do ano anterior, Bjarne
Møller livrara-o de bastantes apuros, pelo que era apenas uma questão de
tempo antes de ele começar a cobrar a dívida.
– Calma aí! Quem são eles?
– Pessoas em altos cargos. Pessoas que podem tornar a minha vida um
inferno, se não conseguirem o que querem.
– E o que vou receber, se aceitar a missão?
Møller franziu o sobrolho do modo mais hostil possível, no entanto, sempre
tivera dificuldade em estampar uma expressão austera no seu rosto
transparente e ameninado.
– O que vai receber? O seu salário. Enquanto a missão durar. Por amor de
Deus, o que vai receber?!
– Ah, já estou a perceber, chefe. Alguns daqueles manda-chuvas lá em
cima consideram que o agente que desvendou o caso em Sydney o ano
passado deve ser um gajo do caraças e compete-lhe a si metê-lo na ordem.
Estou enganado?
– Por favor, Harry, não estique demasiado a corda.
– Não estou enganado. E também não estava enganado ontem quando vi a
cara do Waaler. Foi por isso que já dormi sobre o assunto e aqui tem a
solução: sou um bom rapaz, compareço no trabalho e, quando o tiver
terminado, você cede-me dois detetives a tempo inteiro durante dois meses e
acesso total a todos os nossos dados.
– De que é que está a falar?
– O senhor sabe do que estou a falar.
– Se tem que ver com o caso da violação da sua irmã, lamento informá-lo
mas a minha resposta é não, Harry. O caso foi encerrado definitivamente,
lembra-se?
– Lembro-me, chefe. Lembro-me do relatório onde se afirmava que ela
tinha síndrome de Down e que, por isso, não era inconcebível que tivesse
inventado a violação para ocultar o facto de ter engravidado de um engate
fortuito. Sim, efetivamente, lembro-me.
– Não existiam quaisquer provas concretas…
– Ela não estava a esconder nada. Por Cristo, homem, eu fui ao
apartamento dela no Sogn e vi o sutiã dela no cesto da roupa suja na casa de
banho, cheio de sangue. Ele ameaçara cortar-lhe os mamilos. Ela ficou
aterrada. Ela pensa que toda a gente é como ela e, quando este sujeito
enfarpelado lhe pagou a refeição e perguntou se queria ver um filme no seu
quarto de hotel, ela pensou que ele estava só a ser simpático. E, ainda que se
lembrasse do número do quarto, este já teria sido aspirado, limpo e a cama
feita de lavado mais de vinte vezes desde que ela fora violada. Não se
encontrariam muitas provas concretas…
– Ninguém tinha qualquer lembrança de lençóis manchados de sangue…
– Já trabalhei em hotéis, Møller. Ficaria surpreendido com a quantidade de
lençóis manchados que são mudados ao longo de duas semanas. As pessoas
estão sempre a sangrar.
Møller abanou vigorosamente a cabeça.
– Lamento. Teve a sua oportunidade de o provar, Harry.
– Não foi suficiente, chefe. Não foi suficiente.
– Nunca é suficiente. Mas você tem de estabelecer o limite algures. Com os
nossos recursos…
– Bem, dê-me carta-branca. Durante um mês.
Subitamente, Møller levantou a cabeça com um olho fechado. Harry sabia
que fora descoberto.
– Seu filho da mãe manhoso. Você sempre quis a missão, não quis? Só
precisava de se fazer de difícil.
Harry projetou o lábio inferior e abanou a cabeça de um lado para o outro.
Møller olhou pela janela. Depois suspirou.
– Muito bem, Harry. Vou ver o que posso fazer. Mas, se você meter os pés
pelas mãos, terei de tomar algumas decisões que algumas pessoas aqui na
Polícia consideram que eu já devia ter tomado há muito tempo. E você sabe o
que isso significa, não sabe?
– Um pontapé no traseiro, chefe – Harry sorriu. – Qual é a missão?
– Espero que tenha levado o seu fato de verão à lavandaria e que se consiga
lembrar onde guardou o passaporte depois da última vez que o usou. O seu
avião parte dentro de doze horas para um destino longínquo.
– Quanto mais longe melhor, PAS.

Harry ocupava a cadeira junto à porta no minúsculo quarto no Sogn. A sua


irmã estava sentada à janela, observando os flocos de neve iluminados pelo
candeeiro de rua lá em baixo. Fungou duas vezes. Como ela se encontrava de
costas para ele, Harry não conseguia perceber se era devido a uma
constipação ou à sua iminente partida. Há dois anos que vivia numa habitação
protegida e estava a reagir bem, dadas as circunstâncias. Depois da violação e
do aborto, Harry mudara-se para lá levando umas roupas e uma bolsa com
artigos de higiene, mas não tardou muito até ela lhe dizer que estava farta. Já
era crescidinha.
– Volto em breve, Sis.
– Quando?
Estava sentada tão próximo da janela que se formava uma rosa de
condensação sempre que ela falava.
Harry sentara-se atrás dela e colocou-lhe uma mão nas costas. Conseguia
sentir, pela delicada tremura, que ela estava prestes a chorar.
– Assim que apanhar os mauzões volto logo para casa.
– É…?
– Não, não é ele. Esse apanho-o depois. Já falaste hoje com o pai?
Ela abanou a cabeça. Harry suspirou.
– Se ele não ligar, quero que tu lhe telefones. És capaz de fazer isso por
mim, Sis?
– O pai nunca diz nada – murmurou ela.
– O pai está triste porque a mãe morreu, Sis.
– Mas já foi há tanto tempo.
– É por isso mesmo que temos de falar de novo com ele, Sis, e tu vais ter
de me ajudar. Fazes isso? Fazes isso, Sis?
Ela virou-se sem dizer uma palavra, abraçou-o e afundou a cabeça no
pescoço dele.
Harry acariciou-lhe o cabelo e sentiu a camisa a ficar molhada.

A mala estava feita. Harry ligara a Ståle Aune, informando-o de que ia


partir para Banguecoque em serviço. Ele pouco ou nada dissera e Harry não
sabia muito bem porque lhe telefonara. Talvez porque era bom avisar alguém
que poderia perguntar-se onde ele estava? Harry não pensou que fosse muito
boa ideia ligar aos empregados do Schrøder.
– Leve consigo as injeções de vitamina B – disse-lhe Aune.
– Para quê?
– Facilitam-lhe a vida se quiser manter-se sóbrio. Um novo ambiente,
Harry. Podia ser um bom começo, sabe?
– Vou pensar nisso.
– Pensar não chega, Harry.
– Eu sei. Por isso é que não preciso de levar as injeções.
Quando Harry estava a colocar a mala no porta-bagagem do táxi, um dos
rapazes do albergue ao cimo da rua estava encostado à parede e tiritava com
um blusão de ganga justo, a soltar baforadas de um cigarro.
– Vai de viagem?
– Iá.
– Para sul?
– Banguecoque.
– Sozinho?
– Iá.
– Não precisa de dizer mais nada.
Fez sinal a Harry com os polegares levantados e piscou o olho.

Harry recebeu o bilhete da mulher por detrás do balcão do check-in e deu


meia-volta.
– Harry Hole?
O homem de óculos com armação de metal olhava-o com um sorriso triste.
– E o senhor é?
– Dagfinn Torhus, do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Gostaríamos
de desejar-lhe boa sorte. E assegurar-nos de que compreendeu a… delicadeza
desta missão. Afinal, aconteceu tudo muito repentinamente.
– Muito obrigado pela consideração. Já percebi que fui incumbido de
descobrir um assassino sem fazer grandes ondas. O Møller deu-me
instruções.
– Ótimo. A discrição é vital. Não confie em ninguém. Nem sequer nos
funcionários que afirmem estar a trabalhar para o Ministério. Podem muito
bem ser, por exemplo, do Dagbladet.
Torhus abriu a boca como se fosse soltar uma gargalhada, contudo Harry
percebeu que ele falava a sério.
– Os jornalistas do Dagbladet não usam o crachá do Ministério na lapela,
herr Torhus. Nem um blazer em janeiro. A propósito, vi pela documentação
que o senhor é o meu contacto no Ministério.
Torhus anuiu, sobretudo de si para si. Depois, espetou o queixo e baixou a
voz meio-tom.
– O seu avião parte em breve, por isso não vou retê-lo muito mais tempo.
Ouça apenas o que tenho a dizer-lhe.
Tirou as mãos dos bolsos do blazer e cruzou-as diante de si.
– Que idade tem, Hole? Trinta e três? Trinta e quatro? Ainda tem uma
carreira pela frente. Sabe, andei a fazer umas investigações. Você é talentoso
e obviamente que as pessoas lá em cima gostam de si. E protegem-no. Isso
pode continuar a suceder, desde que corra tudo bem. Mas não será nada
difícil puxar-lhe o tapete para você se estatelar, arrastando consigo os seus
amigos. E depois, vai ver que os seus alegados amigos se põem todos a
milhas num instante. Por isso, procure manter-se de pé, Hole. Para o bem de
toda a gente. Isto é um aviso bem-intencionado de alguém que já anda há
muito tempo nestas lides. – A boca dele sorriu, mas os seus olhos
observavam Harry com muita atenção. – Sabe uma coisa, Hole? Quando
chego ao Aeroporto de Fornebru, tenho sempre a deprimente sensação de que
algo termina. Algo termina e algo novo começa.
– A sério? – perguntou Harry, a pensar se teria tempo para uma cerveja no
bar antes de a porta se fechar. – Bem, de vez em quando isso pode ser bom.
Quero dizer, uma renovação.
– Esperemos que sim – disse Torhus. – Esperemos que sim.
16 Personagem de ficção criada por Raymond Chandler para protagonizar uma série de histórias
policiais, a primeira das quais publicada com o título The Big Sleep, em 1939. A personagem é um
beberrão com uma atitude contemplativa e filosófica. (N. da T.)
PARTE DOIS
5

Sexta-feira, 10 de janeiro

H arry Hole endireitou os óculos de sol e olhou para a fila de táxis no


exterior do Aeroporto Internacional Don Mueang. Sentia-se como se
tivesse entrado numa casa de banho onde alguém começara a tomar um
duche com água a escaldar. Sabia que o segredo para lidar com a elevada
humidade era ignorá-la: «deixa o suor escorrer por ti abaixo e pensa noutra
coisa». Já a claridade era pior. Atravessava-lhe os óculos escuros baratos, de
plástico, e penetrava nos seus olhos brilhantes de alcoólico, intensificando a
dor de cabeça que até então persistira apenas nas têmporas.
– Taxímetro ou duzentos e cinquenta bahts, cavalheiro?
Harry fez um esforço para se concentrar no que o taxista lhe dizia. A
viagem fora infernal. A livraria no aeroporto de Zurique só vendia livros em
alemão, e o filme que passaram no avião foi Libertem o Willy 2.
– Pode ser o taxímetro – disse Harry.
Um dinamarquês tagarela a seu lado decidira ignorar o facto de ele ter a
roupa colada ao corpo e bombardeara-o com conselhos para não ser enganado
na Tailândia, manifestamente um tema de conversa inesgotável. Devia ter os
noruegueses na conta de pessoas encantadoramente ingénuas e considerar que
o dever de qualquer dinamarquês era alertá-los para os embustes.
«Tem de regatear tudo», dissera-lhe. «É essa a ideia, percebe?»
«E se eu não o fizer?»
«Estraga-nos a vida.»
«Perdão?»
«Estará a contribuir para que os preços subam, para que a Tailândia fique
mais cara para toda a gente.»
Harry observara o homem, que vestia uma camisa Marlboro bege e
sandálias de couro novas, e decidiu beber mais um pouco.
– Surasak Road, 111 – disse Harry e o taxista sorriu, colocou a mala no
porta-bagagem e segurou a porta a Harry, que se encolheu para entrar,
reparando que o volante ficava do lado direito.
– Na Noruega queixamo-nos de que os ingleses insistem em conduzir pela
esquerda – afirmou, enquanto seguiam pela autoestrada. – Recentemente,
porém, tenho ouvido dizer que há mais pessoas no mundo a conduzirem pela
esquerda do que pela direita. Sabe porquê?
O taxista olhou pelo espelho retrovisor com um sorriso ainda mais
rasgado.
– Surasak Road, sim?
– Porque na China conduzem pela esquerda – murmurou Harry e deu
graças por a autoestrada ser uma reta que cortava a paisagem de arranha-céus
enevoados como uma flecha cinzenta. Tinha a sensação de que bastariam
duas guinadas súbitas para a omeleta da Swissair ir parar ao banco traseiro.
– Porque é que o taxímetro não está a funcionar?
– Surasak Road quinhentos bahts, sim?
Harry recostou-se no banco e olhou para o céu. Bem, olhou lá para cima,
mas não se via céu algum, apenas uma abóbada enevoada iluminada por um
Sol que ele também não conseguia ver. Banguecoque, a Cidade dos Anjos.
Os anjos usavam máscaras, cortavam o ar à faca e tentavam lembrar-se da cor
que o céu tivera noutros tempos.
Devia ter adormecido porque, quando abriu os olhos, o carro estava parado.
Endireirou-se no banco e viu que estavam rodeados de veículos. Havia
pequenas lojas e oficinas abertas, umas coladas às outras ao longo de passeios
repletos de pessoas que pareciam saber para onde se dirigiam. E estavam com
pressa de lá chegar. O taxista abrira uma janela e uma cacofonia de sons
urbanos misturou-se com o rádio. Um cheiro a escapes e suor invadira o carro
sufocante.
– Engarrafamento?
O taxista abanou a cabeça, esboçando um sorriso.
Os dentes de Harry rangeram. O que é que lera algures, que todo o chumbo
que inalamos, mais cedo ou mais tarde, vai parar ao cérebro? E que nos faz
perder a memória. Ou que nos torna psicóticos?
Como que por milagre, o trânsito recomeçou a andar e as motorizadas e os
velocípedes com motor rodeavam-nos como insetos furiosos, atravessando-se
nos cruzamentos no mais absoluto desprezo pela própria vida. Harry contou
quatro que escaparam por uma unha negra.
– Até parece impossível que não haja acidentes – comentou Harry, para
preencher o silêncio.
O taxista olhou pelo retrovisor e sorriu.
– Há acidentes. E muitos.
Quando finalmente chegaram à esquadra da Polícia na Surasak Road, Harry
já tomara uma decisão: não gostava desta cidade. A sua vontade era suster a
respiração, tratar do assunto e apanhar o primeiro, e não necessariamente o
melhor, avião de regresso a Oslo.

Na esquadra da Polícia, Harry foi recebido por um jovem agente que se


apresentou como Nho. Tinha um corpo magro, cabelo curto e um rosto
sincero e simpático. Harry sabia que dentro de alguns anos a expressão dele
mudaria.
O elevador estava cheio e cheirava mal; era como se se tivesse enfiado num
saco com roupas de desporto suadas. Harry elevava-se duas cabeças acima
dos outros. Uma pessoa olhou para o norueguês alto e soltou uma gargalhada,
impressionada. Outra fez uma pergunta a Nho e depois dirigiu-se a Harry.
– Ah, a Noruega. É… é… ora como é que ele se chama...? Por favor ajude-
me.
Harry sorriu e tentou afastar as mãos com um ar pesaroso, mas não havia
espaço.
– Sim, sim, muito famoso! – insistiu o homem.
– Ibsen? – tentou Harry. – Nansen?
– Não, não, mais famoso.
– Hanson? Grieg?
– Não, não.
O homem fuzilou-os com o olhar quando eles saíram no quarto piso.

– Bem-vindo a Banguecoque, Harry.


O chefe da Polícia era baixo, de pele morena, e estava manifestamente
decidido a mostrar que, na Tailândia, as pessoas sabiam cumprimentar à
maneira ocidental. Apertou a mão a Harry sacudindo-lha entusiasticamente
com um sorriso radioso.
– Peço desculpa por não termos ido esperá-lo ao aeroporto, mas o trânsito
em Banguecoque… – Indicou a janela atrás de si. – Não fica longe no mapa,
mas…
– Compreendo perfeitamente, senhor – respondeu Harry. – A embaixada
disse-me o mesmo.
Ficaram a olhar um para o outro no silêncio que se seguiu. O chefe sorriu.
Ouviu-se uma pancada na porta.
– Entre!
Assomou uma cabeça rapada junto à ombreira.
– Entre, Crumley. O detetive norueguês já chegou.
– Ah, o detetive.
A cabeça ganhou um corpo e Harry teve de pestanejar duas vezes para se
certificar de que não estava a imaginar. Crumley era uma pessoa espadaúda e
quase tão alta quanto ele; a cabeça sem cabelo, malares pronunciados e dois
olhos de um azul intenso por cima de uma boca fina e reta. O uniforme era
uma camisa azul-clara, um par de ténis Nike e uma saia.
– Liz Crumley, inspetora dos Homicídios – anunciou o chefe.
– Disseram-me que é um investigador de homicídios e tanto, Harry –
afirmou ela com uma pronúncia nitidamente americana. Ficou diante dele de
mãos nas ancas.
– Bem, não sei se será exatamente assim…
– Não? Deve ser mesmo muito bom para o mandarem dar meia-volta ao
globo, não lhe parece?
– Calculo que sim. – Harry semicerrou os olhos. Naquele momento,
dispensava bem uma mulher excessivamente assertiva. – Estou aqui para
ajudar. Se puder ajudar – disse com um sorriso forçado.
– Nesse caso, talvez tenha chegado o momento de ficar sóbrio, hein, Harry?
– Atrás dela, o chefe desatou às gargalhadas esganiçadas. – Eles são assim
mesmo – disse ela, alto e bom som, como se o chefe não se encontrasse
presente. – Farão o que for preciso para garantir que ninguém perde a face.
Neste momento, ele está a tentar salvar a sua face. Fingindo que eu estou a
gracejar. Só que eu não estou a gracejar. Aqui sou a responsável pelos
Homicídios, e se algo não me agrada, digo-o logo. Neste país, é considerado
falta de educação, no entanto, eu já o faço há dez anos.
Harry fechou completamente os olhos.
– Vejo, pela cor do seu rosto, que considera isto embaraçoso, Harry, mas de
nada me servem investigadores bêbedos, como certamente sabe. Volte
amanhã. Vou mandar alguém levá-lo ao seu apartamento.
Harry abanou a cabeça e pigarreou.
– Medo de andar de avião.
– Desculpe?
– Tenho pavor de andar de avião. O GT17 ajuda. E o meu rosto está
vermelho porque a bebida começa a evaporar-se pelos poros da minha pele.
Liz Crumley olhou-o demoradamente. Depois, coçou a cabeça rapada.
– Lamento sabê-lo, detetive. Como está o jet lag?
– Bem desperto.
– Ótimo. Chegou mesmo a tempo de uma atualização rápida do
Laboratório Forense, e depois passamos pelo seu apartamento a caminho do
local do crime.
– Este é o seu gabinete – indicou Crumley quando passaram por lá.
– Está alguém lá sentado – disse Harry.
– Não ali. Acolá.
– Acolá?
Ele identificou a cadeira encostada a uma mesa comprida com pessoas
sentadas lado a lado. Na mesa diante da cadeira havia apenas espaço
suficiente para um bloco de notas e um telefone.
– Vou ver se consigo arranjar outra coisa se a sua permanência vier a
prolongar-se.
– Espero sinceramente que não – murmurou Harry.
A inspetora reunira as tropas na sala de reuniões. Mais concretamente, as
«tropas» eram: Nho; Sunthorn, um homem jovem com cara de bebé e ar
sisudo; e Rangsan, o detetive mais velho do departamento.
Rangsan parecia embrenhado na leitura do jornal, no entanto, ia intervindo
com comentários esporádicos em tailandês, que Crumley anotava
cuidadosamente no seu livrinho preto.
– Muito bem – disse Crumley, fechando o livro. – Nós os cinco vamos
tentar desvendar este caso. Como contamos com a presença de um colega
norueguês, a partir deste momento, todas as comunicações terão lugar em
inglês. O Rangsan é o nosso contacto com o Laboratório Forense. Força.
Rangsan dobrou meticulosamente o jornal e pigarreou. Tinha cabelo ralo,
usava óculos na ponta do nariz, presos a um cordão, e fez lembrar a Harry um
professor cansado observando o que o rodeia com uma expressão sarcástica e
ligeiramente condescendente.
– Falei com o Supawadee do Laboratório Forense. Como já era de esperar,
encontraram uma carrada de impressões digitais no quarto do motel, mas
nenhuma pertencia ao morto.
As outras impressões não tinham sido identificadas.
– E isto não vai ser fácil – acrescentou Rangsan. – Mesmo que o motel não
tenha muita clientela, devem existir lá impressões de pelo menos uma centena
de pessoas.
– Encontraram algumas impressões no puxador da porta? – perguntou
Harry.
– Demasiadas, infelizmente. E nenhuma completa. – Crumley colocou os
pés com os ténis Nike em cima da mesa. – Provavelmente, o Molnes foi
direito à cama; não existiam motivos para ele andar a espalhar impressões
digitais por todo o lado. Há pelo menos duas pessoas que tocaram no puxador
depois do assassino: Dim, a prostituta, e Wang, o dono do motel. – Fez sinal
com a cabeça a Rangsan, que voltou a pegar no jornal. – A autópsia confirma
o que presumimos, que o embaixador foi morto com o punhal. Perfurou-lhe o
pulmão antes de trespassar o coração e encher o pericárdio de sangue.
– Tamponamento cardíaco – disse Harry.
– Como disse?
– É assim que se chama. É o mesmo que colocar algodão hidrófilo num
sino. O coração não consegue bater e sufoca no seu próprio sangue.
Crumley esboçou um esgar.
– Muito bem, deixemos de momento o relatório forense e passemos à
realidade. Harry, vamos dar-lhe tempo para se instalar e depois apanhamo-lo
no caminho para o motel.

Enquanto descia no elevador apinhado, ouviu uma voz que reconheceu:


– Já sei, já sei! Solskjær! Solksjær!
Harry virou a cabeça e sorriu em afirmação.
Com que então, era ele o norueguês mais famoso do mundo? Um
futebolista que fora segunda escolha como avançado numa cidade industrial
inglesa arrumava a um canto todos os exploradores, pintores e escritores.
Refletindo, Harry concluiu que provavelmente o homem tinha razão.

O apartamento que a embaixada lhe arranjara ficava num elegante conjunto


habitacional defronte do Hotel Shangri-La. Era minúsculo e espartano, mas
tinha uma casa de banho, uma ventoinha junto à cama e vista para o rio Chao
Phraya, que passava por ali, largo e castanho. Harry ficou à janela. Barcos de
madeira compridos e estreitos cruzavam o rio e agitavam a água imunda por
detrás das hélices montadas em longos eixos. Na margem oposta, hotéis
novos e grandes armazéns imperavam sobre uma massa indefinida de casas
de tijolo branco. Era difícil formar uma opinião sobre o tamanho da cidade
porque ela desaparecia numa névoa castanho-dourada quando se tentava
divisar para lá de alguns quarteirões, contudo Harry presumiu que fosse
grande. Muito grande. Abriu uma janela e foi saudado pelo barulho. Perdera
os tampões para os ouvidos no elevador, e só naquele momento se apercebia
de quão ensurdecedor era o ruído nesta cidade. Conseguia ver o carro-
patrulha de Crumley como uma miniatura de uma caixa de fósforos lá ao
fundo, junto à berma do passeio. Abriu uma lata de cerveja quente que
trouxera consigo do avião e constatou, para seu prazer, que a Singha não era
pior do que qualquer cerveja norueguesa. Agora, o resto do dia parecia mais
suportável.
17 Gin tónico. (N. da T.)
6

Sexta-feira, 10 de janeiro

A inspetora encostou-se à buzina. Literalmente. Apoiou o peito no volante


do enorme jipe Toyota e a buzina tocou.
– Não é o que os tailandeses fazem – disse, gargalhando. – De qualquer
forma, não resulta. Se buzinar, eles não o deixam passar. Está relacionado
com o budismo. Mas não consigo resistir. Que se lixe, sou americana.
Encostou-se novamente ao volante enquanto os condutores que os
rodeavam se faziam desentendidos.
– Quer dizer que ele continua no quarto do motel? – perguntou Harry,
reprimindo um bocejo.
– Ordens ao mais alto nível. Por norma, fazemos uma autópsia o mais
depressa possível e cremamo-los no dia seguinte. Mas quiseram que você o
visse primeiro. Não me pergunte porquê.
– Porque sou um investigador do caraças, ou já se esqueceu?
Ela fitou-o pelo canto do olho, depois enfiou-se à pressa entre dois carros e
travou a fundo.
– Não se arme em esperto. Não é o que está a pensar, que todos aqui o vão
considerar um gajo do caraças só porque é um farang, muito pelo contrário.
– Farang?
– Branquela. Gringo. Meio ofensivo, meio neutro, tudo depende da
situação. Basta lembrar-se: não existe qualquer problema de autoestima pelo
facto de os tailandeses o tratarem com cortesia. Felizmente para si, o
Sunthorn e o Nho estão de serviço hoje, e tenho a certeza de que vai
conseguir impressioná-los. Espero que sim, para seu bem. Se fizer má figura,
pode vir a ter grandes problemas a trabalhar no departamento.
– Fiquei com a impressão de que a responsável por aquele departamento
era você.
– É a minha opinião.
Tinham entrado na autoestrada e, ignorando os protestos do motor, ela
carregou a fundo no acelerador. Entretanto começara a escurecer e, a
ocidente, um Sol vermelho-cereja descia entre os arranha-céus.
– Pelo menos a poluição cria belos pores do Sol – observou Crumley, em
resposta aos pensamentos dele.
– Fale-me sobre a prostituição aqui – pediu Harry.
– É quase tão má quanto o trânsito.
– Já vi. Mas o que conta aqui, como funciona? É a tradicional prostituição
de rua com chulos, bordéis com uma madame, ou as prostitutas trabalham por
conta própria? Vão aos bares, fazem strip, anunciam no jornal, ou engatam
clientes nos centros comerciais?
– Tudo isso e muito mais. Quem não teve essa experiência em
Banguecoque, então, não a teve em mais lado nenhum. No entanto, a maior
parte delas trabalha em clubes noturnos onde dançam e tentam aliciar os
clientes a pagarem-lhes bebidas. E, como é evidente, recebem uma
percentagem. O dono do bar não tem qualquer responsabilidade em relação
às raparigas para além de lhes proporcionar um local para se venderem e, em
troca, elas aceitam ficar no bar até ele fechar. Se um cliente quer ficar com
uma das raparigas, tem de comprar a liberdade dela durante o resto da noite.
O dono do bar recebe o dinheiro, mas a maior parte das vezes a rapariga fica
contente por não ter de passar a noite a contorcer-se pelo palco.
– Parece-me um grande negócio para o dono do bar.
– Tudo o que a rapariga ganhar depois de o seu tempo ter sido comprado
vai diretamente para o bolso dela.
– A rapariga que encontrou o embaixador trabalhava num desses bares?
– Claro. Trabalha num dos bares King Crown no Patpong. Também
sabemos que o dono do motel tem uma espécie de círculo de call girls para
estrangeiros com tendências especiais. Mas vai ser muito difícil obrigá-la a
falar porque, na verdade, a prostituição é ilegal na Tailândia. Até ao
momento, limitou-se a dizer que estava alojada no motel e que se enganou na
porta.
Liz explicou que, muito provavelmente, quando chegara ao hotel, Atle
Molnes telefonara à rapariga. Porém, o rececionista, sinónimo de
proprietário, negara categoricamente ter tido qualquer intervenção no assunto
para além de alugar o quarto.
– Chegámos.
Ela estacionou diante de um edifício baixo de tijolo branco.
– Os melhores bordéis de Banguecoque parecem ter uma predileção por
nomes gregos – comentou com acrimónia enquanto saía do carro. Harry
olhou para um enorme reclame luminoso a anunciar que o motel se chamava
Olympussy. O «m» piscava esporadicamente, ao passo que o «l» desistira
definitivamente de se acender, conferindo ao local uma melancolia que fez
lembrar a Harry as churrasqueiras nos subúrbios noruegueses.
O motel era idêntico à variante americana, com uma sequência de quartos
duplos à volta de um pátio e um espaço para estacionar no exterior de cada
quarto. Havia uma varanda ao longo da parede, onde os hóspedes podiam
sentar-se em cadeiras de verga cinzentas danificadas pela chuva.
– Que sítio magnífico.
– Pode não acreditar, mas quando surgiu, durante a Guerra do Vietname,
era um dos lugares mais animados da cidade. Construído para os soldados
americanos sedentos de sexo em R&R.
– R&R?
– Repouso e recuperação. Popularmente conhecido como C&C: Cama e
copos. Vinham de Saigão, numa licença de dois dias. Neste país, o negócio
do sexo não seria o que é hoje sem os militares americanos. Uma das ruas
daqui recebeu oficialmente o nome de Soi Cowboy.
– Então porque é que não ficavam lá? Isto aqui é quase rural.
– Os soldados com mais saudades de casa preferiam foder à maneira
tipicamente americana, isto é, num automóvel ou num quarto de hotel.
Podiam alugar carros americanos no parque de estacionamento. Até tinham
cerveja americana nos minibares.
– Uau, como é que sabe tudo isto?
– A minha mãe contou-me.
Harry virou-se para ela. Contudo, apesar de as letras que funcionavam no
reclame lhe iluminarem a cabeça com uma luz de néon azulada, estava
demasiado escuro para lhe ver o semblante. Ela pôs um boné na cabeça antes
de entrar na receção.
O quarto do motel estava mobilado com simplicidade, porém, a alcatifa
cinzenta já vira melhores dias. Harry sentiu um calafrio. Não por causa do
fato amarelo que dispensava qualquer identificação do cadáver – somente os
membros do Partido da Democracia Cristã e do Partido do Progresso usavam
voluntariamente aqueles fatos. Não por causa do punhal com adornos
orientais que prendia o fato às costas do embaixador, provocando uma
deselegante protuberância nos ombros do casaco. Era, tão-somente, pelo
facto de o quarto estar gelado. Crumley explicara que como neste clima o
prazo de validade dos corpos era muito curto, e como os mandaram esperar
pelo menos quarenta e oito horas pelo detetive norueguês, houvera
necessidade de manter o ar condicionado sempre a trabalhar e a ventoinha
ligada no máximo.
Não obstante, as moscas eram persistentes e um enxame esvoaçou
imediatamente quando Nho e Sunthorn viraram cuidadosamente o corpo. Os
olhos vítreos de Atle Molnes olhavam fixamente para o seu nariz, como se
tentassem ver as biqueiras dos sapatos Ecco. A franja arrapazada fazia com
que o embaixador não aparentasse os seus cinquenta e dois anos. Estava
descaída, aclarada pelo sol, como se nela ainda existisse vida.
– Mulher e filha adolescente – disse Harry. – Alguma delas veio aqui vê-
lo?
– Não. Informámos a Embaixada da Noruega, e disseram-nos que iam
transmitir a mensagem à família. Até ao momento, apenas nos pediram para
não deixarmos entrar ninguém.
– E com quem falaram?
– Com a encarregada de negócios. Não me recordo do nome dela.
– A Tonje Wiig?
– Isso mesmo. Ela conseguiu controlar-se até ao momento em que virámos
o corpo para procedermos à identificação.
Harry observou o embaixador. Fora um homem bem-parecido? Um homem
que, para além do fato horroroso e de dois pneus de gordura à volta da
barriga, conseguia fazer com que o coração de uma jovem diplomata batesse
mais acelerado? A pele bronzeada apresentava uma tonalidade macilenta e a
língua azul parecia tentar abrir caminho à força por entre os dentes.
Harry sentou-se numa cadeira e olhou à sua volta. Quando alguém morre, o
seu aspeto altera-se rapidamente, e ele já vira corpos mais do que suficientes
para saber que não lhe adiantava muito ficar a olhar para eles. Atle Molnes
levara consigo quaisquer segredos que a sua personalidade pudesse ter
revelado e tudo isso permanecia num invólucro vazio e abandonado.
Harry puxou a cadeira para junto da cama. Os dois jovens agentes
debruçaram-se sobre ele.
– O que consegue ver? – perguntou-lhe Crumley.
– Vejo um norueguês devasso que, por sinal, era o embaixador e, por essa
razão, precisava de manter a sua reputação a bem da nação.
Ela levantou a cabeça, surpreendida, e examinou Harry com mais atenção.
– Por muito bom que seja o ar condicionado, não é possível disfarçar o
pivete – disse ele. – Mas isso é um problema meu. Quanto a este sujeito
aqui… – Harry agarrara o maxilar do embaixador. – Rigor mortis. Ele
continua hirto, mas a rigidez já começou a passar, o que é normal, ao fim de
três dias. A língua está azul, no entanto, o punhal sugere que não morreu
sufocado. É preciso verificar.
– Já foi – respondeu Crumley. – O embaixador tinha bebido vinho tinto.
Harry murmurou algo.
– O Molnes saiu do gabinete à hora do almoço – prosseguiu ela – e quando
a rapariga o encontrou eram quase 23 horas. O nosso médico afirma que ele
morreu entre as 16 e as 22 horas, pelo que sempre é um intervalo menor.
– Entre as dezasseis e as vinte e duas? São seis horas.
– Correto, detetive. – Crumley cruzou os braços.
– Bem. – Harry ergueu o olhar para ela. – Em Oslo, costumamos
determinar a hora da morte com uma margem de vinte minutos para mais ou
para menos, no caso de os corpos terem sido encontrados passadas algumas
horas.
– Isso é porque você vive no Polo Norte. Aqui, com trinta e cinco graus, a
temperatura do corpo não baixa muito. A hora é calculada de acordo com o
rigor mortis, e é mais ou menos aproximada.
– Então e o livor mortis? Deveria existir descoloração passadas
sensivelmente três horas.
– Lamento. Como pode ver, o embaixador gostava de andar bronzeado, por
isso não podemos adiantar nada.
Harry fez deslizar o dedo indicador pelo tecido do fato até ao ponto onde o
punhal entrara. Ficou, debaixo da sua unha, um depósito de algo semelhante a
vaselina.
– O que é isto?
– Obviamente que a arma foi lubrificada. As amostras recolhidas seguiram
para análise.
Harry revistou-lhe os bolsos e retirou uma carteira castanha com bastante
uso. Continha uma nota de 500 bahts, um cartão de identificação do
Ministério e uma fotografia de uma rapariga sorridente que parecia estar
numa cama de hospital.
– Encontrou mais alguma coisa nele?
– Nicles. – Crumley retirara o boné para sacudir as moscas. – Verificámos
o que tinha com ele e deixámos ficar.
Harry desapertou-lhe o cinto, puxou-lhe as calças para baixo e virou-o
novamente de bruços. De seguida, levantou-lhe o casaco e a camisa.
– Repare, escorreu-lhe algum sangue pelas costas abaixo. – Puxou o
elástico das cuecas Dovre. – E para o intervalo entre as nádegas. O que
significa que ele não foi apunhalado quando estava deitado na cama.
Encontrava-se de pé. Medindo a profundidade que a lâmina atingiu e
determinando o ângulo podemos calcular a altura do assassino.
– Partindo do princípio que o assassino estava de pé ao mesmo nível que a
vítima quando foi atacada – acrescentou Crumley. – A vítima também pode
ter sido apunhalada enquanto estava no chão e o sangue ter escorrido quando
foi mudada para a cama.
– Nesse caso, haveria sangue na alcatifa – afirmou Harry, subindo as
calças, apertando o cinto, virando-se e olhando Liz nos olhos. – E você não
teria necessidade de especular, teria a certeza. Os vossos técnicos forenses
teriam encontrado fibras da alcatifa espalhadas pelo fato dele, não é verdade?
Ela não desviou o olhar, mas Harry sabia que desmascarara o seu
testezinho. Liz anuiu, e ele virou-se novamente para o cadáver.
– Um pormenor vitimológico pode confirmar que ele estava à espera de
uma visita feminina.
– Sim?
– Reparou no cinto? Estava apertado dois furos abaixo da linha de desgaste
antes de eu o desapertar. Os homens de meia-idade que começam a engordar
na cintura costumam encolher a barriga quando vão encontrar-se com
mulheres jovens.
Era difícil dizer se eles tinham ficado impressionados. Os agentes
apoiavam-se ora num pé, ora no outro e os seus jovens rostos impávidos nada
deixavam transparecer. Crumley roeu um bocado de unha e cuspiu-a por
entre os lábios franzidos.
– Vejamos o minibar.
Harry abriu a porta do pequeno frigorífico. Miniaturas de Singha, Johnnie
Walker e Canadian Club, uma garrafa de vinho branco. Pareciam estar todas
intactas.
– O que mais temos?
Harry virou-se para os dois jovens agentes.
Eles trocaram olhares e depois um deles apontou para o automóvel no
acesso.
– O carro.
Dirigiram-se ao exterior, onde estava um Mercedes azul-escuro, modelo
recente, com as chapas de matrícula do Corpo Diplomático. Um dos agentes
da Polícia abriu a porta do condutor.
– A chave? – perguntou Harry.
– Estava no bolso do casaco do… – O agente virou a cabeça na direção do
quarto do motel.
– Impressões digitais?
O homem jovem lançou um olhar resignado na direção da sua superiora
hierárquica. Ela sorriu.
– Como é óbvio, procurámos impressões digitais na chave, Hole.
– Não estava a perguntar se recolheram impressões digitais, mas sim o que
encontraram.
– Dele. Caso contrário, tínhamo-lo informado logo.
Harry não disse mais nada.
Os bancos e o chão do Mercedes estavam cobertos de lixo. Harry reparou
em algumas revistas, cassetes, maços de tabaco vazios, uma lata de Coca-
Cola e um par de sandálias.
– O que mais encontrou?
Nho exibiu uma lista e leu-a em voz alta.
– Pare – disse Harry. – Podia repetir o último item?
– Cupões para apostas em cavalos de corrida, senhor.
– Pelos vistos, o embaixador gostava de apostar de vez em quando – referiu
Crumley. – É um desporto popular na Tailândia.
– E o que é isto?
Harry debruçara-se sobre o lado do condutor para apanhar uma pequena
cápsula parcialmente escondida debaixo da alcatifa entre o regulador do
banco e o tapete.
O agente consultou a sua lista, mas teve de desistir.
– O ecstasy líquido vem em cápsulas como aquela – afirmou Crumley, que
se aproximara para ver melhor.
– Ecstasy? – Harry abanou a cabeça. – Os democratas-cristãos de meia-
idade podem gostar de borga, mas não consomem E.
– Vamos ter de verificar – disse Crumley.
Pela expressão dela, Harry percebeu que não ficara nada satisfeita por lhe
ter escapado a cápsula.
– Vamos espreitar lá atrás – disse ele.
A mala encontrava-se tão limpa e arrumada quanto o interior na maior
confusão.
– Um homem de hábitos metódicos – observou Harry. – As mulheres da
família eram rainhas e senhoras dentro do carro, mas ele não as deixava abrir
a mala.
Uma caixa de ferramentas bem apetrechada brilhou à luz da lanterna de
Crumley. Estava imaculada; apenas o gesso na ponta de uma chave de
parafusos revelava que tinha sido usada.
– Mais um pouco de vitimologia, pessoal. Palpita-me que o Molnes não era
um homem prático. Esta caixa de ferramentas nunca foi usada no motor de
um automóvel. Quando muito, a chave de parafusos serviu para pendurar
uma fotografia de família.
Um mosquito aplaudiu-o ao ouvido. Harry desferiu uma palmada e sentiu
que a sua pele húmida era fria ao toque. O calor não diminuíra nem depois de
o Sol se ter posto. Naquele momento, o vento amainara e parecia que a
humidade escorria do solo sob os pés deles e condensava o ar, pelo que quase
era possível bebê-la.
Ao lado do pneu sobresselente encontrava-se o macaco, aparentemente
também por usar, e uma pasta castanha de pele genuína do tipo que se espera
encontrar no carro de um diplomata.
– O que está na pasta? – perguntou Harry.
– Está fechada à chave – disse Crumley. – Como oficialmente o carro é
território da embaixada e, por conseguinte, não se encontra sob a nossa
jurisdição, nem a tentámos abrir. Mas agora que a Noruega está representada,
talvez possamos…
– Lamento, mas não estou abrangido pelo estatuto diplomático – afirmou
Harry, retirando a pasta da bagageira do carro e colocando-a no chão. – Mas
posso afirmar que o caso já não se encontra em território norueguês, por isso,
sugeria que a abrisse enquanto eu vou à receção falar com o dono do motel.
Atravessou o parque de estacionamento. Tinha os pés inchados depois do
voo, uma gota de suor escorria-lhe por dentro da camisa, fazendo-lhe cócegas
e estava desesperado por uma bebida. Para além disso, não era assim tão
desagradável ter de novo um caso complicado. Já passara muito tempo desde
o último. Reparou que o «m» se apagara.

Wang Lee, Gerente dizia o cartão que o homem ao balcão entregara a


Harry, ao que tudo indicava, uma ténue sugestão de que deveria tentar de
novo noutro dia. O homem lingrinhas de camisa às flores tinha o sono ao
canto dos olhos e o ar de quem não queria falar com Harry naquele momento.
Começara a remexer num monte de papéis e resmungou quando levantou a
cabeça para ver se Harry continuava ali.
– Vejo que é um homem ocupado – observou Harry. – Por isso, sugiro que
despachemos isto o mais rápido possível. Sei que sou estrangeiro e não do
seu país…
– Não tailandês. Chinês – ouviu, acompanhado de outro resmungo.
– Bem, nesse caso, também é estrangeiro. A questão é…
Vieram do outro lado do balcão duas arfadas que podiam ter passado por
gargalhadas escarninhas. Pelo menos, o dono do motel abrira a boca.
– Não estrangeiro. Chinês. Nós fazer Tailândia funcionar. Não há chinês,
não há negócio.
– Ótimo. Vejo que é um homem de negócios, Wang. Por isso, deixe-me
fazer-lhe uma proposta de negócio. Você dirige um bordel e pode remexer na
sua papelada o tempo que quiser, mas a realidade é esta.
Wang abanou firmemente a cabeça.
– Prostitutas não. Motel. Arrendar quartos.
– Calma. Só estou interessado no homicídio, não me compete prender
chulos. A menos que me dê na veneta. Daí a proposta de negócio. Aqui na
Tailândia ninguém investiga pessoas como o senhor, vocês são simplesmente
demasiados. Também não vale a pena apresentar queixa de si à Polícia.
Calculo que possa meter alguns bahts num envelope de papel pardo para
evitar ser incomodado com esse tipo de coisa. É por isso que não mostra ter
medo de nós.
O dono do motel começou novamente a abanar a cabeça.
– Sem dinheiro. Ilegal.
Harry sorriu.
– Ao que julgo saber, a Tailândia ocupava o terceiro lugar na lista dos
países mais corruptos do mundo. Por favor, seja simpático e não faça de mim
parvo. – Harry assegurou-se de que mantinha baixo o tom da sua voz. Por
norma, as ameaças resultam melhor quando proferidas em tom neutro. – No
entanto, o seu problema, e o meu, é o facto de o tipo que foi encontrado no
quarto do motel ser um diplomata do meu país. Se eu tiver de informar que
suspeitamos que ele morreu num bordel, de repente torna-se um assunto
político e os seus amigos na Polícia não podem ajudá-lo. As autoridades
serão obrigadas a fechar este estabelecimento e a metê-lo na prisão. Para
mostrarem cooperação, para mostrarem que mantêm a lei e a ordem, certo? –
Era impossível ver pelo rosto inexpressivo se acertara em cheio ou não. – Por
outro lado, se eu informar que a mulher tinha combinado encontrar-se com o
homem, e o motel foi uma escolha aleatória…
O homem olhou para Harry. Piscou os olhos e esfregou-os como se lhes
tivesse entrado pó. Depois virou-se, afastou uma cortina que escondia uma
porta, abriu-a e fez sinal a Harry para que o seguisse. Por detrás da cortina
existia uma pequena divisão com uma mesa e duas cadeiras, e o homem
indicou uma a Harry para que se sentasse. Colocou uma chávena diante dele
e serviu chá de um bule. Notou-se um aroma forte a hortelã-pimenta que lhe
provocou ardor nos olhos.
– Nenhuma das raparigas quer trabalhar enquanto corpo aqui estar – disse
Wang. – Com que rapidez o podem levar?
«Os homens de negócios são todos iguais, em qualquer parte do mundo»,
pensou Harry, acendendo um cigarro.
– Depende da rapidez com que conseguirmos chegar ao âmago do que aqui
nos trouxe.
– O homem chegou perto das nove da noite e disse que queria quarto. Viu o
menu e disse que queria a Dim, só precisava descansar primeiro. Mandou-me
avisá-lo quando ela aqui chegasse. Eu dizer ele tinha sempre de pagar à hora.
Ele disse tudo bem e levou chave.
– O menu?
O homem entregou-lhe algo que, efetivamente, se assemelhava a um menu.
Harry folheou-o. Havia fotografias de jovens tailandesas vestidas de
enfermeiras, com meias de rede, com espartilhos de couro e um chicote, com
uniformes de colegiais e tranças, e até fardas da Polícia. Por baixo das
fotografias, sob o título ESTATÍSTICAS VITAIS, encontrava-se a idade, o preço e
os elementos sobre cada rapariga. Harry reparou que todas afirmavam ter
entre dezoito e vinte e dois anos. Os preços oscilavam entre mil e três mil
bahts e quase todas as raparigas tinham, ao que tudo indicava, concluído um
curso de línguas e trabalhado como enfermeiras.
– Ele estava sozinho? – perguntou Harry.
– Sim.
– Não vinha mais ninguém no carro?
Wang abanou a cabeça.
– Como pode ter a certeza disso? O Mercedes tem vidros fumados e o
senhor estava sentado aqui dentro.
– Costumo ir lá fora verificar. Talvez ele ter amigo com ele. Depois têm de
pagar quarto duplo.
– Estou a ver. Quarto duplo, preço duplo?
– Não preço duplo. – Wang voltou a exibir os dentes. – Mais barato
partilhar.
– E o que aconteceu depois?
– Não sei. Homem levar carro para número 120, onde estar agora. Fica nas
traseiras, por isso não o ver no escuro. Liguei à Dim, ela vir e esperar. Depois
mandá-la ao quarto dele.
– E como estava a Dim vestida? De guarda-freio?
– Não, não, não.
Wang passou as folhas até à contracapa do menu e mostrou
orgulhosamente a fotografia de uma jovem tailandesa com um vestido curto
coberto de lantejoulas prateadas, patins brancos e um enorme sorriso. Fazia
vénias com os tornozelos cruzados e os braços ao lado do corpo, como se
tivesse acabado de efetuar com êxito um Programa Livre. Tinha o rosto
salpicado de sardas ruivas.
– E esta deve ser…? – disse Harry incrédulo, ao ler o nome por baixo da
fotografia.
– Sim, sim, certo. Tonya Harding. Aquela que matou outra rapariga
americana, bonita18.
– Não creio que ela tenha mesmo…
– A Dim também pode ser ela, se senhor quiser…
– Não, obrigado – respondeu Harry.
– Ser muito popular. Especialmente com americanos. Ela pode chorar, se o
senhor quiser. – Wang fez descer os dedos pelas faces.
– Ela encontrou-o no quarto com um punhal nas costas. O que aconteceu
depois disso?
– A Dim correu aqui a gritar.
– Com os patins calçados?
Wang lançou um olhar reprovador a Harry.
– Patins entrar depois cuecas sair.
Harry compreendeu o lado prático do acordo e fez-lhe sinal para que
prosseguisse.
– Nada mais para contar, senhor agente. Fomos ao quarto e olhámos de
novo, depois tranquei porta e liguei Polícia.
– Portanto, de acordo com a Dim, a porta não estava trancada quando ela lá
chegou. Ela disse alguma coisa sobre estar entreaberta ou apenas no trinco?
Wang encolheu os ombros.
– Porta estava fechada mas não trancada. Isso é importante?
– Nunca se sabe. Viu mais alguém perto do quarto naquela noite?
Wang abanou a cabeça.
– E onde está o livro de registo de hóspedes? – perguntou Harry. Começava
a acusar o cansaço.
O dono do motel levantou subitamente a cabeça.
– Sem livro de hóspedes. – Harry observou-o em silêncio. – Sem livro de
registo de hóspedes – repetiu Wang. – Para que quero um? Ninguém virá se
registarem nomes e moradas.
– Eu não nasci ontem, Wang. Ninguém pensa que há registos, mas você
guarda uma lista. À cautela. De vez em quando, aparecem por cá uns VIP e
seria bom colocar um livro de hóspedes em cima do balcão, para o caso de
um dia surgir algum problema, certo? – O dono do motel piscou os olhos
como uma rã. – Não se arme em difícil agora, Wang. As pessoas que não
estiveram envolvidas no homicídio não têm nada a temer. Especialmente as
figuras públicas. Palavra de honra. Agora. O livro, por favor.
Era um caderninho de anotações e Harry olhou para as páginas cobertas de
carateres tailandeses miudinhos.
– Um dos outros virá fazer uma cópia disto – disse-lhe.
Os três agentes aguardavam junto ao Mercedes. Os faróis dianteiros
estavam acesos e iluminavam a pasta, que se encontrava aberta no pátio.
– Encontraram alguma coisa?
– Parece que o embaixador tinha preferências sexuais invulgares.
– Já sei. A Tonya Harding. Eu diria mais que são bizarras.
– Quando podemos falar com a Dim?
– Chamamo-la amanhã. Esta noite está a trabalhar.
Harry estacou diante da pasta. Tornaram-se visíveis detalhes das
fotografias a preto-e-branco à luz amarela dos faróis dianteiros. Ele ficou em
choque. Claro que ouvira falar daquilo, lera inclusivamente relatórios e
conversara com colegas da Brigada Antivício sobre o assunto, no entanto, era
a primeira vez que Harry via uma criança a ser abusada sexualmente por um
adulto.
18 É uma ex-patinadora e pugilista. Disputou por duas vezes os Jogos Olímpicos, foi campeã nacional
americana e conquistou a medalha de prata no Campeonato Mundial de 1991. Foi a segunda mulher, e
a primeira americana, a efetuar o salto triplo axel em competições. Viu-se, mais tarde, no centro das
atenções internacionais, depois de o seu ex-marido, Jeff Gillooly, ter conspirado com Shawn Eckhardt e
Shane Stant o ataque à também patinadora Nancy Kerrigan nas sessões de treino durante o Campeonato
dos Estados Unidos de 1994, realizado em Detroit. (N. da T.)
7

Sexta-feira, 10 de janeiro

S ubiram a Sukhumvit Road, onde hotéis de três estrelas ombreavam com


mansões de luxo e barracas de madeira e chapa. Harry não reparou em
nada daquilo: o seu olhar parecia estar fixo num ponto mesmo diante de si.
– Agora o trânsito está melhor – disse Crumley.
– Pois.
Ela sorriu sem mostrar os dentes.
– Desculpe, em Banguecoque falamos do trânsito tal como noutros lugares
se fala do tempo. E não precisa de viver aqui muito tempo para perceber
porquê. O tempo vai manter-se assim até maio. Consoante a monção, a chuva
começa a cair lá mais para o final do verão. E, nessa altura, chove durante
três meses. E o único comentário que se pode tecer a respeito do tempo é que
há muito calor. Dizemo-lo uns aos outros o ano inteiro, contudo, não é o tema
de conversa mais interessante.
– Hum.
– Por outro lado, o trânsito condiciona mais o nosso quotidiano em
Banguecoque do que os malditos tufões. Nunca sabemos o tempo que
podemos demorar a chegar ao trabalho. Tanto podem ser quarenta minutos
como quatro horas. Há dez anos bastavam vinte minutos.
– E o que aconteceu para se chegar a esse ponto?
– O crescimento. Nos últimos vinte anos deu-se um longo boom
económico. É aqui que se consegue emprego, e as pessoas afluem das zonas
rurais. Há mais pessoas a ir para o trabalho todas as manhãs, mais bocas para
alimentar e maior procura de transportes. Os políticos prometem-nos novas
estradas e depois esfregam as mãos de contentamento porque as coisas estão
a correr muito bem.
– Não me vai dizer que é contra o progresso, pois não?
– Não que eu tenha nada contra o facto de as pessoas terem televisão nas
suas cabanas de bambu, mas está tudo a acontecer demasiado depressa. E, se
quer saber a minha opinião, o desenvolvimento só pelo desenvolvimento é a
lógica de uma célula cancerígena. Às vezes, quase me regozijo por termos
atingido o ponto de rotura o ano passado. Já se nota o efeito no trânsito.
– Quer dizer que já foi pior do que isto?
– Claro. Olhe para ali…
Crumley apontou para um parque de estacionamento gigantesco onde se
viam centenas de betoneiras em filas.
– Há um ano, aquele parque de estacionamento estava quase vazio, mas
agora já ninguém constrói mais, por isso, a frota está parada. E as pessoas só
continuam a ir aos centros comerciais porque têm ar condicionado, não
chegam a comprar nada.
Prosseguiram a viagem em silêncio durante algum tempo.
– Quem pensa que pode estar por detrás desta merda? – perguntou Harry.
– Os especuladores financeiros.
Harry olhou para ela, sem compreender.
– Estou a referir-me às fotografias.
– Oh! – Liz olhou para ele. – Não gostou daquilo, pois não?
Ele encolheu os ombros.
– Sou uma pessoa tolerante. Não consigo deixar de pensar na pena de
morte.
A inspetora olhou para o relógio de pulso.
– Passamos por um restaurante a caminho do seu apartamento. O que me
diz a um curso intensivo de cozinha tradicional tailandesa?
– Pode ser. Mas não respondeu à minha pergunta.
– Quem está por detrás das fotografias? Provavelmente existem mais
tarados sexuais na Tailândia por metro quadrado do que no mundo inteiro,
Harry, pessoas que vieram para aqui porque temos uma indústria do sexo que
dá resposta a todas as necessidades. E refiro-me mesmo a todas as
necessidades. Como raio hei de saber quem está por detrás de umas
fotografias?
Harry esboçou um esgar e rodou a cabeça de um lado para o outro.
– Só estava a perguntar. Não houve, há uns anos, uma certa agitação por
causa de um embaixador que era pedófilo?
– Houve. Desmantelámos uma rede de prostituição infantil na qual estava
envolvida uma série de pessoas da embaixada, entre elas o embaixador
australiano. Muito constrangedor.
– Mas não para a Polícia, espero?
– Está doido? Para nós, foi o mesmo que ganhar simultaneamente a Taça
do Mundo e um Óscar. O primeiro-ministro enviou congratulações, o
ministro do Turismo ficou extasiado e choveram medalhas sobre nós. Foi
extremamente importante para a credibilidade da Polícia, percebe?
– E que tal se começássemos por aí?
– Não sei. Em primeiro lugar, todos aqueles que estavam envolvidos na
rede ou se encontram atrás das grades ou foram deportados. Em segundo, não
estou convicta de que as fotografias tenham algo que ver com o homicídio.
Crumley virou para um parque de estacionamento onde um funcionário
apontou para um intervalo impossível entre dois carros. Ela premiu um botão
e o mecanismo eletrónico zumbiu enquanto os grandes vidros de ambos os
lados do veículo desciam. Depois, engrenou a marcha-atrás e carregou no
acelerador.
– Não me parece… – começou Harry a dizer, no entanto, a inspetora já
estacionara. Os espelhos laterais estremeceram.
– Como é que saímos? – perguntou ele.
– Não se preocupe tanto com isso, detetive.
Servindo-se de ambos os braços, içou-se pela janela, colocou um pé no
para-brisas e saltou para diante do jipe. Com imensa dificuldade, Harry
conseguiu efetuar idêntica proeza.
– Vai acabar por aprender – disse ela, e começou a afastar-se. –
Banguecoque é um formigueiro.
– Então e o rádio? – Harry olhou para as janelas abertas, que eram uma
tentação. – Acha que vai ali estar quando regressarmos?
Mostrou o crachá da Polícia ao funcionário, que logo se empertigou.
– Acho.

– Não foram encontradas impressões digitais no punhal – anunciou


Crumley, emitindo um estalido de satisfação com os lábios. A Sôm-tam, uma
salada de papaia verde, não tinha um sabor tão estranho quanto Harry
imaginara. Na verdade, era boa. E picante.
Ela sorveu ruidosamente a espuma da cerveja. Ele olhou para os outros
clientes ali à volta, porém, ninguém parecia ter-se apercebido, provavelmente
por o som ter sido abafado por uma orquestra de cordas que tocava uma polca
no palco ao fundo do restaurante, a qual, por sua vez, era abafada pelo ruído
do trânsito. Harry decidiu beber duas cervejas. Depois parou. Podia comprar
um pack de seis a caminho do apartamento.
– A ornamentação no cabo. Descobriram alguma coisa?
– O Nho julga que o punhal pode ser do Norte, das tribos das montanhas na
província de Chiang Rai ou das redondezas. Por causa dos embutidos de
vidro colorido. Ele não tem a certeza, mas, de qualquer forma, não era o tipo
de punhal corrente que se pode comprar nas lojas daqui, por isso vamos
enviá-lo amanhã a um professor de História da Arte no Museu
Benchamabophit. Ele sabe tudo sobre punhais antigos.
Liz fez sinal e o empregado de mesa aproximou-se com uma terrina e
serviu sopa de coco fumegante.
– Cuidado com os pedacinhos brancos. E com os vermelhos. Queimam –
avisou ela, apontando para uma colher. – Oh, e já agora, com os verdes
também.
Harry olhou com desconfiança para as diferentes substâncias a boiar na sua
tigela.
– Há aqui alguma coisa que eu possa comer?
– As raízes de galanga19, sim.
– Tem alguma teoria? – perguntou Harry em voz alta, para abafar o ruído
dos sorvos dela.
– Sobre quem possa ser o assassino? Sim, claro. Imensas. Em primeiro
lugar, podia ser a prostituta. Ou o dono do motel. Ou ambos.
– E qual seria o motivo?
– Dinheiro.
– Havia quinhentos bahts na carteira do Molnes.
– Se ele pegou na carteira na receção e o Wang viu que ele tinha algum
dinheiro, o que é bastante provável, a tentação pode ter sido mais do que
muita para ele. O Wang não tinha como saber que o homem era um
diplomata e que o escândalo seria enorme.
Crumley segurava o garfo no ar e debruçara-se, entusiasmada.
– Esperam que o embaixador se instale, batem à porta e apunhalam-no
quando ele se vira de costas. Ele cai na direção da cama, esvaziam-lhe a
carteira, mas deixam quinhentos bahts para que não pareça um assalto.
Depois, esperam três horas e chamam a Polícia. E o Wang deve ter um amigo
na Polícia que se encarrega de que tudo corra bem. Não existe motivo, não
existe suspeito, toda a gente está ansiosa por varrer um incidente que envolve
prostituição para baixo do tapete. Próximo caso.
Subitamente, os olhos de Harry arregalaram-se. Agarrou no copo de
cerveja e levou-o à boca.
Crumley sorriu.
– Uma das vermelhas?
Ele recuperou o fôlego.
– Até nem é uma má teoria, inspetora, mas tem uma falha – disse com voz
áspera.
Ela franziu a testa.
– Qual é?
– O Wang tem um livro de registo de hóspedes privado, provavelmente
recheado de nomes de políticos e funcionários públicos. Cada visita é
registada com a data e a hora. Para se poder defender, caso alguém levante a
lebre sobre o seu estabelecimento. No entanto, quando surge uma visita cujo
rosto ele não reconhece, dificilmente lhe pode pedir a identificação. Então,
vai ter com o hóspede a pretexto de se assegurar de que não está mais
ninguém no carro para descobrir quem ele é, certo?
– Agora perdi-me.
– Ele anota o número da matrícula, percebe? Depois confirma-a com o
registo. Ao ver as chapas azuis no Mercedes, percebeu logo que o Molnes era
um diplomata.
Crumley observava-o com ar pensativo. Depois, olhou para a mesa
adjacente de olhos arregalados. O casal deu um pulo nas respetivas cadeiras e
concentrou-se afanosamente na comida.
Ela coçou a perna com um garfo.
– Não chove há três meses – referiu.
– Desculpe?
Levantou uma mão para pedir a conta.
– O que é que isso tem que ver com o caso? – perguntou Harry.
– Muito pouco.
Eram três da manhã. O ruído da cidade era abafado pelo zumbido regular
da ventoinha em cima da mesa de cabeceira. Ainda assim, Harry conseguia
ouvir um ou outro camião pesado a atravessar a Taksin Bridge e o ruído de
um barco fluvial solitário a afastar-se de um dos cais no Chao Phraya.
Quando abrira a porta do apartamento, vira uma luz vermelha a piscar no
telefone e, depois de premir alguns botões, ouviu as duas mensagens. A
primeira era da Embaixada da Noruega. Tonje Wiig, a encarregada de
negócios, tinha uma voz muito nasalada e parecia ser de Oslo Oeste ou então
tinha um forte desejo de lá morar. Pedia a Harry que se apresentasse na
embaixada no dia seguinte às 10h00, mas depois mudara a hora para o meio-
dia ao constatar que tinha uma reunião às 10h15.
A outra mensagem era de Bjarne Møller. A desejar boa sorte a Harry, nada
mais do que isso. Parecia não gostar de falar para atendedores de chamadas.
Harry estava deitado em cima da cama, piscando os olhos no escuro.
Acabara por não comprar o pack de seis cervejas. E as injeções de vitamina
B12 ainda estavam na mala de viagem. Depois de andar de bar em bar em
Sydney, fora deitar-se sem sentir as pernas, no entanto, uma injeção da
vitamina e eis que ressuscitara como Lázaro. Suspirou. Quando fora que
tomara a decisão? Quando lhe tinham falado do trabalho em Banguecoque?
Não, fora antes disso. Várias semanas antes, tinha estabelecido um prazo: o
aniversário da Sis. Sabe Deus o que o levara a tomar a decisão. Talvez se
tivesse fartado de não estar presente. Os dias iam e vinham sem que ele se
apercebesse. Mais ou menos isso. Estava cansado da discussão sobre o
motivo pelo qual o velho Bardolph20 já não queria beber. Quando Harry
tomou uma decisão, ela foi inabalável; foi inexorável e definitiva. Sem
compromissos nem prevaricação. «Sou capaz de parar quando me apetecer.»
Quantas vezes ouvira os homens no Schrøder a tentarem convencer-se de que
não eram alcoólicos inveterados? Ele era tão inveterado quanto qualquer um
deles, no entanto, era a única pessoa que conhecida capaz de parar sempre
que queria. O aniversário dela era só dali a algumas semanas, mas Aune tinha
razão quando afirmara que esta viagem ia ser um bom ponto de partida, e ele
até o antecipara. Gemeu e virou-se para o outro lado.
Ficou curioso em saber o que estaria Sis a fazer, se ousara aventurar-se a
sair ao final das tardes. Se tinha telefonado ao pai, conforme prometera. E,
em caso afirmativo, se este conseguira falar com ela, em vez de responder
apenas com sim ou não.
Passaram as três horas e, apesar de serem apenas nove na Noruega, não
dormira muito nas últimas trinta e seis horas e não devia ter tido dificuldade
em adormecer. Contudo, sempre que fechava os olhos, vinha-lhe à retina a
imagem de um rapaz tailandês nu iluminado por faróis, de modo que preferiu
mantê-los abertos durante mais algum tempo. Se calhar, devia ter mesmo
comprado o pack de cerveja. Quando finalmente embalou no sono, já era
hora de ponta matinal na Taksin Bridge.
19 Também conhecido como gengibre do Laos ou gengibre tailandês, é o rizoma de uma planta nativa
do sul da China, usada tanto na gastronomia como para fins medicinais. (N. da T.)

20 Personagem que surge em quatro peças de William Shakespeare (Henrique IV, 1.ª e 2.ª partes, As
Alegres Comadres de Windsor e Henrique V. É um ladrão e um alcoólico. (N. da T.)
8

Sábado, 11 de janeiro

N o décimo sétimo andar, por detrás de uma porta de carvalho e de dois


postos de controlo de segurança, Harry avistou uma placa de metal com
o leão norueguês. A rececionista, uma tailandesa jovem e graciosa com uma
boca pequena, um nariz ainda mais pequeno e dois olhos castanhos
aveludados num rosto redondo, observava de cenho carregado o cartão de
identificação dele. Depois, levantou o auscultador, murmurou três sílabas e
voltou a pousá-lo.
– O gabinete da menina Wiig é o segundo à direita, senhor – disse ela com
um sorriso tão radioso, que Harry considerou apaixonar-se na hora.
– Entre – ouviu Harry, depois de bater à porta.
Lá dentro, Tonje Wiig estava debruçada sobre uma enorme secretária de
teca, obviamente assoberbada a tomar notas. Levantou a cabeça, esboçou um
leve sorriso, ergueu da cadeira um corpo magro onde assentava um fato de
seda branca e encaminhou-se para ele de mão estendida.
Tonje Wiig era o oposto da rececionista. Um nariz, uma boca e uns olhos
lutavam por espaço num rosto comprido, e parecia que o nariz saíra vitorioso.
Fazia lembrar um grande tubérculo, mas, pelo menos, garantira a existência
de algum espaço entre os olhos grandes com maquilhagem carregada. Não
que a menina Wiig fosse feia, não, alguns homens podiam, inclusivamente,
afirmar que o rosto dela exibia uma certa beleza clássica.
– É um prazer tê-lo finalmente aqui, inspetor. Pena que seja em tão tristes
circunstâncias.
Harry ainda mal lhe tocara nos dedos ossudos, já eles batiam em retirada.
– Gostávamos imenso que este caso fosse resolvido o mais rapidamente
possível – disse ela, coçando cuidadosamente uma narina para não esborratar
a maquilhagem.
– Assim o espero.
– Têm sido dias difíceis para nós, e pode parecer cruel, mas o mundo não
para e nós também não. Há quem acredite que passamos os dias em festas e a
divertirmo-nos, mas nada andaria mais longe da verdade, garanto-lhe. Neste
preciso momento, tenho oito noruegueses hospitalizados e seis detidos,
quatro deles por posse de narcóticos. Já visitou as prisões daqui? São
medonhas. O Verdens Gang telefona todos os dias. Parece que, como se tudo
o mais não bastasse, uma das mulheres está grávida. E o mês passado, morreu
um norueguês em Pattaya, depois de ter sido atirado de uma janela. Já é
segunda vez num ano. Uma enorme agitação.
Abanou a cabeça em desespero.
– E, se alguém perde o passaporte, acha que tem seguro de viagem ou
dinheiro para comprar um novo bilhete de volta? Não, nós é que temos de
tratar de tudo. Por isso, como calcula, é importante que as coisas se resolvam
por aqui.
– Depreendo que esteja tudo a seu cargo, agora que o embaixador morreu.
– Sou a encarregada de negócios, sim.
– Quanto tempo levará a ser nomeado um novo embaixador?
– Não muito, espero. Normalmente demora um mês ou dois.
– E não se preocupam com o facto de a terem deixado a arcar com todas as
responsabilidades?
Tonje Wiig esboçou um sorriso forçado.
– Não era isso que eu queria dizer. Na verdade, trabalhei aqui seis meses
como encarregada de negócios antes de enviarem o Molnes. O que quero
dizer é que espero que encontrem uma solução definitiva, o mais breve
possível.
– Portanto, está a contar tornar-se a nova embaixadora.
– Vejamos. – Esboçou um pequeno sorriso triste. – Isso não seria
excecional. Infelizmente, no caso do Ministério dos Negócios Estrangeiros,
nunca se sabe.
Apareceu furtivamente uma sombra e surgiu uma chávena diante de Harry.
– Bebe cjhaa ráwn? – perguntou Tonje Wiig.
– Não sei.
– Oh, as minhas desculpas. – Soltou uma gargalhada. – Esqueço-me
facilmente de que os outros são novos aqui. Chá preto tailandês. Sabe,
costumo tomar chá ao final da tarde. Embora, em bom rigor, de acordo com a
tradição inglesa o devesse beber depois das duas.
Harry disse que sim e, quando tornou a olhar para baixo, alguém lhe
enchera a chávena.
– Julguei que esse tipo de tradição tivesse morrido com os colonialistas.
– A Tailândia nunca foi uma colónia – respondeu com um sorriso. – Nem
da Inglaterra, nem da França, como sucedeu com os seus vizinhos. Os
tailandeses têm muito orgulho nisso. Demasiado, se quer saber a minha
opinião. Um pouco de influência inglesa nunca fez mal a ninguém.
Harry pegou num bloco de notas e perguntou se havia alguma hipótese de o
embaixador ter estado envolvido em algo de natureza duvidosa.
– Duvidosa, Hole?
Explicou-lhe, então, em termos concisos o que entendia por «duvidosa»,
que, em setenta por cento dos homicídios, a vítima estava envolvida em
alguma atividade ilegal.
– Ilegal? O Molnes? – Abanou energicamente a cabeça. – Ele não é… não
era desses.
– Sabe se poderia ter feito alguns inimigos?
– Não imagino semelhante coisa. Ele era muito querido. Porque pergunta?
Decerto não se tratou de um assassínio?
– De momento, sabemos ainda muito pouco, por isso mantemos todas as
vias de investigação em aberto.
Tonje Wiig explicou que na terça-feira em que morrera, Molnes fora
diretamente para uma reunião após o almoço. Não dissera onde, no entanto,
não era invulgar.
– Levava sempre o telemóvel com ele, para podermos contactá-lo caso
surgisse algum problema.
Harry pediu para ver o gabinete dele. Tonje Wiig teve de destrancar mais
duas portas, instaladas «por motivos de segurança». A divisão mantinha-se
tal e qual ele a deixara, conforme solicitado por Harry antes de abandonar
Oslo, e reinava uma confusão de papéis, processos e souvenirs que ainda não
tinham sido arrumados nas prateleiras ou pendurados nas paredes.
O casal real norueguês olhava-os majestaticamente por cima de pilhas de
papéis e pela janela com vista para um espaço verde que Wiig lhe dissera ser
o Queen Sirikit Park.
Encontrou uma agenda, mas não continha muitas anotações. Confirmou o
dia do homicídio. Man U, lia-se – Manchester United, a menos que estivesse
redondamente enganado. Talvez um jogo de futebol que ele quisesse ver,
pensou Harry, abrindo conscienciosamente algumas gavetas, porém, cedo se
apercebeu de que um homem a revistar o gabinete do embaixador sem saber
o que procurava era uma tarefa vã.
– Não vejo o telemóvel dele – disse Harry.
– Como referi, trazia-o sempre consigo.
– Não encontrámos qualquer telemóvel no local do crime. E não creio que
o assassino fosse um ladrão.
Tonje Wiig encolheu os ombros.
– Talvez algum dos seus colegas tailandeses o tenha «confiscado».
Harry preferiu não responder e perguntou se alguém lhe ligara para a
embaixada no dia em questão. Ela pareceu ter dúvidas, mas prometeu ir
apurar. Harry lançou um último olhar ao gabinete.
– Quem foi a última pessoa que veio visitar o Molnes à embaixada?
Ela fez um esforço para se lembrar.
– Deve ter sido o Sanphet, o motorista. Ele e o embaixador eram muito
bons amigos. O homem ficou muito abalado, por isso dei-lhe uns dias de
folga.
– E porque não foi ele a conduzir o embaixador no dia do homicídio, já que
é o motorista?
Ela tornou a encolher os ombros.
– Já me fiz a mesma pergunta. O embaixador não gostava de conduzir
sozinho em Banguecoque.
– Hum. E o que pode dizer-me sobre o motorista?
– O Sanphet? Ele já cá trabalha há imenso tempo. Nunca esteve na
Noruega, mas consegue dizer o nome de todas as cidades. E dos reis. Sim, e
adora Grieg. Não sei se tem um gira-discos em casa, mas penso que tem
todos os discos. É um velhote amoroso.
Tonje Wiig inclinou a cabeça e expôs as gengivas.
Harry perguntou-lhe se sabia onde podia encontrar Hilde Molnes.
– Está em casa. Muito transtornada, infelizmente. Sugeria-lhe que
esperasse um pouco antes de falar com ela.
– Muito obrigado pelo seu conselho, frøken21 Wiig, mas esperar é um luxo
que não podemos permitir-nos. Podia ter a gentileza de lhe telefonar a avisar
que vou a caminho?
– Compreendo. Peço desculpa.
– De onde é, frøken Wiig?
Tonje Wiig olhou-o, surpreendida. Depois soltou uma risada forçada.
– Isto é um interrogatório, Hole?
Harry não respondeu.
– Se tem mesmo de saber, cresci em Frederikstad.
– Bem me quis parecer – disse ele, piscando o olho.
A mulher enérgica na receção estava recostada na sua cadeira e segurava
um frasco de perfume perto do nariz. Quando Harry pigarreou discretamente,
ela sobressaltou-se e soltou uma gargalhada de embaraço com os olhos rasos
de água.
– Desculpe, o ar em Banguecoque é péssimo – justificou-se.
– Já reparei. Podia dar-me o número de telefone do motorista?
Ela abanou a cabeça e resfolegou.
– Ele não tem telefone.
– Muito bem. E ele tem um lugar para morar?
Pretendia passar por uma piada, contudo, apercebeu-se, pela expressão no
rosto dela, de que não fora bem-sucedido. Anotou a morada e lançou-lhe um
ténue sorriso já de saída.
21 Termo norueguês para menina. (N. da T.)
9

Sábado, 11 de janeiro

E stava um criado de pé à porta quando Harry subiu o acesso da residência


do embaixador. O homem conduziu Harry através de dois salões
enormes, elegantemente decorados com bambu e teca, até à porta para o
terraço, que dava acesso a um jardim nas traseiras da casa. As orquídeas
resplandeciam em tons amarelos e azuis e as borboletas passavam a esvoaçar
como papel colorido debaixo de enormes salgueiros que proporcionavam
sombra. Encontraram a mulher do embaixador, Hilde Molnes, junto a uma
piscina em forma de ampulheta. Encontrava-se sentada numa cadeira de
verga com um roupão cor-de-rosa, uma bebida a condizer em cima da mesa
diante de si, e óculos de sol que lhe cobriam metade do rosto.
– O senhor deve ser o detetive Hole – disse ela com pronúncia de
Sunnmøre22. – A Tonje avisou-me que vinha a caminho. Uma bebida,
detetive?
– Não, obrigado.
– Oh, mas devia. É importante beber com este calor, sabe? Pense nos seus
níveis de hidratação mesmo quando não sente sede. Aqui, uma pessoa pode
ficar desidratada antes de o corpo lhe dar sinal.
Tirou os óculos de sol e Harry viu, conforme adivinhara pelo cabelo preto
lustroso e pele morena, que ela tinha olhos castanhos. Eram vivos, mas os
bordos estavam vermelhos. «Da dor ou do aperitivo», pensou Harry. Ou de
ambos.
Estimou que rondasse os quarenta e cinco anos, mas estava bem
conservada. Uma beldade madura e ligeiramente apagada da classe
média/alta. Já as vira antes.
Sentou-se na outra cadeira de verga, que lhe envolveu o corpo como se
soubesse que ele vinha.
– Nesse caso, agradecia um copo com água, fru23 Molnes.
Ela informou o criado e mandou-o retirar-se.
– Já a avisaram de que pode ir ver o seu marido?
– Sim, obrigada – disse ela. Harry apercebeu-se de um tom mais baixo e
brusco. – Agora já me deixam vê-lo. Um homem com quem estive casada
vinte anos.
Os olhos castanhos tinham-se tornado pretos e Harry pensou que
provavelmente era verdade que muitos marinheiros de navios portugueses e
espanhóis naufragados tivessem ido dar à costa de Sunnmøre.
– Sou obrigado a fazer-lhe algumas perguntas – disse-lhe.
– Nesse caso, mais vale ser agora, enquanto o gin ainda faz efeito.
Ela traçou uma elegante perna bronzeada sobre o joelho.
Harry pegou num bloco de notas. Não por necessitar de as tomar, mas
porque assim escusava de ter de olhar para ela enquanto respondia. Por
norma, facilitava a conversa com o familiar mais próximo.
Ela contou-lhe que o marido saíra de casa de manhã e não avisara que ia
chegar tarde, no entanto, não era invulgar surgir algo de repente. Quando já
eram dez da noite e não tinha quaisquer notícias dele, tentara ligar-lhe.
Contudo, ninguém atendera nem do gabinete nem do telemóvel dele. Ainda
assim, não tinha ficado preocupada. Pouco depois da meia-noite, Tonje Wiig
ligara-lhe a informar que o marido fora encontrado morto num quarto de
motel.
Harry observou com atenção o rosto de Hilde Molnes. Falou com voz firme
e sem quaisquer gestos dramáticos.
Tonje Wiig dera a entender a Hilde Molnes que não sabiam ainda qual fora
a causa da morte. No dia seguinte, a embaixada informara-a de que ele tinha
sido assassinado. Ccontudo, e no que se referia à causa da morte, as
instruções de Oslo impunham silêncio absoluto a todos eles. E isso incluía
Hilde Molnes, apesar de ela não trabalhar na embaixada, porque todos os
cidadãos noruegueses podem ser obrigados a guardar silêncio, se houver
motivos de segurança do Estado que o exijam. Ela proferira estas últimas
palavras com profundo sarcasmo e erguera o copo num skål.
Harry ia anuindo e tomando notas. Perguntou-lhe se tinha a certeza de que
ele não deixara o telemóvel em casa, ao que ela respondera que tinha. Por
impulso, perguntou-lhe que tipo de telemóvel era o dele e ela respondeu que
não sabia ao certo, mas julgava que era finlandês.
Não foi capaz de o ajudar indicando-lhe o nome de alguém que pudesse ter
um motivo para desejar a morte do embaixador.
Ele ia batendo com o lápis no bloco.
– O seu marido gostava de crianças?
– Oh, sim, imenso! – Hilde Molnes falou sentidamente e, pela primeira vez,
Harry detetou uma tremura na voz dela. – Sabe, o Atle era o pai mais
carinhoso do mundo.
Foi obrigado a olhar de novo para o bloco. Algo nos olhos dela revelou que
se apercebera da natureza dúbia da pergunta. Tinha quase a certeza de que ela
nada sabia, contudo, ele também sabia que lhe competia o lamentável dever
de dar o passo seguinte, perguntando-lhe se estava a par de que o embaixador
tinha pornografia infantil na sua posse.
Harry passou uma mão pelo rosto. Sentiu-se como um cirurgião com um
bisturi na mão, incapaz de efetuar a primeira incisão. Não conseguia vencer a
sua sensibilidade quando tinha de lidar com assuntos desagradáveis, quando
pessoas inocentes eram obrigadas a passar pela situação de ver os seus entes
mais queridos no centro das atenções, de lhes serem atirados à cara
pormenores que elas dispensavam saber.
Hilde Molnes falou primeiro.
– Ele gostava tanto de crianças que chegámos a pensar adotar uma menina.
– Naquele momento tinha lágrimas nos olhos. – Uma pobrezita refugiada da
Birmânia. Sim, na embaixada eles têm imenso cuidado e dizem Myanmar
para não ofenderem ninguém, mas eu sou tão velha que digo Birmânia24.
Forçou uma risada seca por entre as lágrimas e recompôs-se. Harry desviou
o olhar. Um colibri vermelho pairava silenciosamente diante das orquídeas,
como um modelo de helicóptero em miniatura.
Está visto, decidiu ele. Ela não sabe de nada. Se tivesse qualquer relevância
para o caso, voltaria ao assunto mais tarde. E, se não tivesse, pelo menos
poupava-a a isso.
Harry perguntou-lhe há quanto tempo se conheciam e ela contou-lhe como
se tinham encontrado na altura em que Atle Molnes terminara a licenciatura
em Ciência Política, na sua casa de solteiro em Ørsta, por ocasião do Natal. A
família Molnes era muito rica, possuía duas fábricas de mobiliário e o jovem
herdeiro teria sido um bom partido para qualquer moça da região, por isso
concorrência não faltara.

– Eu era apenas a Hilde Melle da Quinta Melle, mas era a mais atraente –
disse ela com a mesma risada seca. Estampou-se-lhe no rosto uma expressão
sofrida e levou o copo aos lábios.
Harry não teve dificuldade em visualizar a viúva como uma beldade jovem
e pura.
Em especial, quando essa imagem acabara de aparecer junto à porta aberta
para o pátio.
– Runa, meu amor, chegaste! Este jovem é Harry Hole. É um agente da
Polícia norueguesa e vai ajudar-nos a descobrir o que aconteceu ao papá.
A filha mal se dignou a olhar para eles e encaminhou-se para o outro lado
da piscina, sem responder. Tinha a compleição e o cabelo escuros da mãe, e
Harry calculou que aquele corpo magro de membros compridos em fato de
banho rondasse os dezassete anos. Ele tinha a obrigação de saber a idade
dela; constava do relatório que lhe fora entregue antes de partir.
Teria sido uma beldade perfeita, tal como a mãe, não fosse um pormenor a
que o relatório não fizera alusão. Durante o tempo que ela levara a contornar
a piscina e a dar três passos lentos e elegantes ao longo da prancha de
mergulho, unindo as pernas e elevando-se no ar, Harry já sentia um nó no
estômago. Do ombro direito dela saía um fino coto em vez de um braço, o
qual conferia ao seu corpo uma forma curiosamente assimétrica, como um
avião com uma asa cortada, enquanto rodava num salto mortal com uma
pirueta. Tudo o que se ouviu foi um chape quando ela atravessou a superfície
verde e desapareceu de vista.
– A Runa é mergulhadora – referiu Hilde Molnes, desnecesariamente.
Ele continuava com o olhar fixo no ponto onde ela desaparecera quando
surgiu uma figura junto à escada da piscina do outro lado. Ela subiu os
degraus e Harry viu as costas dela a ondularem, o sol a reluzir nas gotículas
na sua pele, fazendo o cabelo preto molhado brilhar. O braço mirrado pendia
como uma asa de frango. A saída dela fora tão silenciosa quanto a entrada e o
mergulho; desapareceu pela porta do pátio sem articular uma palavra.
– Provavelmente, ela não sabia que o senhor estava aqui – disse Hilde
Molnes, como se para desculpá-la. – Sabe, ela não gosta que desconhecidos a
vejam sem a prótese.
– Compreendo. Como foi que ela recebeu a notícia?
– Vá-se lá saber. – Hilde Molnes olhava com ar pensativo na direção do
local por onde Runa desaparecera. – Está naquela idade em que não me conta
nada. Nem a ninguém, para dizer a verdade. – Ergueu o copo. – Penso que a
Runa é uma rapariga um pouco especial.
Harry levantou-se, agradeceu-lhe as informações e disse-lhe que ficasse a
aguardar notícias suas. Hilde Molnes chamou-lhe a atenção para o facto de
ele não ter bebido água; Harry fez uma vénia e pediu que a guardasse para a
próxima vez. Ficou com a sensação de que talvez aquelas não tivessem sido
as palavras mais apropriadas, mas, ainda assim, ela soltou uma risada e
esvaziou o seu copo enquanto ele se retirava.
Quando se encaminhava para o portão, um Porsche vermelho com teto de
abrir subiu o acesso. Viu de relance uma franja loura por cima de uns óculos
Ray-Ban e um fato cinzento Armani antes de o carro passar por ele e ir
estacionar na sombra junto à casa.
22 Região situada na parte setentrional da Noruega, na zona dos fiordes, cuja principal cidade é
Ålesund. (N. da T.)

23 Termo norueguês para senhora. (N. da T.)

24 A Birmânia é um país do sul da Ásia continental limitado ao norte e nordeste pela China, a leste
pelo Laos, a sudeste pela Tailândia, a sul pelo mar de Andamão e pelo canal do Coco, a oeste pelo
golfo de Bengala e a noroeste pelo Bangladesh e pela Índia. Em 2006, a capital do país foi transferida
de Rangum para Naypyidaw.
O país tornou-se independente do Reino Unido a 4 de janeiro de 1948, com o nome oficial de União da
Birmânia, designação que voltou a adotar após um período como «República Socialista da União da
Birmânia» (de 4 de janeiro de 1974 a 23 de setembro de 1988). A 18 de junho de 1989, o regime militar
birmanês anunciou que o nome oficial do país passaria a ser União de Myanmar. A nova designação foi
reconhecida pelas Nações Unidas e pela União Europeia, mas não pelos governos dos Estados Unidos e
do Reino Unido. De acordo com a Constituição de 2009, o nome do país mudou para «República da
União de Myanmar», medida implementada a 21 de outubro de 2010. (N. da T.)
10

Sábado, 11 de janeiro

Q uando Harry regressou à esquadra da Polícia, a inspetora Crumley não


estava, mas Nho fez-lhe sinal de que estava tudo bem e disse
«Afirmativo» quando Harry lhe pediu educadamente que contactasse a
empresa de telecomunicações e verificasse todas as chamadas recebidas e
efetuadas do telemóvel do embaixador no dia do homicídio.
Eram quase cinco horas quando, finalmente, Harry conseguiu falar com a
inspetora. Como era tarde, ela sugeriu que fossem dar um passeio de barco
pelos canais, «para despacharem as vistas de uma vez por todas».
No cais fluvial, sugeriram-lhes uma das lanchas compridas por seiscentos
bahts, mas o preço não tardou a baixar para trezentos depois de Crumley
pregar um raspanete ao homem em tailandês. Desceram o Chao Phraya antes
de virarem para um dos canais mais estreitos. Cabanas de madeira com o
aspeto de poderem desmoronar-se a qualquer momento agarravam-se a
estacas no rio e o cheiro a comida, esgotos e combustível era levado em
ondas com a deslocação. Harry tinha a sensação de que atravessavam as salas
de estar das pessoas que ali viviam. Só as filas de vasos com plantas os
impediam de conseguir ver diretamente lá para dentro, no entanto, ninguém
parecia particularmente incomodado; pelo contrário, acenavam e sorriam.
Três rapazes de calções, sentados num ancoradouro, a pingar por terem
saído da água castanha, chamaram-nos. Crumley brandiu amigavelmente um
punho e o barqueiro soltou uma gargalhada.
– O que foi que eles gritaram? – perguntou Harry.
Ela apontou para a cabeça.
– Mâe chii. Significa mãe, padre ou freira. Na Tailândia, as freiras rapam a
cabeça. Provavelmente, se eu usasse um hábito branco seria tratada aqui com
mais respeito – disse ela.
– Ah sim? Parece que você impõe bastante respeito. Os seus agentes…
– Isso é porque eu os respeito – interrompeu-o. – E porque sou boa no que
faço. – Pigarreou e cuspiu borda fora. – Mas talvez isso o surpreenda porque
sou mulher?
– Eu não disse isso.
– Os estrangeiros costumam ficar surpreendidos quando se apercebem de
que as mulheres conseguem singrar neste país. Aqui, não são tão machistas
quanto se possa pensar. Na verdade, o maior problema reside no facto de eu
ser estrangeira.
Uma ligeira brisa criou uma corrente refrescante no ar húmido; de uma
moita chegou a canção estridente dos gafanhotos e olharam para o mesmo
Sol vermelho-sangue da véspera ao anoitecer.
– O que a levou a mudar-se para aqui?
Harry tinha a sensação de que transpusera uma linha vermelha invisível,
mas resolveu ignorá-la.
– A minha mãe é tailandesa – contou após uma pausa. – O meu pai foi
destacado para Saigão durante a Guerra do Vietname e conheceu-a aqui em
Banguecoque, em 1967. – Soltou uma gargalhada e colocou uma almofada
nas costas. – A minha mãe jura que engravidou na primeira noite que
passaram juntos.
– Era você?
Ela anuiu.
– Após a capitulação, ele levou-nos para os Estados Unidos, para Fort
Lauderdale25, onde prestou serviço como tenente-coronel. Quando
regressámos aqui, a minha mãe descobriu que ele já era casado quando se
tinham conhecido. Ele escrevera para a sua terra e tratara do divórcio ao
descobrir que a mãe estava grávida. – Ela abanou a cabeça. – Se ele quisesse,
não lhe tinham faltado oportunidades de fugir e abandonar-nos em
Banguecoque. Talvez, lá no fundo, ele quisesse. Quem sabe.
– Não lhe perguntou?
– Não é o tipo de pergunta à qual queiramos forçosamente uma resposta
sincera, pois não? De qualquer modo, nunca teria obtido uma resposta sincera
da parte dele. Ele era mesmo assim.
– Era?
– Sim, já morreu. – Virou-se para ele. – Incomoda-o que lhe fale da minha
família?
Harry prendeu um cigarro com filtro entre os lábios.
– De modo algum.
– Fugir nunca chegou a ser uma opção para o meu pai. Ele tinha sentido de
responsabilidade. Quando eu tinha onze anos, deixaram-me ficar com um
gatinho de uns vizinhos em Fort Lauderdale. Ao fim de muitos protestos, o
meu pai disse que sim, na condição de ser eu a tratar dele. Passadas duas
semanas eu já tinha perdido o interesse e perguntei se podia devolvê-lo.
Então, o meu pai levou-me a mim e ao gatinho até à garagem. «Não podes
fugir às tuas responsabilidades», disse. «É assim que as civilizações se
desmoronam.» Depois, pegou no revólver de serviço e disparou uma bala na
cabeça do gatinho. Seguidamente, tive de ir buscar água e sabão e esfregar o
chão da garagem. Ele era assim mesmo. Foi por isso que… – Tirou os óculos
de sol, pegou numa ponta da camisa, limpou-os e semicerrou os olhos para o
Sol poente. – Foi por isso que ele nunca se conformou com a retirada dos EUA
do Vietname. A minha mãe e eu mudámo-nos para aqui quando eu tinha
dezoito anos.
Harry assentiu.
– Posso imaginar que não tenha sido nada fácil para a sua mãe ir para uma
base militar americana depois da guerra.
– A base até nem era má. Contudo, os outros americanos, aqueles que não
tinham lá estado mas que haviam perdido um filho ou uma namorada no
Vietname, esses odiavam-nos. Para eles, qualquer pessoa de olhos em bico
era um Charlie26.
Um homem de fato estava sentado a fumar um charuto perto de uma
barraca destruída pelo fogo.
– E depois ingressou na Escola Superior de Polícia, tornou-se detetive e
rapou o cabelo?
– Não por essa ordem. E não rapei o cabelo. Caiu-me quando eu tinha
dezassete anos. Uma forma rara de alopecia. Mas acaba por se tornar prático
neste clima.
Ela passou uma mão pela cabeça e esboçou um sorriso cansado. Não tinha
sobrancelhas, nem pestanas nem nada.
Ao lado deles surgiu outro barco. Vinha carregado até à borda de chapéus
de palha e uma velhota apontou para as cabeças deles e depois para os
chapéus. Crumley sorriu gentilmente e proferiu algumas palavras. Antes de
se afastar, a mulher inclinou-se na direção de Harry e deu-lhe uma flor
branca. Apontou para Crumley e soltou uma gargalhada.
– Como se diz obrigado em tailandês?
– Khop khun khráp – disse Crumley.
– Pois. Diga-lhe isso.
Passaram por um templo, um wat27, próximo do canal, e chegaram até eles
os murmúrios dos monges que se ouviam pela porta aberta. Havia pessoas
sentadas cá fora nas escadas, com as mãos juntas numa prece.
– Estão a orar por quê? – perguntou ele.
– Não sei. Pela paz. Pelo amor. Por uma vida melhor, aqui ou no doce
além. Pelas mesmas coisas que todas as pessoas querem, seja onde for.
– Não me parece que o Atle Molnes estivesse à espera de uma prostituta.
Penso que ele estava à espera de outra pessoa.
Continuaram a avançar e o murmúrio dos monges foi ficando para trás.
– De quem?
– Não faço ideia.
– O que o leva a pensar assim?
– Ele só tinha dinheiro para pagar o quarto, por isso, era capaz de apostar
que não tencionava contratar os serviços de uma prostituta. No entanto, ele
não tinha necessidade de estar no motel, a menos que fosse encontrar-se com
alguém, certo? De acordo com o Wang, a porta não estava trancada quando o
encontraram. Isso não é um bocado estranho? Quando fechamos a porta de
um hotel, ela tranca-se automaticamente. Ele deve ter carregado
conscientemente no botão no puxador para que ela permanecesse aberta. Não
havia qualquer motivo para o assassino a trancar. Presumo que ele ou ela não
se apercebesse de que ia deixar uma porta no trinco. Nesse caso, por que
motivo fez o Molnes semelhante coisa? A maioria das pessoas que frequenta
estes estabelecimentos prefere ter a porta trancada quando está a dormir, não
lhe parece?
Ela abanou a cabeça de um lado para o outro.
– Talvez ele receasse não ouvir a pessoa pela qual aguardava.
– Precisamente. E não havia motivo para deixar a porta aberta para a Tonya
Harding, porque o combinado com o rececionista era ele telefonar a avisar.
Certo?
No meio do seu entusiasmo, Harry deslocara-se para um lado e o barqueiro
gritou-lhe para se sentar a meio, senão o barco virava-se.
– Penso que ele queria manter em segredo o nome da pessoa com quem se
ia encontrar. Provavelmente, foi por isso que escolheram um motel fora da
cidade. Um local adequado para um encontro secreto, um local onde não
existe um livro de hóspedes oficial.
– Hum. Está a pensar nas fotografias?
– É impossível não pensar, não lhe parece?
– Pode comprar esse tipo de coisa em qualquer sítio de Banguecoque.
– Ele pode ter ido um pouco mais longe. Podemos estar a falar de
prostituição infantil.
– Talvez. No entanto, para além dessas fotografias, que inundam esta
cidade, não temos quaisquer pistas.

Tinham subido bastante o rio. A inspetora apontou para uma casa ao fundo
de um enorme jardim.
– Vive ali um tipo norueguês – disse ela.
– Como é que sabe?
– Houve uma grande polémica nos jornais quando ele construiu aquela
casa. Como pode ver, assemelha-se a um templo. Os budistas sentiram-se
ultrajados com o facto de um «pagão» ir viver ali, chamaram-lhe uma
blasfémia. Para complicar ainda mais a situação, veio a saber-se que ele a
construíra usando materiais de um templo birmanês em território fronteiriço
sob disputa. A situação gerou alguma tensão na altura; houve diversos
tiroteios, e as pessoas acabaram por mudar-se dali. O norueguês comprou o
templo por tuta e meia e, como os templos birmaneses no Norte são
construídos inteiramente com teca, ele desmantelou-o todo e mandou-o
transportar para Banguecoque.
– Curioso – disse Harry. – Como é que ele se chama?
– Ove Klipra. É um dos maiores empreiteiros de Banguecoque. Calculo que
vá ouvir falar dele, se ficar cá uns tempos.
Deu ordem ao barqueiro para virar.
– Gosta de pronto a comer?
Harry olhou para a sopa de aletria na tigela de plástico. Os bocados brancos
faziam lembrar versões pálidas e escanzeladas de esparguete e sentiu-se
nervoso por a sopa se mexer inesperadamente quando enrolava a aletria nos
pauzinhos.
Rangsan entrou para anunciar que Tonya Harding comparecera para
recolha de impressões digitais.
– Já pode falar com ela, se quiser. E mais uma coisa: O Supawadee disse
que já estão a analisar a cápsula encontrada no carro. O resultado deverá
chegar amanhã. Deram-nos prioridade máxima.
– Diga olá e conversa da treta da Polícia – respondeu Harry.
– Digo o quê?
– Diga obrigado.
Harry sorriu com ar embaraçado e Liz engasgou-se de tal maneira que até
lhe saltaram bagos de arroz da boca.
25 Cidade que se localiza no estado da Florida. (N. da T.)

26 Termo depreciativo para os vietcongues (os comunistas vietnamitas). (N. da T.)

27 O termo designa um templo ou mosteiro budista na Tailândia ou no Camboja. (N. da T.)


11

Sábado, 11 de janeiro

H arry já perdera a conta ao número de prostitutas que entrevistara numa


sala como aquela, mas não era pequeno. Parecia que os casos de
homicídio vinham ter com elas como as moscas com a bosta de vaca. Não
que estivessem necessariamente envolvidas, mas porque, para não variar,
tinham sempre uma história para contar.
Ouvira-as rir, insultar e chorar, fizera amizades, discutira com elas,
estabelecera acordos, quebrara promessas, tinham-lhe cuspido em cima e fora
agredido. Mesmo assim, havia algo nos destinos destas mulheres, nas
circunstâncias que as tinham moldado, que ele julgava reconhecer e
conseguir compreender. Só não conseguia perceber o irreprimível otimismo
delas: apesar de terem conhecido os recônditos mais profundos da alma
humana, parecia que nunca perdiam a fé na bondade que as rodeava.
Conhecia agentes da Polícia que não eram capazes disso.
Foi por esse motivo que bateu ao de leve no ombro de Dim e lhe deu um
cigarro antes de começarem a conversar. Não por pensar que fosse obter
alguma coisa, mas porque ela parecia estar a precisar.
Tinha um olhar duro e um queixo determinado que davam a entender que
não se assustava com facilidade, porém, naquele momento estava sentada a
uma mesa de plástico, agitando-se nervosamente e com o ar de quem podia
desfazer-se em lágrimas a qualquer instante.
– Pen yangai? – perguntou-lhe. Como está? Liz ensinara-lhe aquelas duas
palavras em tailandês antes de entrar na sala de entrevistas.
Nho traduziu a resposta. Dormira mal de noite e não queria trabalhar mais
no motel.
Harry sentou-se diante dela, apoiou os braços em cima da mesa e tentou
estabelecer contacto visual. Os ombros dela descaíram um bocadinho, no
entanto, continuava a evitá-lo, mantendo os braços cruzados.
Analisaram ponto por ponto o que acontecera, mas ela não tinha nada de
novo a acrescentar. Confirmou que a porta do quarto do motel estava fechada
mas não trancada. Não vira nenhum telemóvel. E, tanto quando chegara
como quando partira, não vira ninguém que não trabalhasse no motel.
Quando Harry mencionara o Mercedes perguntando-lhe se havia reparado
nas chapas do Corpo Diplomático, ela abanara a cabeça. Não tinha visto
nenhum carro. Não estavam a chegar a lado nenhum e, no fim, Harry acendeu
um cigarro e perguntou-lhe, quase fortuitamente, quem poderia, na opinião
dela, ter feito aquilo. Nho traduziu e Harry viu, pelo rosto dela, que acertara
no alvo.
– O que foi que ela disse?
– Ela diz que o punhal é do Khun Sa.
– O que significa isso?
– Nunca ouviu falar do Khun Sa? – Nho lançou-lhe um olhar desconfiado.
Harry meneou a cabeça.
– O Khun Sa é o mais poderoso traficante de heroína de que há memória.
Juntamente com os governos da Indochina e da CIA, tem controlado o tráfico
de ópio no Triângulo Dourado28 desde a década de cinquenta do século
passado. Foi assim que os americanos arranjaram dinheiro para as suas
operações na região. O tipo tinha o seu próprio exército lá em cima na selva.
Aos poucos, Harry foi-se recordando do que ouvira dizer sobre o Escobar
da Ásia29.
– O Khun Sa entregou-se às autoridades birmanesas há dois anos e foi
colocado em prisão domiciliária, se bem que numa das casas mais luxuosas.
Dizem que ele financia os novos hotéis na Birmânia e algumas pessoas
pensam que ainda é o chefe da máfia do ópio no Norte. Quando ela fala em
Khun Sa quer dizer que pensa que foi a máfia. Por isso está com medo.
Harry observou-a com atenção antes de fazer sinal com a cabeça a Nho.
– Deixe-a ir – disse.
Nho traduziu e Dim mostrou-se surpreendida. Virou-se e cruzou o seu
olhar com o de Harry antes de levar as palmas das mãos à altura do rosto e
fazer uma vénia. Harry apercebeu-se de que ela presumira que iam prendê-la
por prostituição.
Harry sorriu-lhe. Ela debruçou-se sobre a mesa.
– O senhor gosta de patinar no gelo?

– O Khun Sa? A CIA?


Ouviram-se ruídos na ligação telefónica com Oslo e o eco fez com que
Harry se ouvisse a falar ao mesmo tempo que Torhus do Ministério dos
Negócios Estrangeiros.
– Peço desculpa, Hole, mas apanhou uma insolação? Foi encontrado um
homem com um punhal nas costas, que pode ter sido trazido de qualquer
parte no Norte da Tailândia. Aconselhámo-lo a ir com cautela e está a dizer-
me que pensa infiltrar-se no crime organizado no Sudeste Asiático?
– Não. – Harry colocou os pés em cima da secretária. – Não estou a pensar
fazer nada disso, Torhus. Estou apenas a dizer que um perito de um museu
qualquer afirma que é um punhal raro e muito difícil de encontrar. A Polícia
daqui diz que podia ser um aviso de uma máfia do ópio para não nos
metermos, mas não me parece. Se a máfia nos quisesse mandar algum recado,
existem métodos mais diretos do que sacrificar um punhal antigo.
– Mas, afinal, o que é que você anda para aí a fazer?
– Estou a dizer que, neste momento, as pistas apontam nessa direção. Mas
o chefe da Polícia daqui passou-se por completo quando mencionei o ópio.
Parece que esta zona está no mais absoluto caos. Claro que o chefe não queria
resolver um problema criando desnecessariamente uma quantidade de outros.
Assim, pensei que, para começar, podia excluir algumas teorias possíveis.
Como a do embaixador estar envolvido no mundo do crime. Em pornografia
infantil, por exemplo.
Ouviu-se silêncio do outro lado da ligação.
– Não existem razões para crer… – começou Torhus, mas o resto foi
abafado pelas interferências.
– Pode repetir, por favor?
– Não existem razões para crer que o Molnes fosse pedófilo, se era a isso
que se referia.
– Hã? Não existem razões para crer? Neste momento, não está a falar com
a comunicação social, Torhus. Preciso de saber estas coisas para poder fazer
alguns progressos.
Seguiu-se outra pausa e, por instantes, Harry pensou que a ligação caíra.
Depois, a voz de Torhus voltou a ouvir-se e, apesar das péssimas condições
da ligação do outro lado do globo, Harry sentiu o frio.
– Informá-lo-ei de tudo o que precisa de saber, Hole. E tudo o que precisa
de saber, Hole, é que tem de chegar a conclusões. Estou-me nas tintas para
aquilo em que o embaixador estava envolvido – para mim, ele até pode ter
sido um contrabandista de heroína e um pederasta, desde que nem a imprensa
nem qualquer outra pessoa o venham sequer a sonhar. Se houver qualquer
outro escândalo, seja ele qual for, será considerado pessoalmente responsável
por ele. Fui claro, Hole, ou quer que lhe explique melhor?
Torhus nem sequer fizera uma pausa para respirar.
Harry aplicou um pontapé na secretária, fazendo os colegas e o telefone ao
seu lado saltarem.
– Mais claro não podia ser – respondeu Harry por entre os dentes cerrados.
– Mas agora ouça-me. – Harry fez uma pausa para inspirar fundo. «Uma
cerveja, só uma cerveja.» Levou um cigarro aos lábios e tentou afastar o
pensamento. – Se o Molnes estava envolvido em algo, dificilmente seria o
único norueguês. Duvido muito que ele tenha conseguido arranjar contactos
importantes no submundo tailandês no curto período de tempo em que aqui
esteve. Leu a notícia sobre o norueguês que foi apanhado com rapazes num
quarto de hotel em Pattaya? A Polícia daqui gosta desse tipo de coisa.
Conseguem que tenha bastante cobertura e os pedófilos são mais fáceis de
apanhar do que os gangues de heroína. Vamos supor que a Polícia tailandesa
já farejou uma presa fácil e quer ver este caso formalmente encerrado e eu de
volta ao meu país. Os jornais noruegueses vão enviar uma quantidade de
repórteres e, enquanto o diabo esfrega um olho, o nome do embaixador já foi
envolvido. Se conseguirmos apanhar estes homens agora, enquanto
mantemos um acordo com a Polícia tailandesa para ficar tudo em segredo,
talvez possamos evitar um escândalo dessa natureza.
Harry apercebeu-se de que o diretor começava a perceber a situação.
– O que pretende?
– Estou aqui há pouco mais de vinte e quatro horas e pressinto que este
caso não vai dar em nada, e tudo porque há aqui um estratagema qualquer.
Quero saber o que me está a esconder. O que sabe sobre o Molnes e aquilo
em que ele estava envolvido.
– Sabe tudo o que precisa de saber. Não há mais nada. É assim tão difícil
de entender? – Torhus gemeu. – Onde pretende efetivamente chegar, Hole?
Julguei que estivesse tão ansioso quanto nós por ver isto tudo deslindado
rapidamente.
– Sou um agente da Polícia e estou a tentar fazer o meu trabalho, homem.
Torhus soltou uma gargalhada.
– Muito comovente, Hole. Mas lembre-se de que eu sei umas coisas a seu
respeito, por isso não engulo esse seu discurso de polícia honesto.
Harry cobriu o bocal com a mão e ouviu os ecos regressarem como
disparos abafados. Murmurou algo.
– O quê?
– Eu disse que a ligação está péssima. Pense no assunto, Torhus, e telefone-
me quando tiver algo para me dizer.

Harry acordou em sobressalto, levantou-se rapidamente da cama e por


pouco não tinha tempo de chegar à casa de banho para vomitar. Sentou-se na
sanita; desta vez o alívio vinha das duas extremidades. O suor escorria-lhe
pelo corpo, embora ele sentisse frio no quarto.
Abandonar a bebida fora pior da última vez, disse de si para si. Há de
melhorar. Consideravelmente, esperava.
Tinha dado a injeção de vitamina B na nádega antes de ir para a cama, e
doera como o caraças. Recordou-se de Vera, uma prostituta de Oslo, que
consumira heroína durante quinze anos. Uma vez, dissera-lhe que ainda
desmaiava quando espetava a agulha.
Viu algo mover-se no escuro, no lavatório, duas antenas a agitarem-se para
cá e para lá. Uma barata. Era do tamanho de um polegar e tinha uma faixa cor
de laranja no dorso. Nunca antes vira uma assim, porém, talvez não fosse tão
peculiar – tinha lido que existiam mais de três mil tipos diferentes de baratas.
E tinha lido também que se escondiam quando ouviam as vibrações de
alguém a aproximar-se e que, por cada barata que se via, existiam, pelo
menos, dez escondidas. Isso queria dizer que estavam em todo o lado. Quanto
pesa uma barata? Dez gramas? Se existisse mais de uma centena delas nas
fendas e por detrás das mesas, isso significava que havia pelo menos um
quilo de baratas no quarto. Sentiu um calafrio. De pouco lhe valia saber que
elas estavam mais assustadas do que ele. Às vezes, tinha a sensação de que o
álcool lhe fizera mais bem do que mal. Fechou os olhos e procurou não
pensar.
28 Trata-se de uma das principais áreas produtoras de ópio da Ásia. É uma região com cerca de 950
000 km2 que se sobrepõe às montanhas de quatro países do Sudeste Asiático: Myanmar, Vietname,
Laos e Tailândia. (N. da T.)

29 Pablo Escobar (1949-1993) conquistou fama mundial como barão da droga colombiano, tornando-se
um dos homens mais ricos do mundo graças ao tráfico de cocaína. Na década de 1980, ficou conhecido
internacionalmente e sua rede de distribuição de droga ganhou notoriedade. O Cartel de Medellín terá
sido responsável pela maior parte das drogas que entravam no México, em Porto Rico e na República
Dominicana, com cocaína comprada sobretudo ao Peru e à Bolívia, já que a colombiana era de
qualidade inferior. (N. da T.)
12

Domingo, 12 de janeiro

A cabaram por estacionar e começar a procurar a morada a pé. Nho tentara


explicar-lhe o engenhoso sistema de moradas em Banguecoque, com
ruas principais e ruas transversais numeradas conhecidas por sois. Só havia
um problema: as habitações não seguiam a ordem numérica pois as casas
novas recebiam o número seguinte disponível, independentemente da sua
localização na rua.
Percorreram vielas, onde os passeios serviam de prolongamento das salas
de estar e as pessoas se sentavam a ler jornais, a usar máquinas de costura de
pedal, a cozinhar ou a dormir uma sesta. Algumas raparigas com uniformes
escolares gritaram-lhes e soltaram gargalhadas e Nho apontou para Harry
respondendo qualquer coisa. As raparigas riram-se a bandeiras despregadas,
cobrindo a boca com as mãos.
Nho conversou com uma mulher sentada a uma máquina de costura e ela
apontou para uma porta. Bateram e, passado algum tempo, um homem que
vestia calções de caqui e uma camisa aberta abriu-a. Harry calculou que
rondasse os sessenta anos, mas só os olhos e as rugas revelavam a sua idade.
O cabelo preto liso penteado para trás apresentava fios grisalhos e o corpo
magro e musculado podia pertencer a alguém com trinta anos.
Nho articulou algumas palavras e o homem assentiu enquanto olhava para
Harry. Depois, o homem pediu desculpa e voltou a desaparecer. Passado um
minuto regressou, vestindo, desta vez, uma camisa branca engomada, de
manga curta, e calças.
Trouxera consigo duas cadeiras, que colocou no passeio. Num inglês
extraordinariamente correto, ofereceu uma a Harry enquanto se sentava na
outra. Nho permaneceu de pé ao lado deles e com um ténue abanar da cabeça
rejeitou o sinal de Harry para se sentar no degrau.
– Chamo-me Harry Hole, senhor Sanphet. Pertenço à Polícia norueguesa.
Gostaria de lhe fazer algumas perguntas sobre o Molnes.
– Refere-se ao senhor embaixador Molnes?
Harry olhou para o homem. Estava sentado direito que nem um fuso, com
as mãos escuras e sardentas no colo.
– Claro, o senhor embaixador Molnes. Segundo julgo saber, foi motorista
da Embaixada da Noruega durante trinta anos.
Sanphet fechou os olhos em jeito de confirmação.
– E respeitava o embaixador?
– O embaixador Molnes era um grande homem. Um grande homem com
um grande coração. E cérebro.
Bateu com um dedo na testa e lançou um olhar admonitório a Harry.
Harry sentiu um arrepio quando uma gota de suor lhe desceu pela espinha
entrando-lhe nas calças. Olhou à sua volta em busca de alguma sombra para
onde pudessem deslocar as cadeiras, mas o Sol estava alto e as casas naquela
rua eram baixas.
– Viemos falar consigo porque conhecia os hábitos do embaixador, sabia
aonde ele ia e com quem se encontrava. E porque, evidentemente, se dava
bem com ele a nível pessoal. O que aconteceu no dia em que ele morreu?
Sentado placidamente, Sanphet contou-lhes que o embaixador saíra sem
dizer aonde ia, apenas que queria ser ele a conduzir, o que era invulgar
durante o horário de trabalho, uma vez que o motorista não acumulava
quaisquer outras funções. Esperara até às cinco na embaixada e depois
regressara a casa.
– Vive sozinho?
– A minha mulher morreu num acidente de viação há catorze anos.
Harry calculou que ele também fosse capaz de lhe dizer o número exato de
meses e dias. Não tinham filhos.
– Aonde conduzia o embaixador?
– A outras embaixadas. A reuniões. A casa de noruegueses.
– Que noruegueses?
– De todo o tipo. Pessoas da Statoil, da Hydro, da Jotun e da Statskonsult.
Pronunciara na perfeição os nomes noruegueses.
– Conhece alguns destes? – perguntou Harry, entregando-lhe uma lista. –
São as pessoas com quem o embaixador entrou em contacto pelo telemóvel
no dia em que morreu. Foi-nos enviada pela respetiva operadora.
Sanphet pegou num par de óculos, mesmo assim, teve de segurar o papel à
distância de um braço enquanto lia em voz alta: 11h10. Serviço de Apostas
de Banguecoque.
Espreitou por cima dos óculos.
– O embaixador gostava de apostar nos cavalos. – E acrescentou com um
sorriso: – Às vezes ganhava.
Nho agitou os pés.
– O que é a Worachak Road?
– Um telefonema de uma cabina pública. Por favor, continue.
– 11h55. A Embaixada da Noruega.
– O mais curioso é que ligámos para a embaixada esta manhã e ninguém se
recorda de falar com ele ao telemóvel naquele dia, nem sequer a rececionista.
Sanphet encolheu os ombros e Harry fez-lhe sinal para que prosseguisse.
– 12h50. Ove Klipra. Ouviu falar dele, presumo?
– Talvez.
– É um dos homens mais ricos de Banguecoque. Li no jornal que acabou de
vender uma central hidroelétrica no Laos.
– Ele vive num templo – murmurou Sanphet. – Ele e o embaixador já se
conheciam antes. Eram da mesma região da Noruega. Já ouviu falar de
Ålesund? O embaixador convidou… – Ergueu os braços, resignado. Não era
um assunto sobre o qual valesse a pena falar naquele momento. Voltou à
lista.
– 13h15. Jens Brekke.
– Quem é ele?
– Corretor de câmbio. Veio do Den norske Bank para o Barclays Thailand
há uns anos.
– Muito bem.
– 17h55. Mangkon Road?
– Outro telefonema de uma cabina pública.
Não havia mais nomes na lista. Harry amaldiçoou-se. Não sabia bem do
que estava à espera, mas o motorista não lhe contara nada que não soubesse
já pela conversa telefónica que tivera com Tonje Wiig uma hora antes.
– Sofre de asma, senhor Sanphet?
– Asma? Não. Porquê?
– Encontrámos uma cápsula no carro. Pedimos ao laboratório que a
analisasse. Não fique alarmado, senhor Sanphet. É mera rotina. Apurou-se
que é para a asma. Mas ninguém na família Molnes sofre de asma. Sabe a
quem poderia pertencer?
Sanphet abanou a cabeça.
Harry aproximou ainda mais a sua cadeira da do motorista. Não estava
acostumado a fazer averiguações na rua, e tinha a sensação de que toda a
gente sentada na estreita viela estava à escuta. Baixou a voz.
– Com o devido respeito, está a mentir. Vi com os meus próprios olhos a
rececionista da embaixada tomar medicação para a asma, senhor Sanphet. O
senhor passa metade do dia sentado na embaixada, trabalha lá há trinta anos e
calculo que ninguém mude um rolo de papel higiénico sem que disso tenha
conhecimento. Está a afirmar que não sabia que ela tinha asma?
Sanphet fitou-o com olhos frios e calmos.
– Estou a dizer que não sei quem possa ter deixado o medicamento para a
asma no carro, senhor. Há imensas pessoas em Banguecoque que sofrem de
asma, e algumas delas devem ter estado no carro do embaixador. Tanto
quanto sei, a menina Ao não foi uma delas.
Harry observou-o. Como era possível ele estar ali sentado, sem uma gota
de suor na testa, enquanto o Sol brilhava no céu como um címbalo de latão?
Harry olhou para o seu bloco de notas como se a pergunta seguinte lá
estivesse escrita.
– Ele alguma vez transportou crianças no carro?
– Desculpe?
– Chegou alguma vez a ir buscar crianças, levá-las a escolas, infantários ou
algo semelhante? Compreende?
Sanphet nem pestanejou, mas as suas costas empertigaram-se.
– Compreendo. O embaixador não era desses – disse ele.
– Como é que sabe?
Um homem levantou a cabeça do jornal, e Harry apercebeu-se de que tinha
subido o tom de voz. Sanphet baixou a cabeça.
Harry sentiu-se estúpido, desprezível e suado. Por essa ordem.
– Peço desculpa – disse-lhe. – Não era minha intenção ofendê-lo.
O velho motorista olhou para lá dele, fingindo não ter ouvido.
– Temos de ir andando. – Harry levantou-se. – Constou-me que gosta de
Grieg, e resolvi trazer-lhe isto. – Mostrou uma cassete. – É a Sinfonia em Dó
Menor de Grieg. Foi tocada pela primeira vez em 1981, por isso calculo que
não a tenha. Todos aqueles que adoram Grieg deviam tê-la. Por favor, aceite-
a.
Sanphet levantou-se, aceitou-a com surpresa e ficou a olhar para ela.
– Adeus – disse Harry fazendo uma desajeitada mas bem-intencionada
saudação wai30 e dando a entender a Nho que se iam embora.
– Espere – disse o motorista. Continuava de olhos fixos na cassete. – O
embaixador era um bom homem. Mas não era um homem feliz. Tinha um
ponto fraco. Não quero manchar a sua memória, mas ele perdia mais do que
ganhava nos cavalos.
– Acontece a muito boa gente – respondeu Harry.
– Mas não cinco milhões de bahts.
Harry tentou fazer contas de cabeça. Nho veio em seu auxílio.
– Cem mil dólares.
Harry assobiou.
– Ora, ora, se ele tinha dinheiro para isso, então…
– Ele não tinha dinheiro para isso – disse Sanphet. – Pediu dinheiro
emprestado a uns agiotas em Banguecoque. Eles telefonaram-lhe várias vezes
durante as últimas semanas. – Olhou para Harry. Era difícil interpretar a sua
expressão. – Pessoalmente, acredito que um homem tem de saldar as suas
dívidas de jogo, mas se alguém o matou por dinheiro, penso que devia ser
castigado.
– Portanto, o embaixador não era um homem feliz?
– Não tinha uma vida fácil.
Harry lembrou-se de algo.
– Man U diz-lhe alguma coisa?
O semblante do motorista ensombrou-se.
– Estava na agenda do embaixador para o dia do homicídio. Consultei o
guia de televisão e nenhum canal transmitia um jogo do Manchester United
naquele dia.
– Oh, o Manchester United! – Sanphet sorriu. – É o Klipra. O embaixador
chamava-lhe senhor Man U. Ele vai a Inglaterra ver os jogos e tem comprado
imensas ações do clube. Uma pessoa muito peculiar.
– Veremos. Mais tarde hei de ter uma conversa com ele.
– Se conseguir contactá-lo.
– Como assim?
– Não se contacta o Klipra. Ele é que nos contacta.
«Não nos faltava mais nada», pensou Harry. «Um figurão.»

– As dívidas de jogo alteram totalmente a situação – disse Nho, quando já


estavam no carro.
– Talvez – respondeu Harry. – Cem mil dólares é uma pipa de massa, mas
será suficiente?
– Assassinam-se pessoas em Banguecoque por muito menos – referiu Nho.
– Por muito menos. Acredite em mim.
– Não estou a pensar nos agiotas, mas no Atle Molnes. O tipo vem de uma
família abastada. Devia ter condições para pagar, pelo menos se fosse uma
questão de vida ou de morte. Há aqui qualquer coisa que não bate certo. Que
opinião tem do senhor Sanphet?
– Ele estava a mentir quando falou da menina Ao.
– Oh? O que o leva a afirmar tal coisa?
Nho não respondeu, limitou-se a sorrir furtivamente e bater na têmpora.
– O que está a tentar dizer-me, Nho? Que percebe quando as pessoas estão
a mentir?
– Aprendi com a minha mãe. Durante a Guerra do Vietname, ela ganhava a
vida como jogadora de póquer no Soi Cowboy.
– Que absurdo. Conheço agentes da Polícia que levaram a vida inteira a
interrogar pessoas e dizem precisamente o mesmo: não se consegue aprender
a detetar um bom mentiroso.
– É uma questão de estar atento a tudo. Consegue ver-se nas pequenas
coisas. Por exemplo, a forma como não conseguiu abrir a boca
adequadamente quando disse que todos os que adoram Grieg deviam ter um
exemplar da cassete.
Harry sentiu o calor subir-lhe às faces.
– Por acaso, a cassete estava no meu walkman. Um polícia australiano
falou-me da sinfonia de Grieg em Dó menor. Comprei a cassete em
homenagem a ele.
– Mas resultou, não resultou?
Nho desviou-se bruscamente da rota de um camião que vinha direito a
eles.
– Raios! – Harry nem sequer tivera tempo de sentir medo. – Ele vinha na
faixa contrária!
Nho encolheu os ombros.
– Ele era maior do que eu.
Harry olhou para o relógio de pulso.
– Temos de passar pela esquadra, e eu tenho de ir a um funeral.
Pensou, horrorizado, no casaco quente pendurado no armário à porta do
«gabinete».
– Espero que a igreja tenha ar condicionado. A propósito, porque é que
tivemos de ficar sentados na rua debaixo do sol tórrido? Porque é que o
velhote não nos convidou para a sombra?
– Orgulho – respondeu Nho.
– Orgulho?
– Ele vive numa pequena divisão que tem pouquíssimo que ver com o carro
que conduz e o local onde trabalha. Não quis convidar-nos a entrar porque
seria desagradável, não só para ele, mas também para nós.
– Que homem estranho.
– Isto é a Tailândia – disse Nho. – Eu também não o convidava para minha
casa. Servia-lhe o chá nos degraus.
Virou bruscamente à direita e dois tuk-tuks de três rodas desviaram-se,
horrorizados. Instintivamente, Harry protegeu-se com as mãos.
– Sou…
– …maior do que eles. Obrigado, Nho, acho que já percebi o princípio.
30 É uma saudação tradicionalmente usada pelo povo tailandês. Significa «bem-vindo». A palavra é
seguida de um sinal comum na cultura oriental, que são as mãos postas na frente do rosto em
reverência, a qual pode significar paz ou submissão, consoante a situação. (N. da T.)
13

Domingo, 12 de janeiro

–A esta hora, ele já está reduzido a cinzas – disse o vizinho de Harry,


benzendo-se. Era um homem de aspeto possante com um bronzeado
carregado e olhos azul-claros, fazendo lembrar a Harry madeira manchada e
ganga desbotada. Tinha a camisa de seda aberta no pescoço, do qual pendia
uma grossa corrente de ouro que reluzia ao sol. O nariz estava coberto por
uma fina rede de vasos sanguíneos, e o crânio castanho brilhava como uma
bola de bilhar sob o cabelo já ralo. Roald Bork tinha olhos vivos que faziam
com que ao perto aparentasse menos do que os seus setenta anos.
Falava. Em voz alta e, aparentemente, sem o menor constrangimento,
apesar de estarem num funeral. O seu dialeto de Nordland31 ressoava sob o
teto abobadado, mas ninguém lhe lançava olhares reprovadores.
Quando se encontravam no exterior do crematório, Harry apresentou-se.
– Com que então tive um polícia mesmo ao meu lado o tempo todo e não
me apercebi disso. Ainda bem que não me descaí. Podia ter-me saído caro.
Soltou uma gargalhada reverberante e estendeu uma mão seca e coriácea de
velho.
– Bork, com pensão mínima.
A ironia não transpareceu nos seus olhos.
– A Tonje Wiig disse que o senhor era uma espécie de líder espiritual da
comunidade norueguesa local.
– Nesse caso, vou ter de desapontá-lo. Sou um velho decrépito e não um
pastor. Além disso, mudei-me para a periferia, tanto no sentido literal como
metafórico.
– Ah, sim?
– Para o antro de iniquidade, a Sodoma da Tailândia.
– Pattaya?
– Correto. Vivem ali mais alguns noruegueses que procuro manter na
linha.
– Deixe-me ir direto ao assunto, Bork. Temos estado a tentar entrar em
contacto com o Ove Klipra, mas só conseguimos falar com um porteiro que
afirma não saber onde ele está nem quando vai regressar.
Bork soltou uma risada.
– Isso parece mesmo coisa do Klipra, ah pois parece.
– Informaram-me de que prefere ser ele próprio a estabelecer contacto, só
que nós estamos no meio de uma investigação de homicídio e não tenho
muito tempo. Presumo que seja amigo do Klipra, uma espécie de elo de
ligação ao mundo exterior?
Bork inclinou a cabeça.
– Não sou nenhum ajudante, se é a isso que se refere. Mas você tem razão,
uma vez que eu medeio contactos. O Klipra não gosta de falar com pessoas
que não conhece.
– Não foi o senhor que promoveu o contacto entre o Klipra e o
embaixador?
– Inicialmente, sim. Mas o Klipra gostou do embaixador, por isso
passavam bastante tempo juntos. O embaixador também era de Sunnmøre,
apesar do campo e não um verdadeiro rapaz de Ålesund32 como o Klipra.
– Não lhe parece curioso ele não estar aqui hoje?
– O Klipra anda constantemente a viajar. Há uns dias que não atende o
telemóvel, por isso, calculo que ande a tratar de negócios no Vietname ou no
Laos e nem sequer saiba que o embaixador morreu. Este caso não chegou
propriamente às parangonas.
– Por norma não chega quando um homem morre de ataque cardíaco –
disse Harry.
– Então, é por isso que a Polícia norueguesa está aqui – perguntou Bork,
limpando o suor do pescoço com um enorme lenço branco.
– Procedimento de rotina quando um embaixador morre no estrangeiro –
respondeu Harry, apontando o número de telefone da esquadra da Polícia no
verso de um cartão de visita.
– Deixo-lhe aqui o número para onde pode contactar-me, se o Klipra
aparecer.
Bork olhou para o cartão, pareceu ir dizer algo, porém mudou de ideias,
guardou-o no bolso do lenço e anuiu.
– Assim já tenho o seu número – disse, apertando-lhe a mão e
encaminhando-se para um Land Rover antigo. Por detrás dele, meio em cima
do passeio, detetou um lampejo de uma pintura vermelha recentemente
lavada. Era o mesmo Porsche que Harry vira estacionado diante da casa dos
Molnes.
Tonje Wiig encaminhou-se para ele.
– O Bork conseguiu ser-lhe útil?
– Desta vez não.
– O que disse ele sobre o Klipra? Sabia onde estava?
– Não sabia de nada.
Ela não fez menção de se afastar, e Harry ficou com a vaga sensação de
que estaria à espera de mais. Num momento de paranoia, viu o olhar austero
do diplomata no Aeroporto de Fornebru: «Nada de escândalos, está bem?»
Teria ordens para ficar de olho em Harry e informar o diretor Torhus se,
eventualmente, ele fosse longe demais? Olhou para ela e afastou
imediatamente a ideia.
– Quem é o dono do Porsche vermelho? – perguntou.
– Do Porsche?
– Ali. Julgava que as meninas de Østfold33 conheciam todas as marcas de
carros antes de completarem dezasseis anos.
Tonje Wiig ignorou o comentário e colocou os óculos de sol.
– É o carro do Jens.
– Do Jens Brekke?
– Sim. Ele está além.
Harry virou-se. Hilde Molnes encontrava-se nas escadas, envergando
roupas de seda preta impressionantes, junto a Sanphet, que estava muito
compenetrado e vestia um fato escuro. Atrás deles via-se um homem mais
jovem, de cabelo louro. Harry reparara nele na igreja. Usava um colete por
baixo do fato, apesar de o termómetro assinalar trinta e cinco graus. Os seus
olhos eram ocultados por um par de óculos de sol de aspeto caro, e falava em
voz baixa com uma mulher, também vestida de preto. Harry olhou-a
fixamente e, como se ela tivesse sentido os seus olhos cravados em si, virou-
se naquela direção. Não reconhecera de imediato Runa Molnes e, naquele
momento, percebia porquê. A singular assimetria desaparecera. Ela era mais
alta do que as outras pessoas nas escadas. O olhar dela foi breve e não deixou
transparecer quaisquer sentimentos, para além do tédio.
Harry pediu licença à sua interlocutora, subiu as escadas e foi apresentar
condolências a Hilde. A mão dela ficou inerte e passiva na sua. Fitou-o
através de olhos vítreos, e o forte cheiro a perfume camuflou o do gin.
Depois ele virou-se para Runa. Esta escudou os olhos do sol e semicerrou-
os como se apenas naquele momento se tivesse apercebido da presença dele.
– Olá – disse ela. – Finalmente alguém que é mais alto do que eu nesta terra
de pigmeus. Não é o detetive que esteve em nossa casa?
Notou-se uma agressividade subjacente na voz dela, uma autoconfiança
forçada de adolescente. O aperto de mão dela foi firme e forte.
Automaticamente, os olhos de Harry procuraram a outra mão. Via-se uma
prótese de cera debaixo da manga.
– Detetive?
Quem falou foi Jens Brekke.
Tirara os óculos de sol e semicerrava os olhos. Uma franja loura rebelde
caía-lhe defronte das íris azuis quase transparentes. O rosto redondo
conservava ainda a forma rechonchuda de um menino, no entanto, as rugas
em torno dos olhos sugeriam que pelo menos já passara os trinta. O fato
Armani fora trocado por um clássico Del Giorgio e os sapatos Bally, cosidos
à mão, faziam lembrar espelhos negros, no entanto, havia algo no seu aspeto
que despertou em Harry reminiscências de um rapaz malcriado de doze anos
vestido como um adulto. Apresentou-se.
– Estou aqui em representação da Polícia norueguesa para proceder a
investigações de rotina.
– Estou a ver. Isso é normal?
– Falou com o embaixador no dia em que ele morreu, não falou?
Brekke olhou para Harry, surpreendido.
– Exatamente. Como chegou ao seu conhecimento?
– Encontrámos o telemóvel dele. O seu número foi um dos últimos cinco
que ele marcou. Ele ligou-lhe à uma e um quarto. – Harry observou Brekke
com atenção, contudo, o rosto dele não patenteou incerteza nem confusão. –
Podemos conversar?
– Apareça – disse-lhe Brekke, exibindo um cartão de visita entre os dedos
indicador e médio.
– Em casa ou no emprego?
– Eu durmo em casa.
Foi impossível ver o sorrisinho bailar-lhe aos cantos da boca, porém, Harry
sabia que estava lá. Como se falar com um detetive fosse simplesmente algo
excitante, algo fora do vulgar.
– Dá-me licença?
Brekke segredou algumas palavras ao ouvido de Runa, fez um aceno com a
cabeça a Hilde e afastou-se a correr na direção do seu Porsche. O local
começava a ficar vazio; Sanphet acompanhou Hilde Molnes ao carro da
embaixada e Harry ficou de pé ao lado de Runa.
– Há uma homenagem na embaixada – disse ele.
– Eu sei. A mãe não tem vontade de ir.
– Claro. Provavelmente têm cá familiares.
– Não – respondeu ela.
Harry viu Sanphet fechar a porta do lado de Hilde e dar a volta ao carro.
– Bem, pode vir de táxi comigo, se quiser.
Harry sentiu os lobos das orelhas ficarem vermelhos quando se apercebeu
do que aquela afirmação podia querer insinuar. Fora sua intenção dizer «se
quiser ir».
Ela ergueu o olhar para ele.
– Não quero.
Começou a encaminhar-se para o carro da embaixada.

O moral estava em baixo e ninguém falou muito. Tonje Wiig convidara


Harry para a homenagem, e ficaram a um canto agitando os copos nas mãos.
Tonje já ia no segundo Martini. Harry pedira água, mas tinham-lhe dado um
sumo de laranja doce e viscoso.
– Portanto, tem família na sua terra, Harry?
– Alguma – respondeu Harry, sem perceber o que significava aquela súbita
mudança de tema.
– Também eu – disse ela. – Pais, irmão e irmã. Duas tias e dois tios, avós já
falecidos. É tudo. E você?
– Algo semelhante.
A menina Ao passou por eles, circulando com uma bandeja com bebidas.
Usava um simples vestido tradicional tailandês com uma longa racha de lado.
Seguiu-a com o olhar. Não era difícil imaginar que o embaixador pudesse ter
caído em tentação.
No outro extremo da sala, diante de um enorme mapa-mundo, um homem
baloiçava-se nos calcanhares, de pernas afastadas. Tinha as costas direitas, os
ombros largos e o seu cabelo cinzento-prateado estava cortado como o de
Harry. Tinha os olhos encovados, o queixo espetado e as mãos cruzadas atrás
das costas. Algo lhe dizia que noutros tempos fora militar.
– Quem é aquele?
– O Ivar Løken. O embaixador travava-o simplesmente por LM.
– O Løken? Curioso. Não consta da lista dos empregados que recebi em
Oslo. O que é que ele faz?
– Boa pergunta. – Ela soltou uma risada e sorveu um gole da bebida. –
Desculpe, Harry… não se importa que o trate por Harry...? Devo estar um
pouco toldada. Tenho tido imenso trabalho e quase não dormi nos últimos
dias. Ele apareceu aqui no ano passado, logo a seguir ao Molnes. Para falar
sem rodeios, ele pertence àquela parte do Ministério que não passa da cepa
torta.
– O que quer dizer com isso?
– A carreira dele chegou a um beco sem saída. Veio do Ministério da
Defesa, mas a dada altura, começaram a surgir muitos «mas» em torno do seu
nome.
– Mas?
– Nunca ouviu a maneira como os funcionários do Ministério falam uns
dos outros? «Ele é um bom diplomata, mas bebe, mas gosta demasiado de
mulheres», etc., etc. O que vem a seguir aos «mas» é muito mais importante
do que aquilo que os antecede; é determinante para a progressão na carreira.
É por isso que existem tantas mediocridades moralistas no topo.
– Afinal, qual é o «mas» dele e porque está aqui?
– Para ser sincera, não sei. Tem reuniões e elabora um ou outro relatório
para Oslo, mas raramente o vemos. Penso que gosta que o deixem em paz. De
vez em quando, viaja até ao Vietname, ao Laos ou ao Camboja com uma
tenda, comprimidos para a malária e uma mochila cheia de equipamento
fotográfico. Conhece o género, não conhece?
– Talvez. Que tipo de relatórios escreve ele?
– Não faço ideia. O embaixador é que trata disso tudo.
– Não sabe? Vocês não são tantos assim na embaixada. Serão para os
Serviços Secretos?
– Com que finalidade?
– Bem, Banguecoque é o cerne de toda a Ásia.
Olhou para ele e sorriu pesarosamente.
– Gostava que fizéssemos esse género de coisas interessantes. No entanto,
penso que o Ministério vai deixá-lo ficar aqui em virtude do longo e
basicamente leal serviço ao rei e à nação. Além disso, estou presa a um
juramento de confidencialidade.
Voltou a soltar uma risada e apoiou uma mão no braço de Harry.
– Podemos mudar de assunto?
Harry falou de outra coisa qualquer e foram buscar mais uma bebida. O
corpo humano é constituído por sessenta por cento de água e ele tinha a
sensação de que durante o dia, a maior parte da sua se evaporava em direção
ao céu cinzento-azulado.
Encontrou a menina Ao mais ao fundo da sala, junto a Sanphet. Este baixou
comedidamente a cabeça na direção dele.
– Há água? – perguntou Harry.
A menina Ao entregou-lhe um copo.
– O que significa LM?
Sanphet arqueou uma sobrancelha.
– Está a referir-se ao senhor Løken?
– Estou.
– Porque não lhe pergunta pessoalmente?
– Porque pode ser algo que lhe chamem nas costas.
Sanphet sorriu rasgadamente.
– O «L» é de «levar» e o M é de «morfina». É uma alcunha que lhe deram
em tempos, quando trabalhou para as Nações Unidas no Vietname, no final
da guerra.
– No Vietname?
Sanphet anuiu discretamente e, entretanto, a menina Ao já se retirara.
– O Løken estava numa unidade vietnamita, numa zona de aterragem, à
espera de ser recolhido por um helicóptero, quando foram atacados por uma
patrulha de vietcongues. Houve um banho de sangue e o Løken foi um dos
atingidos. Ficou com uma bala cravada num músculo do pescoço. Os
americanos tinham retirado os seus soldados do Vietname, mas ainda havia
por lá enfermeiros. Percorreram o capim-elefante34, de soldado em soldado,
prestando os primeiros socorros. Escreviam com giz nos capacetes dos
homens feridos, uma espécie de ficha médica improvisada. Se escrevessem
M, significava que a pessoa estava morta, para que aqueles que viessem a
seguir não perdessem tempo a examiná-la. L significava que o doente era
para levar e se acrescentassem M queria dizer que lhe tinham ministrado
morfina. Faziam isso para evitar que alguém levasse várias injeções e
morresse de overdose.
Sanphet virou a cabeça na direção de Løken.
– Quando o encontraram, já tinha perdido os sentidos, por isso não lhe
ministraram morfina, escreveram apenas um L no capacete e levaram-no para
o helicóptero. Quando acordou com os seus próprios gritos de dor, de início
ficou desorientado, não percebeu onde estava. No entanto, quando empurrou
o cadáver que estava por cima dele e viu um homem com uma braçadeira
branca a injetar um dos outros, compreendeu e clamou por morfina. Um
enfermeiro bateu-lhe no capacete e disse: «Lamento, amigo, você já está
entupido dela.» Løken nem queria acreditar e tirou o capacete onde, de facto,
fora escrito um L e um M. Só que não era o capacete dele. Olhou para o
soldado que acabara de ser injetado no braço. Viu o capacete com o L a giz,
reconheceu o maço de cigarros amarfanhado debaixo da correia e a
braçadeira das NU e percebeu o que sucedera. O tipo trocara os capacetes para
apanhar outra injeção de morfina. Løken bem berrou, mas os seus gritos de
agonia foram abafados pelo ronco do motor ao levantar voo. Ficou a gritar
durante meia hora antes de chegarem ao campo de golfe.
– Ao campo de golfe?
– O acampamento. Era assim que lhe chamávamos.
– Nesse caso, também lá esteve?
Sanphet anuiu.
– Por isso conhece tão bem a história.
– Fui profissional de saúde voluntário e recebi-os.
– O que aconteceu?
– O Løken estava ali estendido. O outro tipo não voltou a acordar.
– Overdose?
– Bem, ele não morreu com um tiro no ventre.
Harry abanou a cabeça.
– E agora você e o Løken estão a trabalhar no mesmo local.
– Por coincidência.
– Quais são as probabilidades de isso acontecer?
– O mundo é pequeno – respondeu Sanphet.
– LM – disse Harry, depois esvaziou o copo, murmurou que precisava de
mais água e foi procurar a menina Ao.

– Sente a falta do embaixador? – perguntou-lhe, quando a encontrou na


cozinha. Estava a dobrar guardanapos à volta dos copos e a prendê-los com
elásticos.
Ela olhou-o, surpreendida, e anuiu.
Harry segurava nas mãos o copo vazio.
– Há quanto tempo eram amantes?
Viu a boquinha bonita dela abrir-se, formar uma resposta que o seu cérebro
ainda não preparara, fechar-se e abrir-se de novo, como um peixinho de
aquário. Quando a raiva lhe chegou aos olhos e ele pensou que fosse
esbofeteá-lo, voltou a desaparecer. Os olhos encheram-se-lhe antes de
lágrimas.
– Peço desculpa – disse Harry, sem se mostrar arrependido.
– Você…
– Peço desculpa, mas tenho de fazer estas perguntas.
– Mas eu… – pigarreou, levantou e baixou os ombros, como se para afastar
um mau pensamento. – O embaixador era casado. E eu…
– Você também é casada?
– Não, mas…
Harry agarrou-a ao de leve pelo braço e levou-a da cozinha. Ela virou-se
para ele, a raiva a reaparecer no olhar.
– Oiça, menina Ao, o embaixador foi encontrado morto num motel. Sabe o
que isso significa. Que não era a única que ele andava a comer. – Observou-a
para ver o efeito provocado por aquelas palavras.
– Estamos aqui a investigar um caso de homicídio. Não tem motivos para
sentir qualquer lealdade para com o homem, compreende?
Ela começara a choramingar e ele apercebeu-se de que lhe estava a sacudir
o braço. Largou-a. Ela olhou para Harry. Tinha as pupilas dilatadas e negras.
– Tem medo? É disso que se trata?
O peito dela subiu e desceu.
– Ajudaria se eu lhe prometesse que nada disto virá a lume, a menos que
esteja envolvida no homicídio?
– Nós não éramos amantes!
Harry fitou-a, mas só conseguiu ver duas pupilas negras.
– Muito bem. O que faz uma jovem como você no carro de um embaixador
casado? Para além de tomar a sua medicação para a asma?
Harry colocou o copo vazio no tabuleiro e saiu. Aquilo que tinha dito fora
uma idiotice, mas Harry estava disposto a fazer coisas idiotas para que algo
acontecesse. Fosse lá o que fosse.
31 Condado da Noruega que se situa na costa norocidental da Península Escandinava, sensivelmente ao
centro. (N. da T.)

32 Comuna da Noruega. Atualmente é considerada a capital mundial do bacalhau. Foi totalmente


destruída por um incêndio em 1904, sendo reconstruída num estilo arquitetónico moderno. (N. da T.)

33 Østfold é um condado do Sudeste da Noruega que confina com o condado de Akershus e com a
Suécia a nordeste. Fica situado nas margens do fiorde de Oslo.
É uma região de colinas, coberta de densas florestas no Norte e Leste. Conta com estaleiros navais,
indústrias químicas, da borracha, madeireiras e de papel. (N. da T.)

34 É uma espécie de planta com flor, pertencente à família das Poáceas. Também chamada capim-
napier ou capim-napier-elefante, é nativa da África tropical, tendo sido introduzida nas Américas, Ásia
e Austrália. É uma espécie também presente no território português, nomeadamente no arquipélago da
Madeira. (N. da T.)
14

Domingo, 12 de janeiro

E lizabeth Dorothea Crumley estava de mau humor.


– Merda! Já passaram cinco dias. Um estrangeiro foi esfaqueado nas
costas num motel e não temos nenhuma impressão digital, nenhum suspeito,
nem o raio de uma pista. Apenas rececionistas, a Tonya Harding, donos de
motel e agora a máfia. Esqueci-me de alguma coisa?
– Dos agiotas – disse Rangsan, por detrás do Bangkok Post.
– Os agiotas são a máfia – frisou a inspetora.
– Não aqueles a quem o Molnes recorria – afirmou Rangsan.
– Como assim?
Rangsan pousou o jornal.
– Harry, você disse que o motorista pensava que o embaixador devia
dinheiro a uns agiotas. O que faz o agiota quando o devedor morre? Procura
cobrar as dívidas à família, não é verdade?
Liz não se mostrou lá muito convencida.
– Algumas pessoas continuam agarradas à noção de honra da família, e os
agiotas são homens de negócios. É evidente que tentarão reaver o seu
dinheiro, sempre que possível.
– Isso parece-me muito rebuscado – afirmou Liz, franzindo o nariz.
Rangsan tornou a pegar no jornal.
– Ainda assim, encontrei por três vezes a Thai Indo Travellers na lista de
chamadas recebidas pela família Molnes nos últimos três dias.
Liz assobiou baixinho, e registaram-se acenos de cabeça à volta da mesa.
– O quê? – perguntou Harry, apercebendo-se de que algo escapara à sua
compreensão.
– A Thai Indo Travellers é uma agência de viagens de fachada – explicou
Liz. – O seu verdadeiro negócio funciona no primeiro andar: o empréstimo de
dinheiro a pessoas que não o conseguem obter por outras vias. As taxas de
juro que praticam são elevadas e têm uma maneira bastante eficaz de obrigar
as pessoas a pagar. Andamos de olho neles há já algum tempo.
– Alguma vez conseguiram obter provas contra eles?
– Podíamos ter conseguido, se nos tivéssemos esforçado o suficiente. No
entanto, pensamos que a concorrência deles é muito pior. A Thai Indo
Travellers tem conseguido operar lado a lado com a máfia e, tanto quanto
sabemos, nem sequer pagam proteção. Se foram eles que mataram o
embaixador, seria a primeira vez que faziam isso a alguém, tanto quanto
julgamos saber.
– Talvez esteja na hora de dar o exemplo – alvitrou Nho.
– Matar um homem primeiro e ligar depois à família para cobrar o
dinheiro. Isso não parece um pouco absurdo? – interveio Harry.
– Porquê? Assim os que necessitam de um aviso sobre o que acontece aos
devedores já ficam a saber – disse Rangsan, virando lentamente uma página.
– E se ainda receberem o dinheiro é um bónus.
– Muito bem – disse Liz. – Nho e Harry, vocês vão fazer uma visita de
cortesia aos agiotas. Mais uma coisa, estive a falar com o Laboratório
Forense. Estão muito intrigados com a gordura que encontrámos no rasgão
causado pelo punhal no fato do Molnes. Afirmam ser de natureza orgânica e
que só pode provir de um animal. Okay, penso que é tudo. Boa sorte.

Rangsan alcançou Harry e Nho quando estes se dirigiam para o elevador.


– Tenham cuidado. Estes tipos não são para brincadeiras. Ouvi dizer que
usam hélices para os maus pagadores.
– Hélices?
– Metem-nos num barco, amarram-nos a um poste no rio, engrenam o
motor em marcha-atrás e levantam a hélice da água enquanto deslizam
lentamente. Conseguem visualizar?
Harry conseguiu.
– Há dois anos, encontrámos um tipo que tinha morrido de ataque cardíaco.
O rosto dele tinha sido, literalmente, arrancado. A ideia era obrigá-lo a andar
pela cidade como forma de aviso e intimidação dos outros devedores. Só que
o coração dele não deve ter aguentado a tensão quando ouviu o motor ser
ligado e viu a hélice a aproximar-se.
Nho anuiu.
– Nada bom. Melhor pagar.

MARAVILHOSA TAILÂNDIA podia ler-se em letras grandes por cima da


imagem multicolorida de dançarinas tailandesas. O cartaz estava pendurado
na parede da minúscula agência de viagens na estreita Sampeng Lane, na
Chinatown. Para além de Harry, Nho e um homem e uma mulher sentados às
secretárias, a espartana divisão encontrava-se vazia. O homem usava óculos
com umas lentes tão grossas que parecia estar a olhá-lo de dentro de um
aquário.
Nho acabara de mostrar a sua identificação de agente da Polícia.
– O que disse ele?
– Que a Polícia é sempre bem-vinda. Fazem-nos preços especiais nas
viagens.
– Peça uma viagem gratuita ao primeiro andar.
Nho proferiu algumas palavras e o homem levantou um auscultador.
– O senhor Sorensen só tem de acabar de beber o seu chá – disse em
inglês.
Harry preparava-se para retrucar, no entanto, um olhar reprovador de Nho
fê-lo mudar de ideias. Sentaram-se ambos à espera. Passados dois minutos,
Harry apontou para a ventoinha parada no teto. O Peixe de Aquário sorriu e
abanou a cabeça.
– Kaput35.
Harry sentiu comichão no couro cabeludo. Alguns minutos depois, o
telefone tocou e o homem pediu-lhes que o seguissem. Ao fundo das escadas,
fez-lhes sinal para que se descalçassem. Harry pensou nas suas peúgas de
ténis esburacadas e entendeu que era melhor para todos os presentes ficar
com os sapatos calçados. Todavia, Nho abanou a cabeça. Por entre
imprecações, Harry tirou os sapatos e arrastou-se pelas escadas acima.
O Peixe de Aquário bateu a uma porta, esta escancarou-se e Harry recuou
dois passos. Uma montanha de carne e músculo preenchia a ombreira. A
montanha tinha duas pequenas fendas no lugar dos olhos, um bigode preto
pendente e a cabeça rapada, à exceção de um rabo de cavalo sem vida. A
cabeça dele fazia lembrar uma bola de bowling descorada; o torso não tinha
pescoço nem ombros, apenas uma massa inchada que começava nas orelhas e
descia até um par de braços que, de tão roliços, mais pareciam ter sido
atarraxados. Harry nunca vira um ser humano tão descomunal em toda a sua
vida.
O homem virou-se e avançou bamboleando-se à frente deles até à divisão.
– O nome dele é Woo – murmurou Nho. – Rufia por conta própria. Muito
má reputação.
– Meu Deus, ele parece uma péssima imitação de um mau da fita de
Hollywood.
– Chinês da Manchúria36. Têm fama de ser muito…
As persianas diante das janelas estavam fechadas e Harry conseguiu
distinguir na divisão escurecida a silhueta de um homem sentado a uma
enorme secretária. Uma ventoinha zumbia no teto e uma cabeça de tigre
embalsamada na parede mostrava-lhes os dentes. Uma porta aberta para a
varanda dava a impressão de que o trânsito atravessava a divisão e de que
havia uma terceira pessoa sentada junto à ombreira. Woo comprimira-se na
última cadeira que restava. Harry e Nho posicionaram-se no meio do chão.
– Em que posso ser-vos útil, cavalheiros?
A voz por detrás da secretária era cava, a pronúncia britânica, a entoação
quase de Oxford. Ergueu uma mão e um anel refulgiu. Nho olhou para
Harry.
– Hum, nós somos da Polícia, senhor Sorensen…
– Bem sei.
– O senhor emprestou dinheiro ao Atle Molnes, o embaixador da Noruega.
Telefonou à mulher dele após a sua morte. Porquê? Para tentar obrigá-la a
pagar as dívidas existentes?
– Não temos quaisquer dívidas por saldar com nenhum embaixador. Além
disso, não lidamos com esse tipo de empréstimo, senhor….
– Hole. Está a mentir, senhor Sorensen.
– O que disse, senhor Hole?
Sorensen inclinara-se na secretária. As suas feições podiam ser tailandesas,
mas a pele e o cabelo eram brancos como a neve e os olhos azuis.
Nho agarrou a manga de Harry, mas este sacudiu-o e manteve o olhar fixo
no de Sorensen. Sabia que pusera a cabeça no cepo, que assumira uma
postura ameaçadora e que naquele momento o Sr. Sorensen daria o braço a
torcer se fizesse alguma concessão. Aquelas eram as regras do jogo. No
entanto, Harry estava ali de pé, com as peúgas rotas, a suar em bica e
completamente farto de aparências, tato e diplomacia.
– Neste momento encontra-se na Chinatown, senhor Hole, não em terra de
farangs. Não tenho conversas com o chefe da Polícia de Banguecoque.
Sugiro-lhe que fale com ele antes de proferir mais alguma palavra, depois
prometo-lhe que esqueceremos esta cena embaraçosa.
– Por norma, a Polícia informa o criminoso dos seus direitos, e não vice-
versa.
Os dentes do Sr. Sorensen brilharam alvos nos lábios vermelhos húmidos.
– Oh, sim. «Tem o direito de permanecer em silêncio», etc., etc. Bem, desta
vez foi vice-versa. Woo, acompanha-os à saída. Cavalheiros…
– As suas atividades aqui não suportam a luz do dia e você também não,
senhor Sorensen. Se eu fosse a si, ia já comprar protetor solar com um fator
elevado. Não os vendem nos pátios das prisões.
A voz de Sorensen tornou-se um nadinha mais rouca.
– Não me provoque, senhor Hole. Infelizmente, as minhas deslocações ao
estrangeiro têm-me feito perder a famosa paciência tailandesa.
– Ao fim de uns anos atrás das grades não tardará a recuperá-la.
– Acompanha o senhor Hole à saída, Woo.
O corpo descomunal moveu-se a uma velocidade vertiginosa. Harry sentiu
o cheiro acre a caril e, antes de ter tempo de erguer um braço, foi levantado
do chão e agarrado como um ursinho de peluche que alguém acabara de
ganhar na feira. Harry tentou soltar-se, mas a mão de ferro apertava sempre
que ele libertava ar dos pulmões, tal como uma jiboia corta o ar à sua vítima.
Tornou-se tudo negro e o som do trânsito mais forte. Depois, por fim ficou
livre e em suspenso no ar. Quando abriu os olhos percebeu que perdera os
sentidos, como se tivesse estado a sonhar durante um segundo. Viu uma
tabuleta coberta de carateres chineses, um emaranhado de fios entre dois
postes de telégrafo, um céu cinzento esbranquiçado e um rosto debruçado
sobre ele. Depois o som voltou, e escutou uma torrente de palavras que saía
em cascata da boca desse rosto. Apontou para a varanda e depois para o
tejadilho do tuk-tuk que ficara com uma feia amolgadela.
– Como está, Harry? – Nho fazia sinais para que o condutor do tuk-tuk se
afastasse.
Harry olhou para si. Doíam-lhe as costas e era muito embaraçoso
encontrar-se no alcatrão sujo e cinzento com as peúgas de desporto rotas.
– Bem, não me deixavam entrar no Schrøder nesta figura. Tem os meus
sapatos?
Harry era capaz de jurar que Nho mordia a língua para reprimir um sorriso
forçado.

– O Sorensen disse-me que, para a próxima, trouxesse um mandado de


detenção – contou-lhe Nho, quando já estavam no carro. – Pelo menos desta
vez apanhámo-los por agressão a um funcionário público.
Harry passou o dedo por um comprido golpe ao longo da barriga da perna.
– Não os apanhámos, apanhámos o gorila. Mas talvez ele nos possa dizer
alguma coisa. Porque é que os tailandeses têm uma predileção pelas alturas?
Segundo a Tonje Wiig, sou o terceiro norueguês atirado de uma casa esta
semana.
– É um velho modus operandi da máfia. Preferem fazer isso do que encher
uma pessoa de chumbo. Se a Polícia encontrar um tipo debaixo de uma janela
não pode excluir a possibilidade de ele ter caído acidentalmente. Algum
dinheiro muda de mãos, o caso é arquivado sem que ninguém seja
incriminado e ficam todos felizes. Os buracos de bala só trazem
complicações.
Pararam nos semáforos. Uma velhota tailandesa cheia de rugas sentada
numa alcatifa sorriu. O rosto dela desvaneceu-se com a deslocação de ar
azul.
35 Termo de origem alemã: estragado, avariado. (N. da T.)

36 Trata-se de uma vasta região no Leste da Ásia que atualmente inclui o extremo nordeste da China e
uma parte da Sibéria. (N. da T.)
15

Domingo, 12 de janeiro

–O que é um pedófilo?
Ståle Aune soltou um suspiro profundo do outro lado da linha.
– Pedófilo? Que rica maneira de começar a conversa. Resumindo, é uma
pessoa que se sente atraída sexualmente por menores.
– E sem ser resumindo?
– Há muita coisa que desconhecemos sobre o fenómeno, mas se falar com
um sexólogo, provavelmente ele fará uma distinção entre os pedófilos
condicionados pela preferência e os pedófilos condicionados pela situação. A
figura clássica de alguém com um saco com guloseimas no jardim é o
condicionamento pela preferência. Os seus interesses pedófilos começam, por
norma, a manifestar-se na adolescência, não necessariamente por qualquer
conflito externo. Ele identifica-se com a criança, adapta o seu comportamento
à idade dela e pode, esporadicamente, assumir um papel pseudoparental. A
atividade sexual é, em regra, planeada cuidadosamente e, para ele, o sexo é
uma tentativa de resolver os problemas na sua vida. Vou ser pago por isto?
– E o condicionamento pela situação?
– Esse já é um grupo mais difuso. As suas preferências sexuais
concentram-se noutros adultos, e a criança tende a ser o substituto de alguém
com quem o pedófilo está em conflito.
– Fale-me do tipo com o saco de guloseimas. O que o estimula?
– Bem, habitualmente, os pedófilos têm uma baixa autoestima e o que se
designa por uma sexualidade frágil. Isto é, mostram-se inseguros, não são
capazes de assumir uma sexualidade adulta e sentem-se fracassados. Julgam
que só conseguem controlar a situação se concretizarem os seus desejos com
crianças.
– E é tudo inato ou adquirido, a habitual conversa fiada?
– Não é invulgar os agressores terem sido abusados sexualmente em
crianças.
– Como podemos reconhecê-los?
– Lamento, Harry, mas não funciona assim. Eles não dão propriamente nas
vistas. Por norma, são homens que vivem sozinhos e têm uma vida social
pobre. A sua identidade sexual pode estar afetada, mas conseguem funcionar
perfeitamente noutras áreas da vida.
– Estou a ver. Logo, não sabe.
– A vergonha gera artistas exímios em camuflagem. A maioria dos
pedófilos levou a vida inteira a treinar a ocultação das suas preferências
perante terceiros, por isso, a única coisa que posso dizer-lhe é que há muitos
mais por aí do que os que a Polícia consegue deter por abuso.
– Dez por cada um que é apanhado.
– O que disse?
– Nada. Obrigado, Ståle. A propósito, coloquei uma rolha na garrafa.
– Oh. Há quantos dias?
– Cerca de quarenta e oito horas.
– Tem custado?
– Bem, pelo menos os monstros permanecem debaixo da cama. Julguei que
pudesse ser pior.
– Ainda mal começou. Lembre-se de que vai ter dias maus.
– E há mais para além de dias maus?

Estava escuro e o taxista entregou-lhe uma pequena brochura colorida


quando ele lhe pediu que o levasse ao Patpong.
– Massagem, senhor? Boa massagem. Eu levar você.
À fraca luz, viu fotografias de raparigas que lhe sorriam, tão puras e
inocentes quanto o anúncio da Thai Airways.
– Não, obrigado, só quero comer.
Harry devolveu a brochura, embora aquilo fosse uma excelente sugestão
para as suas costas maltratadas. Quando, movido pela curiosidade, Harry
perguntou que tipo de massagem e o taxista esboçou um gesto internacional
que não deixou margem para dúvidas.
Fora Liz quem lhe recomendara o Le Boucheron, no Patpong, e a comida
tinha realmente muito bom aspeto, só que Harry estava sem apetite. Esboçou
um sorriso pesaroso à empregada de mesa que lhe veio levantar o prato e
deixou uma generosa gorjeta para não pensarem que não ficara satisfeito.
Entrou depois na frenética vida de rua do Patpong. A Soi 1 encontrava-se
vedada ao trânsito, mas ainda estava mais apinhada de gente a subir e a
descer como um rio fervilhante, passando por bancas e bares. A música saía
por todos os orifícios nas paredes, homens e mulheres suados nos passeios
procuravam ação e os cheiros a raça humana, a esgotos e a comida
disputavam a supremacia. Ao passar abriu-se uma cortina e no interior viu
raparigas a dançar, usando tangas e sapatos de salto alto como se impunha.
– Sem taxa de couvert, noventa bahts pelas bebidas – gritou-lhe alguém ao
ouvido. Continuou a andar, mas era como se estivesse parado porque ao
longo da rua superlotada repetiam continuamente o mesmo.
Sentiu um pulsar no estômago e não conseguiu perceber se era da música,
do seu coração ou do ruído monótono de uma das máquinas que trabalhava
dia e noite na nova autoestrada de Banguecoque que passava por cima da
Silom Road.
Num bar, uma rapariga com um chamativo vestido de seda vermelha
captou o olhar dele e apontou para a cadeira a seu lado. Harry prosseguiu,
sentindo-se quase embriagado. Ouviu uma manifestação de júbilo vinda de
outro bar onde havia um televisor suspenso a um canto e era óbvio que
alguma equipa marcara golo. Dois ingleses de pescoços rosados fizeram
tchim-tchim e cantaram «I’m forever blowing bubbles…»37.
– Entre, lourinho.
Uma mulher alta e magra fez-lhe olhinhos, levantou um par de seios
grandes e firmes e cruzou as pernas de tal forma que as calças coladas às
pernas não deixavam o mínimo espaço para a imaginação.
– Ela é um katoy38 – disse alguém em norueguês, e Harry virou-se.
Era Jens Brekke. Uma mulher tailandesa de estatura diminuta com uma
saia de cabedal justa pendurara-se-lhe no braço.
– Na verdade, tudo aquilo é fantástico: as curvas, os seios e a vagina. De
facto, alguns homens preferem um katoy ao artigo genuíno. E porque não? –
Brekke expôs uma fiada de dentes brancos no seu rosto escuro pueril. – Claro
que o único problema é que as vaginas criadas cirurgicamente não possuem
as mesmas propriedades de autolimpeza que as das nascidas mulheres. No dia
em que conseguirem fazê-lo, eu próprio me tornarei katoy. Qual é a sua
opinião, detetive?
Harry olhou para a mulher alta que lhes virara as costas com uma
exclamação de desprezo quando ouvira a palavra katoy.
– Bem, não me tinha ocorrido que alguma das mulheres aqui presentes
pudesse não o ser.
– É fácil enganar o olhar inexperiente, mas percebe-se pela maçã de Adão
e, geralmente, não é possível removê-la. Por outro lado, tendem a ter mais um
palmo de altura, vestem-se de uma forma um nadinha mais provocante e
mostram mais agressividade nos galanteios. E são demasiado bem-parecidos.
É o que acaba por denunciá-los. Não se conseguem controlar; têm de ir
sempre um pouco mais longe.
Deixou a frase em suspenso, como se insinuasse algo, mas se estava a fazê-
lo, Harry não percebeu o quê.
– A propósito, detetive, não tem andado a exagerar um pouco? Reparei que
coxeava.
– Uma fé desmesurada nos estilos de conversa ocidentais. Há de passar.
– Qual delas? A fé ou a lesão?
Brekke olhava para Harry com o mesmo sorriso impercetível que lhe
detetara após o funeral. Como se fosse um jogo em que ele queria que Harry
alinhasse. Só que ele não estava com disposição para atividades lúdicas.
– Ambas, espero. Ia a caminho de casa.
– Já? – A luz de néon incidia na testa húmida de Brekke. – Nesse caso,
espero vê-lo em melhor forma, detetive.
Harry mandou parar um táxi na Surawong Road.
– Massagem, senhor?
37 Os adeptos do Clube de Futebol West Ham United têm um cântico muito famoso chamado «I’m
Forever Blowing Bubbles» que foi extraído do musical The Passing Show of 1918. As «bolhas» do
hino devem-se ao facto de um jovem e talentoso jogador da década de 1920, Billy J. Murray, ter uma
enorme semelhança física com um rapaz presente num quadro do pintor inglês do século XIX, Millais,
chamado «Bubbles». Essa acabou por ser a alcunha de Murray. (N. da T.)

38 Termo usado na Tailândia para travesti. (N. da T.)


PARTE TRÊS
16

Segunda-feira, 13 de janeiro

Q uando Nho veio buscar Harry à porta da River Garden, a torre de


apartamentos onde estava instalado, o Sol acabara de nascer e incidia
delicadamente nele através do intervalo entre as casas baixas.
Tinham chegado ao Barclays Thailand antes das oito da manhã e um
guarda sorridente com um penteado à Jimi Hendrix e auscultadores deixou-os
entrar no parque de estacionamento por baixo do edifício. Nho acabou por
avistar um lugar solitário para visitas entre os BMW e os Mercedes, junto aos
elevadores.
Nho preferiu esperar no carro pois o seu norueguês limitava-se a «takk»,
obrigado, que Harry lhe ensinara a dizer durante uma pausa para o café. Liz
referira, num certo tom de provocação, que «takk» era sempre a primeira
palavra que um homem branco tentava ensinar aos nativos.
Nho não se sentia à vontade naquele bairro; todos os automóveis caros
atraíam ladrões, dissera. E, apesar de o parque de estacionamento estar
equipado com CFTV, não confiava nos seguranças que faziam estalar os dedos
a um ritmo invisível enquanto erguiam a barreira.
Harry apanhou o elevador para o nono piso e entrou na receção do Barclays
Thailand. Apresentou-se e olhou para o relógio de parede. De certa forma
contara ter de esperar por Brekke, contudo, uma mulher acompanhou-o ao
elevador, passou um cartão e premiu o botão P que, explicou, significava
penthouse. De seguida, retirou-se rapidamente e Harry subiu em direção ao
céu.
Quando as portas do elevador se abriram, viu Brekke de pé, num soalho de
parquet brilhante, encostado a uma enorme mesa de mogno com um auricular
no ouvido e outro caído no ombro. O resto da divisão era de vidro. Paredes,
teto, mesa de café e até as cadeiras.
– Falamos depois, Tom. Certifica-te de que não és engolido hoje. E, como
disse, não toques na rupia39.
Sorriu a Harry com um ar pesaroso, aproximou o outro auricular do ouvido,
olhou para o registo de cotações no ecrã do computador e proferiu um
lacónico «sim» antes de desligar.
– O que foi aquilo? – perguntou Harry.
– Aquilo foi o meu trabalho.
– A saber?
– Neste momento, garantir um empréstimo em dólares a um cliente.
– Grandes quantias envolvidas?
Harry olhou para Banguecoque, meio escondida pela neblina abaixo deles.
– Depende do termo de comparação. O orçamento de uma autarquia local
norueguesa, presumo. Divertiu-se ontem à noite?
Antes que Harry pudesse responder, um dos auriculares zumbiu e Brekke
premiu um botão no intercomunicador.
– Importava-se de tomar nota, Shena? Estou ocupado.
Libertou o botão sem esperar pela confirmação.
– Ocupado?
Brekke soltou uma gargalhada.
– Não lê os jornais? Todas as moedas asiáticas estão em queda. Andam
todos borrados de medo e a querer à viva força comprar dólares. Quase todos
os dias fecha um banco ou uma corretora, e as pessoas começaram a atirar-se
pelas janelas.
– Mas não o senhor? – perguntou Harry, coçando distraidamente as costas.
– Não, eu sou um corretor, da família dos abutres.
Agitou os braços para cima e para baixo algumas vezes e exibiu os dentes.
– Nós ganhamos dinheiro, aconteça o que acontecer, desde que haja ação e
as pessoas negoceiem. A hora do espetáculo é tão boa como qualquer outra e,
neste momento, há espetáculo vinte e quatro horas por dia durante os sete
dias da semana.
– Nesse caso, é o croupier deste jogo?
– Sim! Bem visto. Tenho de me lembrar dessa. E os outros idiotas são os
jogadores.
– Idiotas?
– Evidentemente.
– Julgava que estes negociantes eram relativamente inteligentes.
– Inteligentes, sim, mas não deixam de ser uns idiotas chapados. É um
eterno paradoxo, mas quanto mais inteligentes ficam, maior o seu interesse
em especular nos mercados cambiais. E, melhor do que ninguém, deviam
saber que, a longo prazo, é impossível ganhar dinheiro na roleta. Eu próprio
sou bastante estúpido, mas tenho plena consciência disso.
– Nesse caso, nunca jogou nesta roleta, Brekke?
– Faço esporadicamente uma aposta.
– E isso transforma-o num dos idiotas?
Brekke estendeu-lhe uma caixa de charutos, mas Harry declinou a oferta.
– Um homem sábio. Têm um sabor horrível. Fumo-os porque penso que
tenho de o fazer. Porque posso dar-me a esse luxo. – Abanou a cabeça e
colocou um charuto na boca. – Viu o Casino40, detetive? Aquele filme com o
Robert de Niro e a Sharon Stone?
Harry assentiu.
– Lembra-se daquela cena em que o Joe Peschi fala de um sujeito que é a
única pessoa que ele conhece que sabe ganhar dinheiro ao jogo? Mas o que
ele faz não é jogar, é apostar. Corridas de cavalos, jogos de basquetebol, etc.,
etc. Isso é muito diferente da roleta.
Brekke puxou uma cadeira para Harry e sentou-se diante dele.
– Jogar é uma questão de sorte, mas apostar não. Entram aqui dois fatores:
psicologia e informações. A pessoa mais inteligente ganha. Veja esse tipo no
Casino. Leva o tempo todo a reunir informações sobre cavalos, sobre
linhagens, os resultados obtidos ao longo da semana, a alimentação que lhes
foi dada, quanto pesava o jóquei quando se levantou de manhã: todas as
informações que os outros ignoram ou não conseguem reter. Depois, reúne
tudo, avalia as probabilidades e observa o que fazem os outros jogadores. Se
as probabilidades de um cavalo são muito elevadas, aposta nele,
independentemente de pensar que possa ou não ganhar. E, no fim, é ele quem
ganha. E os outros perdem.
– Tão simples assim?
Brekke levantou uma mão em defesa e olhou para o seu relógio de pulso.
– Eu sabia que um investidor japonês do Asahi Bank ia ao Patpong ontem à
noite. Acabei por encontrá-lo na Soi 4. Forneci-lhe informações e saquei-lhe
mais até às três da manhã, depois deixei-o ficar com a minha acompanhante e
fui para casa. Cheguei ao trabalho às seis e tenho estado a comprar bahts
desde então. Não tarda, ele vai trabalhar e terá bahts no valor de quatro mil
milhões de coroas. Depois voltarei a vender.
– Parece ser muito dinheiro, mas também parece quase ilegal.
– Quase, Harry. Apenas quase. – Naquele momento, Brekke estava
entusiasmado, como um rapazinho a exibir um brinquedo novo. – Não é uma
questão de moralidade. Se você for ponta de lança numa equipa de futebol,
estará sempre na iminência do fora de jogo. As regras fizeram-se para ser
quebradas.
– E aqueles que mais quebrarem as regras ganham mais?
– Quando o Maradona marcou um golo com a mão, as pessoas aceitaram-
no como parte do jogo. Desde que o árbitro não veja, está tudo bem.
Brekke ergueu um dedo.
– Apesar de tudo, não podemos esquecer o facto de partirmos de
probabilidades. De vez em quando perdemos, mas se jogarmos com as
probabilidades a nosso favor, a longo prazo acabamos por ganhar dinheiro.
Brekke fez um esgar e apagou o charuto.
– Hoje, este investidor japonês decidiu o que eu vou fazer, mas sabe qual é
a melhor sensação? Quando conseguimos ludibriar os outros. Por exemplo,
antes de serem divulgados os números da inflação americana, pode espalhar-
se o boato de que o Greenspan41 afirmou, num almoço particular, que a taxa
de juro vai ter de subir. Podemos baralhar o inimigo. É assim que
conseguimos ganhar em grande. Raios, é melhor do que sexo.
Soltou uma gargalhada e com o entusiasmo bateu com os pés no chão.
– O mercado cambial é a mãe de todos os mercados, Harry. É a Fórmula 1.
Tem tanto de inebriante quanto de mortífero. Sei que é perverso, mas eu sou
um daqueles fanáticos do controlo que gostam de saber que, se morrerem ao
volante, a culpa é inteiramente deles.
Harry olhou em redor. Um professor chanfrado numa redoma de vidro.
– E se o apanharem a conduzir em excesso de velocidade?
– Enquanto ganhar dinheiro e não exceder os limites, todos ficam felizes. E
não é tudo: isso torna-me o mais bem remunerado da empresa. Está a ver este
gabinete? O dono do Barclays Thailand costumava sentar-se aqui. Poderá
perguntar-se por que motivo um miserável corretor como eu conseguiu
chegar aqui. É porque numa corretora só há uma coisa que conta: o dinheiro
que ganhamos. Tudo o resto é fogo de vista. Os chefes também. São apenas
administradores que dependem daqueles de nós que estão no mercado para
lhes manter os empregos e salários. O meu chefe mudou-se para um
confortável gabinete no piso de baixo porque ameacei mudar-me para a
concorrência com toda a minha carteira de clientes se não me garantissem
uma proposta de bonificações mais vantajosa. E este gabinete.
Desabotoou o colete e pendurou-o nas costas da cadeira.
– Chega de falar de mim. Em que posso ser-lhe útil, Harry?
– Tenho curiosidade em saber do que o senhor e o embaixador falaram ao
telefone no dia em que ele morreu.
– Ele ligou-me para confirmarmos a nossa reunião. E assim fiz.
– E depois?
– Chegou aqui às quatro horas, como tínhamos combinado. Passavam
talvez cinco minutos. A Shena, na receção, tem a hora exata. Ele chegou
primeiro e registou-se.
– E sobre o que conversaram?
– Dinheiro. Ele tinha algum dinheiro que queria investir. – Nem um
músculo no seu rosto revelou que estava a mentir. – Ficámos aqui sentados
até às cinco. Depois acompanhei-o até ao local onde tinha estacionado, no
parque subterrâneo.
– Ele estacionou onde nós estamos agora?
– Se lhe tiver sido atribuído o espaço para visitas, sim.
– E essa foi a última vez que o viu?
– Foi.
– Obrigado. É tudo – disse Harry.
– Ena, que viagem longa para tão pouco.
– Como referi, tudo isto não passa de rotina.
– Claro. Ele morreu de ataque cardíaco. Não foi? – perguntou Jens Brekke
com um leve sorriso nos lábios.
– Ao que tudo indica – respondeu Harry.
– Sou amigo da família – disse Jens. – Ninguém quer falar, mas faço uma
ideia. Só para que saiba.
Quando Harry se levantou, a porta do elevador abriu-se e entrou a
rececionista com um tabuleiro onde se encontravam dois copos e duas
garrafas.
– Toma uma água antes de sair, Harry? Mando-a vir de avião uma vez por
mês.
Encheu os copos com água mineral Farris42 de Larvik.
– A propósito, Harry, a hora que indicou para a conversa de ontem estava
errada.
Abriu uma porta na parede e Harry viu o que parecia ser um terminal de
caixa automática. Brekke digitou uns números.
– Eram 13h13, não 13h15. Pode não ser importante, mas achei que talvez
gostasse de saber em rigor.
– A empresa de telecomunicações indicou-nos a hora. O que o leva a
pensar que a sua hora é mais rigorosa?
– A minha está correta. – Um brilho de dentes brancos. – Este dispositivo
regista todas as minhas conversas. Custou meio milhão de coroas e tem um
relógio controlado por satélite. Acredite em mim: é rigoroso.
Harry arqueou as sobrancelhas.
– Mas quem é que gasta meio milhão de coroas num gravador?
– Mais gente do que possa imaginar. A maior parte das que operam na
bolsa, entre outras. Se tiver uma discussão com um cliente sobre se numa
conversa telefónica ele disse para comprar ou vender, vai-se meio milhão
num abrir e fechar de olhos. O gravador acrescenta automaticamente um
código digital à gravação em questão.
Mostrou algo que se assemelhava a uma cassete VHS.
– O código de tempo não pode ser adulterado, e depois de uma conversa ser
gravada não é possível alterar a gravação sem destruir o código de tempo. A
única coisa que pode fazer é esconder a cassete, mas depois os outros iam
perceber que as cassetes do período em questão tinham desaparecido. A razão
de todo este rigor reside no facto de as cassetes poderem ser válidas em
tribunal.
– Isso quer dizer que tem uma gravação da sua conversa com o Molnes?
– Evidentemente.
– E podíamos…?
– Só um momento.
Foi estranho ouvir a voz bem viva de uma pessoa que morrera com um
punhal cravado nas costas.
«Então às quatro», disse o embaixador.
Parecia monótona, quase triste. Depois desligou.
39 Unidade monetária. (N. da T.)

40 Filme de 1995, realizado por Martin Scorsese. (N. da T.)

41 Alan Greenspan, economista norte-americano que foi presidente da Reserva Federal dos EUA até
janeiro de 2006. (N. da T.)

42 É a água mineral engarrafada mais antiga e mais vendida na Noruega.


(N. da T.)
17

Segunda-feira, 13 de janeiro

–C omo estão as suas costas? – perguntou Liz, preocupada, quando


Harry entrou a coxear no gabinete para a reunião matinal.
– Melhor – mentiu, escarranchando-se numa cadeira.
Nho deu-lhe um cigarro, mas Rangsan tossiu por detrás do jornal e Harry
absteve-se de o acender.
– Tenho umas notícias que vão deixá-lo de bom humor – disse Liz.
– Eu estou de bom humor.
– Antes de mais, decidimos chamar o Woo. Vamos ver o que conseguimos
arrancar-lhe se o ameaçarmos com três anos por agressão a um agente da
Polícia no cumprimento do dever. O senhor Sorensen afirma não o ter visto.
Parece que ele trabalha por conta própria. Não temos qualquer morada dele,
mas sabemos que costuma ir comer a um restaurante perto do
Ratchadamnoen Stadium, a arena de boxe. Aqueles combates implicam
apostas elevadas, e os agiotas costumam andar por ali a rondar, à procura de
novos clientes e a controlar dívidas que ainda não foram saldadas. A outra
boa notícia é que o Sunthorn tem andado a fazer averiguações em hotéis
suspeitos de funcionarem como agências de acompanhantes. Parece que o
embaixador frequentava um deles: recordam-se do carro por causa das chapas
de matrícula do Corpo Diplomático. Disseram que estava uma mulher com
ele.
– Ótimo.
Liz ficara um pouco dececionada com a reação branda de Harry.
– Ótimo?
– Ele levou a menina Ao ao hotel e comeu-a lá. E depois? Ela não ia
convidá-lo para sua casa, pois não? Tanto quanto me parece, isso só nos diz
que a Hilde Molnes tem um motivo para matar o marido. Ou o companheiro
da menina Ao, se ela o tiver.
– E a menina Ao pode ter um motivo, se o Molnes se preparasse para a
deixar – afirmou Nho.
– Tudo boas sugestões – disse Liz. – Por onde começamos?
– Pela verificação dos álibis. – A resposta veio detrás do jornal.

Na sala de reuniões da embaixada, a menina Ao olhava para Harry e Nho


com os olhos vermelhos de chorar. Negara categoricamente ter estado em
quaisquer hotéis, dissera que vivia com a irmã e a mãe, mas que saíra na noite
do homicídio. Não tinha estado com ninguém, dissera, e chegara a casa muito
tarde, já passava da meia-noite. A choradeira começou quando Nho tentou
obrigá-la a contar-lhes onde estivera.
– É preferível contar-nos agora, menina Ao – disse Harry, fechando as
persianas do lado do átrio. – Já nos mentiu uma vez. Isso é muito grave. Diz
que saiu na noite do homicídio mas que não se encontrou com ninguém que
possa testemunhar onde esteve.
– A minha mãe e a minha irmã…
– Podem testemunhar que regressou a casa depois da meia-noite. Isso não a
ajuda, menina Ao.
As lágrimas escorriam-lhe pelo doce rosto de boneca.
– Vamos ter de levá-la connosco – disse ele. – A menos que mude de ideias
e nos diga onde esteve.
Ela abanou a cabeça e Harry e Nho trocaram olhares. Nho encolheu os
ombros e agarrou-lhe o braço, mas ela manteve a cabeça apoiada na mesa, a
soluçar. Naquele momento ouviu-se uma pancada leve na porta. Harry abriu
uma nesga. Sanphet estava lá fora.
– Sanphet, nós…
O motorista levou um dedo aos lábios.
– Eu sei – murmurou ele e fez sinal a Harry para que saísse.
Harry fechou a porta atrás de si.
– Sim?
– Está a interrogar a menina Ao. Quer saber onde ela esteve na noite do
crime.
Harry não respondeu. Sanphet pigarreou e endireitou as costas.
– Eu menti. A menina Ao esteve no carro do embaixador.
– Ah sim? – disse Harry, apanhado de surpresa.
– Várias vezes.
– Portanto, sabia do caso dela com o embaixador?
– Não com o embaixador.
Decorreram alguns segundos antes de se fazer luz, e Harry ficou a olhar
para o velho com ar incrédulo.
– Você, Sanphet? Você e a menina Ao?
– É uma longa história, e temo que não vá perceber tudo. – Lançou um
olhar inquiridor a Harry. – A menina Ao esteve comigo na noite em que o
embaixador morreu. Ela nunca poderia contar nada porque isso nos custaria o
emprego. Não é permitido qualquer relacionamento entre funcionários.
Harry passou uma mão pela cabeça.
– Sei o que está a pensar, detetive. Que sou um velho e ela uma jovem.
– Bem, temo não compreender tudo, Sanphet.
Sanphet esboçou um sorriso.
– A mãe dela e eu fomos amantes há muito, muito tempo, muito antes de a
Ao ter nascido. Na Tailândia existe algo chamado phîi. Poder-se-ia traduzir
por «antiguidade»: em termos de hierarquia, uma pessoa mais velha ocupa
um lugar superior ao de uma mais jovem. Mas é mais do que isso. Significa
também que a pessoa mais velha é responsável por ela. A menina Ao
conseguiu o emprego na embaixada por recomendação minha, e é uma
mulher afetuosa e grata.
– Grata?! – questionou Harry sem se controlar. – Que idade tinha ela…? –
Fez uma pausa. – O que diz a mãe dela?
Sanphet sorriu com ar pesaroso.
– Ela tem a mesma idade que eu e compreende. Eu só estou a pedir a Ao
emprestada por algum tempo. Até ela encontrar o homem com quem irá
constituir família. Não é tão invulgar…
Harry soltou a respiração com um gemido.
– Portanto, o senhor é o álibi dela? E sabe que não foi a menina Ao que o
embaixador levou para o hotel que frequentava?
– Se o embaixador esteve num hotel, não foi com a menina Ao.
Harry levantou um dedo.
– Já me mentiu uma vez e eu podia prendê-lo por obstrução a uma
investigação policial de homicídio. Se tem mais alguma coisa a dizer, que
seja agora.
Os velhos olhos castanhos fitaram Harry sem pestanejar.
– Eu gostava do herr Molnes. Era um amigo. Espero que a pessoa que o
matou seja castigada. E mais ninguém.
Harry ia dizer algo, mas conteve-se.
18

Segunda-feira, 13 de janeiro

O Sol adquirira uma tonalidade vermelho-escura com faixas cor de laranja.


Pairava no horizonte cinzento de Banguecoque como um novo planeta
que aparecera no firmamento sem se fazer anunciar.
– Este é o Ratchadamnoen Stadium – anunciou Liz, quando o Toyota onde
seguiam Harry, Nho e Sunthorn parou junto a um edifício de tijolo cinzento.
Dois revendedores de bilhetes de aspeto miserável animaram-se, mas Liz
afastou-os. – Não parece muito impressionante, mas esta é a versão de
Banguecoque do Teatro dos Sonhos43. Aqui, todos têm oportunidade de ser
Deus, se forem ágeis de pés e mãos. Olá, Ricky!
Um dos seguranças aproximou-se do carro e Liz fez uso do seu encanto de
uma forma que Harry nunca a julgaria capaz. Depois de uma torrente
animada de palavras e gargalhadas, virou-se para os outros, sorridente.
– Vamos prender o Woo o mais rapidamente possível. Acabei de arranjar
bilhetes na primeira fila para mim e para o turista. O Ivan será o sétimo a
combater esta noite. Até teria a sua graça.

O restaurante era da variante básica – plástico, moscas e uma ventoinha


solitária que trazia os cheiros da comida da cozinha para a sala. Viam-se
retratos da família real tailandesa pendurados por cima do balcão.
Apenas algumas mesas se encontravam ocupadas, e nem sinal de Woo.
Nho e Sunthorn sentaram-se junto à porta, enquanto Liz e Harry
permaneceram ao fundo. Harry pediu um crepe e, jogando pelo seguro, uma
Coca-Cola para desintoxicar.
– O Rick foi meu treinador quando pratiquei boxe tailandês – explicou Liz.
– Eu pesava quase o dobro dos rapazes com quem combatia, tinha mais cinco
palmos de altura e levava sempre uma coça. Aqui, bebe-se boxe no leite
materno. Mas eles não gostavam de apanhar de uma mulher, diziam. Não que
eu me apercebesse disso.
– Que obsessão é esta com o rei? – perguntou Harry, apontando. – Vejo a
fotografia dele em todo o lado.
– Bem, uma nação precisa de heróis. A família real não foi particularmente
popular até à Segunda Guerra Mundial, altura em que o rei conseguiu aliar-se
primeiro aos japoneses e depois, quando eles se puseram na retranca, aos
americanos. Salvou a nação de um banho de sangue.
Harry brindou ao retrato com a lata de Coca-Cola.
– Parece ser um tipo fixe.
– Tem de compreender isto: há duas coisas com as quais não se brinca na
Tailândia…
– A família real e o Buda. Sim, obrigado, já me tinham dito.
A porta abriu-se.
– Ora, ora – murmurou Liz e arqueou as sobrancelhas inexistentes. –
Habitualmente, na vida real parecem mais pequenos.
Harry não se virou. O plano era esperar que Woo tivesse sido servido. Um
homem com pauzinhos nas mãos demora mais tempo a sacar de uma arma.
– Ele vai sentar-se – disse Liz. – Caramba, ele devia estar preso só pelo seu
aspeto. Mas podemos considerar-nos uns sortudos se conseguirmos aguentá-
lo o suficiente para lhe fazermos algumas perguntas.
– Como assim? O tipo atirou um polícia de uma janela de um primeiro
andar.
– Bem sei, mas eu cá não alimentava muitas esperanças. Woo, «o
Cozinheiro», não é um tipo qualquer. Trabalha para uma das famílias e elas
têm bons advogados. Presumimos que tenha liquidado pelo menos uma dúzia
de pessoas, mutilado o décuplo desse número, e continua sem peva no
cadastro.
– O Cozinheiro?
Harry atacou o crepe a escaldar que entretanto chegara à mesa.
– Ganhou a alcunha há uns anos. Tínhamos em mãos uma das vítimas do
Woo; eu fiquei com o caso e estava presente quando deram início à autópsia.
O corpo tinha estado uns dias em cima da mesa de autópsias e encontrava-se
tão cheio de gás que parecia uma bola de futebol preta e roxa. O gás é tóxico,
por isso, o patologista mandou-nos abandonar a sala e colocou uma máscara
de gás antes de perfurar o abdómen. Eu estava a assistir pelo vidro da porta.
A pele agitou-se quando ele abriu o corpo e podia ver-se a tonalidade verde
do gás a ser expelida.
Harry pousou o crepe no prato com uma expressão incomodada, mas Liz
nem se apercebeu.
– Porém, qual não foi o choque, quando vimos que ele fervilhava de vida lá
dentro. O patologista recuou para junto da parede enquanto as criaturas pretas
saíam a rastejar do estômago, desciam para o chão e corriam a esconder-se
em qualquer fenda ou buraquinho. – Ilustrou chifres com os dedos
indicadores junto à testa. – Besouros do diabo.
– Besouros? – Harry fez um esgar. – Não me ocorreu que entrassem nos
cadáveres.
– O morto tinha um tubo de plástico na boca quando o encontrámos.
– Ele…
– Na Chinatown, os besouros grelhados são uma iguaria.
O Woo metera-os à força pela goela do desgraçado abaixo.
– Sem os grelhar nem nada? – Harry afastou de si o prato.
– Os insetos são criaturas extraordinárias – referiu Liz. – Quero dizer,
como conseguiram os besouros sobreviver no estômago com o gás tóxico e
tudo?
– Prefiro não pensar nisso.
– Demasiado condimentada?
Harry demorou um instante a aperceber-se de que ela se referia à comida.
Empurrou o prato para a extremidade da mesa.
– Acabará por se acostumar a ela, Harry. Só tem de dar um passo de cada
vez. Devia levar consigo umas receitas para impressionar a sua namorada na
cozinha quando regressar a casa.
Harry tossiu.
– Ou a sua mãe – alvitrou Liz.
Harry abanou a cabeça.
– Lamento, mas não tenho uma nem outra.
– Peço-lhe imensa desculpa – disse ela, e a conversa morreu ali. A comida
de Woo vinha a caminho.
Ela tirou uma pistola preta de serviço do coldre na anca e libertou a patilha
de segurança.
– Uma Smith & Wesson 650 – observou Harry. – Resistente.
– Mantenha-se atrás de mim – disse Liz, levantando-se.
Woo nem pestanejou quando ergueu o olhar e viu a boca da arma da
inspetora. Segurava os pauzinhos na mão esquerda; a direita estava escondida
no colo. Liz gritou-lhe algo em tailandês, mas ele pareceu não ouvir. Sem
mexer a cabeça, os olhos dele vaguearam pela sala, registaram Nho e
Sunthorn antes de se deterem em Harry. Estampou-se-lhe um ténue sorriso
nos lábios.
Liz voltou a gritar, e Harry sentiu um formigueiro na nuca. O cão da arma
levantou-se, e a mão direita de Woo apareceu em cima da mesa. Vazia. Harry
ouviu Liz expirar por entre os dentes. O olhar de Woo continuava fixo em
Harry, enquanto Nho e Sunthorn lhe colocavam as algemas. Quando o
levaram, parecia um pequeno cortejo circense com um gigante musculado e
dois anões.
Liz tornou a guardar a arma no coldre.
– Não creio que ele goste de si – disse ela, indicando os pauzinhos que
tinham sido introduzidos na taça de arroz a apontar para cima.
– A sério?
– É um símbolo tailandês antigo para lhe desejar a morte.
– Nesse caso, terá de ir para a fila.
Harry lembrou-se de que precisava de pedir uma arma emprestada.
– Vamos lá ver se conseguimos alguma ação antes de a noite terminar –
disse Liz.

Quando se dirigiam para o estádio, foram recebidos por gritos da multidão


ao rubro e três homens que faziam uma grande chinfrineira, qual banda de
escola pedrada com ácidos.
Dois pugilistas com fitas coloridas na cabeça e tiras amarradas a ambos os
braços tinham acabado de entrar no ringue.
– Aquele de calções azuis é o nosso homem, o Ivan – disse Liz.
No exterior do estádio, aliviara Harry de todas as notas que ele tinha no
bolso e entregara-as a um agente de apostas.
Encontraram os seus lugares na fila da frente, atrás do árbitro, e Liz ia
fazendo estalar os lábios de prazer. Trocou algumas palavras com o vizinho.
– Foi o que pensei – disse ela. – Não perdemos nada. Se quer mesmo ver
bons combates tem de vir às terças-feiras. Ou às quintas-feiras ao Lumphini
Park. Senão, há imensas… bem, você sabe.
– Partidas de molho.
– O quê?
– Partidas de molho. É o que lhes chamamos em norueguês. Quando dois
patinadores correm um contra o outro.
– Molho? Isso é quando você leva um enxerto.
Os olhos de Liz tornavam-se duas nesguinhas cintilantes quando se ria.
Harry chegara à conclusão de que gostava de ver e ouvir as gargalhadas dela.
Os dois pugilistas tinham-se desembaraçado das fitas da cabeça, deram a
volta ao ringue e efetuaram um ritual apoiando as cabeças nos postes aos
cantos, ajoelhando-se e executando uns passos de dança simples.
– Chama-se ran muay – disse Liz. – Ele está a dançar em honra do seu kru
pessoal, guru e anjo da guarda do boxe tailandês.
A música cessou e Ivan dirigiu-se ao seu canto, onde ele e o treinador se
inclinaram um para o outro unindo as palmas das mãos.
– Estão a rezar – disse Liz.
– Isso é necessário? – perguntou Harry, preocupado. Tivera os seus bolsos
bem recheados de notas.
– Não, se fizer jus ao seu nome.
– Ivan?
– Todos os pugilistas podem escolher os seus nomes. Ivan adotou o seu de
Ivan Hippolyte, um holandês que venceu um combate no Lumphini Stadium,
em 1995.
– Apenas um?
– Foi o único estrangeiro a vencer no Lumphini. Em toda a história do boxe
tailandês.
Harry virou-se para ver se a expressão dela se fazia acompanhar de uma
piscadela de olho, porém, naquele momento soou o gongo e o combate teve
início.
Os pugilistas aproximaram-se um do outro com cautela, mantendo uma
distância razoável e andando em círculos. Um gancho com o braço esticado
foi facilmente desviado e um pontapé de contra-ataque perdeu-se no ar. A
música aumentou de volume, tal como os vivas da multidão.
– Eles estão apenas a aquecer o ambiente – gritou Liz.
Depois, atacaram-se. Velocidade relâmpago, um rodar de pernas e braços.
As coisas aconteciam tão rapidamente que Harry pouco ou nada via, no
entanto, Liz gemia. Ivan já sangrava do nariz.
– Ele levou uma cotovelada – disse ela.
– Cotovelada? E o árbitro não viu?
Liz sorriu.
– Não é ilegal usar os cotovelos. Muito pelo contrário. Os contactos com as
mãos e os pés marcam pontos, mas, por norma, são os cotovelos e os joelhos
que podem dar origem a um knockout.
– Portanto, as técnicas dos pontapés deles não têm nada que ver com as do
karaté.
– Eu não iria por aí, Harry. Há alguns anos, Honk Kong enviou os seus
cinco melhores campeões de kung-fu a Banguecoque, para ver qual o estilo
que era mais eficaz. O aquecimento e as cerimónias demoraram mais de uma
hora, mas os cinco combates não excederam os seis minutos e meio. Havia
cinco ambulâncias a caminho do hospital. Adivinhe quem seguia nelas?
– Bem, esta noite não existe esse perigo. – Harry bocejou
propositadamente. – Isto é… do caraças!
Ivan agarrara o adversário pelo pescoço e, num movimento rápido, obrigou
a cabeça do homem a baixar enquanto o seu joelho era catapultado. O
adversário caiu de costas, mas conseguiu enrolar os braços nas cordas, pelo
que ficou pendurado mesmo diante de Liz e Harry. O sangue jorrava e
salpicava a lona, como se um cano tivesse rebentado algures. Harry ouviu as
pessoas atrás dele a gritarem em protesto e descobriu que era porque ele se
tinha levantado. Liz puxou-o para baixo.
– Uau! – exclamou ela. – Viu a rapidez do Ivan? Eu disse que ele era
divertido, não disse?
O pugilista de calções vermelhos virara a cabeça para um lado, de modo
que Harry o via de perfil. Reparou que a pele à volta do olho se mexia ao
encher-se de sangue por dentro. Era como ver um colchão de ar a ser
insuflado.
Harry teve uma estranha e nauseante sensação de déjà-vu no momento em
que Ivan avançou para o seu adversário incapacitado, que já não tinha sequer
consciência de estar num ringue de boxe. Ivan não se apressou, observou o
adversário um pouco como um comilão que não sabe se há de começar por
arrancar uma asa ou uma coxa ao frango. Ao fundo, entre os pugilistas, Harry
conseguiu avistar o árbitro. Observava com a cabeça inclinada e os braços ao
lado do corpo. Harry percebeu que ele não ia fazer nada e sentiu o seu
coração bater nas costelas. O grupo de três homens já não parecia um desfile
no Dia da Independência da Noruega, estava fora de controlo e manifestava-
se ruidosamente.
«Para», pensou Harry, e naquele momento ouviu a sua própria voz:
– Arreia-lhe!
Ivan arreou-lhe.
Harry não acompanhou a contagem decrescente. Não viu o árbitro levantar
a mão de Ivan no ar nem a wai do vencedor aos quatro cantos do ringue.
Olhava para o chão de cimento fendido e molhado diante dos seus pés, onde
um inseto tentava fugir de uma gota de sangue. Apanhado numa série de
acontecimentos e coincidências, avançando a custo com sangue até aos
joelhos. Voltara a outro país, a outro tempo e só tornou à realidade quando
levou uma palmada entre as omoplatas.
– Ganhámos! – gritou-lhe Liz ao ouvido.

Estavam na fila para receber o dinheiro do agente de apostas quando Harry


ouviu uma voz familiar falar norueguês:
– Algo me diz que o nosso agente apostou sabiamente e não se limitou a
confiar na sua sorte. De qualquer forma, parabéns.
– Bem – disse Harry, virando-se. – A inspetora Crumley afirma-se uma
perita, por isso, talvez não ande muito longe da verdade.
Apresentou a inspetora a Jens Brekke.
– Também apostou? – perguntou Liz.
– Um amigo meu avisou-me de que o adversário do Ivan estava um pouco
constipado. É curioso o efeito que isso pode ter, hein, menina Crumley? –
Brekke sorriu radiosamente e virou-se para Harry. – Será que podia ajudar-
me numa dificuldade, Hole? Trouxe comigo a filha do Molnes e devia levá-la
a casa, mas um dos meus clientes mais importantes nos Estados Unidos ligou,
e tenho de voltar para o escritório. É o caos, o dólar sobe em flecha e ele tem
de livrar-se de uma carrada de bahts.
Harry olhou na direção que Brekke indicara com a cabeça. Runa Molnes
estava encostada a uma parede, com uma T-shirt Adidas de manga comprida,
meio escondida atrás das multidões que saíam apressadas do estádio. Cruzara
os braços e olhava noutra direção.
– Quando o vi, lembrei-me de que a Hilde Molnes referira que estava
instalado num apartamento da embaixada junto ao rio. Não será um grande
desvio se partilhar um táxi. Prometi à mãe dela…
Brekke agitou uma mão para indicar que este tipo de preocupação materna
era, evidentemente, exagerado; ainda assim, convinha que a promessa fosse
cumprida.
Harry olhou para o seu relógio de pulso.
– Claro que pode – disse Liz. – Pobrezinha. Não é de estranhar que, neste
momento, a mãe fique preocupada.
– Claro – respondeu Harry, forçando um sorriso.
– Ótimo – disse Brekke. – Oh, só mais uma coisa. Importava-se de levantar
também o que ganhei? Deve dar para o táxi. Se restar alguma coisa, presumo
que exista um fundo da Polícia para as viúvas ou isso.
Entregou um recibo a Liz e desapareceu. Os olhos dela arregalaram-se
quando viu os algarismos.
– A questão é: será que existem viúvas em número suficiente? – perguntou
ela.
43 Designação dada por Bobby Charlton ao Estádio Old Trafford do Manchester United desde a sua
construção, em 1910. (N. da T.)
19

Segunda-feira, 13 de janeiro

R una Molnes não pareceu particularmente satisfeita por ser acompanhada


a casa.
– Obrigada, eu cá me arranjo – disse ela. – Banguecoque é quase tão
perigosa quanto a aldeia de Ørsta44 numa segunda-feira à noite.
Harry, que nunca estivera em Ørsta numa segunda-feira à noite, mandou
parar um táxi e abriu a porta para ela entrar. A rapariga fê-lo com relutância,
murmurou uma morada e olhou pela janela.
– Mandei-o seguir para a River Garden – disse ela, passado um pouco. – É
onde vai apear-se, não é?
– Julgava que as instruções eram para a deixar primeiro em casa, frøken
Molnes.
– Frøken? – Soltou uma gargalhada e fitou-o com os olhos negros da mãe.
As sobrancelhas, que quase se uniam, conferiam-lhe a aparência de um elfo45.
– Já parece a minha tia a falar. Diga-me lá, quantos anos tem?
– Temos os anos com que nos sentimos – respondeu Harry. – Por isso,
calculo que eu ande pelos sessenta.
Ela observou-o então com curiosidade.
– Estou com sede – anunciou subitamente. – Se me pagar uma bebida pode
deixar-me depois à minha porta.
Harry inclinou-se e começou a indicar a morada dos Molnes ao taxista.
– Esqueça – disse ela. – Vou insistir para que seja a River Garden e ele vai
pensar que está a tentar enganá-lo. Quer uma cena?
Harry bateu ao de leve no ombro do taxista, Runa começou a gritar e o
homem travou a fundo, fazendo Harry bater com a cabeça no teto. O taxista
virou-se, Runa inspirou para voltar a gritar e Harry ergueu as mãos, em
rendição.
– Está bem, está bem. Para onde, nesse caso? O Patpong fica no caminho,
presumo.
– O Patpong? – Ela revirou os olhos. – Você é velho. Quem lá vai são os
velhos nojentos e os turistas. Nós vamos para a Siam Square.
Ela trocou algumas palavras com o taxista no que, aos ouvidos de Harry,
soou como tailandês irrepreensível.
– Tem namorada? – perguntou-lhe depois de pedir que lhe trouxessem uma
cerveja à mesa, também após ameaçar fazer uma cena.
Estavam num grande restaurante ao ar livre, situado no cimo de uma ampla
escadaria como as dos monumentos, cheia de jovens – estudantes, presumiu
Harry – sentados a observar o tráfego lento e os outros à sua volta. Ela lançou
um olhar desconfiado ao sumo de laranja de Harry, mas, pelos vistos, dados
os antecedentes dela, estava habituada a abstémios. Ou talvez não. Harry
tinha a sensação de que nem todas as regras tácitas sobre festas tinham sido
observadas na família Molnes.
– Não – respondeu Harry, e acrescentou: – Por que carga de água é que
todos me fazem essa pergunta?
– Por que carga de água, hein? – saracoteou-se na cadeira. – Presumo que
costumem ser as raparigas a perguntar, não é verdade?
Ele soltou uma gargalhada.
– Está a tentar deixar-me envergonhado? Fale-me dos seus namorados.
– De qual deles?
Mantinha a mão esquerda escondida no colo e pegou no copo de cerveja
com a direita. Com um sorriso a bailar-lhe nos lábios, recostou-se e cravou os
olhos nele.
– Não sou virgem, se é isso que está a pensar. Por pouco Harry não cuspiu
o sumo que tinha na boca para cima da mesa. – E porque haveria de ser? –
disse ela, levando o copo aos lábios.
«Sim, porque haverias de ser?», pensou Harry.
– Ficou escandalizado? – Pousou o copo de cerveja e assumiu um ar sério.
– Porque haveria de ficar? – Parecia um eco, e ele apressou-se a
acrescentar: – Creio que a minha primeira vez foi por volta da sua idade.
– Sim, mas não quando temos treze anos – disse ela.
Harry inspirou, ponderou cuidadosamente o comentário dela e libertou aos
poucos o ar por entre os dentes. De bom grado abandonaria imediatamente
aquele tema.
– A sério? E que idade tinha ele?
– Isso é segredo. – Voltara a assumir a expressão trocista. – Conte-me lá
porque não tem namorada.
Ele fez uma breve pausa antes de falar, um impulso talvez, para ver se
conseguia retribuir a tática do choque. E contar-lhe que as duas mulheres que
ele, com toda a sinceridade, podia afirmar que tinha amado estavam ambas
mortas. Uma às suas próprias mãos, a outra às de um homicida.
– É uma longa história – afirmou. – Perdi-as.
– As? Houve várias? Se calhar, foi por isso que elas lhe deram com os pés,
não foi? Traiu-as?
Harry detetou a excitação pueril e as gargalhadas na voz dela. Não teve
coragem de lhe perguntar que tipo de relação ela tinha com Jens Brekke.
– Não – respondeu ele. – Apenas não lhes dei a devida atenção.
– Agora ficou com um ar muito sério.
– Peço desculpa.
Permaneceram sentados em silêncio. Ela pôs-se a puxar o rótulo da garrafa
de cerveja. Olhou para Harry. Como se a tentar decidir-se. O rótulo saiu.
– Vá lá – insistiu ela, pegando-lhe na mão. – Quero mostrar-lhe uma coisa.
Desceram as escadas, passando por entre os estudantes, seguiram pelo
passeio e subiram uma ponte pedonal estreita sobre uma avenida larga.
Pararam a meio.
– Olhe – disse-lhe. – Não é uma beleza?
Ele olhou para o trânsito que avançava na direção deles e depois se
afastava. A via estendia-se até onde a vista alcançava, e as luzes dos camiões,
autocarros, automóveis, motorizadas e tuk-tuks eram como um rio de lava que
ia engrossando numa faixa amarela lá ao fundo.
– Parece uma cobra a serpentear com um padrão luminoso no dorso, não
parece?
Ela debruçou-se sobre o corrimão.
– Sabe o que é estranho? As pessoas em Banguecoque matariam de bom
grado pelo pouco que trago nos bolsos neste momento. E, no entanto, nunca
tive medo aqui. Na Noruega, vamos sempre passar os fins de semana à
cabana na montanha. Conheço a cabana e todos os caminhos de olhos
vendados. E nas férias íamos sempre para Ørsta, onde toda a gente se
conhece e roubar nas lojas é notícia de primeira página. E, contudo, é aqui
que me sinto mais segura. Aqui, onde estou rodeada de pessoas por todos os
lados e não conheço ninguém. Não acha estranho?
Harry não soube o que responder.
– Se pudesse escolher, vivia aqui o resto da minha vida. E depois, vinha cá
pelo menos uma vez por semana e ficava a olhar.
– A olhar para o trânsito?
– Sim, adoro o trânsito. – Virou-se bruscamente para ele. Os olhos dela
brilhavam. – Você não?
Harry abanou a cabeça. Ela virou-se de novo para a via.
– É pena. Adivinhe quantos carros se encontram nas ruas de Banguecoque
neste momento? Três milhões. E o número aumenta ao ritmo de mil por dia.
Um condutor em Banguecoque passa diariamente duas a três horas no carro.
Já ouviu falar do Comfort 100? Pode comprá-lo nos postos de abastecimento
de combustível. É um saco para urinar quando ficamos retidos numa fila de
trânsito. Acha que os Esquimós têm uma palavra para trânsito? Ou os
Maoris46?
Harry encolheu os ombros.
– Pense em tudo o que elas não têm – disse ela. – As pessoas que vivem em
lugares onde não podem estar rodeadas de multidões, como aqui. Levante o
braço… – Agarrou-lhe a mão e levantou-a.
– Consegue sentir? A vibração? É a energia de todos os que nos rodeiam.
Está no ar. Se estiver a morrer e pensar que ninguém pode salvá-lo, saia à
rua, levante os braços e absorva a energia de alguém. Pode alcançar a vida
eterna. É verdade!
Os olhos dela brilhavam, todo o rosto dela brilhava, e encostou a mão de
Harry à sua face.
– Consigo sentir que vai ter uma longa vida. Imensamente longa. Mais
longa ainda do que a minha.
– Não me diga… – afirmou Harry. A pele dela escaldava na palma da sua
mão. – Olhe que dá má sorte.
– Mais vale má sorte do que não ter sorte nenhuma, dizia o meu pai.
Ele retirou a mão.
– Não quer a vida eterna? – perguntou-lhe ela, baixinho.
Harry piscou os olhos e percebeu que o seu cérebro tirara um instantâneo
deles ali mesmo, numa ponte pedonal, com pessoas a passar apressadas em
ambos os sentidos e uma serpente marinha brilhante lá em baixo. Tal como
quando se tiram instantâneos de lugares que visitamos porque sabemos que
não vamos estar lá muito tempo. Já antes o fizera, numa noite, a meio de um
salto na piscina do Parque Frogner, noutra noite, em Sydney, quando uma
cabeleira ruiva esvoaçara soprada pelo vento, e numa tarde fria de fevereiro,
no Aeroporto de Fornebru, quando Sis o esperava entre os fotógrafos da
imprensa e os disparos sucessivos dos flashes das máquinas fotográficas.
Sabia que, acontecesse o que acontecesse, podia aceder sempre aos
instantâneos, eles nunca desapareceriam; pelo contrário, ganhariam mais
consistência e substância com o passar dos anos. Naquele momento, sentiu
uma gota cair-lhe no rosto. E depois outra. Olhou para cima, surpreso.
– Tinham-me dito que aqui nunca chovia antes de maio – observou.
– São os aguaceiros das mangas47 – explicou Runa, virando o rosto para o
céu. – Por vezes acontece. Significa que as mangas estão maduras. Não
tardará a chover a potes. Vá lá…

Harry estava prestes a adormecer. O ruído tornara-se menos incómodo e ele


começara a aperceber-se de que havia uma espécie de ritmo no trânsito, uma
espécie de previsibilidade. Na primeira noite, acordara com o som das
buzinadelas. Dali a algumas noites, provavelmente acordaria se não as
conseguisse ouvir. Não se sabia de onde vinha o barulho de um silenciador48
avariado, fazia parte do aparente caos. Só era preciso algum tempo para se
adaptar, como aprender a equilibrar-se num barco.
Combinara encontrar-se com Runa no dia seguinte, num café perto da
universidade, para lhe fazer perguntas sobre o pai. O cabelo dela ainda
escorria quando se apeou do táxi.
Pela primeira vez em muito tempo, ele sonhara com Birgitta. O cabelo
colado à tez pálida. Só que sorria e estava viva.
44 Município do condado de Møre og Romsdal, na região de Sunnmøre, na parte ocidental da Noruega.
(N. da T.)

45 Na mitologia dos países nórdicos, é um génio que simboliza o ar, representado como um anão com
poderes mágicos. (N. da T.)

46 Povo indígena da Nova Zelândia, de origem polinésia. (N. da T.)


47 Termo coloquial usado para descrever a ocorrência de precipitação antes das monções. (N. da T.)

48 Dispositivo que se adapta ao cano de descarga de um veículo a fim de reduzir o ruído da explosão de
combustível. (N. da T.)
20

Terça-feira, 14 de janeiro

T inham bastado quatro horas para o advogado tirar Woo da prisão.


– O doutor Ling. Trabalha para o Sorensen – anunciou Liz na reunião
matinal e suspirou. – O Nho só teve tempo de perguntar ao Woo onde estava
no dia do homicídio, depois acabou-se.
– E o que depreendeu da resposta o detetor de mentiras ambulante? –
perguntou Harry.
– Nada – respondeu Nho. – Ele não estava interessado em contar-nos nada.
– Nada? Merda, e eu a pensar que vocês, os tailandeses, eram exímios na
tortura com água e nos choques elétricos. Por isso, neste momento, temos à
solta um psicopata gigante que quer ver-me morto.
– Será que alguém podia dar-me uma boa notícia? – pediu Liz.
Ouviu-se o estalido seco de um jornal.
– Liguei novamente para o Hotel Maradiz. A primeira pessoa com quem
falei disse que havia um farang que costumava ir lá com uma mulher da
embaixada. O tipo contou que a mulher era branca e que falavam um com o
outro numa língua que lhe parecia poder ser alemão ou neerlandês.
– Norueguês – disse Harry.
– Tentei obter uma descrição dos dois, mas não foram muito elucidativas.
Liz suspirou.
– Sunthorn, vai lá com algumas fotografias e vê se conseguem identificar o
embaixador e a mulher.
Harry torceu o nariz.
– Marido e mulher com um ninho de amor por duzentos dólares a poucos
quilómetros do sítio onde moram? Não é um pouco perverso?
– Segundo o homem com quem falei hoje, eles ficavam lá aos fins de
semana – referiu Rangsan. – Obtive algumas datas.
– Apostava o que ganhei ontem em como não era a mulher dele – disse
Harry.
– Talvez não – respondeu Liz. – De qualquer forma, o mais provável é não
irmos longe.
Deu a reunião por terminada e pediu ao resto da equipa que passasse o dia a
tratar da burocracia relativa aos casos que tinham posto de lado para dar
prioridade máxima ao homicídio do embaixador.
– Então, voltámos à estaca zero? – inquiriu Harry, depois de os outros
terem saído.
– Nunca deixámos de lá estar – respondeu Liz. – Talvez consiga o que
vocês, noruegueses, querem.
– O que nós queremos?
– Esta manhã, tive uma conversa com o nosso chefe da Polícia. Ele esteve
ontem a falar com um senhor Torhus na Noruega, que queria saber quanto
tempo isto podia demorar. As autoridades norueguesas pediram para
esclarecermos esta semana se há ou não algo em concreto. O chefe disse-lhe
que esta era uma investigação sob a jurisdição da Polícia tailandesa e que não
tínhamos por hábito pôr na prateleira casos de homicídio, assim sem mais
nem menos. Porém, mais tarde, recebeu um telefonema do nosso Ministério
da Justiça. Ainda bem que fomos ver as vistas enquanto era tempo, Harry.
Parece que você vai regressar a casa na sexta-feira. A menos que, disseram,
surgisse algo de concreto.

***

– Harry!
Tonje Wiig foi ter com ele à receção, de faces ruborizadas e um sorriso tão
vermelho que desconfiou que ela tivesse aplicado batom antes de sair.
– Temos de tomar um chá – disse ela. – Ao!
Quando ele chegou, a menina Ao olhou para ele, paralisada pelo medo e,
embora ele se tivesse apressado a informar que aquela visita não tinha nada
que ver com a sua pessoa, reparou nos olhos dela, que eram iguais aos de um
antílope junto a uma poça de água, sempre a beber na mira dos leões. Ela
virou-lhes as costas e deixou-os sozinhos.
– Uma rapariga bonita – comentou Tonje, lançando um olhar inquiridor a
Harry.
– Encantadora – disse ele. – Jovem.
Tonje pareceu satisfeita com a resposta e acompanhou-o ao seu gabinete.
– Tentei ligar-lhe a noite passada – informou-o –, mas claro que não estava
em casa.
Harry percebeu que ela queria que lhe perguntasse por que motivo lhe
ligara, no entanto, refreou-se. A menina Ao entrou com o chá, e ele aguardou
que ela se retirasse.
– Preciso de umas informações – disse-lhe.
– Sim?
– Atendendo a que era a encarregada de negócios na ausência do
embaixador, presumo que tenha um registo das ausências dele.
– Como é óbvio.
Indicou-lhe quatro datas, que ela verificou na sua agenda. O embaixador
estivera três vezes em Chiang Mai49 e uma no Vietname. Harry ia tomando
notas lentamente, enquanto se preparava para o desenvolvimento.
– O embaixador conhecia outras norueguesas em Banguecoque para além
da mulher?
– Não… – respondeu Tonje. – Tanto quanto julgo saber. Bem, isto é, para
além de mim.
Harry esperou que ela pousasse a chávena de café antes de lhe perguntar:
– O que me responderia se eu lhe dissesse estar a pensar que você mantinha
uma relação com o embaixador?
Tonje Wiig ficou de queixo caído. Fazia jus à excelência dos cuidados
dentários noruegueses.
– Abrenúncio! – disse de forma tão desprovida de ironia que Harry só pode
presumir que «abrenúncio» ainda existia no vocabulário de algumas
mulheres. Pigarreou.
– Penso que a senhora e o embaixador passaram as datas que acabámos de
verificar no Hotel Maradiz e, a ser verdade, gostaria que me falasse da vossa
relação e me dissesse onde estava no dia em que ele morreu.
Foi surpreendente ver como uma pessoa tão pálida quanto Tonje Wiig pôde
empalidecer ainda mais.
– Devo falar com um advogado? – perguntou, por fim.
– Só se tiver algo a esconder.
Harry viu uma lágrima escorrer-lhe pelo canto do olho.
– Não tenho nada a esconder – retorquiu ela.
– Nesse caso, devia falar comigo.
Ela limpou cuidadosamente o canto do olho, de modo a não esborratar o
rímel.
– Houve alturas em que tive vontade de o matar, detetive.
Harry reparou na mudança da forma de tratamento e aguardou
pacientemente.
– De tal forma, que quase fiquei feliz quando me disseram que estava
morto.
Harry reparou que a língua dela começava a soltar-se. Era importante não
dizer nem fazer nenhuma tolice que interrompesse o fluxo. Uma confissão
raramente vem só.
– Porque ele não queria deixar a mulher?
– Não! – Abanou a cabeça. – O senhor não compreende. Porque ele
estragou tudo por minha causa. Tudo o que…
O primeiro soluço foi tão amargo que Harry percebeu que tocara num
ponto qualquer. Depois, ela recompôs-se e enxugou os olhos.
– Tratou-se de uma nomeação política. Ele não estava minimamente
habilitado para o cargo. Enviaram-no para aqui precipitadamente, como se
não conseguissem tirá-lo da Noruega com rapidez suficiente. Já tinha havido
sinais de que eu seria a candidata ao cargo, mas fui obrigada a entregar as
chaves do gabinete do embaixador a alguém que não sabia distinguir um
encarregado de um adido. E nós nunca tivemos nenhum tipo de relação. Para
mim, só a ideia seria totalmente absurda. Não consegue entender?
– O que aconteceu depois?
– Quando fui chamada para o identificar, esqueci-me por completo da
questão da nomeação; iria ter uma nova oportunidade. Preferi lembrar-me do
homem inteligente e simpático que ele fora. Que ele era! – Proferiu aquelas
palavras como se Harry de alguma forma tivesse contestado. – Apesar de, a
meu ver, ele não ser grande coisa como embaixador. Há aspetos que são mais
importantes do que um emprego e uma carreira. Talvez eu não me devesse
sequer candidatar ao cargo. Veremos. Há tanta coisa em que pensar. Sim,
não, não vou comprometer-me, por enquanto.
Fungou duas vezes e pareceu recuperada.
– Sabe, é muito improvável que um encarregado de negócios seja nomeado
embaixador na mesma embaixada. Tanto quanto julgo saber, nunca
aconteceu.
Tirou um espelho, verificou a maquilhagem e disse, aparentemente de si
para si:
– Mas há sempre uma primeira vez para tudo, presumo.

Assim que Harry entrou no táxi de regresso à esquadra da Polícia, decidiu


eliminar Tonje Wigg da sua lista de suspeitos. Em parte, porque ela fora
convincente; em parte, porque conseguira provar que estivera noutro lugar
nas datas que o embaixador passara no Hotel Maradiz. Tonje confirmara
também que não havia muitas mulheres norueguesas residentes em
Banguecoque por onde escolher.
Por conseguinte, ter de pensar subitamente no impensável foi como um
murro no plexo solar50. Precisamente por não ser tão impensável assim.

A rapariga que transpôs a porta de vidro do Hard Rock Café era muito
diferente da que ele vira no jardim e no funeral, daquela que exibira uma
linguagem corporal introvertida e desligada e o semblante mal-humorado e de
desafio. O rosto de Runa rasgou-se num sorriso quando o avistou, sentado
com uma garrafa de Coca-Cola e um jornal diante de si. Trazia um vestido
azul às flores, de manga curta. Qual ilusionista exímia, a prótese passava
praticamente despercebida.
– Chegou cedo – disse ela com satisfação.
– É difícil calcular o tempo por causa do trânsito – respondeu ele. – Não
quis chegar atrasado.
Ela sentou-se e pediu um chá gelado.
– Ontem. A sua mãe…
– Estava a dormir – respondeu concisamente. Tão concisamente que Harry
presumiu tratar-se de um aviso. Mas ele não tinha tempo para estar com
rodeios.
– Embriagada, é isso?
Ela ergueu o olhar para ele. O sorriso feliz evaporara-se.
– Queria falar sobre a minha mãe?
– Entre outras coisas. Como era a relação dos seus pais?
– Porque não lhe pergunta?
– Porque acho que você mente mal – respondeu com sinceridade.
– Ah, sim? Nesse caso, eles pareciam cão e gato. – Retomara a expressão
de desafio.
– Tão mal assim?
Ela contorceu-se.
– Lamento, Runa, mas é o meu trabalho.
Ela encolheu os ombros.
– A minha mãe e eu não nos damos bem. Mas eu e o pai éramos grandes
amigos. Creio que ela tinha ciúmes.
– De quem?
– De nós os dois. Dele. Não sei.
– Porquê dele?
– Ele não parecia precisar dela. Ela era quase invisível para ele…
Harry nem queria acreditar no que se preparava para perguntar. Mas já vira
tantas coisas horríveis ao longo dos anos… Hesitou.
– Por vezes, o seu pai levava-a a um hotel, Runa? O Hotel Maradiz, por
exemplo.
Viu o espanto no rosto dela.
– Como assim? Por que motivo o faria?
Harry baixou o olhar para o jornal em cima da mesa, no entanto, obrigou-se
a erguê-lo.
– O quê? – perguntou ela de súbito, agitando energicamente a colher na
chávena e fazendo transbordar o chá. – Você diz cada coisa mais estranha.
Onde pretende chegar?
– Bem, Runa, eu sei que é difícil, mas penso que o seu pai fez coisas das
quais se viria a arrepender.
– O pai? O pai arrependia-se sempre. Arrependia-se, arcava com a culpa e
queixava-se… mas a bruxa não o deixava em paz. Andava sempre em cima
dele, não és isto e não és aquilo e arrastaste-me para aqui, etc., etc. Ela
julgava que eu não ouvia, mas ouvia. Cada palavra. Ela não tinha sido feita
para viver com um eunuco, ela era uma mulher cheia de paixão. Eu disse ao
meu pai que se fosse embora, mas ele recusou-se. Por minha causa. Ele não o
disse, mas eu sabia que era por isso.
– O que estou a tentar dizer – afirmou ele, baixando a cabeça para a olhar
nos olhos – é que o seu pai não tinha os mesmos desejos sexuais dos outros.
– É por isso que está tão atrapalhado? Por pensar que eu não sabia que o
meu pai era gay?
Harry resistiu ao impulso de abrir a boca.
– O que quer dizer exatamente com gay? – perguntou.
– Bicha. Homossexual. Larilas. Paneleiro. Panasca. Eu sou o resultado das
ínfimas quecas que a bruxa conseguiu arrancar ao meu pai. Ele achava-a
repugnante.
– Ele disse isso?
– Ele era demasiado decente para dizer algo do género. Mas eu sabia. Eu
era a melhor amiga dele. Ele disse isso. De vez em quando, dava a impressão
de que eu era a sua única amiga. «Tu e os cavalos são as únicas coisas de que
eu gosto», disse-me uma vez. Eu e os cavalos. Esta é boa, não? Penso que ele
teve um amante, um tipo, quando era estudante, antes de ter conhecido a
minha mãe. Mas ele deixou-o, não quis assumir a relação. Era justo. O pai
também não queria. Foi há muito tempo. As coisas eram diferentes na altura.
Proferiu aquelas palavras com a confiança inabalável de uma adolescente.
Harry levou a Coca-Cola à boca e bebeu devagar. Precisava de ganhar
tempo. Os desenvolvimentos não eram o que esperara.
– Quer saber quem estava no Hotel Maradiz? – perguntou-lhe Runa. – A
minha mãe e o amante dela.
49 Em tailandês «rosa do Norte», é a segunda maior cidade da Tailândia. Trata-se da capital cultural do
Norte da Tailândia e da província de Chiang Mai. Situa-se 800 km a norte de Banguecoque, numa
região montanhosa. A cidade é banhada pelo rio Ping, afluente do Chao Phraya. (N. da T.)

50 Agrupamento autónomo de células nervosas no corpo humano, localizado na cavidade abdominal


por detrás do estômago e abaixo do diafragma. (N. da T.)
21

Terça-feira, 14 de janeiro

O s ramos brancos e gelados estendiam os seus dedos em direção ao céu


pálido de inverno por cima dos Jardins do Palácio. Dagfinn Torhus
encontrava-se à janela, a ver um homem que subia a correr a Haakon VII
Gate tiritando e com a cabeça encolhida entre os ombros. O telefone tocou.
Torhus viu pelo relógio de parede que estava na hora do almoço. Seguiu o
homem até ele desaparecer de vista junto à estação do Metro, depois levantou
o auscultador e disse o seu nome. Ouviram-se interferências na ligação antes
de a voz chegar até ele.
– Vou dar-lhe mais uma oportunidade, Torhus. Se não a aproveitar,
certificar-me-ei de que o Ministério anuncia a vaga para o seu cargo mais
depressa do que você consegue dizer «Polícia norueguesa enganada
intencionalmente por diretor do Ministério dos Negócios Estrangeiros». Ou
«Embaixador norueguês vítima de homicida gay». Ambas dão manchetes
interessantes, não lhe parece?
Torhus sentou-se.
– Onde está, Hole? – perguntou, à falta de algo melhor para dizer.
– Acabei de ter uma longa conversa com o meu chefe da Brigada
Anticrime. Perguntei-lhe de quinze maneiras diferentes o que raio fazia este
Atle Molnes em Banguecoque. Tudo o que descobri até ao momento sugere
que ele era o menos indicado para o cargo de embaixador, depois do
desbragado Reinulf Steen51. Não consegui resolver o problema, mas pude
confirmar a sua existência. Presumo que esteja obrigado a guardar segredo,
por isso remeteu-me para si. A mesma questão de sempre. O que é que eu
desconheço, mas você sabe? Para sua informação, estou aqui sentado com um
fax ao meu lado e os números dos jornais Verdens Gang, Aftenposten e
Dagbladet.
A voz de Torhus transportou o frio invernal até Banguecoque.
– Eles não divulgam informações sem fundamento de um polícia alcoólico,
Hole.
– Se forem de um polícia alcoólico famoso, pode crer que divulgam.
Torhus não respondeu.
– A propósito, penso que o Sunnmørsposten também vai dar cobertura ao
caso.
– Você fez um pacto de confidencialidade – disse Torhus, num tom
submisso. – Será processado.
Hole soltou uma gargalhada.
– Venha o diabo e escolha, não? Saber o que eu sei e não o investigar seria
incumprimento do dever. Isso também é punível, sabe? Por alguma razão,
sinto ter menos a perder do que você, se houver uma quebra de
confidencialidade.
– E quem me garante… – começou Torhus, mas foi interrompido por
interferências na ligação. – Estou?
– Continuo aqui.
– E quem me garante que guarda para si o que eu lhe contar?
– Ninguém.
O eco fez com que soasse como se ele tivesse dado três vezes a resposta.
Silêncio.
– Confie em mim – disse-lhe Harry.
Torhus resfolegou.
– E porque o faria?
– Porque não tem alternativa.
O diretor viu pelo relógio de parede que estava atrasado para o almoço. A
sanduíche de rosbife em pão de centeio provavelmente já se acabara no
refeitório, mas isso não tinha muita importância, ele perdera o apetite.
– Isto não pode vir a público – disse. – E estou a falar muito a sério.
– Não é essa a intenção.
– Muito bem, Hole. De quantos escândalos envolvendo o Partido da
Democracia Cristã já ouviu falar?
– Alguns.
– Precisamente. Durante anos, os democratas-cristãos não passaram de um
pequeno partido pacato com o qual ninguém se preocupava muito. Enquanto
a imprensa andava a fossar escândalos na elite no poder do Partido Socialista
e nos excêntricos do Partido do Progresso, os deputados democratas-cristãos
podiam, na sua maioria, viver a vida sem grande escrutínio. Com a mudança
de governo isso deixou de ser possível. Quando se deu, não tardou a ficar
claro que o Atle Molnes, não obstante a sua competência e longa experiência
no Storting52, não seria considerado ministeriável. Andar a vasculhar a vida
privada dele acarretaria um risco que um partido cristão com valores pessoais
no seu programa não quereria correr. O partido não pode rejeitar a ordenação
de padres homossexuais e ter simultaneamente ministros homossexuais.
Estou convicto de que o Molnes tinha a noção disso. Mas, quando foram
apresentados os nomes do novo governo, surgiram diversas reações na
imprensa. Porque não fora o Atle Molnes incluído? Depois de ele ter estado
afastado durante algum tempo para dar margem ao primeiro-ministro
enquanto líder partidário, a maior parte dos observadores via-o como o
número dois, ou pelo menos o três ou o quatro. Colocaram-se perguntas e
reacenderam-se os boatos sobre a sua homossexualidade, que tinham surgido
pela primeira vez quando ele se demitira de candidato a líder do partido.
Claro que agora sabemos que existem muitos deputados gays, por isso, qual a
razão de tanto alarido, poder-se-ia perguntar. Bem, o mais curioso neste caso,
para além do facto de o homem ser democrata-cristão, é ser amigo chegado
do primeiro-ministro; estudaram juntos, dividiram, inclusivamente, um
estúdio. E foi apenas uma questão de tempo até isso chegar aos jornais. O
Molnes não estava no governo, no entanto, a situação começava a ficar
complicada para o primeiro-ministro, em termos pessoais. Todos sabiam que,
desde o início, o PM e o Molnes se tinham apoiado mutuamente em termos
políticos, e quem acreditaria nele se afirmasse que não se apercebera das
tendências sexuais do Molnes ao longo de todos aqueles anos? Já para não
falar de todos os eleitores que tinham apoiado o PM por causa das ideias bem
definidas sobre as uniões de facto e outras depravações, quando ele próprio
criara uma cobra no seu seio, para ser um pouco bíblico? Em que é que isso
ajudava a estabelecer a confiança? A popularidade pessoal do PM tinha sido,
até então, uma das garantias mais importantes para conseguir manter um
governo minoritário, e dispensava-se bem um escândalo. Era óbvio que
precisavam de tirar o Molnes do país o mais rapidamente possível. Ficou
então decidido que seria preferível um cargo de embaixador no estrangeiro,
porque, desse modo, não poderiam acusar o PM de estar a afastar um colega
de partido com um longo e fiel serviço no frio. Foi então que me
contactaram. Agimos rapidamente. O cargo de embaixador em Banguecoque
ainda não tinha sido formalmente ocupado e, assim, ele ficava bastante
distante e a imprensa deixava-o em paz.
– Jesus Cristo! – exclamou Harry, após uma pausa.
– Concordo – reforçou Torhus.
– Sabia que a mulher tinha um amante?
Torhus soltou uma gargalhada abafada.
– Não, mas teria de me dar muito boas razões para eu apostar que ela não
tinha um.
– Porquê?
– Em primeiro lugar, porque calculo que os maridos homossexuais façam
vista grossa a esse tipo de coisa. Em segundo, existe algo na cultura do
Ministério que encoraja as relações extraconjugais. Na verdade, por vezes até
dão origem a novos casamentos. Aqui no Ministério, é muito difícil andar nos
corredores sem dar de caras com ex-cônjuges, ou amantes, antigos ou atuais.
O serviço é conhecido pela sua endogamia. Somos piores do que o raio da
Radiotelevisão Norueguesa.
Torhus continuava a rir-se.
– O amante não é do Ministério – disse Harry. – Há um norueguês que é
um Gekko53 local, um corretor de moeda graúdo. O Jens Brekke. A princípio,
julguei que estivesse envolvido com a filha, mas afinal é com a Hilde
Molnes. Conheceram-se assim que a família chegou e, de acordo com a filha,
é mais do que uma relação esporádica. Na verdade, até é bastante sério, e a
filha presume que, mais cedo ou mais tarde, irão viver juntos.
– Muito me conta.
– Pelo menos, dá um possível motivo à mulher. E ao amante.
– Porque o Molnes era um obstáculo?
– Não, pelo contrário. Segundo a filha, a Hilde Molnes recusou-se a
abandonar o marido. Depois de ficar com as ambições políticas reduzidas,
presumo que a fachada que o casamento permitia perdera consideravelmente
a importância. Ela deve ter feito chantagem com ele quanto ao direito de ver
a filha. Não é o que costuma acontecer? Não, o móbil provavelmente não será
tão nobre. A família Molnes é dona de metade de Ørsta.
– Precisamente.
– Pedi à Brigada Anticrime que verificasse se existia um testamento e o que
o Atle detinha em termos de ações da família e outros bens.
– Bom, essa não é a minha área, Hole, mas não estará a complicar um
pouco as coisas? Podia muito bem ter sido um louco que foi bater à porta do
embaixador e o matou com um punhal.
– Talvez. Diga-me, Torhus, em princípio será importante se este louco for
norueguês?
– Como assim?
– Os verdadeiros loucos não apunhalam um tipo para depois eliminarem
todas as provas relevantes do local do crime. Deixam uma série de enigmas
para mais tarde poderem brincar aos polícias e ladrões. Neste caso, temos um
punhal com o cabo trabalhado, e é tudo. Acredite em mim, isto foi um
homicídio cuidadosamente planeado por alguém que não é dado a
brincadeiras, que queria o trabalho bem feito e que o caso fosse abandonado
por falta de provas. Mas vá-se lá saber, talvez baste ser-se louco para se
cometer um homicídio assim. E, neste caso, os únicos loucos que conheci até
ao momento são noruegueses.
51 Político norueguês (1933-2014) do Partido Trabalhista. Desempenhou funções de 1958 a 1990. Foi
duas vezes presidente da Internacional Socialista. Abalou a opinião pública ao divulgar nas suas
memórias a existência de problemas psiquiátricos, as dificuldades no seio do partido e outros aspetos da
atualidade de então. (N. da T.)

52 Parlamento da Noruega. (N. do E.)

53 Gordon Gekko, personagem de ficção do filme de 1987, Wall Street. Foi interpretada por Michael
Douglas, que ganhou um Óscar para Melhor Ator. (N. da T.)
22

Terça-feira, 14 de janeiro

H arry encontrou finalmente a entrada entre dois bares de strip na Soi 1 no


Patpong. Subiu as escadas e entrou numa sala meio às escuras, onde
uma ventoinha gigante rodava preguiçosamente. Harry encolheu-se
involuntariamente sob as enormes pás; ostentava já marcas que provavam
que os vãos das portas e outras construções domésticas não se encontravam
adaptados ao seu metro e noventa e dois de altura.
Hilde Molnes estava sentada a uma mesa, ao fundo do restaurante. Os
óculos de sol que usava para preservar o anonimato tinham o efeito de fazer
recair as atenções sobre ela, pensou.
– Na verdade, não aprecio a aguardente de arroz – disse ela, esvaziando o
copo. – O Mekong é a exceção. Posso oferecer-lhe um copo, detetive?
Harry abanou a cabeça. Ela estalou os dedos e viu o copo ficar cheio.
– Aqui já me conhecem – disse. – Param quando entendem que já tenho a
minha conta. E, nessa altura, por norma, já a atingi. – Soltou uma gargalhada
rouca. – Espero que não se importe que nos encontremos aqui. A casa está…
um pouco triste agora. Qual é a finalidade desta audiência, detetive?
Articulou as palavras com clareza, como fazem as pessoas que
habitualmente tentam esconder que estiveram a beber.
– Acabámos de ser informados de que a senhora e o Jens Brekke costumam
encontrar-se com regularidade no Hotel Maradiz.
– Bravo! – disse Hilde Molnes. – Finalmente alguém que faz o seu
trabalho. Se falar com o empregado de mesa daqui ele poderá confirmar que
herr Brekke e eu também costumamos encontrar-nos aqui com regularidade.
– Proferiu as palavras com desprezo. – Escuro, anónimo, sem outros
noruegueses e, ainda por cima, servem o melhor plaa lòt. Gosta de enguias,
Hole? Enguias de água salgada?
Harry recordou-se do homem que tinham trazido para terra ao largo de
Drøbak. Estivera uns dias no mar e o rosto pálido e cadavérico fitara-os com
um ar de surpresa pueril. Algo lhe comera as pálpebras. No entanto, o que lhe
chamara a atenção fora a enguia. A sua cauda saía da boca do homem e
debatia-se para cá e para lá como um chicote de prata. Harry ainda se
recordava do aroma salgado no ar, por isso devia ser uma enguia de água
salgada.
– O meu avô praticamente só comia enguias – disse ela. – Desde pouco
antes de começar a guerra até morrer. Empanturrava-se delas, nunca ficava
saciado.
– Também me deram informações relativas ao testamento.
– Sabe porque é que ele comia tantas enguias? Oh, claro que não sabe. Ele
era pescador, mas isto foi antes da guerra e as pessoas não queriam comer
enguias em Ørsta. Sabe porquê?
Viu estampar-se-lhe no rosto a mesma dor que vira no jardim.
– Fru Molnes…
– Estou a perguntar-lhe se sabe porquê?
Harry abanou a cabeça.
Hilde Molnes baixou a voz e bateu com uma unha vermelha na toalha de
mesa enquanto articulava cada sílaba.
– Bem, um barco tinha-se afundado naquele inverno, apenas a algumas
centenas de metros de terra, o tempo estava de acalmia, mas o frio era tanto
que nenhum dos nove homens a bordo sobreviveu. Há um canal por baixo do
sítio onde o barco se virou e nem um só corpo foi encontrado. Depois, as
pessoas afirmaram que uma enorme quantidade de enguias afluíra ao fiorde.
Sabe, dizem que as enguias comem os náufragos. Muitas das vítimas eram
familiares dos habitantes de Ørsta, por isso a venda de enguias caiu a pique.
As pessoas não ousavam regressar a casa com enguias nos sacos das
compras. Então, o meu avô calculou que fosse mais vantajoso vender todo o
outro peixe e alimentar-se das enguias. Nascido e criado em Sunnmøre,
sabe…
Levou o copo à boca e depois pousou-o em cima da mesa. Espalhou-se um
círculo escuro na toalha.
– Depois, acho que lhe tomou o gosto. «Eram apenas nove», dissera o avô.
«Não devem ter chegado para tantas. Posso ter comido uma ou outra que se
alimentou dos desgraçados, e depois? Não notei qualquer diferença no
sabor.» Qualquer diferença! Essa teve piada.
Soou como um eco de algo.
– O que lhe parece, Hole? Acha que as enguias comeram os homens?
Harry coçou-se por detrás da orelha.
– Bem, há quem diga que as cavalas também comem carne humana. Não
sei. Provavelmente todas dão umas trincas, imagino. Estou a referir-me aos
peixes. – Harry deixou-a terminar a bebida. – Um colega meu em Oslo
acabou de falar com o advogado da empresa do seu marido, o Bjørn Hardeid,
em Ålesund. Como provavelmente saberá, os advogados podem quebrar o
sigilo profissional quando o cliente morre e se, na sua opinião, a informação
não prejudicar a reputação do mesmo.
– De facto, desconhecia-o.
– Bem, o Bjørn Hardeid não queria abrir a boca. Então, o meu colega ligou
ao irmão do Atle, mas, infelizmente, também não conseguiu arrancar-lhe
grande coisa. Ele fechou-se em copas assim que o meu colega avançou a
teoria de que o Atle não era detentor de uma parte tão significativa da fortuna
da família quanto muitos estariam à espera.
– O que o leva a pensar semelhante coisa?
– Um homem que não consegue pagar uma dívida de jogo de setecentas e
cinquenta mil coroas não é necessariamente pobre, mas definitivamente não é
alguém que tem à sua disposição uma parte substancial de uma fortuna
familiar de duzentos milhões de coroas.
– Onde…?
– O meu colega ligou para o registo comercial de Brønnøysund e obteve os
números da Mobílias Molnes. Evidentemente que o capital registado é
menor, mas ele descobriu que a empresa consta da lista das PME, por isso
ligou a um corretor que lhe conseguiu dizer quanto valia em bolsa. A Molnes
Holding é uma empresa familiar com quatro acionistas: três irmãos e uma
irmã. Todos os irmãos fazem parte da direção da Mobílias Molnes e não há
registo de qualquer informação sobre a venda de ações desde que foram
transferidas da Molnes Senior para a Holding; por isso, a menos que o seu
marido tenha vendido a parte dele na Holding a um dos irmãos, caber-lhe-iam
no mínimo… – Harry consultou o bloco onde anotara cada palavra que lhe
fora dita pelo telefone. – Cinquenta milhões de coroas.
– Vejo que foram minuciosos.
– Não percebi metade do que acabei de dizer, apenas sei que isto significa
que alguém está a reter o dinheiro do seu marido, e gostaria de perceber
porquê.
Hilde Molnes olhou-o por cima do copo.
– Quer mesmo saber?
– E porque não?
– Não tenho a certeza de que aqueles que o enviaram imaginassem que
fosse necessário revirar tanto a… vida privada do embaixador.
– Já sei demasiado, fru Molnes.
– Sabe sobre…?
– Sei.
– Exatamente…
Ela fez uma pausa enquanto terminava o seu Mekong. O empregado
aproximou-se para voltar a encher o copo, mas ela mandou-o embora.
– Se também sabe que a família Molnes tem uma longa tradição de ir à
capela da Missão Interna54 só para aquecer os bancos e de pertencerem ao
Partido da Democracia Cristã, talvez consiga deduzir o resto.
– Talvez, mas preferia que me contasse.
Ela sentiu um calafrio, como se apenas naquele momento tivesse
conseguido saborear o travo amargo da aguardente de arroz.
– A decisão coube ao pai do Atle. Quando começaram a circular boatos
relacionados com a sua candidatura a líder do partido, o Atle contou a
verdade ao pai. Uma semana depois, o pai alterou o testamento. Referia que a
parte da fortuna da família que cabia ao Atle ficava em seu nome, mas o
direito de alienação era transferido para a Runa. Esse direito entra em vigor
quanto ela completar vinte e três anos.
– E quem tem direito ao dinheiro até lá?
– Ninguém. O que significa que fica no negócio da família.
– E o que acontece agora que o seu marido morreu?
– Agora – disse Hilde, passando um dedo pela borda do copo. – Agora a
Runa vai herdar o dinheiro todo. E o direito de alienação é transferido para o
encarregado de educação até ela completar vinte e três anos.
– Portanto, se bem entendi as suas palavras, o dinheiro foi libertado e
encontra-se à sua disposição.
– Parece que sim, efetivamente. Até a Runa completar vinte e três anos.
– E quais são as implicações que o direito de alienação acarreta?
Hilde Molnes encolheu os ombros.
– Na verdade, não pensei muito no assunto. Só fui informada há uns dias.
Pelo Hardeid.

– Logo, esta cláusula sobre o direito de alienação poder ser transferido para
si não era algo de que tivesse já conhecimento?
– Pode ter sido mencionado. Assinei uns papéis, mas isto é extremamente
complicado, não lhe parece? De qualquer forma, nunca prestei atenção antes.
– Não mesmo? – perguntou Harry distraidamente. – Pensei que me tinha
referido algo sobre as pessoas de Sunnmøre…
Ela sorriu languidamente.
– Sempre fui uma má filha da terra.
Harry observou-a com atenção. Estava a fingir-se mais embriagada do que
realmente estava? Coçou o pescoço.
– Há quanto tempo é que a senhora e o Jens Brekke se conhecem?
– Há quanto tempo andamos a foder, é a isso que se refere?
– Bom, a isso também.
– Ora bem, vamos lá estabelecer a sequência correta. Deixe-me cá ver… –
Hilde Molnes franziu o sobrolho e semicerrou os olhos virando-se para o teto.
Tentou apoiar o queixo na mão, mas ele resvalou, e Harry percebeu que se
enganara. Ela estava bêbeda que nem um cacho.
– Conhecemo-nos na receção ao Atle, dois dias depois de chegarmos a
Banguecoque. Começou às oito, a comunidade norueguesa em peso fora
convidada e decorreu no jardim em frente da residência do embaixador. Ele
fodeu-me na garagem, isso deve ter sido passadas duas ou três horas,
suponho. Digo que ele me fodeu porque, provavelmente eu estava tão bêbeda
que ele nem precisou da minha cooperação. Ou consentimento. Mas teve-o na
ocasião seguinte. Ou então na que se seguiu a essa, não me lembro. De
qualquer forma, após alguns encontros, ficámos a conhecer-nos. Foi isso que
perguntou? Sim e, de então para cá, continuámos a conhecer-nos ainda
melhor. Já se dá por satisfeito, detetive?
Harry ficou irritado. Talvez fosse a maneira como ela exibira indiferença e
autodesprezo. Certo é que não lhe dera motivos para continuar a tratá-la com
paninhos quentes.
– Disse que não saiu de casa no dia em que o seu marido morreu. Onde
esteve exatamente desde as cinco da tarde até a informarem de que ele fora
encontrado morto?
– Não me lembro.
Soltou uma gargalhada esganiçada. Fez lembrar um corvo a crocitar numa
floresta silenciosa, e Harry percebeu que tinham começado a dar nas vistas.
Numa ocasião, por pouco ela não caiu da cadeira, mas conseguiu recuperar o
equilíbrio.
– Tire esse ar preocupado, detetive. Eu tenho um álibi, sabe? Não é assim
que se chama? Sim, de facto, um álibi fantástico, posso garantir-lhe. Penso
que a minha filha estará disposta a testemunhar que eu não me conseguia
mexer muito naquela manhã. Recordo-me de abrir uma garrafa de gin depois
do jantar e calculo que tenha adormecido, acordado, tomado mais uma
bebida, adormecido, acordado e assim sucessivamente. Tenho a certeza de
que compreende.
Harry compreendeu.
– Tem algo mais que queira perguntar-me, Hole?
Arrastou as duas vogais do nome dele, não muito, mas o suficiente para o
provocar.
– Apenas se matou o seu marido, fru Molnes.
Com um movimento ágil e extraordinariamente rápido, ela agarrou o copo
e antes que ele conseguisse detê-la, sentiu-o roçar-lhe a orelha e ouviu-o
estilhaçar-se contra a parede por detrás deles. Depois, ela esboçou um esgar.
– Depois disto pode não acreditar, mas fui a melhor marcadora da Divisão
14-16 das Ørsta Girls. – A voz dela estava calma, como se já tivesse deitado
para trás das costas o que acontecera. Harry olhou para os rostos assustados
que se tinham virado para eles. – Dezasseis anos, foi há um ror de tempo. Eu
era a rapariga mais bonita de… hum, provavelmente já lhe disse isto. E, nessa
altura, tinha curvas, não era como agora. Eu e uma amiga costumávamos
entrar acidentalmente de propósito no vestiário dos árbitros enroladas em
toalhas minúsculas, e dizíamos que nos tínhamos enganado na porta a
caminho do balneário. Tudo pela equipa, claro. Mas não creio que tenha
surtido grande efeito sobre os árbitros. Provavelmente estranharam irmos
tomar um duche antes do jogo.
Pôs-se subitamente em pé e gritou:
– Ørstagut, hei, hei, hei, Ørstagut, hei, hei, hei!
Deixou-se cair na cadeira. Fizera-se silêncio na sala.
– Era assim que os encorajávamos. Gritávamos pelos rapazes de Ørsta
porque a palavra para as raparigas não resulta, é isso. Perde completamente o
ritmo. Bem, quem sabe, talvez gostássemos simplesmente de nos exibir.
Harry agarrou-a pelo braço e ajudou-a a descer os degraus. Indicou a
morada dela ao taxista, deu-lhe uma nota de cinco dólares e pediu-lhe que se
certificasse de que ela chegava a casa em segurança. Provavelmente, o
homem não percebera muito do que ele lhe dissera, mas deu a impressão de
ter entendido o que ele pretendia.
Harry entrou num bar na Soi 2, ao fundo, na direção do bairro Silom. Não
havia quase ninguém ao balcão e, no palco, duas raparigas que não tinham
sido compradas para a noite dançavam energicamente, pelos vistos, já sem
muitas esperanças de que isso ainda viesse a acontecer. Bem podiam estar a
lavar loiça enquanto sacudiam conscienciosamente as pernas e os seios
subiam e desciam ao som de «When Susannah Cries»55. Harry não conseguia
dizer ao certo qual lhe parecia mais triste.
Colocaram diante dele uma cerveja que não pedira. Deixou-a intacta, pagou
e ligou para a esquadra da Polícia de uma cabina telefónica junto à casa de
banho dos homens. Não viu nenhuma porta para a das senhoras.
54 Movimento evangelista alemão criado por Johann Heinrich Wichern em 1848. Propagou-se
rapidamente a outros países. Procurava um «renascimento» do cristianismo através da doutrina do amor
fraterno e de um programa de serviço social e educação cristã. (N. da T.)

55 Sucesso musical da década de 1990 criado pelo cantor, compositor e produtor musical norueguês
Espen Lind. (N. da T.)
23

Terça-feira, 14 de janeiro

U ma ligeira brisa passou-lhe por entre o cabelo cortado muito curto.


Harry encontrava-se de pé, num beiral de tijolo na extremidade de um
telhado, a observar a cidade. Quando semicerrou os olhos, a sensação foi a de
uma alcatifa com luzes brilhantes a piscar.
– Desça daí – disse uma voz atrás dele. – Está a deixar-me nervosa.
Liz estava sentada numa espreguiçadeira, com uma lata de cerveja na mão.
Harry passara pela esquadra e encontrara-a atolada em pilhas de relatórios
que tinham de ser lidos. Era quase meia-noite, e ela concordara que estava na
hora de dar o dia por terminado. Depois de Liz trancar o gabinete, tinham
subido no elevador até ao décimo primeiro andar, e ao constatarem que a
porta para o telhado ficava trancada durante a noite, saíram por uma janela,
puxaram uma escada de incêndio e treparam por ela acima.
O ruído de uma sirene de nevoeiro propagou-se através do cobertor de lã do
trânsito automóvel.
– Ouviu aquilo? – perguntou-lhe Liz. – Quando eu era pequena, o meu pai
costumava dizer que, em Banguecoque, era possível ouvir os elefantes a
chamarem-se uns aos outros quando eram transportados em barcos. Vinham
da Malásia porque as florestas no Bornéu tinham sido abatidas e os elefantes
eram acorrentados ao convés a caminho das florestas no norte da Tailândia.
Muito tempo depois de aqui chegar, ainda julgava que eram os barritos dos
elefantes.
O eco cessou.
– A fru Molnes tem um motivo, mas será suficientemente bom? – indagou
Harry ao descer do beiral. – Você seria capaz de matar uma pessoa só para
poder dispor de mais de cinquenta milhões de coroas durante seis anos?
– Depende de quem eu tivesse de matar – respondeu Liz. – Conheço
algumas pessoas que matariam por muito menos.
– Quero dizer: cinquenta milhões de coroas durante seis anos equivalem a
cinco milhões durante sessenta anos?
– Negativo.
– Precisamente. Merda!
– Gostava que tivesse sido ela? A senhora Molnes?
– Vou dizer-lhe do que gostava. Gostava que descobríssemos o raio do
assassino para eu poder voltar para o meu país.
Liz soltou um arroto monumental; foi impressionante. Anuiu em
assentimento e pousou a cerveja.
– Pobre filha. O nome dela é Runa, certo?
– É uma rapariga rija.
– Tem a certeza?
Ele encolheu os ombros e ergueu um braço na direção do céu.
– O que está a fazer? – perguntou-lhe Liz.
– A pensar.
– Refiro-me à mão. O que é isso?
– Energia. Estou a recolher a energia de todas as pessoas lá em baixo.
Dizem que confere a vida eterna. Acredita nesse tipo de coisa?
– Deixei de acreditar na vida eterna quando tinha dezasseis anos, Harry.
Harry virou-se, mas não conseguiu ver-lhe o rosto na noite.
– O seu pai?
Viu o contorno nítido da cabeça dela em anuência.
– Iá. Ele carregava o mundo nos ombros, o meu pai. Pena que fosse tão
pesado.
– Como…? – Remeteu-se ao silêncio.
Ouviu-se um ruído seco quando ela amachucou a lata de cerveja.
– É só mais uma história triste sobre um veterano do Vietname, Harry.
Encontrámo-lo na garagem, fardado, com a espingarda de serviço ao lado.
Escrevera uma longa carta, não a nós, mas ao Exército americano. Dizia que
não suportava a ideia de ter fugido às suas responsabilidades. Tivera
consciência disso quando estava a entrar para o helicóptero que ia descolar do
telhado da Embaixada Americana em Saigão, em 1973, vendo os sul-
vietnamitas, desesperados, a invadirem o local para se refugiarem das forças
atacantes. Deixou escrito que era tão responsável quanto a Polícia que usara
as coronhas das armas para os repelir, quanto todos aqueles que tinham
prometido que iam vencer a guerra, que tinham prometido a democracia. Na
qualidade de militar, considerava-se igualmente responsável pela decisão do
Exército americano de dar prioridade à evacuação a expensas dos vietnamitas
que tinham combatido lado a lado com eles. O meu pai dedicara-lhes os seus
esforços militares e lamentava não ter estado à altura das suas
responsabilidades. Por fim, despedia-se de mim e da minha mãe e dizia que
devíamos tentar esquecê-lo o mais rapidamente possível.
Harry sentiu vontade de fumar.
– Isso é arcar com uma tremenda responsabilidade – comentou ele.
– Pois é, mas presumo que, às vezes, seja mais fácil assumir a
responsabilidade pelos mortos do que pelos vivos. Os que ficam têm de
cuidar deles, Harry. Dos vivos. Afinal, é essa responsabilidade que nos
move.
Responsabilidade. Se havia algo que ele tentara enterrar no ano anterior
tinha sido a responsabilidade. Tanto pelos vivos como pelos mortos, por si
próprio ou pelos outros. A responsabilidade só trazia culpa e de qualquer
forma nunca era recompensadora. Não, não via mesmo como podia ser
movido pela responsabilidade. Talvez Torhus tivesse razão, talvez os motivos
que tinha para querer que se fizesse justiça não fossem, afinal, assim tão
nobres. Talvez tivesse sido apenas a sua estúpida ambição a impedi-lo de
permitir que o caso fosse arquivado e a deixá-lo tão ansioso por apanhar
alguém, fosse quem fosse, desde que conseguisse encontrar as provas
condenatórias e colocar um carimbo de «Resolvido» na pasta do caso. As
manchetes nos jornais e as palmadas nas costas quando regressara da
Austrália tinham significado, de facto, assim tão pouco, como ele gostava de
acreditar? Será que esta ideia de querer passar por cima de tudo e de todos só
para voltar ao caso de Sis não era apenas um pretexto? Porque se tornara tão,
mas tão, importante para si ser bem-sucedido.
Por um segundo reinou o silêncio, foi como se Banguecoque inspirasse.
Depois, a sirene de nevoeiro voltou a cortou o ar. Um lamento. Parecia um
elefante muito solitário, pensou Harry. E depois os carros recomeçaram a
fazer soar as suas buzinas.
Quando regressou ao apartamento encontrou um bilhete em cima do tapete.
Estou na piscina. Runa.
Harry tinha reparado na palavra «piscina» ao lado do algarismo 5 e, quando
saiu no quinto andar, detetou efetivamente o cheiro a cloro. Ao virar uma
esquina viu uma piscina a céu aberto e varandas de ambos os lados. A água
tinha um brilho suave ao luar. Acocorou-se junto à borda e estendeu uma
mão.
– Aqui sente-se em casa, não é?
Runa não respondeu, limitou-se a agitar as pernas, passar por ele a nadar e
mergulhar. As roupas e a prótese encontravam-se amontoadas junto à
espreguiçadeira.
– Sabe que horas são? – perguntou-lhe ele.
Ela emergiu, agarrou-o pelo pescoço e agitou as pernas. Ele foi
completamente apanhado de surpresa, desequilibrou-se e as suas mãos
encontraram pele nua e macia quando mergulhou com ela. Não fizeram
qualquer ruído, afastaram apenas a água para o lado como um pesado edredão
quente e afundaram-se nela. Hole sentiu formarem-se-lhe bolhas nos ouvidos,
que lhe provocaram cócegas e lhe deram a sensação de que a sua cabeça se
expandia. Chegaram ao fundo e ele deu um impulso com os pés trazendo-os a
ambos para a superfície.
– Você é louca! – disse-lhe, cuspindo água.
Ela soltou uma gargalhada e afastou-se com braçadas rápidas.
Quando Runa saiu da piscina, Harry estava deitado de lado com as roupas a
escorrer. Ao abrir os olhos, viu-a com uma rede de limpeza da piscina a tentar
apanhar uma grande libelinha que flutuava à superfície da água.
– Isso é um milagre – disse Harry. – Estava convencido de que os únicos
insetos que sobreviviam nesta cidade eram as baratas.
– Alguns dos bons sobrevivem sempre – respondeu ela, levantando
cuidadosamente a rede. Libertou a libelinha e esta sobrevoou a piscina
emitindo um zumbido.
– As baratas não são boas?
– Que horror, são nojentas!
– Lá por serem nojentas não significa que façam mal.
– Talvez não. Mas não me parece que sejam boas. Só existem e pronto.
– Só existem – repetiu Harry, sem sarcasmo, mais como uma reflexão.
– Foram feitas assim. Criadas para termos vontade de esmagá-las. Se ao
menos não existissem tantas.
– Uma teoria interessante.
– Oiça – murmurou ela. – Estão todos a dormir.
– Banguecoque nunca dorme.
– Dorme, sim. Oiça. Estes são os ruídos do sono.
A rede de limpeza da piscina estava presa a um tubo de alumínio oco pelo
qual ela soprou. Fez lembrar um didgeridu56. Harry escutou. Ela tinha razão.
Runa seguiu-o para ir tomar um duche.

***

Harry já estava de pé no corredor e premira o botão de chamada do


elevador quando ela saiu da casa de banho dele, enrolada numa toalha.
– As suas roupas estão em cima da cama – disse-lhe, fechando a porta do
apartamento.
Depois, ficaram no corredor à espera do elevador. Um número vermelho
por cima da porta iniciara a contagem decrescente.
– Quando é que se vai embora? – perguntou-lhe ela.
– Em breve. Se não surgir nada.
– Sei que esteve com a minha mãe mais ao final da tarde.
Harry enfiou as mãos nos bolsos e olhou para as unhas dos pés. Ela dissera-
lhe que devia cortá-las. As portas do elevador abriram-se e ele ficou à
entrada.
– A sua mãe diz que estava em casa na noite em que o seu pai morreu. E
que você o pode testemunhar.
Ela protestou.
– Sinceramente, quer mesmo que eu responda a isso?
– Se calhar não – disse ele. Recuou um passo e ficaram a olhar um para o
outro enquanto esperavam que as portas se fechassem.
– Quem pensa que o matou? – perguntou ele, por fim.
Runa continuava a olhá-lo quando as portas se fecharam.
56 Instrumento aborígene de sopro que consiste num tubo oco de comprimento variável que pode ser de
madeira ou bambu, e cujo som é produzido pela contínua vibração dos lábios. (N. da T.)
24

Quarta-feira, 15 de janeiro

A meio do solo de guitarra de Jimi Hendrix em All Along the


Watchtower57, a música silenciou-se de repente e Jim Love
sobressaltou-se, apercebendo-se seguidamente de que lhe tinham tirado os
auscultadores.
Virou-se na cadeira, e um sujeito alto e louro, que efetivamente se tinha
desleixado na aplicação de protetor solar, erguia-se sobre ele na apertada
cabina do parque de estacionamento. Metade do rosto escondia-se atrás de
um par de óculos de sol antirreflexo de qualidade duvidosa. Jim tinha olho
para aquele tipo de coisa; os seus tinham-lhe custado uma semanada.
– Olá – disse o homem alto. – Perguntei-lhe se falava inglês.
O tipo falou com um sotaque indefinível e Jim respondeu com um de
Brooklyn.
– Pelo menos, melhor do que falo tailandês. Em que posso ser-lhe útil? Que
companhia quer?
– Hoje não quero companhia. Quero conversar consigo.
– Comigo? Não é o supervisor da empresa de segurança, pois não? Eu
posso explicar o walkman…
– Não sou, não. Sou da Polícia. O meu nome é Hole. O meu colega Nho…
Harry desviou-se e Jim viu, atrás de si, à porta, um tailandês com o corte
tradicional de cabelo à escovinha e uma camisa branca recentemente
engomada. O que fez com que Jim não duvidasse, nem por um minuto, que o
distintivo que ele exibira era autêntico. Fechou um olho.
– Polícia, hein? Vocês vão ao mesmo barbeiro? Já pensaram num penteado
novo? Como este? – Jim apontou para a sua farta cabeleira.
O homem alto riu-se.
– Não me parece que o retro dos anos oitenta já tenha chegado às
esquadras, ná.
– Oitenta o quê?
– Há alguém que possa substituí-lo enquanto falamos?
Jim explicou que viera para a Tailândia há quatro anos, de férias com uns
amigos. Tinham alugado motas e seguido para Norte e, numa pequena aldeia
junto ao rio Mekong, na fronteira com o Laos, um deles caíra na esparrela de
comprar ópio e guardá-lo na mochila. No regresso, a Polícia mandara-os
parar e revistara-os. Numa estrada rural poeirenta no coração da Tailândia,
aperceberam-se subitamente de que o amigo ia ficar preso uma eternidade.
– De acordo com a nova lei, podem muito bem executar os tipos que fazem
contrabando daquela merda. Sabia disso? E nós os três, que não tínhamos
feito nada, pensámos: oh caraças, também vamos ficar enrascados, cúmplices
ou isso. Merda, quero dizer, sendo um negro americano, não tenho
propriamente ar de contrabandista de droga, certo? Suplicámos e suplicámos
e não chegámos a lado nenhum até que um dos agentes falou numa multa.
Então, juntámos a massa toda e eles confiscaram o ópio e deixaram-nos ir.
Ficámos tão felizes. O problema é que lhes tínhamos dado o dinheiro para o
bilhete de volta aos EUA, certo? Assim…
Jim descreveu, com uma torrente de palavras e ainda mais gestos, como
uma coisa levara à outra e que tinha trabalhado como guia de turistas
americanos, mas tivera problemas com a autorização de residência e por isso
tentara não levantar ondas, conhecera uma rapariga tailandesa que o ajudara,
e que, quando os outros estavam prontos para partir, ele decidira ficar. Após
muitas indecisões, obtivera a autorização de residência porque lhe fora
oferecido um emprego de segurança de um parque de estacionamento onde
precisavam de alguém que falasse inglês para os edifícios onde se realizavam
encontros internacionais.
Jim parecia uma metralhadora a falar e Harry teve de o mandar calar-se.
– Merda, espero que o seu amigo tailandês não fale inglês – disse Jim,
olhando nervoso para Nho. – Os tipos a quem pagámos lá no Norte…
– Calma, Jim. Viemos aqui fazer-lhe perguntas sobre outro assunto. No dia
7 de janeiro, por volta das quatro horas, deve ter estado aqui um Mercedes
azul-escuro com chapas de matrícula do Corpo Diplomático. Isso diz-lhe
alguma coisa?
Jim desatou às gargalhadas.
– Se me perguntasse qual era a canção do Jimi Hendrix que eu estava a
ouvir, talvez lhe pudesse responder, meu, mas os carros que entram e saem
do parque… – Franziu os lábios.
– Quando aqui chegámos deram-nos um bilhete. Não seria possível fazer
uma verificação? O número de registo ou qualquer coisa?
Jim abanou a cabeça.
– Não nos preocupamos com isso. A maioria dos parques de
estacionamento tem CFTV, por isso, se acontecer alguma coisa, podemos
verificar depois.
– Depois? Está a dizer que fica gravado?
– Claro.
– Não estou a ver monitores.
– Isso é porque não os temos. Esta garagem de estacionamento tem seis
níveis, certo, por isso aqui sentados não conseguiríamos vigiá-los todos.
Merda, a maior parte dos criminosos quando vê uma câmara dá logo de
frosques, certo? Estão noutro sítio. E se alguém for suficientemente estúpido
para entrar à socapa e roubar um dos carros, temos tudo gravado para vos
dar.
– Durante quanto tempo guardam os vídeos?
– Dez dias. Nessa altura, a maior parte das pessoas já deu
conta que desapareceu algo dos seus carros. Depois gravamos por cima.
– Então, isso quer dizer que tem a gravação do dia 7 de janeiro entre as
quatro e as cinco da tarde?
Jim olhou para um calendário na parede.
– Podes apostar.
Desceram umas escadas e entraram numa cave abafada e húmida, onde Jim
acendeu uma lâmpada solitária e abriu um dos armários de aço alinhados
junto à parede. As cassetes estavam cuidadosamente arrumadas em montes.
– São imensas cassetes para visionar, se quiser verificar todo o parque de
estacionamento.
– Basta o parque para visitas – disse Harry.
Jim procurou ao longo das prateleiras. Obviamente a cada câmara
correspondia uma prateleira e as datas estavam escritas nas etiquetas a lápis.
Jim tirou uma cassete.
– Bingo!
Abriu outro armário, onde se encontrava um leitor de vídeo e um monitor,
introduziu a cassete e, alguns segundos depois, apareceu uma imagem a
preto-e-branco no ecrã. Harry reconheceu de imediato os lugares do parque
de estacionamento para visitas; a gravação provinha, sem dúvida, da mesma
câmara que ele vira da última vez que ali tinham estado. Um código ao fundo
do ecrã mostrava o dia, o mês e a hora. Avançaram para as 15h50. Nem sinal
do carro do embaixador. Esperaram. Era como estar a olhar para uma imagem
parada; não acontecia nada.
– Vamos avançar mais depressa – disse Jim.
Para além do relógio ao canto a acelerar, não se notava nenhuma diferença.
17h15. Passaram dois carros rapidamente deixando marcas molhadas no
cimento. Às 17h40 viram os rastos secar e desaparecer, mas nem sinal do
Mercedes do embaixador. Quando o relógio indicava 17h50, Harry pediu a
Jim que desligasse o leitor de vídeo.
– Devia ter estado um carro da embaixada num dos espaços destinados a
visitas – disse Harry.
– Lamento – respondeu Jim. – Parece que alguém lhe deu informações
erradas.
– Não podia ter estacionado noutro lugar?
– Claro. Mas todos os que não usam o parque regularmente têm de passar
por esta mesma câmara, logo, teríamos visto o carro.
– Gostaríamos de ver outro vídeo – pediu Harry.
– Ah, sim. Qual deles?
Nho remexeu nos bolsos.
– Sabe onde estaciona um carro com estas chapas de matrícula? –
perguntou, entregando-lhe um pedaço de papel. Jim olhou para ele,
desconfiado.
– Merda, meu, afinal você fala inglês.
– É um Porsche vermelho – disse Nho.
Jim devolveu-lhe o papel.
– Não é preciso verificar. Nenhum dos habituais conduz um Porsche
vermelho.
– Faen! – disse Harry.
– O que foi isso? – perguntou Jim, com um sorriso.
– Uma palavra norueguesa que você não vai querer aprender.
Voltaram para o sol.
– Posso arranjar-lhe um par decente e em conta – disse Jim, apontando para
os óculos de sol de Harry.
– Não, obrigado.
– Precisam de mais alguma coisa?
Jim piscou o olho e soltou uma gargalhada. Começara entretanto a fazer
estalar os dedos. Provavelmente, estava ansioso por voltar a ouvir o seu
walkman.
– Ei, detetive! – gritou, quando eles já se iam embora. Harry virou-se. –
Fa-an!58
As gargalhadas dele perseguiram-nos até chegarem ao carro.

– Que certezas temos neste momento? – inquiriu Liz, apoiando os pés em


cima da secretária.
– Sabemos que o Brekke está a mentir – disse Harry. – Ele afirmou que
depois da reunião tinha acompanhado o embaixador até ao carro estacionado
no parque subterrâneo.
– Por que razão mentiria sobre uma coisa dessas?
– Ao telefone, o embaixador diz que quer confirmar o encontro às quatro
horas. Não existem dúvidas de que o embaixador chegou ao gabinete.
Falámos com a rececionista e ela confirmou-o. Ela pode igualmente
confirmar que saíram do gabinete juntos, porque o Brekke foi lá levar uma
mensagem. Ela recorda-se porque eram quase cinco horas e preparava-se para
ir para casa.
– Ainda bem que alguém se lembra de alguma coisa.
– Mas desconhecemos o que o Brekke e o embaixador fizeram depois
disso.
– Onde estava o carro? Duvido que ele se arriscasse a estacionar na rua
naquela zona de Banguecoque.
– Podem ter combinado ir a outro lado, e o embaixador pedido a alguém
que olhasse pelo carro enquanto ia buscar o Brekke – sugeriu Nho.
Rangsan pigarreou e virou uma página.
– Num local cheio de vigaristas de meia-tigela à espera de uma
oportunidade daquelas?
– Sim, concordo – disse Liz. – Mesmo assim, é estranho que ele não tenha
usado o parque subterrâneo, atendendo a que é mais

fácil e seguro. Ele podia, literalmente, ter estacionado ao lado do elevador.


O dedo mindinho dela rodava na orelha e o seu semblante iluminou-se.
– Afinal onde é que isto nos leva? – perguntou.
Harry ergueu os braços, resignado.
– Tinha esperança de conseguirmos provar que o Brekke não tencionava
voltar ao escritório naquele dia, quando às cinco horas saiu acompanhando o
embaixador no carro dele. E que as gravações nos iam confirmar que o
Porsche dele tinha passado a noite no parque de estacionamento. Só que não
considerei a possibilidade de o Brekke não ter levado o carro para o trabalho.
– Vamos esquecer momentaneamente os carros – pediu Liz. – O que
sabemos é que o Brekke está a mentir. Por isso, qual vai ser o nosso próximo
passo? – Pôs-se a folhear o jornal de Rangsan.
– Verificar os álibis. – A resposta veio lá de trás.
57 Canção escrita e gravada pelo cantor-compositor norte-americano Bob Dylan, que apareceu no seu
álbum de 1967, John Wesley Harding. Cantada por inúmeros artistas dos mais variados géneros, a
canção identifica-se fortemente com a interpretação de Jimi Hendrix. (N. da T.)

58 Palavra oriunda da Mongólia que começou a ser usada no século XV, depois caiu em desuso e
voltou a estar em voga. Significa idiota. (N. da T.)
25

Quarta-feira, 15 de janeiro

A s reações das pessoas a uma detenção são tão diversas quanto


imprevisíveis.
Harry julgava já ter presenciado a maior parte das variantes, por
conseguinte, não ficou particularmente surpreendido quando viu o rosto
bronzeado de Jens Brekke assumir um matiz acinzentado e os seus olhos
agitarem-se como os de um animal acossado. A linguagem corporal muda, e
até um fato Armani feito por medida deixa de assentar tão bem. Brekke
mantinha a cabeça erguida, contudo, parecia ter encolhido.
Brekke não fora detido, acabara tão-somente de ser conduzido para
interrogatório. No entanto, para alguém que nunca fora agarrado por dois
agentes armados que nem sequer lhe tinham perguntado se o momento era
oportuno, a diferença era irrelevante. Quando Harry avistou Brekke na sala
de interrogatório, afigurou-se absurda a ideia de que o homem diante de si
tivesse conseguido apunhalar alguém a sangue-frio. Porém, já um dia pensara
o mesmo e enganara-se.
– Infelizmente, teremos de fazer isto em inglês – disse Harry, sentando-se à
frente dele. – Vai ser gravado. – Indicou o microfone diante de ambos.
– Compreendo. – Brekke tentou sorrir. Parecia ter ganchos de ferro a
esticar-lhe a boca.
– Tive de insistir muito para ser eu a fazer-lhe este interrogatório – disse
Harry. – Como está a ser gravado, estritamente falando, deveria ser um
agente da Polícia tailandesa a fazê-lo, mas como é um cidadão norueguês, o
chefe não se importou.
– Muito obrigado.
– Bem, não sei ao certo se haverá muito que agradecer. Informaram-no de
que tem o direito de contactar um advogado, não informaram?
– Sim.
Harry ia perguntar-lhe porque não aceitara a sugestão, porém, absteve-se.
Não valia a pena dar-lhe outra oportunidade de refletir. Pelo que já conhecia
do sistema legal tailandês, dava para perceber que era muito semelhante ao
sistema na Noruega, e como tal, não existiam motivos para acreditar que os
advogados fossem também muito diferentes. Assim sendo, a primeira coisa
que iam fazer era impedir os clientes de falarem. Contudo, os trâmites tinham
sido seguidos e chegara o momento de avançar.
Harry fez sinal para que começassem a gravar. Nho entrou, leu algumas
formalidades como introito da gravação e retirou-se.
– É verdade que tem uma relação com Hilde Molnes, a mulher do falecido,
Atle Molnes?
– O quê?
Dois olhos esbugalhados e furiosos fitaram-no do outro lado da mesa.
– Falei com a senhora Molnes. Aconselho-o a dizer a verdade.
Seguiu-se uma pausa.
– Sim.
– Um pouco mais alto, por favor.
– Sim!
– Há quanto tempo durava esta relação?
– Não sei. Há bastante.
– Desde a receção ao embaixador, há dezoito meses?
– Bem…
– Bem?
– Sim, penso que está correto.
– Sabia que a senhora Molnes teria direito a dispor de uma fortuna
substancial, se o marido morresse?
– Fortuna?
– Não fui claro?
Brekke expirou como uma bola de praia furada.
– Isso é uma novidade para mim. Tinha a impressão de que o capital deles
era relativamente limitado.
– Não me diga? Da última vez que falei consigo, mencionou que teve uma
reunião com o Molnes no seu gabinete, no dia 7 de janeiro, acerca de
investimentos. Além disso, sabemos que o Molnes devia uma quantia
avultada. Não posso precisar quanto.
Novo silêncio. Brekke preparava-se dizer alguma coisa, depois arrependeu-
se.
– Menti – acabou por dizer.
– Tem agora outra oportunidade de me contar a verdade.
– Ele veio ter comigo para falarmos da minha relação com a Hilde… com a
mulher dele. Ele queria que acabasse.
– Não lhe pareceu, talvez, um pedido despropositado?
Brekke encolheu os ombros.
– Não sei o que sabem sobre o Atle Molnes.
– Presuma que sabemos tudo.
– Digamos que a orientação sexual dele não ajudava muito ao casamento.
Ergueu o olhar. Harry fez-lhe sinal para que prosseguisse.
– A insistência dele para que a Hilde e eu deixássemos de nos encontrar
não era movida por ciúmes. Era por causa dos boatos que, ao que tudo
indicava, corriam na Noruega. Ele disse que, se a relação se tornasse pública,
esses boatos seriam alimentados e isso iria prejudicá-lo, bem como aos outros
em cargos importantes. Tentei aprofundar, mas ele não adiantou mais nada.
– E quais foram as ameaças dele?
– Ameaças? Como assim?
– Com certeza não se limitou a dizer-lhe: «Por favor, importavas-te de não
te encontrares com a mulher que imagino que ames?».
– Sim, na verdade, disse. Penso que foi mesmo essa a expressão que ele
usou.
– Que expressão?
– Por favor. – Brekke cruzou as mãos sobre a mesa diante de si. – Ele era
um homem estranho. «Por favor». – Esboçou um sorriso ténue.
– Sim, calculo que não oiça isso com muita frequência na sua profissão.
– Nem na sua, presumo?
Harry olhou-o fixamente, no entanto, não havia sinal de desafio nos olhos
de Brekke.
– E o que acordaram fazer?
– Nada. Eu disse-lhe que ia pensar no assunto. O que poderia dizer? O
homem estava à beira das lágrimas.
– Não ponderou terminar a relação?
Brekke franziu a testa como se tal ideia fosse nova para ele.
– Não, eu… bem, ser-me-ia muito difícil deixar de a ver.
– Disse-me que, depois da reunião, acompanhou o embaixador ao parque
de estacionamento onde ele tinha o Mercedes. Tenciona alterar agora essa
afirmação?
– Não… – Brekke pareceu surpreendido.
– Verificámos as gravações do CFTV na data em questão entre as 15h50 e as
17h15. O Mercedes do embaixador não esteve estacionado no parque das
visitas. Gostaria de mudar o seu depoimento?
– Mudar…? – Brekke olhou para ele, incrédulo. – Por Deus, homem, não.
Eu saí do elevador e vi o carro dele. Devemos aparecer os dois na gravação.
Até me recordo de termos trocado algumas palavras antes de ele entrar no
carro. Prometi ao embaixador que não ia mencionar a nossa conversa à
Hilde.
– Podemos provar que não foi esse o caso. Pela última vez: pretende alterar
o seu depoimento?
– Não!
Harry detetou uma firmeza na voz dele que não estivera lá antes do início
do interrogatório.
– E o que fez depois de ter acompanhado o embaixador ao parque de
estacionamento, como mantém?
Brekke explicou que regressara ao seu gabinete para terminar um relatório
de análise da empresa e que ficara ali sentado até perto da meia-noite, altura
em que apanhara um táxi para casa. Harry perguntou se alguém tinha passado
por lá ou lhe ligara enquanto estivera a trabalhar, mas Brekke disse que
ninguém conseguia entrar no seu gabinete sem um código e que tinha
bloqueado as chamadas para poder trabalhar em paz, como era hábito quando
elaborava relatórios.
– Não existe ninguém que possa fornecer-lhe um álibi? Ninguém que o
tenha visto ir para casa, por exemplo?
– O Ben, o porteiro do meu prédio. Ele pode lembrar-se. De qualquer
forma, ele costuma reparar quando chego a casa a altas horas vestindo um
fato.
– Um porteiro que o viu chegar a casa à meia-noite, só isso?
Brekke refletiu.
– Infelizmente, sim.
– Muito bem – disse Harry. – Será agora interrogado por outra pessoa.
Deseja tomar uma bebida? Café, água?
– Não, obrigado.
Harry levantou-se para sair.
– Harry?
Ele virou-se.
– Prefiro que me trate por Hole. Ou por detetive.
– Muito bem. Estou metido em apuros? – Falara em norueguês.
Harry fechou os olhos com força. Dava pena ver Brekke, descaído como
um saco de serapilheira.
– Se eu fosse a si, achava melhor ligar ao seu advogado.
– Compreendo. Obrigado.
Harry estacou à porta.
– A propósito, sempre chegou a cumprir a promessa que fez ao
embaixador?
Brekke esboçou-lhe uma espécie de sorriso pesaroso.
– Absurdo. Fizera tenções de contar à Hilde, claro, quero dizer, tinha de
fazê-lo. Mas quando descobri que ele tinha morrido, nessa altura… bem, ele
era um homem estranho, e mentalizei-me de que devia cumprir a promessa,
embora, em termos práticos, ela tivesse deixado de fazer sentido.

– Só um instante. Vou pô-lo em alta-voz.


– Estou?
– Conseguimos ouvi-lo, Harry. Pode falar.
Bjarne Møller, da Brigada Anticrime, Dagfinn Torhus, do Ministério dos
Negócios Estrangeiros e a comissária da Polícia de Oslo escutaram o relato
telefónico de Harry sem nunca o interromperem.
Depois, Torhus falou.
– Portanto, temos um norueguês detido, suspeito de homicídio. A questão
é: Durante quanto tempo vamos conseguir abafar isto?
A comissária da Polícia pigarreou.
– Como o homicídio ainda não é do domínio público, penso que teremos
mais alguns dias, especialmente porque você não conseguiu grande coisa
sobre o Brekke, para além de uma falsa declaração e um motivo. Se tiverem
de o libertar, talvez seja preferível que ninguém venha a ter conhecimento da
detenção.
– Harry, consegue ouvir-me? – Era Møller. O ruído atmosférico disse-lhe
que conseguia. – O tipo é culpado, Harry? Foi ele o autor?
Ouviram-se mais ruídos e Møller levantou o auscultador do telefone da
comissária da Polícia.
– O que disse, Harry? Você…? Certo. Bem, vamos discutir o assunto aqui
e mantemo-nos em contacto.
Møller desligou.
– O que foi que ele disse?
– Que não sabia.

***

Já era tarde quando Harry chegou a casa. O Le Boucheron estava cheio, de


modo que comeu num restaurante na Soi 4, no Patpong, uma rua cheia de
bares gay. Durante o prato principal, um homem aproximara-se da mesa
perguntando-lhe educadamente se ele queria uma masturbação e depois
retirara-se discretamente quando Harry abanara a cabeça.
Harry saiu no quinto andar. Não havia ninguém ali e as luzes à volta da
piscina estavam apagadas. Despiu-se e mergulhou. A água deu-lhe um abraço
refrescante. Fez algumas piscinas e sentiu a resistência da água. Runa dissera
que não existiam duas piscinas iguais, que a água tinha as suas
idiossincrasias, a sua consistência, o seu cheiro e a sua cor especiais. Esta
piscina era baunilha, dissera ela. Doce e viscosa. Inalou, mas apenas
conseguiu detetar o cheio a cloro e a Banguecoque. Boiou de costas e fechou
os olhos. O som da sua própria respiração debaixo de água fazia-o sentir-se
como se fechado num quarto pequeno. Abriu os olhos. Apagou-se uma luz
num dos apartamentos da ala oposta. Um satélite deslocou-se lentamente
entre as estrelas. Uma motorizada com o silenciador avariado tentou arrancar.
Depois, o seu olhar regressou ao apartamento. Contou de novo os andares.
Engoliu água. A luz apagara-se no seu apartamento.
Harry abandonou a piscina em segundos, vestiu as calças e olhou à volta
em vão, em busca de algo que pudesse servir de arma. Agarrou a rede da
piscina encostada à parede, correu os poucos metros até ao elevador e premiu
o botão. As portas afastaram-se, ele entrou e apercebeu-se de um ténue aroma
a caril. Foi como se tivessem roubado um segundo à sua vida e, quando
voltou a si, estava deitado de bruços na pedra fria do corredor. Felizmente, a
pancada atingira-o na testa, porém, encontrava-se uma figura enorme de pé,
diante de si, e Harry percebeu que as probabilidades não estavam a seu favor.
Agrediu com a rede a parte inferior da coxa, mas a haste de alumínio surtiu
pouco efeito. Conseguiu evitar o primeiro pontapé e ajoelhou-se cambaleante;
contudo, o segundo atingiu-o no ombro e fê-lo dar meia-volta. Doíam-lhe as
costas, mas a adrenalina libertara-se e ele pôs-se em pé soltando um urro de
dor. À luz do elevador aberto conseguiu ver um rabo de cavalo a oscilar em
torno de um crânio rapado e um punho a rodar antes de o atingir no sobrolho
e atirá-lo para trás na direção da piscina. A figura seguiu-o, e Harry fintou um
direto de esquerda antes de aplicar um direto de direita onde julgava que
podia estar o rosto. Foi como socar granito, como se se tivesse magoado mais
do que o seu adversário. Harry recuou e desviou a cabeça para o lado, sentiu
uma corrente de ar e o horror apoderar-se-lhe do peito. Levou a mão ao cinto,
e tateando encontrou as algemas, retirou-as e introduziu os dedos lá dentro.
Esperou que o matulão se aproximasse, verificou se não vinha nenhum soco
de baixo para cima na sua direção e esquivou-se. Depois atacou, balançando
a anca, levando o ombro atrás, todo o seu corpo a acompanhá-lo e, em furioso
desespero, lançou no escuro os nós dos dedos guarnecidos de ferro até eles
encontrarem carne e osso e algo ceder. Tornou a bater e sentiu o ferro abrir
caminho através da pele. O sangue era quente e espesso entre os seus dedos;
não sabia se era seu se do atacante, mas ergueu o punho para outro soco,
chocado por o homem ainda estar de pé. Ouviu então uma gargalhada cava e
gutural, um vagão de betão aterrou-lhe na cabeça, a escuridão ficou ainda
mais escura e a noção de vertical e horizontal deixou de existir.
26

Quinta-feira, 16 de janeiro

H arry foi reanimado pela água; inspirou instintivamente e, no momento


seguinte, sentiu-se arrastado para baixo. Debateu-se, mas não fez
qualquer diferença. A água amplificou o estalido metálico de algo a ser
fechado, e o braço que o agarrava largou-o. Abriu os olhos; tudo ao seu redor
era azul-turquesa e sentiu ladrilhos debaixo de si. Deu um puxão, mas um
esticão no pulso disse-lhe o que o seu cérebro estava já a tentar explicar-lhe e
ele se recusava a aceitar. Ia afogar-se. Woo usara as suas próprias algemas
para o prender a um cano no fundo da piscina.
Ergueu o olhar. A Lua iluminava-o através de um filtro de água. Estendeu o
braço livre para cima e fora de água. Raios, a piscina só tinha um metro de
profundidade aqui! Harry acocorou-se e tentou pôr-se em pé, esticou-se com
todas as suas forças. A algema trilhou-lhe o polegar, no entanto, a sua boca
ainda estava vinte centímetros abaixo da superfície. Reparou que a sombra ao
fundo da piscina se afastava. Merda! «Não entres em pânico», pensou. O
pânico consome oxigénio.
Desceu até ao fundo e examinou a grelha com os dedos. Era de aço e
completamente inamovível, nem se mexeu quando ele a agarrou com ambas
as mãos e puxou. Durante quanto tempo conseguiria suster a respiração? Um
minuto? Dois? Doíam-lhe todos os músculos, as têmporas latejavam e
dançavam-lhe estrelas vermelhas diante dos olhos. Tentou soltar-se com um
safanão. Sentia a boca seca do medo, o seu cérebro começara a produzir
imagens que ele sabia serem alucinações; pouquíssimo combustível,
pouquíssima água. Ocorreu-lhe um pensamento absurdo – se bebesse toda a
água que conseguisse, o nível desta podia baixar o suficiente para lhe permitir
respirar. Bateu com a mão livre na parte lateral da piscina, sabendo que
ninguém o conseguia ouvir, pois, ainda que o silêncio reinasse no mundo
subaquático, o clamor metropolitano de Banguecoque fazia-se ouvir
incessantemente lá em cima, abafando quaisquer outros sons. E se alguém o
ouvisse, de que valia? Só podia fazer-lhe companhia enquanto morria.
Concentrou-se-lhe um calor ardente na cabeça e preparou-se para a
experiência por que todos aqueles que se afogam acabam por passar mais
cedo ou mais tarde: a inalação de água. A sua mão livre encontrou metal. A
rede da piscina. Harry agarrou-a e deu-lhe um puxão. Runa estivera a tocar
didgeridu. Oco. Ar. Fechou a boca à volta da extremidade do poste de
alumínio e inspirou. A água entrou-lhe na boca, engoliu-a e quase sufocou,
deixando-lhe na língua um travo a insetos mortos e secos e cravou os dentes
no tubo enquanto combatia os reflexos tússicos. Porque lhe chamavam
oxigénio, do grego oxys, que significa ácido? Não é ácido, é doce, até em
Banguecoque o ar é doce como o mel. Inalou pedaços de alumínio e areia
soltos que se lhe colaram ao muco da garganta, mas ele nem se apercebeu.
Inspirava e expirava com paixão, como se tivesse corrido uma maratona.
O cérebro começava a retomar o seu funcionamento. Foi assim que soube
que lhe fora concedido apenas um adiamento do inevitável. No seu sangue, o
oxigénio era transformado em dióxido de carbono, os escapes do organismo,
e o poste era demasiado comprido para ele conseguir expelir por completo o
anidrido carbónico. Por conseguinte, estava a inalar ar reciclado,
sucessivamente, uma mistura com cada vez menos oxigénio e cada vez mais
CO2 fatal. Este excesso de dióxido de carbono tem o nome de hipercapnia, e
não tardaria a morrer. Na verdade, como estava a respirar tão depressa,
acelerava o processo. Não faltava muito para começar a sentir sonolência, o
seu cérebro perderia o interesse na inalação de ar e ele respiraria cada vez
menos até parar de fazê-lo.
«Tão sozinho», pensou Harry. Algemado. Como os elefantes nos barcos
fluviais. Soprou pelo tubo com todas as forças que conseguiu reunir.

Anne Verk já vivia em Banguecoque há três anos. O marido era o


presidente executivo dos escritórios da Shell na Tailândia; não tinham filhos,
eram medianamente infelizes e ainda se aguentariam juntos mais uns anos.
Depois, voltaria para a Holanda, concluiria os estudos e iria procurar um
novo marido. Por puro tédio, candidatara-se a um emprego de professora não
remunerada no Empire e, para sua surpresa, conseguira-o. O Empire era um
projeto idealista com a finalidade de proporcionar escolarização gratuita,
principalmente em inglês, às muitas meninas que andavam na vida em
Banguecoque. Anne Verk ensinava-lhes o vocabulário de que necessitavam
nos bares; era por isso que elas compareciam. Sentavam-se nas carteiras,
jovens meninas tímidas e risonhas que se animavam quando ela as obrigava a
repetir: «Posso acender-lhe o cigarro, senhor?» Ou «Sou virgem. O senhor é
muito atrevido. Deseja uma bebida?»
Naquele dia, uma das meninas trazia um vestido vermelho novo, do qual
muito se orgulhava e que comprara nos armazéns Robinson’s, explicara à
turma, num inglês hesitante. Por vezes, era difícil imaginar que estas
raparigas trabalhassem como prostitutas em algumas das zonas mais duras de
Banguecoque.
Tal como a maioria dos holandeses, Anne falava muito bem inglês e, uma
vez por semana, também dava aulas a alguns dos outros professores. Saiu do
elevador no quinto andar. Fora um final de dia bastante esgotante, com
muitas discussões sobre os métodos de ensino, e estava ansiosa por se
descalçar no apartamento de duzentos metros quadrados, quando ouviu uns
estranhos ruídos roucos que se assemelhavam a barritos. A princípio, julgou
que viessem do rio, mas apercebeu-se depois de que partiam da piscina.
Encontrou o interruptor e levou vários segundos a assimilar e processar a
visão de um homem submerso e da rede da piscina vertical na água. Depois,
desatou a correr.

Harry viu a luz acender-se e uma figura à beira da piscina. Depois ela
desapareceu. Parecia uma mulher. Entrara em pânico? Harry apercebera-se
dos primeiros sinais de hipercapnia. Teoricamente, deveria proporcionar-lhe
uma sensação agradável, como começar a adormecer sob o efeito de um
anestésico, mas ele apenas sentiu o terror correr-lhe nas veias como água de
um glaciar. Fez um esforço para se concentrar, respirar calmamente, nem de
mais nem de menos, porém, processar os pensamentos estava a tornar-se um
desafio.
Como tal, nem se apercebeu de que o nível da água começava a baixar, e
quando a mulher saltou para a piscina e o puxou para a superfície, ele teve a
certeza de que um anjo viera buscá-lo.
PARTE QUATRO
27

Sexta-feira, 16 de janeiro

O resto da noite girou sobretudo em torno da sua dor de cabeça. Harry


estava sentado numa cadeira no seu apartamento, o médico chegou,
retirou-lhe uma amostra de sangue e disse que ele tivera sorte. Como se ele
precisasse que alguém lho explicasse. Mais tarde, Liz sentou-se ao seu lado e
tomou nota de tudo o que acontecera.
– Qual seria a intenção dele ao entrar no apartamento? – perguntou.
– Não faço ideia. Talvez assustar-me.
– Ele levou alguma coisa?
Harry olhou à sua volta.
– Se a minha escova de dentes ainda estiver na casa de banho, não.
– Palhaço. Como se sente?
– Ressacado.
– Vamos abrir imediatamente uma investigação.
– Esqueça isso. Vá para casa e durma umas horitas.
– De repente, ficou muito animado.
– Sou bom ator, não sou?
Esfregou o rosto com as mãos.
– Isto não é uma brincadeira, Harry. Tem consciência de que foi
envenenado com CO2?
– Não mais do que o normal cidadão de Banguecoque, segundo as palavras
do médico. Estou a falar a sério, Liz. Vá para casa, já não tenho forças para
continuar a conversar consigo. Amanhã estarei fino.
– Fique em casa amanhã.
– Como queira. Mas vá-se embora.
Harry emborcara os comprimidos que o médico lhe dera, dormira sem
sonhar e só acordara ao final da manhã quando Liz telefonara para saber
como ele estava. Respondeu com um resmungo.
– Não quero vê-lo hoje – disse ela.
– Também gosto muito de si – respondeu, desligando e levantando-se para
se ir vestir.

Era o dia mais quente do ano e, na esquadra da Polícia, todos se


queixavam. Nem o ar condicionado no gabinete de Liz conseguia ser
suficiente. A pele começara a cair no nariz de Harry e parecia querer fazer
concorrência ao Rodolfo59. Ia a meio da sua terceira garrafa de água de um
litro.
– Se esta é a estação fria, como é a…?
– Está bem, Harry. – Liz não parecia partilhar da opinião de que falar sobre
o tempo o tornava mais suportável. – Então e o Woo, Nho? Alguma pista?
– Nada. Tive uma conversa séria com o Sr. Sorensen, na Thai Indo
Travellers. Ele afirma desconhecer onde está o Woo, deixou de trabalhar na
empresa.
Liz suspirou.
– E não temos ideia do que ele fez no apartamento do Harry. Bonito. Então
e o Brekke?

Sunthorn conseguira falar com o porteiro do prédio onde Brekke morava.


Na verdade, ele lembrava-se efetivamente de naquela noite o norueguês ter
chegado pouco depois da meia-noite, mas não sabia precisar a hora.
Liz informou-os de que o Laboratório Forense já estava a passar a pente
fino o escritório e o apartamento de Brekke. Estavam a examinar as roupas e
os sapatos dele para ver se encontravam algo – sangue, cabelos, fibras,
qualquer coisa – que o ligasse à vítima de homicídio ou ao local do crime.
– Entretanto – disse Rangsan – tenho uns comentários a fazer sobre as
fotografias que encontrámos na pasta do Molnes.
Fixou com tachas três fotografias ampliadas num placard ao lado da porta.
Embora as imagens tivessem andado tempo suficiente às voltas no cérebro de
Harry para terem perdido o efeito inicial de choque, a verdade é que sentiu o
estômago revirar-se.
– Enviámo-las à Brigada Antivício para ver se conseguiam descobrir
alguma coisa. Não conseguiram associá-las a quaisquer distribuidores
conhecidos de pornografia infantil. – Rangsan virou uma das imagens. – Em
primeiro lugar, foram reveladas em papel alemão, que não se encontra à
venda na Tailândia. Em segundo, estão um pouco desfocadas e, à primeira
vista, fazem lembrar os instantâneos privados que não se destinam a
distribuição. O Laboratório Forense falou com um perito que afirmou terem
sido tiradas de longe, com uma teleobjetiva e provavelmente do exterior.
Pensa que se trata de uma janela de guilhotina.
Rangsan apontou para uma sombra cinzenta no canto da imagem.
– O facto de as fotografias serem profissionais sugere a existência de um
novo nicho de mercado a ser explorado, o segmento dos voyeurs.
– E?
– Na América, a indústria pornográfica arrecada avultadas quantias com a
venda destes instantâneos de amadores particulares, que, na verdade, são
fabricadas por atores e fotógrafos profissionais que intencionalmente fazem
com que tudo pareça amador, recorrendo a equipamento simples e evitando
os modelos mais sofisticados. Acontece que as pessoas estão dispostas a
pagar mais pelo que julgam ser fotografias autênticas tiradas em quartos. O
mesmo se aplica às fotografias e vídeos que parecem ter sido obtidos através
de um apartamento do outro lado da rua sem o conhecimento ou a
concordância dos visados. Estes últimos agradam particularmente aos
voyeurs, pessoas que se excitam a ver outras que não imaginam estarem a ser
observadas. Pensamos que estas fotografias se insiram nesta última
categoria.
– Ou – disse Harry. – Ou pode suceder que as fotografias não se
destinassem à distribuição; e tivessem sido tiradas para efeitos de chantagem.
Rangsan abanou a cabeça.
– Também colocámos essa hipótese, mas, a ser verdade, os adultos deviam
ser identificáveis na fotografia. Uma característica típica da pornografia
infantil comercial é que os rostos dos abusadores são ocultados, como neste
caso.
Apontou para as três fotografias. Era possível distinguir o traseiro e a zona
lombar das costas de alguém. A pessoa encontrava-se nua à exceção de uma
camisola vermelha, onde se podia ver na parte inferior um algarismo 2 e um
zero.
– Presumo que continuasse a ser usada para chantagear, mas o fotógrafo
não incluiu o rosto – referiu Harry. – Ou então, apenas mostrou ao alvo da
chantagem as cópias onde não podia ser identificado.
– Pare! – Liz agitou uma mão. – O que está a dizer, Harry? Que o homem
na fotografia é o Molnes?
– É uma teoria. Ele estava a ser chantageado, mas não podia pagar por
causa das suas dívidas de jogo.
– E daí? – disse Rangsan. – Isso não dá um motivo ao chantagista para
assassinar o Molnes.
– Ele podia ter ameaçado denunciar o chantagista à Polícia.
– Denunciar o chantagista e ser depois condenado por pedofilia? – Rangsan
revirou os olhos e Sunthorn e Nho não se esforçaram para ocultar os seus
sorrisinhos.
Harry encolheu os ombros e ergueu as mãos.
– Como disse, era uma teoria, e concordo que devemos abandoná-la. A
segunda teoria é que o Molnes era o chantagista…
– E o Brekke o abusador… – Liz apoiou o queixo nas mãos, olhando para o
ar com uma expressão pensativa. – Bem, o Molnes precisava de dinheiro.
Logo, isso dá ao Brekke um motivo para matar. Só que ele já tinha um,
portanto, por aí não vamos a lado nenhum. Qual é a sua opinião, Rangsan? É
possível excluir a possibilidade de ser o Brekke nas fotografias?
Ele abanou a cabeça.
– As fotografias estão tão pouco nítidas que não podemos excluir ninguém,
a menos que o Brekke tenha algumas características que o definam.
– Alguém se oferece para ir inspecionar o rabo do Brekke? – perguntou
Liz, para gáudio geral.
Sunthorn tossiu discretamente.
– Se o Brekke assassinou o Molnes por causa das fotografias, por que
motivo as deixou ficar?
Um longo silêncio.
– Serei eu a única pessoa a sentir que estamos a perder o nosso tempo? –
perguntou, por fim, Liz.
O ar condicionado gorgolejava e Harry apercebeu-se de que o dia ia ser tão
longo quanto quente.
Harry encontrava-se à porta do jardim do embaixador.
– Harry? – Runa limpou a água dos olhos e abandonou a piscina.
– Olá – disse ele. – A sua mãe está a dormir.
Ela encolheu os ombros.
– Detivemos o Jen Brekke. – Esperou que ela dissesse alguma coisa,
perguntasse porquê, no entanto, Runa remeteu-se ao silêncio. Ele suspirou. –
Não é minha intenção importuná-la com estes assuntos, Runa. Mas estou
envolvido nisto, e você também, por isso pensei que pudéssemos ajudar-nos
mutuamente.
– Claro – respondeu ela.
Harry procurou interpretar o tom dela. Decidiu ir direto ao assunto.
– Preciso de tentar saber um pouco mais sobre ele, que tipo de pessoa é, se
é aquilo que afirma ser, etc., etc. Pensei que pudesse começar pela relação
dele com a sua mãe. Quero dizer, existe uma enorme diferença de idade…
– Desconfia que ele estava a aproveitar-se dela?
– Mais ou menos isso, sim.
– A minha mãe podia estar a aproveitar-se dele, já o inverso…?
Harry sentou-se numa das cadeiras debaixo de um salgueiro, mas Runa
permaneceu de pé.
– A mãe não gosta que eu esteja por perto quando eles se encontram, por
isso, nunca cheguei a conhecê-lo bem.
– Conhece-o melhor do que eu.
– Conheço? Hum. Ele parece melífluo, mas talvez seja apenas por fora.
Pelo menos, esforça-se por ser simpático comigo. Por exemplo, partiu dele a
ideia de me levar ao boxe. Se calhar, meteu na cabeça que eu me interesso
por desporto por causa dos mergulhos. Ele explora-a? Não faço ideia.
Lamento não poder ser-lhe útil, mas não sei o que vai na cabeça de homens
daquela idade. Escondem os sentimentos…
Harry ajustou os óculos de sol.
– Obrigado, foi muito útil, Runa. Importa-se de pedir à sua mãe que me
telefone quando acordar?
Ela ficou à beira da piscina, de costas para a água, elevou-se e exibiu-lhe
outro salto mortal com as costas arqueadas e a cabeça para baixo. Ele viu as
bolhas rebentarem à superfície antes de dar meia-volta para se retirar.
Após o almoço, Harry e Nho apanharam o elevador para o primeiro andar,
onde Jens Brekke continuava detido.
Brekke vestia ainda o mesmo fato que tinha quando fora preso, mas
desabotoara a camisa e arregaçara as mangas e já não parecia um corretor.
Uma franja suada colava-se-lhe à testa, e olhava fixamente, como se
surpreendido, para as mãos imobilizadas em cima da mesa diante de si.
– Este é o Nho, um colega meu – disse Harry.
Brekke levantou a cabeça, pôs um ar corajoso e anuiu.
– Na verdade, só queria fazer-lhe uma pergunta – disse Nho. –
Acompanhou o embaixador até ao parque subterrâneo onde ele tinha
estacionado o carro na terça-feira, dia 7 de janeiro, às cinco horas?
Brekke olhou para Harry, depois para Nho.
– Sim, acompanhei – disse ele.
Nho trocou um olhar com Harry e anuiu.
– Obrigado – disse Harry. – Era tudo.
59 A história de Rudolfo, a rena que tem o nariz encarnado e é capaz de ver através do nevoeiro, surgiu
por alturas de 1939, fruto da imaginação de Robert May, um empregado dos estabelecimentos
Montgomery Ward, de Chicago. (N. da T.)
28

Sexta-feira, 17 de janeiro

O trânsito avançava lentamente, Harry estava com dor de cabeça e o ar


condicionado assobiava em tom agoirento. Nho parou junto à barreira
do parque de estacionamento do Barclays Thailand, desceu manualmente o
vidro do carro e foi informado por um homem num uniforme
impecavelmente engomado que Jim Love não viera trabalhar.
Nho mostrou a sua identificação de agente da Polícia e explicou que
gostavam de ver uma das cassetes de vídeo, no entanto, o funcionário abanou
a cabeça com ar reprovador e disse que teriam de contactar a empresa de
segurança. Nho virou-se para Harry e encolheu os ombros.
– Explique-lhe que se trata de uma investigação de homicídio – disse
Harry.
– Já o fiz.
– Nesse caso, teremos de dar mais algumas explicações.
Harry apeou-se do carro. O calor e a humidade atingiram-no no rosto; foi
como levantar a tampa de uma caçarola com água a ferver. Espreguiçou-se e
deu a volta ao carro, já um pouco tonto. O funcionário franziu o sobrolho
quando um farang com quase dois metros de altura e olhos vermelhos se
aproximou, e levou a mão à arma.
Harry colocou-se diante dele, esboçou um esgar e agarrou o cinto ao
homem com a mão esquerda. O funcionário gritou, porém, não teve
oportunidade de reagir pois Harry desapertou-lhe o cinto e introduziu a mão
direita nas calças do homem. O funcionário foi levantado do chão quando
Harry puxou com força. As cuecas cederam com um som forte ao rasgarem-
se. Nho gritou algo, mas era tarde demais. Harry erguia já os boxers brancos
no ar, vitorioso. No instante seguinte, aqueles passaram a voar por cima da
cabina do funcionário e aterraram nos arbustos. De seguida, contornou o
carro lentamente e meteu-se lá dentro.
– Um velho truque da escola – disse a Nho, que ficara de olhos arregalados.
– Vai ter de se encarregar das negociações a partir daqui. Raios, está cá uma
brasa…
Nho apeou-se rapidamente e, após uma breve conferência, tornou a enfiar a
cabeça no carro, anuiu e Harry seguiu os outros dois até à cave, enquanto o
funcionário fazia cara de poucos amigos mantendo uma distância prudente de
Harry.
O videogravador zumbiu e Harry acendeu um cigarro. Tinha uma vaga
noção de que, em determinadas situações, a nicotina estimulava o processo
mental. Como quando se estava a precisar de fumar.
– Muito bem – disse Harry. – Portanto, acha que o Brekke está a dizer a
verdade?
– E você também – interveio Nho. – Caso contrário, não me tinha trazido
até aqui.
– Correto. – O fumo deixou os olhos de Harry a arder. – E já vai ver
porquê.
– Esta cassete é de segunda-feira, 13 de janeiro – afirmou Harry. –
Sensivelmente às dez da noite.
– Errado – respondeu Nho. – Esta é a mesma gravação que vimos da última
vez, correspondente ao dia do homicídio, 7 de janeiro. A data até aparece ao
canto da imagem.
Harry soprou um anel de fumo, no entanto, uma corrente de ar vinda de
algures desfê-lo num instante.
– É a mesma gravação, mas a data esteve sempre errada. O meu palpite é
que aqui o nosso amigo sem cuecas pode confirmar que é fácil alterar a data
na máquina e, logo, na imagem.
Nho olhou para o homem, que encolheu os ombros e anuiu.
– Mas isso não explica que saiba em que altura foi feita esta gravação –
disse Nho.
Harry assentiu na direção do monitor.
– Apercebi-me quando fui acordado esta manhã pelo trânsito na Taksin
Bridge no exterior do apartamento onde estou instalado – disse ele. – Havia
pouquíssimo trânsito. Este parque de estacionamento de seis pisos fica num
movimentado complexo empresarial. Estamos no período entre as quatro e as
cinco da tarde e vemos passar apenas dois carros numa hora.
Harry sacudiu a cinza do cigarro.
– A seguir, pus-me a pensar nestas. – Levantou-se e apontou para o ecrã,
onde se viam duas linhas pretas no cimento. – Rastos de pneus molhados. De
ambos os carros. Quando foi a última vez que choveu em Banguecoque?
– Há dois meses, senão mais.
– Errado. Há três dias, a 13 de janeiro, entre as 10h00 e as 10h30, houve
um aguaceiro das mangas. Sei, porque grande parte ficou dentro da minha
camisa.
– Sim, é verdade – disse Nho, carrancudo. – Mas estes gravadores de vídeo
nunca param. Se esta gravação não é do dia 7 de janeiro, mas do dia 13, isso
significa que a cassete desse período, que devia lá estar, foi tirada.
Harry pediu ao funcionário que fosse procurar a cassete que tinha escrito
13 de janeiro e, trinta segundos depois, puderam constatar que a gravação
fora parada às 21h30. Seguiram-se cinco segundos de «chuva» antes de a
imagem tornar a aparecer.
– A cassete foi tirada aqui – disse Harry. – As imagens que estamos a ver
agora são do que estava antes na cassete. – Indicou a data. – O dia 1 de
janeiro às 05h25.
Harry pediu ao funcionário que parasse a imagem e ficaram
sentados a olhar para ela, enquanto Harry terminava o seu cigarro.
Nho colocou as palmas das mãos unidas diante da boca.
– Portanto, houve alguém que manipulou a cassete para que parecesse que
o carro do embaixador nunca tinha estado no parque de estacionamento.
Porquê?
Harry não respondeu. Olhou para a hora. 05h25. Trinta e cinco minutos
antes de Oslo ter entrado no novo ano. Onde estivera? O que andara a fazer?
Estivera no Schrøder? Não, devia estar fechado. Nesse caso, provavelmente
estaria a dormir. De qualquer forma, não se recordava de nenhum fogo de
artifício.

A empresa de segurança confirmara, efetivamente, que Jim Love trabalhara


no turno da noite no dia 13 de janeiro e deram a Nho a morada e o número de
telefone dele sem levantarem problemas. Nho ligara para casa de Love, mas
ninguém atendera.
– Enviem um carro-patrulha e verifiquem – disse Liz. Parecia maravilhada
por ter finalmente algo de concreto que fazer.
Sunthorn entrou no gabinete e entregou-lhe uma pasta.
– O Jim Love não tem cadastro – disse. – Mas o Maisan, um dos tipos
infiltrados dos Narcóticos, reconheceu a descrição. Pode ser o mesmo sujeito
que ele já viu várias vezes no Miss Duyen’s.
– E isso quer dizer o quê? – perguntou Harry.
– Quer dizer que ele não estava propriamente inocente naquela história do
ópio que inventou – referiu Nho.
– O Miss Duyen’s é um antro de ópio na Chinatown – explicou Liz.
– Antro de ópio? Isso não é, hã… ilegal?
– Claro que é.
– Desculpem, foi uma pergunta estúpida – afirmou Harry. – Mas julguei
que a Polícia estivesse a combater esse tipo de coisa.
– Não sei como é no país de onde você vem, Harry, mas aqui tentamos ser
práticos. Se encerrarmos o Miss Duyen’s, outro antro de ópio abrirá algures
para a semana. Ou então aqueles tipos fazem-no na rua. A vantagem do Miss
Duyen’s é que temos o controlo, os tipos infiltrados podem entrar e sair à
vontade e as pessoas que escolhem entupir os miolos de ópio podem fazê-lo
em ambientes relativamente respeitáveis.
Ouviu-se tossir.
– Além disso, provavelmente a proprietária paga bem – murmurou uma
voz, por detrás do Bangkok Post.
Liz fingiu que não ouvira.
– Como ele hoje não apareceu para trabalhar e não está em casa, aposto que
está estendido numa das esteiras de bambu do Miss Duyen’s. Porque é que
você e o Harry não vão lá dar uma espreitadela, Nho? Falam com o Maisan;
ele pode dar-nos uma mãozinha. Assim, o nosso turista sempre via alguma
coisa.
29

Sexta-feira, 17 de janeiro

M aisan e Harry entraram numa rua estreita onde uma brisa escaldante
levantava o lixo acumulado ao longo das paredes frágeis das casas.
Maisan tinha a certeza de que tresandava a Polícia à légua. Além disso, temia
que pudessem levantar suspeitas se de repente entrassem três pessoas no Miss
Duyen’s.
– Fumar ópio não é propriamente uma cena social – explicou Maisan, numa
aproximação de uma pronúncia americana. Harry ficou curioso em saber se a
pronúncia e a T-shirt dos Doors não eram um nadinha excessivas para um
polícia infiltrado dos Narcóticos. Maisan estacou diante de um portão de
ferro forjado que se encontrava aberto, apagou a beata no alcatrão com o
tacão da bota direita e entrou.
Tendo acabado de deixar para trás o sol intenso, de início Harry não
conseguiu ver nada, porém, ouvia vozes baixas e murmuradas e seguiu duas
costas que desapareceram dentro de uma sala.
– Merda!
Harry batera com a cabeça na ombreira da porta e virou-se quando ouviu
gargalhadas familiares. No escuro, junto à parede, julgou distinguir um vulto
enorme, mas podia ter-se enganado. Provavelmente, naquele dia Woo tentaria
não dar nas vistas. Avançou rapidamente para não perder os dois que seguiam
na frente. Eles desapareciam ao fundo de umas escadas e Harry correu atrás
deles. As notas trocaram de mãos e a porta abriu-se o suficiente para eles se
esgueirarem.
Lá dentro tresandava a terra, urina, fumo e ao doce ópio.
A única ideia que Harry tinha de um antro de ópio provinha de um filme de
Sergio Leone60, no qual Robert de Niro ficava entregue aos cuidados de
mulheres que vestiam sarongues61 de seda, todos deitados em camas macias
com almofadas enormes; o ambiente era iluminado por uma luz amarela
suave que fazia com que todo o cenário parecesse sagrado. Pelo menos, era
assim que ele se recordava. Para além da luz suave, pouco mais fazia lembrar
Hollywood. A poeira suspensa no ar dificultava-lhe a respiração e, à exceção
de algumas tarimbas encostadas às paredes, todos estavam deitados em
tapetes e esteiras de bambu no chão de terra duro.
A escuridão e o ar peganhento onde ressoavam tosses esganiçadas e
pigarros ásperos levou Harry a presumir que estivessem apenas meia dúzia de
pessoas ali dentro. Porém, gradualmente, os seus olhos acostumaram-se à
obscuridade, e conseguiu ver uma divisão grande e aberta onde estaria uma
centena de pessoas, na sua maioria homens. Não fosse a tosse, reinava um
silêncio misterioso. A maior parte parecia estar a dormir, outros mal se
mexiam. Viu um velho a segurar um cachimbo com ambas as mãos e inalar
com tanta força que a pele enrugada à volta dos malares até ficou esticada.
Aquilo era insanidade organizada; estavam deitados em filas, que se
dividiam em quadrados para que houvesse espaço para circular entre elas,
muito à semelhança dos cemitérios. Harry seguiu Maisan, que percorria as
filas, olhava para os rostos e tentava suster a respiração.
– Consegue ver o seu homem? – perguntou ele.
Harry abanou a cabeça.
– Está escuro como breu.
Maisan esboçou um sorriso rasgado.
– Ainda tentaram colocar lâmpadas de néon nas paredes para evitar a
roubalheira. Mas as pessoas deixaram de vir.
Maisan aventurou-se ainda mais na escuridão da sala. Não tardou a emergir
do escuro e apontar para a saída.
– Disseram-me que o puto preto vai à Yupa House, ao fundo da rua. Há
pessoas que levam o ópio e fumam-no ali. O dono não os chateia.
Quando as pupilas de Harry já estavam suficientemente dilatadas para ele
conseguir vislumbrar no escuro, viram-se novamente expostos ao enorme
candeeiro de dentista fielmente suspenso no céu lá fora. Pegou nos óculos de
sol e colocou-os.
– Harry, conheço um sítio onde lhe consigo arranjar uns baratos…
– Não, obrigado, estes servem perfeitamente.
Foram buscar Nho. Para um polícia tailandês poder consultar o livro de
hóspedes a Yupa House exigia a identificação, e Maisan não queria ser
identificado naquele bairro.

O rececionista da Yupa House fazia lembrar uma versão magra de um


reflexo distorcido num espelho de feira. Um rosto oblongo assentava num
pescoço de condor sobre ombros estreitos e descaídos. Tinha o cabelo ralo e
uma barbicha. O seu ar era formal, cortês e, como vestia um fato preto,
lembrou a Harry um agente funerário.
Garantiu a Harry e Nho que não se encontrava ali ninguém chamado Jim
Love. Quando lhe fizeram a descrição, ele sorriu e abanou a cabeça. Um
aviso pendurado por cima do balcão da receção enunciava as regras básicas
da casa: era proibido levar armas, substâncias perfumadas e fumar na cama.
– Dê-nos só um instante – disse Harry ao rececionista, puxando Nho na
direção da porta. – Bem, você que é tão exímio a topar mentirosos…
– Complicado – respondeu Nho. – Ele é vietnamita.
– E depois?
– Não sabe o que o Nguyen Cao Ky62 dizia sobre os seus compatriotas
durante a Guerra do Vietname? Dizia que os vietnamitas eram mentirosos
natos. Que depois de lhes andarem a incutir, geração após geração, que a
verdade só traz azar, ficou-lhes nos genes.
– Nesse caso, está a afirmar que ele está a mentir?
– Estou a afirmar que não faço ideia. Ele é bom.
Harry virou-se, voltou para junto do balcão e pediu a chave-mestra. O
rececionista sorriu com nervosismo.
Harry subiu um nadinha o tom da voz, articulou «chave-mestra» e tornou a
sorrir-lhe com os dentes cerrados.
– Gostaríamos de passar revista a este hotel, quarto a quarto. Entendeu? Se
detetarmos alguma irregularidade, seremos, evidentemente, obrigados a
encerrar o hotel para uma inspeção mais pormenorizada, mas duvido que haja
qualquer problema.
O rececionista abanou a cabeça e, subitamente, pareceu ter dificuldade em
compreender inglês.
– Eu disse que duvido que haja qualquer problema. Vejo que tem um aviso
a dizer que é expressamente proibido fumar na cama.
Harry tirou a placa da parede e bateu com ela no balcão.
O rececionista olhava fixamente para a placa. Algo se agitava debaixo do
seu pescoço de condor.
– No quarto número 304 está um homem chamado Jones – disse ele. –
Pode ser ele.
Harry virou-se e sorriu a Nho, que encolheu os ombros.
– O senhor Jones está?
– Ele tem estado no quarto desde que se registou.
O rececionista acompanhou-os lá acima. Bateram à porta, mas ninguém
respondeu. Nho fez sinal ao rececionista para que a abrisse, e retirou do
coldre na barriga da perna uma Beretta de 55 mm carregada, com a patilha de
segurança destravada. A cabeça do rececionista começou a agitar-se como a
de um frango. Rodou a chave e recuou apressadamente dois passos. Harry
empurrou a porta com cuidado até ela ficar aberta. Os cortinados estavam
todos corridos, e o quarto às escuras. Introduziu uma mão do lado de dentro
da porta e acendeu a luz. Jim Love estava em cima da cama, imóvel, de olhos
fechados e com os auscultadores colocados. Uma ventoinha zunia e chiava no
teto, agitando os cortinados. O cachimbo de água estava em cima de uma
mesa baixa ao lado da cama.
– Jim! – chamou Harry. Jim Love não reagiu.
Ou estava a dormir ou tinha o walkman alto, julgou Harry, inspecionando o
quarto para se certificar de que Jim não tinha companhia. Viu então uma
mosca sair-lhe pachorrentamente da narina direita. Harry aproximou-se da
cama e colocou-lhe uma mão na testa. Foi como se tivesse tocado em
mármore.
60 O filme intitula-se Era Uma Vez na América e foi realizado em 1984. Baseou-se no livro de Harry
Grey. A música original é de Ennio Morricone. Para além de Robert de Niro, o filme conta com James
Woods, Elizabeth McGovern, Joe Pesci e Burt Young. (N. da T.)

61 Pano estampado de cores vivas, usado pelas mulheres do Sudeste Asiático e Oceania. É atado à
cintura para cobrir as pernas. (N. da T.)

62 Político sul-vietnamita que foi primeiro-ministro entre 1965 e 1967 e vice-presidente entre 1967 e
1971, altura em que decidiu retirar-se da política. (N. da T.)
30

Sexta-feira, 17 de janeiro

A o final daquela tarde, estavam todos reunidos no gabinete de Liz, à


exceção de Rangsan.
– Digam-me que têm uma pista – proferiu ela, em tom ameaçador.
– O pessoal do Laboratório Forense encontrou carradas delas – disse Nho.
– Estiveram lá três homens e recolheram montes de impressões digitais,
cabelos e fibras. Disseram que parecia que a Yupa House não era limpa há
seis meses.
Sunthorn e Harry riram-se, mas Liz fuzilou-os com o olhar.
– Algumas pistas que possam estar efetivamente ligadas ao homicídio?
– Ainda não sabemos se foi mesmo um homicídio – afirmou Harry.
– Claro que sabemos – ripostou Liz. – Os cúmplices sobre os quais incidem
suspeitas nas investigações de homicídios não tomam acidentalmente uma
overdose algumas horas antes de os determos.
– Quem nasceu para a forca não se afogará, como costumamos dizer em
norueguês – redarguiu Harry.
– O quê?
– Concordo.
Nho acrescentou que raramente os fumadores de ópio sofriam overdoses.
Por norma, perdiam a consciência antes de inalarem demasiado. A porta
abriu-se e Rangsan entrou.
– Há novidades – anunciou, sentando-se e pegando num jornal. – Já
descobriram a causa da morte.
– Não me parece que o resultado da autópsia chegue antes de amanhã –
afirmou Nho.
– Não é necessário. Os rapazes do Laboratório Forense encontraram ácido
prússico no ópio, uma camada fina. O tipo deve ter morrido logo após a
primeira passa.
Por um momento, o silêncio reinou à volta da mesa.
– Vão buscar o Maisan. – A velha Liz estava de volta. – Temos de
descobrir onde é que o Love arranjou aquele ópio.
– Eu cá não criava demasiadas expetativas nessa matéria – advertiu
Rangsan. – O Maisan conversou com o principal passador do Love, e ele já
não o via há bastante tempo.
– Fantástico – disse Harry. – Mas agora, para todos os efeitos, já sabemos
que anda alguém a tentar levar-nos a pensar que o Brekke é o assassino.
– Isso não nos serve de nada – respondeu Liz.
– Eu cá não estaria tão certo – afirmou Harry. – Não sabemos se o Brekke
não passava de um bode expiatório escolhido aleatoriamente. Talvez o
assassino tivesse um motivo para fazer crer que é ele, talvez algum assunto
mal resolvido.
– E daí?
– Se libertarmos o Brekke pode acontecer alguma coisa. Talvez
consigamos fazer com que o assassino saia da toca.
– Lamento – disse Liz. Olhou para a mesa. – Vamos focar-nos na pista do
Brekke.
– O quê? – Harry nem queria acreditar no que acabara de ouvir.
– Ordens do chefe.
– Mas…
– É assim que vai ser.
– Além disso, não temos nenhuma nova pista que aponte para a Noruega –
disse Rangsan. – O Laboratório Forense enviou os resultados das análises à
gordura no punhal aos seus colegas noruegueses, para verem se conseguiam
identificá-la. Descobriram que era gordura de rena, e elas não abundam na
Tailândia. Alguém no Laboratório sugeriu que prendêssemos o Pai Natal.
Nho e Sunthorn riram à socapa.
– Mas depois, Oslo disse que a gordura de rena era usada pelos Sami63 na
Noruega para protegerem as suas facas.
– Um punhal tailandês e gordura norueguesa. Isto está a ficar cada vez mais
interessante. – Liz levantou-se bruscamente. – Boa-noite a todos. Espero que
amanhã venham bem repousados e prontos para a ação.
Harry deteve-a junto ao elevador e pediu-lhe explicações.
– Oiça, Harry… Estamos na Tailândia e aqui as regras são diferentes. O
nosso chefe da Polícia envolveu-se e contou à comissária em Oslo que
tínhamos encontrado o assassino. Ele pensa que é o Brekke, e quando o
informei dos mais recentes desenvolvimentos, não ficou nada satisfeito e
insistiu que o Brekke continuasse preso pelo menos até ter um álibi.
– Mas…
– Prestígio, Harry, prestígio. Não se esqueça que, na Tailândia, ensinam-
nos a nunca admitir que errámos.
– E quando toda a gente sabe quem cometeu o erro?
– Nesse caso, toda a gente ajuda para se certificar de que não pareça um
erro.
Felizmente, as portas do elevador abriram-se e fecharam-se atrás de Liz,
poupando-a ao benefício da opinião dele sobre o assunto. Harry pensou em
All Along the Watchtower. E lembrou-se, naquele momento, do verso que
dizia que devia haver uma maneira qualquer de sair disto.
Havia?

Estava uma carta à porta do seu apartamento e viu o nome de Runa na parte
de trás do envelope.
Desabotoou a camisa. O suor assentava-lhe como uma fina camada de óleo
no peito e no estômago. Procurou recordar-se do que era ter dezassete anos.
Estivera apaixonado? Provavelmente.
Colocou a carta na mesa de cabeceira, por abrir, uma vez que estava a
pensar devolvê-la. Recostou-se depois em cima da cama e meio milhão de
carros e um sistema de ar condicionado tentaram embalá-lo no sono.
Pensou em Birgitta, a rapariga sueca que conhecera na Austrália e que
afirmara amá-lo. Fora isso que Aune dissera? Que ele estava com medo de se
comprometer com outras pessoas? O último pensamento de que teve
consciência foi que toda a redenção se faz acompanhar de uma ressaca. E
vice-versa.
63 Povo pertencente a um grupo étnico nativo da Lapónia, que se estende pelas regiões setentrionais da
Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia. (N. da T.)
31

Sábado, 18 de janeiro

J ens Brekke tinha ar de quem não dormia desde a última vez que Harry o
vira. Tinha os olhos raiados de sangue e agitava as mãos em cima da
mesa.
– Portanto, não se lembra do funcionário do parque de estacionamento com
o penteado afro – afirmou Harry.
Brekke abanou a cabeça.
– Como disse, não utilizo o parque de estacionamento.
– Vamos esquecer por agora o Jim Love – disse Harry. – Vamos
concentrar-nos na pessoa que está a tentar metê-lo na choldra.
– O que quer dizer?
– Que alguém se deu a imenso trabalho para destruir o seu álibi.
Jens arqueou tanto as sobrancelhas que estas quase se uniram à linha do
cabelo.
– No dia 13 de janeiro, alguém colocou a cassete do dia 7 de janeiro no
videogravador apagando, assim, o registo do carro do embaixador e do
momento em que o acompanhou ao parque de estacionamento.
As sobrancelhas de Jens voltaram a descer e franziram-se formando um
«M».
– Hã?
– Pense bem.
– Tenho inimigos, é isso que está a dizer?
– Talvez. Ou talvez seja apenas conveniente ter um bode expiatório.
Jens esfregou a nuca.
– Inimigos? Não me ocorre nenhum, pelo menos desse género. – O rosto
dele iluminou-se. – Mas isso deve querer dizer que vai libertar-me.
– Lamento, mas ainda não está livre de perigo.
– Mas acabou de dizer que…
– O chefe da Polícia não vai libertá-lo enquanto não tivermos um álibi. Por
isso, estou a pedir-lhe que faça um esforço para se lembrar. Houve alguém,
uma pessoa qualquer, que o viu depois de se ter despedido do embaixador e
antes de chegar a sua casa? Estava alguém na receção quando deixou o
escritório ou quando apanhou o táxi? Parou num quiosque, qualquer coisa?
Jens apoiou a testa nas pontas dos dedos. Harry acendeu um cigarro.
– Raios, Harry! Você provocou-me uma branca com aquela coisa do vídeo.
Não consigo pensar direito. – Soltou um gemido e bateu com a palma da mão
na mesa. – Sabe o que aconteceu a noite passada? Sonhei que tinha matado o
embaixador. Que saímos pela entrada principal e fomos para um motel onde
o apunhalei nas costas com uma faca de talhante. Tentei parar, mas não
conseguia controlar o meu corpo, era como se eu estivesse preso dentro de
um robot e continuasse a apunhalar, e eu…
Calou-se.
Harry não disse nada e deu-lhe todo o tempo de que ele necessitava.
– O problema é que eu odeio estar preso – disse Jens. – Nunca consegui
suportar tal coisa. O meu pai costumava…
Engoliu em seco e crispou a mão direita. Harry viu-lhe os nós dos dedos
ficarem brancos. Jens prosseguiu quase num murmúrio.
– Se alguém me apresentasse uma confissão dizendo que podia ir-me
embora se a assinasse, nem imagina o que eu era capaz de fazer.
Harry levantou-se.
– Continue a tentar lembrar-se de alguma coisa. Agora que percebemos o
que se passou com a prova do vídeo, talvez consiga pensar com um pouco
mais de clareza.
Encaminhou-se para a porta.
– Harry?
Harry perguntou-se o que levava as pessoas a falar quando se lhes virava as
costas.
– Sim?
– Porque me considera inocente quando todos os outros parecem pensar o
contrário?
Harry respondeu sem se virar.
– Em primeiro lugar, porque não temos nenhuma prova contra si, apenas
um motivo muito fraco e a ausência de um álibi.
– E em segundo?
Harry sorriu e virou a cabeça.
– Porque, da primeira vez que lhe pus a vista em cima, o achei um monte
de merda.
– E?
– Sou péssimo a avaliar as pessoas. Tenha um bom dia.

Bjarne Møller abriu um olho, semicerrou-o na direção do relógio em cima


da mesa de cabeceira e perguntou-se quem raio achava que seis da manhã era
uma hora decente para telefonar a alguém.
– Sei que horas são – disse Harry antes de o chefe ter qualquer
oportunidade. – Oiça, preciso que me investigue um tipo. Nada de concreto
neste momento, apenas instinto visceral.
– Instinto visceral?
– Sim, um palpite. Penso que andamos atrás de um norueguês, por isso o
leque fica um pouco reduzido.
Møller pigarreou e a boca encheu-se-lhe de muco.
– Porquê um norueguês?
– Bem, encontrámos gordura de rena no casaco e no punhal com que
mataram o embaixador. E o ângulo do ferimento de entrada sugere que foi
uma pessoa relativamente alta. Logo, por razões óbvias, não pode ter sido um
tailandês.
– Muito bem, mas isto não podia esperar, Hole?
– Claro que sim – respondeu Harry. Seguiu-se uma pausa.
– Nesse caso, porque não esperou?
– Porque há cinco detetives e um chefe da Polícia aqui à espera de que o
senhor mexa o rabo, chefe.

Møller telefonou-lhe passadas duas horas.


– O que foi que o levou, em concreto, a pedir-nos que verificássemos este
tipo, Hole?
– Bom, presumi que alguém que usa gordura de rena para proteger um
punhal deve ter estado no norte da Noruega. Depois, lembrei-me de dois
amigos que voltaram do serviço militar no condado de Finnmark64 com estas
facas enormes dos Sami que tinham comprado lá. O Ivar Løken esteve vários
anos na Defesa e foi destacado para Vardø65. Além disso, desconfio que ele
sabe manejar um punhal.
– Até podia ser verdade – disse Møller. – Que mais sabe sobre ele?
– Pouco. A Tonje Wiig pensa que o puseram na prateleira até se reformar.
– Bem, não existe nada acerca dele na base de dados do registo criminal,
mas… – Møller fez uma pausa.
– Mas?
– Pelo menos descobrimos um ficheiro sobre ele.
– Como assim?
– O nome dele apareceu no ecrã, mas não consegui aceder ao ficheiro. Uma
hora depois, recebi um telefonema do Alto-Comando de Defesa a perguntar
por que motivo estava eu a tentar aceder ao ficheiro dele.
– Uau!
– Mandaram-me formalizar o pedido por escrito se queria informações
sobre o Ivar Løken.
– Esqueça.
– Já esqueci, Harry. Não vamos a lado nenhum.
– Chegou a falar com o Hammervoll, da Brigada Antivício?
– Cheguei.
– E o que disse ele?
– Escusado será dizer que não existem ficheiros sobre pedófilos
noruegueses na Tailândia.
– Bem me queria parecer. Maldita proteção de dados.
– Não tem nada que ver com isso.
– Não?
– Há alguns anos, criámos uma base de dados, mas não tínhamos recursos
para a manter atualizada. Eram simplesmente demasiados.

Quando Harry telefonou a Tonje Wiig para marcar uma reunião o mais
depressa possível, ela fizera questão de que se encontrassem no Authors’
Lounge do Hotel Oriental para tomarem um chá.
– Toda a gente lá vai – dissera ela.
Harry descobrira que «toda a gente» eram os brancos, os ricos e os bem
vestidos.
– Bem-vindo ao melhor hotel do mundo, Harry – pipilou Tonje das
profundezas de uma poltrona no átrio.
Vestia uma saia de algodão azul e segurava um chapéu de palha no colo, o
que, juntamente com todas as outras pessoas no átrio, conferia ao local um
toque do velho colonialismo indiferente.
Retiraram-se para o Authors’ Lounge, onde lhes foi servido chá e baixaram
gentilmente a cabeça aos outros brancos que pareciam convencidos de que
ser branco era motivo suficiente para se cumprimentarem. Nervoso, Harry fez
tinir a porcelana.
– Não é o seu estilo, Harry? – Tonje ia bebendo o seu chá aos golinhos,
enquanto espreitava maliciosamente por cima da borda da chávena.
– Estou a tentar perceber porque sorrio a americanos com roupa de golfe.
Ela soltou uma gargalhada.
– Oh, um ambiente ligeiramente refinado não faz mal a ninguém.
– E alguma vez as calças de xadrez foram refinadas?
– Hum, nesse caso, pessoas refinadas.
Harry apercebeu-se de que a cidade rural de Frederikstad não fizera muito
pela mulher sentada diante de si. Pensou em Sanphet, o velho motorista, que
fora vestir uma camisa engomada e calças compridas e se sentara ao sol
escaldante para que as suas visitas não ficassem embaraçadas com a vida
simples que levava. Aquilo fora mais refinado do que tudo o que vira até ali
entre os estrangeiros em Banguecoque.
Harry perguntou a Tonje o que sabia sobre os pedófilos na Tailândia.
– Apenas que a Tailândia atrai imensos. Como decerto se recordará, um
norueguês foi literalmente apanhado com as calças arriadas em Pattaya o ano
passado. Os jornais noruegueses publicaram uma fotografia
encantadoramente retocada de três rapazinhos a indicarem-no à Polícia. O
rosto do homem tinha sido tapado, mas os dos rapazes não. Na versão em
inglês do Pattaya Mail sucedeu o inverso. E colocaram o nome completo do
homem em destaque e depois disso chamaram-lhe sempre «o norueguês». –
Tonje abanou a cabeça. – As pessoas daqui, que nunca antes tinham ouvido
falar da Noruega, de repente, sabiam que Oslo era a capital porque vinha lá
escrito que as autoridades norueguesas queriam levá-lo para Oslo. Todos se
perguntaram por que carga de água o queriam de volta. Aqui, ele teria ficado
muito tempo atrás das grades.
– Se as sentenças aqui são tão rigorosas, porque existem tantos pedófilos?
– As autoridades querem que a Tailândia se livre da fama de Eldorado dos
pedófilos. Prejudica o turismo genuíno. Contudo, no seio da força policial,
não lhe dão prioridade porque a detenção de estrangeiros só acarreta sarilhos.
– Então, temos as autoridades a trabalharem umas contra as outras?
Tonje esboçou um sorriso radioso que, apercebeu-se Harry, não lhe era
destinado, mas a algum elemento do «toda a gente» que passara por detrás de
si.
– Sim e não – disse ela. – Alguns colaboram. Por exemplo, na Suécia e na
Dinamarca as autoridades celebraram um acordo com o governo tailandês
que lhes permite destacar agentes para aqui a fim de investigarem casos
específicos em que estejam envolvidos suecos ou dinamarqueses. Também
aprovaram legislação em que os nacionais suecos e dinamarqueses podem ser
condenados nos respetivos países por abuso sexual de menores na Tailândia.
– E a Noruega?
Tonje encolheu os ombros.
– Ainda não temos nenhum acordo. Sei que a Polícia norueguesa exigiu um
acordo equivalente, mas não creio que tenham a noção do que se passa em
Pattaya e em Banguecoque. Já reparou nas crianças que andam por aí a
vender pastilhas elásticas?
Harry anuiu. A zona à volta dos clubes noturnos no Patpong estava cheia
delas.
– É o código. A pastilha elástica significa que estão à venda.
Harry apercebeu-se, com um calafrio, de que comprara uma embalagem de
Wrigley’s a um rapaz de olhos negros, descalço, que ficara com um ar
apavorado, que Harry atribuíra à multidão e ao barulho.
– O Ivar Løken, o homem que me indicou na cerimónia fúnebre. Ex-
militar, disse? Pode falar-me um pouco mais do interesse dele pela
fotografia? Já viu algumas das suas fotos?
– Não, mas vi o equipamento dele e é muito impressionante.
As faces dela ruborizaram-se um nadinha quando lhe ocorreu por que
motivo Harry sorrira involuntariamente.
– E estas viagens à Indochina? Tem a certeza de que ele foi mesmo lá?
– Se tenho a certeza? Porque haveria ele de mentir?
– Tem alguma ideia do que o levaria a fazê-lo?
Ela cruzou os braços, como se julgasse que arrefecera.
– Na verdade, não. Como estava o chá?
– Preciso de lhe pedir um favor, Tonje.
– E qual é?
– Um convite para jantar.
Ela ergueu o olhar, surpreendida.
– Se tiver disponibilidade – acrescentou ele.
Brindou-o de novo com um sorriso malicioso.
– A minha agenda está sempre livre para si, Harry. Quando quiser.
– Ótimo. – Harry aspirou o ar entre os dentes. – Estava a perguntar-me se
você podia convidar o Ivar Løken para jantar esta noite entre as sete e as dez.
Ela sabia o suficiente para conseguir manter uma máscara que encobrisse
demasiado constrangimento. Depois, ele explicara-lhe os motivos, e ela até
concordara. Harry produziu mais um tinido com a chávena de porcelana,
disse que tinha de ir andando e retirou-se de forma súbita e desajeitada.
64 Faz fronteira com o condado de Troms, a Lapónia finlandesa e a Rússia (Murmansk). (N. da T.)

65 Localidade portuária da Noruega situada no mar de Barents, na parte mais oriental do condado de
Finnmark. (N. da T.)
32

Sábado, 18 de janeiro

Q ualquer pessoa consegue entrar à força numa casa – basta introduzir um


pé de cabra na ombreira da porta, junto à fechadura, e exercer pressão
suficiente até saltarem lascas de madeira. Já entrar furtivamente, com a tónica
em «furtivamente» e não em «entrar», de tal maneira que o ocupante nem se
apercebe de que teve visitas indesejadas, é uma arte. Uma arte que, ao que
constava, Sunthorn dominava na perfeição.
Ivar Løken morava num complexo de apartamentos do outro lado da Phra
Pinklao Bridge, e Sunthorn e Harry estavam estacionados lá fora há quase
uma hora quando o viram sair. Aguardaram dez minutos até terem a certeza
de que Løken não ia voltar atrás por se ter esquecido de algo.
A segurança não era apertada. Estavam dois homens fardados à porta da
garagem, a conversar; ergueram o olhar, registaram a entrada de um homem
branco e de um tailandês relativamente bem vestido que se dirigiram ao
elevador e retomaram a conversa.
Quando Harry e Sunthorn estavam diante da porta de Løken, no décimo
terceiro andar – ou 12B, como indicava o botão no elevador –, Sunthorn
pegou em duas gazuas, uma em cada mão, que introduziu na fechadura.
Retirou-as quase de imediato.
– Tenha calma – segredou Harry. – Não fique stressado. Temos todo o
tempo do mundo. Experimente outras gazuas.
– Não tenho mais nenhumas.
Sunthorn sorriu e escancarou a porta.
Harry nem queria acreditar. Talvez Nho não estivesse a gracejar quando
aludira obscuramente à profissão de Sunthorn antes de entrar para a Polícia.
Contudo, se não tivesse sido a de infrator, era-o sem dúvida naquele
momento, pensou Harry, enquanto descalçava os sapatos e entrava no
apartamento às escuras. Liz explicara que, para conseguirem um mandado de
busca, necessitavam da assinatura de um advogado e que isso implicava
informar o chefe da Polícia. Pensava que podia ser problemático, uma vez
que ele ordenara expressamente que concentrassem todos os esforços em Jens
Brekke. Harry frisara que não se encontrava sob a alçada do chefe e que iria
rondar o apartamento de Løken para ver se se passava alguma coisa. Ela
percebera a ideia e respondera que queria saber o mínimo possível sobre os
planos de Harry. No entanto, comentara que Sunthorn era, com frequência,
boa companhia.
– Vá para o carro e espere – murmurou Harry. – Se o Løken aparecer, ligue
para o número fixo dele, do telefone dentro do carro, e deixe tocar três vezes,
não mais, okay?
Sunthorn anuiu e desapareceu.
Depois de se certificar de que nenhuma das janelas dava para a rua, Harry
acendeu a luz, localizou o telefone e verificou se tinha linha. Então, foi fazer
o reconhecimento do terreno. Era uma casa de solteirão, sem quaisquer
ornamentos nem comodidade. Três das paredes estavam vazias, a quarta
coberta de estantes repletas de livros, tanto na vertical como na horizontal, e
um modesto televisor portátil. O centro natural da enorme sala era uma mesa
de madeira assente em cavaletes em vez de pernas e um candeeiro de
arquiteto.
A um canto havia dois estojos fotográficos abertos e um tripé encostado à
parede. A mesa estava coberta de tiras de papel, ao que tudo indicava aparas,
porque se viam duas tesouras, uma grande e outra pequena, ao meio.
Duas máquinas fotográficas, uma Leica e uma Nikon F5 com teleobjetiva,
olhavam cegas para Harry. Junto a elas encontravam-se uns binóculos de
visão noturna. Harry já os vira antes; eram de uma marca israelita que ele
usara em trabalhos de vigilância. As lanternas reforçavam todas as fontes de
iluminação exterior e permitiam ver mesmo no que, a olho nu, parecia ser
escuridão total.
Uma porta no apartamento dava acesso ao quarto. A cama estava por fazer,
por isso presumiu que Løken pertencesse à minoria de estrangeiros em
Banguecoque que não tinha empregada doméstica. Não era muito
dispendioso, e Harry ficara com a impressão de que era quase esperado que
os estrangeiros contribuíssem dessa forma para a empregabilidade no país.
À saída do quarto havia uma casa de banho privativa.
Acendeu a luz e percebeu logo por que motivo Løken não tinha empregada
doméstica.
Não havia a menor dúvida de que a casa de banho servia de câmara escura.
Tresandava a químicos e as paredes estavam cheias de fotografias a preto-e-
branco. Uma fila de fotos fora pendurada a secar num cordel estendido de um
lado ao outro da casa de banho. Mostravam um homem de perfil do peito
para baixo e Harry conseguiu ver que não era o caixilho que limitava a
imagem: a parte superior da janela exibia um complexo mosaico de vidro
com flores de lótus e motivos de Buda.
Um rapaz, que não teria mais de dez anos, era obrigado a praticar sexo oral
e a objetiva aproximara-se tanto que Harry conseguia ver-lhe os olhos. Eram
inexpressivos, distantes e aparentemente sem perceção.
Para além de uma T-shirt, o rapaz estava nu. Harry aproximou-se da
fotografia com grão. O homem tinha uma mão na anca, a outra atrás da
cabeça do rapaz. Harry conseguia ver a sombra de um perfil por detrás do
mosaico de vidro, contudo, era impossível distinguir quaisquer feições. De
repente, a casa de banho estreita e malcheirosa pareceu encolher, e as
fotografias na parede avançaram para ele. Harry cedeu ao impulso, arrancou-
as, meio em fúria, meio em desespero, sentindo o sangue latejar-lhe nas
têmporas. Viu o seu rosto num espelho antes de sair de lá zonzo e a
cambalear com um monte de fotografias debaixo do braço. Deixou-se cair
numa cadeira.
– Maldito amador! – murmurou quando voltou a respirar normalmente.
Este fora um desvio grosseiro do plano. Como não tinham um mandado de
busca, ficara combinado que não deixariam quaisquer vestígios, iam apenas
descobrir o que estava no apartamento e depois, se encontrassem algo,
regressariam mais tarde com o documento.
Harry procurou um ponto na parede onde fixar o olhar e convenceu-se de
que era necessário obter provas concretas para persuadir o chefe da Polícia,
que era teimoso que nem uma mula. Se fossem céleres, podiam arranjar um
advogado naquela noite e aguardar com os documentos necessários que
Løken regressasse do jantar. Enquanto decidia o que fazer andando de um
lado para o outro, pegou nos binóculos de visão noturna e olhou pela janela.
Esta dava para um pátio, e procurou inconscientemente um caixilho com um
mosaico de vidro igual ao das fotografias. Contudo, apenas conseguiu ver
paredes caiadas a deslizarem no brilho verde dos binóculos.
Harry viu as horas no relógio de pulso. Apercebeu-se de que tinha de voltar
a pendurar as fotografias. O chefe da Polícia teria de contentar-se com a
descrição que lhe fizesse. Depois, gelou-se-lhe o sangue nas veias.
Ouvira algo. Melhor dizendo, ouvira mil ruídos, mas um som entre esses
mil não pertencia à já familiar cacofonia das ruas. E viera do hall. Fora um
estalido bem lubrificado. Óleo e metal. Quando a corrente de ar lhe disse que
alguém abrira a porta, pensou em Sunthorn, até se aperceber de que a pessoa
que acabara de entrar estava a tentar ser tão silenciosa quanto possível. Harry
prendeu a respiração, enquanto o seu cérebro rebobinava os arquivos de som
a um ritmo furioso. Um perito em som na Austrália dissera-lhe que a
membrana no ouvido consegue notar a diferença de pressão entre um milhão
de frequências diferentes. E este não fora o som do puxador de uma porta a
rodar, mas de uma arma recentemente lubrificada a ser engatilhada.
Harry encontrava-se ao fundo do quarto, qual alvo vivo, encostado às
paredes brancas, e o interruptor ficava do outro lado, junto à porta. Pegou na
tesoura grande que estava no meio da mesa e seguiu o cabo do candeeiro de
arquiteto até à tomada. Puxou a ficha e cravou a tesoura com toda a força no
plástico duro.
Houve um clarão azul na tomada, após o que se deu uma explosão abafada.
E a seguir ficou escuro como breu.
O choque elétrico adormeceu-lhe o braço e, com o cheiro a plástico e metal
queimados nas narinas, deslizou a gemer encostado à parede.
Pôs-se à escuta, mas apenas conseguia ouvir o trânsito e o seu próprio
coração. Este batia com tanta força que podia senti-lo; era como se estivesse
montado num cavalo a todo o galope. Ouviu o som de algo a ser pousado
com cuidado no chão e percebeu que a pessoa se descalçara. Segurava ainda
a tesoura na mão. Vira uma sombra mover-se? Era impossível dizer; estava
tão escuro que nem as paredes brancas eram visíveis. A porta do quarto
chiou, seguindo-se um estalido. Harry apercebeu-se de que o intruso tentara
acender a luz, mas obviamente o curto-circuito rebentara os fusíveis no
apartamento. Isso disse-lhe que, pelo menos, a pessoa estava familiarizada
com a traça do apartamento. Porém, se fosse Løken, Sunthorn ter-lhe-ia
ligado. Ou não? Passou-lhe num relance a imagem da cabeça de Sunthorn
encostada ao vidro da janela do carro, com um buraquinho acima da orelha.
Harry perguntou-se se devia tentar sair a gatinhar pela porta da casa, mas
algo lhe disse que esta era a outra pessoa de quem ele estava à espera.
Quando ele abrisse a porta, a sua silhueta pareceria um dos alvos na carreira
de tiro em Økern. Merda! Provavelmente, naquele momento, o homem estava
sentado no chão com a arma apontada à porta.
Se ao menos ele conseguisse contactar Sunthorn! Apercebeu-se, naquele
momento, de que ainda tinha os binóculos ao pescoço. Aproximou-os dos
olhos, mas só viu nevoeiro verde, como se alguém tivesse sujado as lentes de
ranho. Ajustou o foco o máximo possível. Continuava tudo turvo, porém,
conseguiu distinguir o contorno de uma pessoa de pé junto à parede, do outro
lado da mesa. Tinha o braço curvado e a arma apontada ao teto. Talvez
houvesse uma distância de dois metros entre o canto da mesa e a parede.
Harry precipitou-se, agarrou o tampo da mesa com ambas as mãos e
segurou-o diante de si como um aríete. Ouviu um gemido, e o som metálico
surdo de uma arma a embater no chão, depois, deslizou pela superfície da
mesa e agarrou o que parecia ser uma cabeça. Prendeu o braço à volta do
pescoço e apertou.
– Politiet! – gritou e o homem imobilizou-se, enquanto Harry lhe encostava
o aço frio da tesoura ao rosto quente. Ficaram assim algum tempo, agarrados
um ao outro, dois desconhecidos na escuridão retinta, respirando ambos com
dificuldade como se tivessem acabado de correr uma maratona.
– Hole? – gemeu o outro homem.
Harry apercebeu-se de que, no momento de pânico, gritara em norueguês.
– Agradecia que tivesse a gentileza de me largar. Sou o Ivar Løken e não
vou tentar nada.
33

Sábado, 18 de janeiro

L øken acendeu uma vela enquanto Harry observava a arma dele, uma
Glock 31, de fabrico especial. Retirara o pente e guardara-o no bolso. A
arma era mais pesada do que qualquer outra que já tivesse empunhado.
– Arranjei a arma quando prestei serviço militar na Coreia – disse Løken.
– Estou a ver. A Coreia. E o que fez por lá?
Løken guardou os fósforos numa gaveta e sentou-se à mesa diante de
Harry.
– A Noruega tinha lá um hospital de campanha das Nações Unidas, eu era
um jovem segundo-tenente e pensei que ia gostar da agitação. Depois do
armistício, em 1953, continuei a trabalhar para as Nações Unidas, para o
recém-criado Alto Comissariado para os Refugiados. Estes entravam pela
fronteira vindos da Coreia do Norte, e a vida era um pouco anárquica.
Dormia com ela debaixo da almofada. – Apontou para a arma.
– Estou a ver. E o que fez depois disso?
– Seguiu-se o Bangladesh e o Vietname. Fome, guerra e os barcos com
refugiados. Depois disto, a vida na Noruega parecia-me insuportavelmente
trivial, por isso não consegui permanecer afastado mais do que uns dois anos
antes de tornar a sair. Sabe como é.
Harry não sabia. Assim como não sabia se devia acreditar naquele
indivíduo magro sentado diante de si. Parecia um velho chefe índio, com um
nariz aquilino e olhos intensos, encovados. Tinha o cabelo branco, o rosto
bronzeado e enrugado. Além disso, parecia completamente descontraído
perante a situação, o que deixou Harry ainda mais de pé atrás.
– Porque voltou? E como conseguiu passar pelo meu colega?
O norueguês de cabelo branco exibiu um esgar lupino e um dente de ouro
cintilou à luz trémula da vela.
– A viatura em que se deslocou destoa bastante no bairro. Aqui só temos
tuk-tuks, táxis e chaços estacionados. Vi duas pessoas dentro de um carro,
ambas sentadas um pouco direitas de mais. Então, dobrei a esquina e entrei
no café, onde podia ficar a observar-vos. Passado um bocado, vi que a luz do
carro se acendeu e que saíram. Calculei que um dos dois ficasse de vigia e
esperei até o seu colega regressar. Depois, terminei a minha bebida, mandei
parar um táxi, que me levou ao parque de estacionamento subterrâneo e
apanhei o elevador. Que belo numerozinho aquele do curto-circuito…
– As pessoas comuns não reparam nos carros estacionados na rua. A menos
que tenham sido treinadas para o fazer ou estejam na retranca.
– Bem, em primeiro lugar, é pouco provável que a Tonje Wiig vá ganhar
um Óscar pela sua interpretação no convite para jantar.
– Nesse caso, o que faz realmente aqui?
Løken estendeu a mão para as fotografias e o equipamento, naquele
momento espalhados pelo chão.
– Ganha a vida tirando fotografias de… daquilo? – disse Harry.
– Sim.
Harry sentiu as suas pulsações acelerarem.
– Sabe quantos anos vai ficar preso por fazer isto na Tailândia? Calculo que
tenha o suficiente para dez anos.
Løken soltou uma gargalhada, curta e seca.
– Acha que sou estúpido, detetive? Se tivesse um mandado de busca, não
me teria assaltado a casa. Se me arrisco a ser punido pelo que fiz neste
apartamento, então, o que você e o seu colega acabaram de fazer vai, sem
dúvida, absolver-me. Qualquer juiz irá considerar inadmissíveis as provas
obtidas desta forma. Não só é irregular como absolutamente ilegal. Bem pode
contar com uma longa pena, Hole.
Harry agrediu-o com a arma. Foi como abrir uma torneira; o sangue jorrou
do nariz de Løken.
O homem não se mexeu, limitou-se a olhar para a camisa florida e as calças
brancas que iam ficando manchadas de vermelho.
– Isto é seda tailandesa genuína, sabia? – disse ele. – Não é barata.
A violência devia tê-lo feito travar, só que, ao invés, Harry sentiu a sua
fúria crescer.
– Você tem dinheiro para isso, seu pedófilo de um raio. Calculo que lhe
paguem bem por esta merda. – Harry deu um pontapé nas fotografias
espalhadas no chão.
– Bem, não estou tão certo disso – respondeu Løken, levando um lenço
branco ao nariz. – Está de acordo com a tabela salarial da função pública.
Mais um subsídio por colocação no estrangeiro.
– De que está a falar?
O dente de ouro voltou a cintilar. Harry apercebeu-se de que apertava a
arma com tanta força que começava a doer-lhe a mão. Ainda bem que retirara
o carregador.
– Há duas coisas que você não sabe, Hole. Se calhar, deviam tê-lo
informado mas, provavelmente, a sua comissária da Polícia considerou-o
desnecessário por não ter qualquer relação com a sua investigação de
homicídio. Mas agora que fui denunciado, pode ficar a saber o resto. A
comissária da Polícia e o Dagfinn Torhus do Ministério dos Negócios
Estrangeiros falaram-me das fotografias que você encontrou na pasta do
embaixador e, evidentemente agora já sabe que são minhas. – Prosseguiu
com a palma da mão estendida. – Tanto essas fotografias como as que está a
ver aqui são elos numa investigação de pedofilia que, por muitas e variadas
razões, é secreta até indicação em contrário. Há mais de seis meses que vigio
este homem. As fotografias constituem a prova disso.
Harry nem por um momento duvidou; sabia que era verdade. Tudo se
encaixava, como se, lá no fundo, sempre o soubesse. O secretismo em torno
do trabalho de Løken, o equipamento fotográfico, os binóculos de visão
noturna, as viagens ao Vietname e ao Laos, tudo se encaixava. E o homem
diante de si a sangrar do nariz deixara de ser seu inimigo, era um colega, um
aliado cujo nariz ele bem se esforçara por partir.
Anuiu lentamente e colocou a arma em cima da mesa.
– Muito bem, acredito em si. Porquê tanto secretismo?
– Tem conhecimento do acordo que a Suécia e a Dinamarca assinaram com
a Tailândia para investigarem casos de abuso sexual aqui?
Harry anuiu.
– Bem, a Noruega encontra-se em negociações com as autoridades
tailandesas e, enquanto isso, estou a conduzir uma investigação
extremamente oficiosa. Temos o suficiente para o prender, mas vamos ter de
esperar. Se o fizéssemos agora, teríamos de reconhecer ter andado a
investigar ilegalmente o caso em território tailandês, e isso politicamente é
inaceitável.
– Nesse caso, para quem trabalha?
Løken abriu as mãos.
– Para a embaixada.
– Eu sei, mas de onde partem as ordens? Quem se encontra por detrás de
tudo? E o Parlamento? Tem conhecimento disto?
– Quer mesmo saber de tudo, Hole?
Os olhos intensos cravaram-se nos de Harry. Ele ia dizer algo, mas
arrependeu-se e abanou a cabeça.
– Ao menos, diga-me quem é o homem na fotografia.
– Não posso. Lamento, Hole.
– É o Atle Molnes?
Løken olhou fixamente para a mesa e sorriu.
– Não, não é o embaixador. Ele foi o impulsionador deste caso.
– É…?
– Como disse, não tenho qualquer motivo para lhe contar neste momento.
Se os nossos casos chegarem a cruzar-se, pode vir a constituir um tema de
debate, mas a decisão caberá aos nossos superiores. – Pôs-se de pé. – Estou
cansado.

– Como correu? – perguntou Sunthorn, quando Harry regressou ao carro.


Harry perguntou se podia cravar-lhe um cigarro e inalou avidamente o
fumo até aos pulmões.
– Não descobri nada. Foi um passeio à senhora da asneira. Acho que o tipo
está limpo.

Harry estava sentado no seu apartamento.


Assim que saíra da casa de Løken, tinha falado com a irmã ao telefone
durante quase meia hora. Isto é, ela fizera a despesa da conversa. É
inacreditável o que pode acontecer numa vida em pouco mais de uma
semana. Ela tinha dito que ligara ao pai e que ia preparar o jantar para ele.
Almôndegas. Sis ia cozinhar, e esperava que o pai ficasse um pouco mais
animado. Harry também esperava que sim.
Depois, folheou o seu bloco de notas e ligou para outro número.
– Estou? – disse uma voz do outro lado.
Harry susteve a respiração.
– Estou? – repetiu a voz.
Harry desligou. Algo na voz de Runa raiara a súplica. Ele não fazia a
menor ideia da razão pela qual lhe ligara. Segundos depois, o telefone tocou.
Levantou o auscultador e ficou à espera de ouvir a voz. Era Jens Brekke.
– Consegui – disse ele. Havia excitação na sua voz. – Quando entrei no
elevador do parque de estacionamento dei de caras com uma mulher no rés
do chão. Ela saiu no quarto piso. E julgo que vai lembrar-se de mim.
– E porquê?
Ouviu-se um riso ligeiramente nervoso.
– Porque a convidei para sair.
– Convidou-a para sair?
– Sim, é uma das raparigas que trabalha na McEllis. Já a tinha visto duas
vezes. Éramos os únicos no elevador e ela sorriu com tanta doçura, que não
me contive.
Seguiu-se uma pausa.
– E lembrou-se disso agora?
– Não, agora lembrei-me de quando aconteceu, foi depois de ter
acompanhado o embaixador ao carro. Por algum motivo, imaginei que tivesse
acontecido no dia anterior. Mas depois lembrei-me de que ela entrara no
elevador no rés do chão e que isso deve querer dizer que eu vinha de algum
piso inferior. E não costumo ir ao parque de estacionamento subterrâneo.
– E o que foi que ela disse?
– Ela aceitou, e eu arrependi-me logo a seguir. Foi apenas um flirt, por isso
pedi-lhe o cartão de visita e disse que lhe ligava um dia para combinarmos
um encontro. Claro que não se chegou a concretizar, mas tenho a certeza
absoluta de que ela não me esqueceu.
– E ainda tem o cartão dela?
– Tenho, não é fantástico?
Harry ponderou.
– Ouça, Jens, isso é tudo muito bonito, mas não é assim tão fácil. Você
continua a não ter álibi. Teoricamente, podia ter voltado a descer no elevador.
Podia ter ido buscar algo que tivesse deixado no seu gabinete, certo?
– Oh. – Pareceu confuso. – Mas… – Jens calou-se e Harry ouviu um
suspiro. – Raios, tem razão, Harry.
Harry desligou.
34

Domingo, 19 de janeiro

H arry acordou sobressaltado. Ao zumbido monótono que vinha da Taksin


Bridge sobrepôs-se o ronco de um barco fluvial ao arrancar no Chao
Phraya. Soou um apito e a luz feriu-lhe os olhos. Sentou-se na cama, cobriu o
rosto com as mãos e esperou que o apito cessasse, até se aperceber de que era
o telefone. Levantou o auscultador com relutância.
– Acordei-o? – Era novamente Jens.
– Não tem importância – disse Harry.
– Sou um idiota. Sou tão estúpido que nem sei como vou ter coragem de
lhe contar isto.
– Então não conte. – Silêncio à exceção do clique de uma moeda a ser
introduzida numa máquina. – Estou a brincar. Vá lá.
– Está bem, Harry. Não preguei olho a noite inteira a pensar, a tentar
lembrar-me do que estava a fazer no escritório naquela noite. Sabe, consigo
lembrar-me até às décimas das transações de moeda que efetuei há vários
meses, mas não consigo lembrar-me de coisas simples e concretas quando
estou na prisão com uma pena por homicídio a pairar-me sobre a cabeça.
Consegue entender isso?
– Talvez seja esse o motivo. Não falámos já disto antes?
– Pronto, bem, foi isto que aconteceu. Lembra-se de lhe dizer que, naquela
noite, tinha bloqueado as minhas chamadas quando fiquei a trabalhar no
escritório? E estava ali deitado e pus-me a pensar que era a Lei de Murphy66.
Se estivesse ligado e alguém telefonasse, a chamada tinha ficado gravada e eu
podia provar onde estava. E, nesta circunstância, não é possível mexer na
hora, como fez o funcionário do parque de estacionamento com o vídeo.
– Onde quer chegar?
– Graças a Deus, lembrei-me de que apesar de não poder receber
chamadas, eu podia telefonar. Liguei à nossa rececionista e pedi-lhe que fosse
verificar o gravador. E, veja bem, ela encontrou uma chamada que eu tinha
feito, e depois lembrei-me de tudo. Às oito telefonei à minha irmã, que está
em Oslo. É capaz de fazer melhor?
Harry não fazia tenção de tal.
– A sua irmã pode dar-lhe um álibi e você nem sequer se lembrou?
– Não. E sabe porquê? Porque ela não estava em casa. Limitei-me a deixar-
lhe uma mensagem no atendedor de chamadas a dizer que lhe tinha ligado.
– E não se lembrou? – repetiu Harry.
– Por Cristo, Harry, uma pessoa esquece-se desse tipo de chamada antes
mesmo de pousar o auscultador, não lhe parece? Você lembra-se de todas as
chamadas que fez e em que não atenderam?
Harry não teve como não concordar que ele tinha razão.
– Falou com o seu advogado?
– Hoje não. Queria contar-lhe primeiro.
– Muito bem, Jens. Ligue agora ao seu advogado, que eu vou mandar
alguém ao seu escritório verificar o que me disse.
– Este tipo de gravação é válida aos olhos da lei, sabia? – Notou-se um tom
tenso na voz dele.
– Calma, Jens. Já falta pouco. Agora vão ter de o deixar sair em liberdade.
O auscultador deu estalidos quando Brekke expirou.
– Por favor, diga lá isso outra vez, Harry.
– Vão ter de o deixar sair em liberdade.
Jens soltou uma gargalhada estranhamente seca.
– Nesse caso, pago-lhe um almoço, Harry.
– É melhor não.
– E porquê?
– Sou polícia.
– Chame-lhe uma entrevista.
– Não me parece, Jens.
– Como queira.
Veio um estoiro da rua lá em baixo, talvez de uma bombinha ou de um
pneu que rebentara.
– Vou pensar no assunto.
Harry pousou o auscultador, foi à casa de banho e olhou-se ao espelho.
Perguntou-se como era possível passar tanto tempo em climas tropicais e
continuar tão pálido. Nunca gostara particularmente de apanhar sol, mas
também nunca antes demorara tanto tempo a bronzear-se. Será que o estilo de
vida que levara durante o ano anterior lhe destruíra a produção de pigmento?
Passou água fria no rosto, pensou nos clientes de tez escura no Schrøder e
viu-se novamente ao espelho. Bem, pelo menos o sol dera-lhe um nariz de
vinho do Porto.
66 O criador desta lei foi o capitão da Força Aérea americana, Edward Murphy, também ele a primeira
vítima conhecida da sua própria lei. Se algo tem a mais remota hipótese de correr mal, de certeza que
vai correr. (N. da T.)
35

Domingo, 19 de janeiro

–V oltámos à estaca zero – disse Liz. – O Brekke tem um álibi e, de


momento, temos de esquecer o Løken. Oh, e anda à solta um gigante
psicopata que tentou matar um agente que lhe fez uma visitinha. – Inclinou a
cadeira para trás e observou o teto. – Alguma sugestão, pessoal? Se não, esta
reunião acabou, podem fazer o que raio vos apetecer, mas ainda me faltam
uns relatórios e quero-os o mais tardar amanhã bem cedo na minha
secretária.
Os agentes saíram arrastando os pés. Harry deixou-se ficar.
– Então?
– Nada – disse ele, com um cigarro apagado a subir e a descer ao canto da
boca. A inspetora impusera a proibição de fumar no seu gabinete.
– Vejo que há alguma coisa.
Um ténue sorriso fez curvar os cantos da boca de Harry.
– Era isso que eu queria saber, inspetora. Que consegue ver que há alguma
coisa.
Ela tinha uma ruga austera entre as sobrancelhas.
– Informe-me quando tiver algo para me contar.
Harry tirou o cigarro e voltou a guardá-lo no maço.
– Sim – disse, levantando-se. – Assim farei.

***

Jens recostou-se na cadeira e sorriu, as faces ruborizadas, o laço a brilhar.


Fez lembrar a Harry um rapazinho no dia do seu aniversário.
– Quase estou grato pelo tempo que passei detido. Faz-nos dar muito mais
valor às coisas simples. Como a uma garrafa de Dom Perignon de 1985, por
exemplo.
Estalou os dedos para chamar o empregado, que se aproximou
imediatamente da mesa, retirou do balde a garrafa de champanhe a escorrer e
encheu-lhe o copo.
– Adoro quando eles fazem isto. Uma pessoa sente-se como o Super-
Homem. O que me diz, Harry?
Harry passou os dedos pelo copo.
– Acredito, mas na verdade não faz bem o meu género.
– Nós somos diferentes, Harry.
Jens fez esta declaração com um sorriso. Dava a sensação de ter voltado a
encher o fato. Ou então acabara de mudar para um quase idêntico. Harry não
tinha a certeza.
– Algumas pessoas precisam de luxo, tal como outras precisam de ar –
afirmou Jens. – Um carro caro, roupas bonitas e um bom atendimento são
simplesmente um imperativo para me sentir… bem, para sentir que existo.
Consegue entender-me?
Harry abanou a cabeça.
– Hum. – Jens segurava a flute pelo pé. – De nós os dois, sou eu o
decadente. Você devia confiar nas suas primeiras impressões. Eu sou um
monte de merda. E, enquanto existir espaço para os montes de merda neste
mundo, tenciono continuar a sê-lo. Skål.
Saboreou o champanhe na boca antes de engolir. Depois fez um esgar e
gemeu de prazer. Harry teve de sorrir e erguer o seu próprio copo, mas Jens
lançou-lhe um olhar reprovador.
– Água? Não está na hora de começar a desfrutar da vida, Harry? Na
verdade, não é necessário ser tão austero consigo mesmo.
– Por vezes é necessário.
– Que disparate. Todos os humanos são basicamente hedonistas, alguns só
demoram mais a aperceber-se. Tem mulher?
– Não.
– E não estará na altura?
– Claro que está. Não vejo o que isso tem que ver com desfrutar da vida.
– Tem razão. – Jens olhou para o seu copo. – Já lhe falei da minha irmã?
– Aquela a quem telefonou?
– Sim. É solteira, sabe?
Harry soltou uma gargalhada.
– Não julgue que tem uma dívida de gratidão para comigo, Jens. Não fiz
muito, para além de levar a que o prendessem.
– Não estou a brincar. Uma rapariga maravilhosa. É editora, mas acho que
ela trabalha tanto que não tem tempo para arranjar um homem. Ela também
os afasta. É como você, austera, muito independente. A propósito, já reparou
que é o que todas as raparigas norueguesas dizem depois de terem
conquistado um prémio de Miss Isto-Ou-Aquilo quando têm de se descrever
aos jornalistas: que são independentes? É o que mais há por aí. – Jens pareceu
pensativo. – Quando a minha irmã atingiu a maioridade, adotou o apelido da
minha mãe. E, nessa altura, fê-lo por vingança.
– Não sei muito bem se a sua irmã e eu íamos combinar.
– Porque não?
– Bem, eu sou um cobarde. Procuro uma mulher que não dê nas vistas, com
uma profissão social e que seja tão bela que ninguém tenha ousado dizer-lho.
Jens soltou uma gargalhada.
– Pode casar-se com a minha irmã de consciência tranquila. Não importa
que não goste dela; ela trabalha tanto que também não a iria ver na maior
parte do tempo.
– Porque lhe ligou para casa e não para o emprego? Eram duas da tarde
quando lhe telefonou?
Jens abanou a cabeça.
– Só aqui entre nós, nunca me lembro das diferenças horárias. Quero dizer,
se tenho de somar ou subtrair horas. É muito embaraçoso. O meu pai diz que
estou pré-senil. Diz que o herdei do lado da minha mãe.
Apressou-se a acrescentar, para tranquilizar Harry, que a irmã não
apresentava o mesmo problema, muito pelo contrário.
– Já chega, Jens. Fale-me mais sobre si. Começou a pensar no casamento?
– Chiu, não diga esse tipo de coisas. Só a palavra causa-me palpitações.
Casamento… – Jens estremeceu. – O problema é que, por um lado, não nasci
para a monogamia, mas, por outro, sou um romântico. Quando me casar não
vou poder andar com outras mulheres. Percebe o que estou a dizer? E a ideia
de nunca mais fazer sexo com qualquer outra mulher é inibidora, não lhe
parece? – Harry tentou mostrar empatia. – Imagine que saio mesmo com a
rapariga do elevador, o que acha que ia resultar daí? Absoluto pânico, certo?
Tudo isso apenas para provar a mim mesmo que ainda sou capaz de me
interessar por outra mulher. Seria um fracasso, na verdade. A Hilde é… –
Jens procurou as palavras. – Ela tem algo que nunca encontrei em mais
ninguém. E vá por mim, se procurei. Não sei muito bem explicar o que é, mas
não quero perdê-lo porque sei que seria difícil voltar a encontrá-lo. – Harry
considerou que era uma ideia tão boa como qualquer outra que já ouvira. Jens
agitou o copo entre os dedos e esboçou um sorriso de esguelha. – O facto de
ter estado privado da liberdade deve ter-me afetado a sério porque,
normalmente, não costumo falar destas coisas. Prometa-me que não vai
contar nada aos meus amigos.
O empregado aproximou-se da mesa e chamou-os.
– Vamos lá. Já começou – disse Jens.
– O que é que já começou?
O empregado conduziu-os ao fundo do restaurante, através de uma cozinha
e por umas escadas estreitas acima. No corredor, viam-se alguidares
empilhados, uns em cima dos outros, e uma velha sentada numa cadeira
sorriu-lhes, mostrando os dentes negros.
– Nozes-de-areca – disse Jens. – Um hábito terrível. Mastigam-nas até o
cérebro ficar afetado e os dentes caírem de podres.
Harry ouviu vozes a gritar por detrás de uma porta. O empregado abriu-a e,
depois, encontraram-se num sótão grande sem janelas. Estavam vinte a trinta
homens num círculo apertado. As mãos gesticulavam e apontavam enquanto
notas com os cantos dobrados passavam entre eles a velocidades vertiginosas.
A maioria dos homens era de raça branca, alguns deles vestindo fatos de
linho de cores claras.
– Lutas de galos – explicou Jens. – Um combate privado.
– E por que motivo? – Harry teve de gritar para se fazer ouvir. – Quero
dizer, li que as lutas de galos continuam a ser ilegais na Tailândia.
– Em certa medida. As autoridades têm permitido uma variante de lutas de
galos, em que o esporão é preso à parte traseira da pata para que os galos não
se matem um ao outro. E o tempo é limitado. Não é uma luta até à morte.
Processa-se de acordo com as regras antigas, por isso, não existe limite para
as apostas. Aproximamo-nos?
Harry sobressaía entre os homens à frente deles e conseguia ver facilmente
o recinto. Dois galos, ambos de plumagem castanho-avermelhada,
passeavam-se agitando as cabeças, ignorando-se, ao que tudo indicava.
– Como vão obrigá-los a lutar? – perguntou Harry.
– Não se preocupe. Aqueles dois galos odeiam-se mais do que nós os dois
alguma vez nos odiaríamos.
– Porquê?
Jens olhou para ele.
– Estão no mesmo recinto. São machos.
Depois, como se obedecessem a um sinal, atacaram-se. Harry só conseguia
ver asas a agitarem-se e palha a voar. Os homens gritavam num frenesi, e
alguns deles davam pulos. Espalhara-se no espaço um cheiro agridoce, a
adrenalina e suor.
– Está a ver aquele que tem a crista cortada ao meio? – disse Jens.
Harry não estava.
– É o vencedor.
– Como consegue perceber isso?
– Não consigo. Sei. Já sabia antes do combate.
– Como…?
– Não me pergunte. – Jens abriu um sorriso rasgado.
Os gritos cessaram. Restava um galo no recinto. Alguns homens gemiam,
um homem de fato de linho cinzento atirara o chapéu ao chão, frustrado.
Harry observou o galo moribundo. Houve uma contração muscular debaixo
das penas; depois imobilizou-se. Era absurdo; parecera-lhe uma espécie de
brincadeira infantil, uma massa de asas, patas e gritos.
Uma pena ensanguentada rasou-lhe o rosto. O galo foi levado do recinto
por um homem de calças largas. Parecia prestes a desfazer-se em lágrimas. O
outro galo retomara o pavoneio. Harry reparou então que ele tinha a crista
fendida.
O empregado aproximou-se de Jens com um monte de notas. Alguns
homens olharam na direção dele, outros acenaram com a cabeça, mas
ninguém disse nada.
– Nunca perde? – perguntou-lhe Harry, quando regressaram ao restaurante.
Jens acendeu um charuto e pediu um conhaque, um Richard Hennessy velho
40º. O empregado teve de lhe perguntar o nome duas vezes. Era difícil
acreditar que aquele homem era o mesmo que Harry consolara ao telefone na
noite anterior.
– Harry, sabe por que motivo o jogo é uma doença e não uma profissão?
Porque o jogador adora o risco. Ele só vive para aquela sensação de incerteza.
– Expeliu o fumo em grandes anéis. – Comigo sucede o inverso. Sou capaz
de extremos para eliminar o risco. O que me viu ganhar hoje cobre as
despesas e todo o meu esforço, e não foi pouco, acredite em mim.
– Mas nunca perde?
– Digamos que há um retorno razoável.
– Um retorno razoável? Quer dizer, o suficiente para mais cedo ou mais
tarde os jogadores serem obrigados a pôr tudo o que têm no prego.
– Mais ou menos isso.
– Mas o facto de se saber o resultado não retira um pouco do encanto ao
jogo?
– Encanto? – Jens agarrou no monte de dinheiro. – Julgo que isto tem
encanto suficiente. Pode proporcionar-me isto. – Fez um movimento
abrangente com a palma da mão aberta. – Sou um homem simples. – Olhou
para a ponta incandescente do charuto. – Muito bem, vamos lá ser sinceros.
Falta-me um certo encanto. – Soltou uma gargalhada estridente e
desagradável. Harry teve de fazer coro com ele. Jens olhou para o seu relógio
de pulso e sobressaltou-se. – Tenho imenso que fazer antes de os EUA
abrirem. As coisas estão a descontrolar-se. Adeus. Pense melhor na minha
irmã.
Saiu porta fora e Harry permaneceu sentado a fumar um cigarro e a pensar
melhor na irmã. Depois, apanhou um táxi para o Patpong. Não sabia o que
procurava, no entanto, entrou num clube noturno, esteve quase para pedir
uma cerveja e voltou a sair rapidamente. Comeu pernas de rã no Le
Boucheron e o dono veio explicar num inglês muito macarrónico que estava
ansioso por regressar a la Normandie. Harry contou-lhe que o seu pai estivera
lá no Dia D. Não era bem verdade, mas pelo menos deixara o francês mais
animado.
Harry pagou e foi à procura de outro bar. Uma rapariga de saltos
ridiculamente altos aterrou subitamente ao lado dele, fitou-o com os olhos
castanhos enormes e perguntou-lhe se queria uma mamada. «Ai não que não
quero», pensou ele, e abanou a cabeça. Reparou que estavam a passar os
melhores momentos de um jogo do Manchester United num televisor
suspenso por cima das prateleiras de vidro no bar. Conseguia ver pelo
espelho as raparigas a dançarem no pequeno palco acolhedor mesmo atrás de
si. Tinham estrelinhas douradas coladas nos seios para cobrir os mamilos,
para que o bar não violasse a lei contra a nudez. E cada uma das raparigas
tinha um número nas cuequinhas. A Polícia não perguntava qual era a sua
função, mas toda a gente sabia que era para evitar equívocos quando os
clientes queriam contratar os serviços das raparigas do clube noturno. Harry
já a tinha visto. Número 20. Dim estava atrás das quatro raparigas que
dançavam, e os seus olhos cansados varreram a fila de homens no bar como
um radar. De vez em quando, estampava-se-lhe um sorriso fugaz nos lábios,
no entanto, não havia vida nos seus olhos. Deu a impressão de estabelecer
contacto com um homem que vestia uma espécie de uniforme tropical.
Alemão, calculou Harry, sem saber porquê. Viu as ancas dela rodarem erótica
e indolentemente de um lado para o outro, o cabelo liso brilhante ser
sacudido das costas quando ela se virou, e a sua pele macia e brilhante
pareceu iluminar-se por dentro. Não fossem os seus olhos, teria sido bela,
pensou Harry.
Por uma fração de segundo, os olhos deles cruzaram-se no espelho, e Harry
sentiu-se imediatamente desconfortável. Ela não deu sinais de o reconhecer,
mas ele desviou o olhar para o ecrã do televisor, que mostrava as costas de
um jogador a ser substituído. O mesmo número. «Solskjær» podia ler-se no
cimo da camisola. Harry despertou como se de um sonho.
– Raios! – exclamou, derrubando o copo e atirando Coca-Cola para o colo
da sua dedicada cortesã. Harry abriu caminho à força ao som de gritos
indignados atrás de si: «Tu não meu amigo!»
36

Domingo, 19 de janeiro

D ois homens de camuflado avançavam pelos arbustos, um todo curvado


com um camarada ferido aos ombros. Tinham-no deitado num local
abrigado, por detrás de uma árvore tombada, enquanto levantavam as
espingardas e disparavam na direção da vegetação rasteira. Uma voz seca
anunciou que aquela era a luta desesperada de Timor-Leste contra o
presidente Suharto e o seu regime brutal.
No pódio, um homem mexia nervosamente nos seus papéis. Fizera um
périplo para falar do seu país, e aquela tarde era importante. Podiam não estar
muitas pessoas na sala de reuniões do Clube de Correspondentes Estrangeiros
na Tailândia, apenas umas quarenta ou cinquenta entre a assistência, mas
eram vitais. Juntas podiam fazer chegar a mensagem a milhões de leitores.
Ele vira uma centena de vezes o filme que iam exibir, e sabia que dali a dois
minutos ia estar na linha de fogo.
Ivar Løken sobressaltou-se involuntariamente quando sentiu uma mão no
seu ombro e ouviu uma voz murmurar:
– Precisamos de falar. Agora.
Distinguiu o rosto de Hole na penumbra. Levantou-se e juntos
abandonaram a sala, enquanto um guerrilheiro com metade do rosto
queimado coberto por uma máscara explicava porque passara os últimos oito
anos da sua vida na selva indonésia.
– Como conseguiu encontrar-me? – perguntou, assim que se encontraram
no exterior.
– Falei com a Tonje Wiig. Costuma vir aqui com frequência?
– Não sei ao certo com que frequência, mas gosto de me manter atualizado.
E encontro aqui pessoas úteis.
– Como pessoas das embaixadas da Suécia e da Dinamarca?
O dente de ouro cintilou.
– Como disse, gosto de me manter atualizado. O que se passa?
– Tudo.
– Ah, sim?
– Sei quem anda a vigiar. E sei que os dois casos estão ligados. – O sorriso
de Løken eclipsou-se. – Curiosamente, quando aqui vim pela primeira vez,
encontrava-me a um pulinho do local que você tinha sob vigilância.
– Não me diga.
Era difícil perceber se havia algum sarcasmo na voz de Løken.
– A inspetora Crumley levou-me a ver as vistas num passeio pelo rio.
Mostrou-me uma casa pertencente a um norueguês que fizera deslocar um
templo inteiro da Birmânia para Banguecoque. Esse norueguês teve uma
conversa com o embaixador no dia em que ele morreu, mas não conseguimos
apanhá-lo. No funeral, encontrei o amigo dele, o Bork, que me disse que ele
estava fora em negócios. Mas você conhece o Ove Klipra, não conhece?
Løken não respondeu.
– Bem, só há um bocado, quando estava a assistir a um desafio de futebol,
consegui perceber a ligação.
– Um desafio de futebol?
– Por sinal, o jogador norueguês mais famoso do mundo joga no clube
favorito do Klipra.
– E?
– Sabe qual é o número do Ole Gunnar Solskjær?
– Não, por que raio haveria eu de saber?
– Bem, todos os rapazes por esse mundo fora sabem, e é possível comprar a
camisola dele nas lojas de desporto desde a Cidade do Cabo a Vancouver. Às
vezes, os adultos também compram a camisola.
Løken anuiu enquanto olhava com atenção para Harry.
– Número vinte – disse.
– Como na fotografia. Houve duas outras coisas que também me
surpreenderam. O cabo do punhal que encontrámos nas costas do Molnes
tinha um mosaico de vidro especial e um professor de História da Arte disse-
nos que era um punhal muito antigo do norte da Tailândia, provavelmente
feito pelos Shan. Falei com ele à tardinha. Disse-me que os Shan também se
estenderam a partes da Birmânia onde, entre outras coisas, construíram
templos. Uma das características destes templos era terem frequentemente
decorações nas janelas e nas portas com o mesmo tipo de mosaico de vidro
do punhal. Fui falar com o professor quando vinha para cá e mostrei-lhe uma
das suas fotografias. Ele não teve a menor dúvida de que era uma janela de
um templo dos Shan, Løken.
Aperceberam-se de que o orador começara a falar. A voz que saía pelos
altifalantes tinha um som metálico e estridente.
– Bom trabalho, Hole. E agora?
– Agora, vai contar-me o que se passa nos bastidores e eu encarrego-me do
resto da investigação.
Løken desatou às gargalhadas.
– Está a brincar, não está? – Harry não estava. – É uma sugestão bastante
interessante, Hole, mas não creio que seja muito convincente. Os meus
superiores…
– Não me parece que sugestão seja a palavra certa, Løken. Experimente
ultimato.
Løken riu-se ainda mais alto.
– Confesso que você tem cojones67, Hole. Mas o que o leva a pensar que
está em posição de impor um ultimato?
– O facto de vir a ter um problema dos grandes quando eu explicar ao chefe
da Polícia de Banguecoque o que se passa.
– Vão correr consigo daqui, Hole.
– Com que fundamento? Em primeiro lugar, o meu mandato aqui é para
investigar um homicídio, e não salvar o coiro de alguns burocratas em Oslo.
Pessoalmente, não me oponho a que tente apanhar um pedófilo, mas não é da
minha responsabilidade. E, quando o Parlamento perceber que não foi
informado de uma investigação ilegal, palpita-me que há quem corra um risco
muito maior do que eu de ir para o olho da rua. Da minha perspetiva, as
hipóteses de desemprego são maiores se eu me tornar cúmplice e guardar
segredo disto. Vai um cigarro?
Harry estendeu um maço de Camel recém-aberto com vinte cigarros. Løken
abanou a cabeça negativamente, depois mudou de ideias. Harry acendeu os
dois cigarros, e sentaram-se em duas cadeiras junto à parede. Do hall chegou
o som de fortes aplausos.
– Porque não esqueceu simplesmente o assunto, Hole? Há muito que sabe
que o seu trabalho aqui era atar as pontas soltas e evitar confusões, por isso,
não teria sido preferível deixar-se ir ao sabor do vento, poupando-se, e a
todos nós, a uma carga de trabalhos?
Harry aspirou profundamente e expeliu o fumo numa longa exalação. A
maior parte do fumo ficou lá dentro.
– Recomecei a fumar Camel este outono – disse Harry, batendo no bolso. –
Em tempos, tive uma namorada que fumava Camel. Não me deixava fumar
os dela, pois achava que se poderia tornar um péssimo hábito. Fizemos um
inter-rail e, no comboio entre Pamplona e Cannes, acabaram-se-me os
cigarros. Ela disse que me iria dar uma lição. A viagem durava quase dez
horas e, no fim, tive de ir cravar um cigarro a outra pessoa na carruagem
enquanto ela ia soltando baforadas dos seus Camel. Estranho, não? – Pegou
no cigarro e soprou para a parte incandescente. – Bem, quando chegámos a
Cannes, continuei a cravar cigarros a desconhecidos. No início, ela até achou
uma certa piada. Porém, quando em Paris comecei a andar de mesa em mesa
nos restaurantes, ela já não achou graça e disse-me para tirar dos dela, mas eu
recusei. Quando nos encontrámos com amigos dela, noruegueses, em
Amesterdão e eu comecei a cravar-lhes cigarros enquanto o maço dela
continuava em cima da mesa, ela considerou que era uma criancice.
Comprou-me um maço e disse que escusava de andar a pedir cigarros, mas eu
deixei-o no quarto do hotel. Quando regressámos a Oslo e eu continuei com a
mesma atitude, ela disse-me que eu não era bom da cabeça.
– Esta história tem alguma finalidade?
– Tem. Ela deixou de fumar.
Løken soltou uma gargalhada.
– Então, houve um final feliz.
– Sensivelmente na mesma altura, ela conheceu um músico de Londres.
Løken ia-se engasgando.
– Quer dizer que possivelmente foi longe demais.
– Claro.
– Mas não aprendeu grande coisa com a lição?
– Não.
Fumaram em silêncio.
– Estou a ver – disse Løken, apagando o cigarro. As pessoas começavam a
abandonar a sala. – Vamos tomar uma cerveja a um sítio qualquer e conto-lhe
a história toda.

– O Ove Klipra constrói estradas. Para além disso, temos muito pouco
sobre ele. Sabemos que veio para a Tailândia com vinte e cinco anos, um
diploma em Engenharia e má reputação, e que mudou o nome de Pedresen
para Klipra, que é o nome de uma zona em Ålesund, onde ele cresceu.
Estavam sentados num sofá fundo de couro e, diante deles havia uma
aparelhagem estéreo, um televisor e uma mesa com uma cerveja, uma garrafa
de água, dois microfones e um livro de canções. Inicialmente, quando Løken
disse que iam a um bar de karaoke, Harry presumiu que ele estava a brincar
até lhe ser explicada a razão. Podiam arrendar uma sala insonorizada à hora,
sem referir nomes, encomendar as bebidas que quisessem e, além disso,
deixavam-nos em paz. Para além de haver pessoas suficientes para eles
entrarem e saírem sem serem notados. Era, simplesmente, o lugar ideal para
encontros secretos e, pelos vistos, já não era a primeira vez que Løken lá ia.
– Que tipo de má reputação?
– Quando começámos a aprofundar este caso, descobrimos dois episódios
com rapazes menores em Ålesund. Não tinha sido apresentada qualquer
queixa, mas os boatos espalharam-se e ele entendeu que chegara a hora de se
pôr a andar. Quando aqui chegou, criou uma empresa de engenharia, mandou
fazer uns cartões de visita profissionais, em que exibia o título de doutor, e
começou a bater às portas dizendo que sabia construir estradas. Nessa altura,
há vinte anos, só existiam duas maneiras de fazer aprovar projetos de
construção de estradas: ou ter conhecimentos no governo ou dinheiro
suficiente para o subornar. Como o Klipra não tinha nem uns nem outro,
obviamente as hipóteses não eram grandes. Mas tinha aprendido duas coisas
que constituem, sem dúvida, a base da fortuna que ele tem hoje: o tailandês e
a lisonja. Não exagerei na parte da lisonja; ele tem-se gabado dela aos
noruegueses que vivem aqui. Afirma que se tornou tão exímio a sorrir que até
os tailandeses consideraram exagerado. Além disso, partilhou o seu interesse
por rapazinhos com alguns políticos com quem começou a dar-se.
Possivelmente era vantajoso partilhar os vícios com eles, atendendo a que os
contratos para a construção da chamada Hopewell Bangkok Elevated Road
and Train System68, BERTS, iam ser atribuídos.
– Estrada e comboio?
– Sim. Provavelmente reparou nos enormes pilares de aço que estão a
cravar no solo por toda a cidade.
Harry anuiu.
– De momento, existem seis mil pilares, e mais serão. E não apenas para a
autoestrada, porque o novo comboio passará por cima dela. Estamos a falar
de cinquenta quilómetros de autoestrada ultramoderna e sessenta quilómetros
de carris no valor de vinte e cinco mil milhões de coroas, a fim de salvar esta
cidade de se sufocar. Entende? Este projeto será o mais grandioso em
construção rodoviária que alguma cidade já teve, o Messias do alcatrão e das
chulipas.
– E o Klipra está metido nisso?
– Parece que ninguém sabe quem está ou não metido nisto. O que se sabe é
que o principal interessado de Hong Kong se retirou e o orçamento e o plano
provavelmente irão por água abaixo.
– Uma derrapagem orçamental? Estou chocado – comentou Harry, com
secura.
– Mas isso significa que haverá, sem dúvida, mais para os outros
candidatos, e palpita-me que o Klipra já está muito envolvido no projeto. Se
houver desistências, os políticos terão de aceitar que os outros ajustem as
suas ofertas. Se o Klipra tiver capacidade financeira para agarrar o projeto
todo, não tarda pode vir a tornar-se um dos empresários mais poderosos da
região.
– Sim, mas e o que é que isso tem que ver com o abuso de menores?
– Apenas que os homens poderosos têm tendência para mudar as regras a
seu favor. Não tenho motivos para duvidar da integridade do atual governo,
mas se o homem tiver influência política e uma detenção vier atrasar ainda
mais todo o programa de construção, as hipóteses de extradição diminuem.
– Nesse caso, o que está a fazer?
– As coisas estão em marcha. Aguardamos a entrada em vigor do novo
acordo de extradição. Assim que isso acontecer, esperamos um pouco,
prendemos o Klipra e explicamos às autoridades tailandesas que as
fotografias foram tiradas após a assinatura do acordo.
– E condenamo-lo por abuso sexual de menores?
– E possivelmente por homicídio. – Harry recuou na cadeira. – Tem a
noção de que foi a única pessoa que conseguiu associar o punhal ao Klipra,
detetive? – perguntou Løken, tentando acender o cachimbo.
– O que sabe a respeito do punhal? – perguntou Harry.
– Acompanhei a Tonje Wiig ao motel quando ela foi identificar o
embaixador. Tirei algumas fotografias.
– Enquanto estava uma quantidade de agentes da Polícia de pé a observar?
– Bem, é uma máquina fotográfica muito pequena. Cabe num relógio de
pulso, como este aqui. – Løken sorriu. – Não se encontra à venda nas lojas.
– E depois fez a ligação entre o mosaico de vidro e a casa do Klipra?
– Estive em contacto com uma das pessoas envolvidas na venda do templo
ao Klipra, um pongyi do Centro Mahasi, em Rangum. O punhal fazia parte
dos ornamentos do templo e foi comprado pelo Klipra. Segundo o monge,
são fabricados aos pares. Deveria existir outro punhal idêntico.
– Espere aí – disse Harry. – Se contactou esse monge, deve ter calculado
que o punhal estava, de alguma maneira, ligado aos templos birmaneses.
Løken encolheu os ombros.
– Vá lá – disse Harry –, você também não é historiador de arte. E nós
tivemos de recorrer a um professor só para confirmar a existência de uma
ligação a um Shan qualquer. Você já desconfiava do Klipra antes sequer de
ter perguntado.
Løken queimou os dedos e largou o fósforo, entediado.
– Eu tinha motivos para acreditar que o homicídio podia ter algo que ver
com o Klipra. Sabe, eu estava sentado no apartamento em frente à casa do
Klipra no dia em que o embaixador foi assassinado.
– E?
– O Atle Molnes chegou por volta das sete. Às oito, ele e o Klipra saíram
no carro do embaixador.
– Tem a certeza de que eram eles? Eu vi o carro e, à semelhança da maior
parte dos automóveis da embaixada, os vidros são fumados, quase opacos.
– Eu vi o Klipra através da objetiva quando o carro chegou e estacionou na
garagem. E existe uma porta de acesso à casa, por isso, inicialmente só vi o
Klipra levantar-se e encaminhar-se para a porta. Depois não vi ninguém
durante um bocado, até avistar o embaixador a andar pela sala.
Posteriormente, o carro foi-se embora outra vez e o Klipra desapareceu.
– Não pode ter a certeza de que era o embaixador.
– Porque não?
– Porque do sítio onde estava sentado só podia ter visto a metade inferior
dele, o resto estava escondido pelo mosaico.
Løken soltou uma gargalhada.
– Bem, isso foi mais do que suficiente – disse ele e conseguiu finalmente
acender o cachimbo. Soltou baforadas com ar de satisfação. – Porque só
havia uma pessoa que andava por aí com um fato amarelo-vivo como o dele.
Noutras circunstâncias, Harry teria forçado um sorriso, naquele momento,
porém, havia muitas outras coisas às voltas na sua cabeça.
– Porque não foram o Torhus e a comissária da Polícia informados disto?
– E quem lhe diz que não foram?
Harry sentiu alguma pressão por detrás dos olhos. Os políticos tinham-no
mantido completamente às escuras. Olhou à sua volta em busca de algo para
partir.
67 Em espanhol no original. (N. da T.)

68 Sistema Rodoferroviário Elevado de Banguecoque. Esta construção esteve envolvida em polémica.


Foi iniciada em 1990, com o intuito de construir uma estrada elevada e linha férrea do centro de
Banguecoque até ao aeroporto Internacional Don Mueang, sendo suspensa em 1992 pelo primeiro
governo de Anand Panyarechu. O projeto acabou por ser cancelado em 1998, ano em que este livro foi
originalmente publicado. (N. da T.)
37

Domingo, 19 de janeiro

J á eram quase onze horas quando chegou a casa.


– Tem uma visita – disse o guarda ao portão.
Harry apanhou o elevador para cima, deitou-se de costas junto à piscina e
escutou os ínfimos chapes rítmicos enquanto Runa nadava.
– Tem de ir para casa – disse-lhe, passado algum tempo.
Como ela não respondeu, Harry levantou-se e encaminhou-se para o seu
apartamento.

Bjarne Møller encontrava-se de pé junto à janela, a olhar lá para fora. Era


de manhãzinha, mas já estava escuro como breu. Pelos vistos, o frio não ia
dar tréguas nos tempos mais próximos. Os rapazes achavam aquilo muito
divertido e vieram para a mesa com os dedos enregelados e as faces
vermelhas, enquanto discutiam sobre quem tinha conseguido saltar mais
longe.
O tempo passava a correr; ainda há bem pouco os segurara entre os seus
esquis e descera as colinas de Grefsenkollen Ridge. Na véspera, fora ao
quarto e perguntara-lhes se queriam que lhes lesse uma história e eles tinham
simplesmente olhado para ele com um ar estranho.
Trine dissera que ele parecia cansado. Estava? Talvez. Havia imensa coisa
em que pensar, mais do que tinha imaginado quando aceitara o cargo de PAS.
Quando não eram os relatórios, as reuniões e os orçamentos, era um dos seus
agentes a bater-lhe à porta com um problema que Bjarne não conseguia
resolver – a mulher de um que queria a separação, uma hipoteca que se
descontrolara ou os nervos a ficar em franja.
O trabalho de polícia pelo qual tanto ansiava quando aceitara o cargo,
chefiar investigações, passara para segundo lugar. E ainda não tivera de lidar
com planos escusos, leituras nas entrelinhas ou competitividade. De vez em
quando, perguntava-se se devia permanecer ali, no entanto, sabia que Trine
apreciava o vencimento de um cargo de chefia. E os rapazes queriam esquis
de salto. Talvez tivesse chegado o momento de terem também os
computadores que andavam a pedir há tanto tempo. Minúsculos flocos de
neve bateram no vidro, rodopiando. Fora um polícia muito bom.
O telefone tocou.
– Møller.
– Hole. Sempre soube, não foi?
– Estou? É você, Harry?
– Soube que fui escolhido especificamente para que esta investigação não
tivesse pernas para andar?
Møller baixou a voz. Esquecera os esquis de salto e os computadores.
– Não faço a menor ideia do que está a falar.
– Só quero ouvir da sua boca que não tinha conhecimento de que as
pessoas em Oslo desconfiavam desde o começo de quem era o assassino.
– Muito bem, Harry. Eu não sabia… Melhor dizendo, não sei de que raio
está você a falar.
– A comissária da Polícia e o Dagfinn Torhus, do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, sempre souberam que o embaixador e um norueguês que dá
pelo nome de Ove Klipra saíram de casa deste último, no mesmo carro, meia
hora antes de o embaixador chegar ao motel. Sabem igualmente que o Klipra
tinha um excelente motivo para matar o embaixador.
Møller deixou-se cair pesadamente na cadeira.
– E qual é?
– O Klipra é um dos homens mais ricos de Banguecoque. O embaixador
atravessava graves dificuldades financeiras e tinha tomado, inclusivamente, a
iniciativa de levar a cabo uma investigação altamente ilegal do Klipra por
abuso sexual de menores. Quando o embaixador foi encontrado morto, tinha
na sua pasta fotografias do Klipra com um rapaz. Não é difícil imaginar o
motivo da visita dele ao Klipra. O Molnes deve ter conseguido convencer o
Klipra de que estava sozinho nisto e ele próprio tirara as fotografias. Depois,
deve ter-lhe apresentado um preço para «todas as cópias». Não é o que
dizem? Claro que é impossível controlar o número de cópias que o Molnes
tinha feito, mas, provavelmente, o Klipra apercebera-se de que um
chantagista que também é um jogador inveterado, como o embaixador, viria
bater-lhe outra vez à porta. E mais outra. Então, o Klipra sugeriu que fossem
de carro, apeou-se no banco e disse ao Molnes que fosse andando para o
motel e esperasse, que ele ia lá ter com o dinheiro. Quando o Klipra chegou,
nem sequer foi preciso procurar o quarto, viu o carro do embaixador
estacionado à porta. Merda, o tipo até conseguiu associar o punhal ao Klipra!
– Qual tipo?
– O Løken. O Ivar Løken. Um velho agente dos serviços secretos que já
opera aqui há vários anos. Foi contratado pelas Nações Unidas, trabalhou
com refugiados, diz ele, mas será que é verdade? Calculo que o seu
vencimento principal fosse pago pela NATO, ou algo do género. Ele anda há
meses a espiar o Klipra.
– E o embaixador sabia disso? Você não me tinha dito que ele dera início à
investigação?
– Como assim?
– Insiste que o embaixador foi lá para chantagear o Klipra, embora
soubesse que o tipo dos serviços secretos estava a vigiá-los.
– Claro que sabia. Ele tinha conseguido cópias das fotografias do Løken,
não tinha? E daí? Não há nada de suspeito no facto de o embaixador
norueguês efetuar uma visita de cortesia ao norueguês mais rico de
Banguecoque, pois não?
– Talvez não. O que mais lhe contou este tal Løken?
– Contou-me o verdadeiro motivo pelo qual fui escolhido para esta missão.
– E qual foi?
– Os tipos que sabiam da investigação ao Klipra arriscaram-se. Se fossem
apanhados, ia ser o bom e o bonito; haveria contestação política, iam rolar
cabeças, etc. Por isso, quando o embaixador foi encontrado assassinado e eles
calcularam quem era o responsável, tiveram de se assegurar de que a
investigação do homicídio não levaria às suas averiguações. Foi preciso
encontrar uma solução que agradasse a todos, fazer alguma coisa, mas não
tanto ao ponto de a trama ser descoberta. Ao enviarem um polícia norueguês,
não podiam ser acusados de não fazer nada. Disseram-me que não podiam
destacar uma equipa de agentes porque a Polícia tailandesa podia sentir-se
melindrada.
A gargalhada de Harry misturou-se com outra conversa que se cruzara
algures entre a Terra e um satélite.
– Então, escolheram um tipo que julgavam ter menos hipóteses de
descobrir fosse o que fosse. O Dagfinn Torhus pesquisou e encontrou o
candidato perfeito, alguém que, na verdade, não ia causar-lhes quaisquer
problemas. Porque, provavelmente, ia passar as noites a dar conta de uma
grade de cerveja e os dias a cozer a bebedeira. O Harry Hole era perfeito
porque mal consegue funcionar. Podiam justificar a escolha, caso o assunto
viesse à baila, alegando que o agente em questão fora vivamente
recomendado depois de um trabalho semelhante na Austrália. Como se isso
não bastasse, o PAS Møller respondera por ele e era quem estava em melhores
condições de avaliar, não era?
Møller não gostou do que ouviu. E menos ainda porque agora via tudo com
muito maior clareza, o olhar da comissária da Polícia do outro lado da mesa
quando fora colocada a questão, a sobrancelha impercetivelmente arqueada.
Fora uma ordem.
– Mas porque é que o Torhus e a comissária da Polícia iriam pôr os seus
lugares em risco só para apanharem um pedófilo?
– Boa questão.
Silêncio. Nenhum deles ousou expressar por palavras o que estava a
pensar.
– E o que vai acontecer agora, Harry?
– Agora é a operação Salvemos os Nossos Coiros.
– Ou seja?
– Ou seja, ninguém quer ficar com a batata quente na mão. Nem o Løken
nem eu. O combinado é que, por ora, ele e eu fiquemos de bico calado e
entreguemos o Klipra à justiça. Calculo que prefira encarregar-se do caso aí,
PAS? Talvez ir diretamente ao Storting? Também tem um coiro para salvar,
sabe?
Møller ficou a matutar. Não sabia muito bem se queria ser salvo. O pior
que podia acontecer era obrigarem-no a voltar a fazer trabalho de polícia.
– Isto não pode ser encarado de ânimo leve, Harry. Preciso de pensar, por
isso ligo-lhe depois, pode ser?
– Pode.
Estavam a receber ténues sinais de outra conversa no espaço, que de
repente cessou. Escutaram o som das estrelas.
– Harry?
– Sim?
– Não há nada em que pensar. Conte comigo.
– Já estava a contar com isso, chefe.
– Ligue-me quando o tiver detido.
– Ah, já me esquecia de dizer. Ninguém vê o Klipra desde que o
embaixador foi assassinado.
38

Segunda-feira, 20 de janeiro

L øken estendeu os binóculos de visão noturna a Harry.


– Tudo okay – disse. – Conheço as rotinas. O guarda vai sentar-se na
guarita ao fundo do acesso junto ao portão. Só daqui a vinte minutos fará
outra ronda.
Estavam sentados no sótão de uma casa, a cerca de cem metros da
propriedade de Klipra. A janela estava tapada com tábuas, porém, no
intervalo entre duas delas, havia espaço mesmo à justa para os binóculos. Ou
uma máquina fotográfica. Entre o sótão e a casa de teca de Klipra, enfeitada
com cabeças de dragão, havia uma fila de celeiros baixos, uma estrada e um
muro branco alto protegido no topo por arame farpado.
– O único problema nesta cidade é que há pessoas em todo o lado. O tempo
inteiro. Por isso, teremos de contornar e trepar o muro por detrás daquele
celeiro além.
Apontou e Harry pegou nos binóculos.
Løken aconselhara-o a usar roupa escura, justa e discreta. Ele escolhera
calças de ganga pretas e a sua T-shirt velha dos Joy Division69. Pensara em
Kristin quando vestira a T-shirt; os Joy Division, foram os únicos de que
conseguira fazê-la gostar. Pensou que provavelmente compensava o facto de
não gostar de Camel.
– Vamos andando – disse Løken.
O ar lá fora estava parado e a poeira pairava livremente sobre o caminho de
gravilha. Um grupo de rapazes estava a jogar takraw70, formando um círculo
e mantendo uma bolinha de borracha no ar com os pés, e não deu pela
presença dos dois farangs vestidos de preto. Harry e Ivar atravessaram a rua,
esgueiraram-se por entre os celeiros e chegaram ao muro sem terem sido
detetados. O céu noturno nublado refletia uma luz amarela suja que vinha de
milhões de luzes maiores e mais pequenas, sem nunca deixar Banguecoque
ficar completamente às escuras em noites como aquela. Løken atirou a
pequena mochila por cima do muro e arremessou um tapete de borracha fino
e estreito para cima do arame farpado.
– Você primeiro – disse ele, entrelaçando os dedos para que Harry apoiasse
neles o pé.
– Então e você?
– Não se preocupe comigo, vá lá.
Içou Harry, para que ele pudesse agarrar-se a um poste no cimo do muro.
Harry colocou um pé no tapete e ouviu o arame cortar a borracha debaixo
dele quando passou o outro pé por cima. Procurou não pensar na história do
rapaz que deslizara pelo mastro da bandeira na Feira de Romsdal,
esquecendo-se do gancho onde estava enrolada a corda, lá ao fundo. O seu
avô contara que os gritos da castração do rapaz se tinham ouvido em todo o
fiorde.
No instante seguinte, Løken estava de pé ao lado dele.
– Credo, que rapidez – murmurou Harry.
– Exercício diário de pensionista.
Com o pensionista na frente, correram inclinados ao longo da parede da
casa e pararam à esquina. Løken tirou os binóculos e esperou até ter a certeza
de que o guarda estava a olhar para o outro lado.
– Agora!
Harry arrancou, tentando imaginar que era invisível. A garagem não ficava
distante, mas estava iluminada e não havia qualquer abrigo entre eles e a
guarita. Løken seguiu no seu encalço.
Harry não imaginava que pudessem existir tantas formas de entrar numa
casa, no entanto, Løken insistira em planear tudo até ao mais ínfimo
pormenor. Quando especificara que tinham de correr um junto do outro na
última fase crítica, Harry perguntara-lhe se não seria mais sensato um correr
enquanto o outro ficava a vigiar.
– Para quê? Saberemos se formos topados. Se corrermos em separado,
duplicam as hipóteses de um de nós ser visto. Hoje em dia já não vos
ensinam nada na Polícia?
Harry não levantou mais objeções ao resto do plano.
Um Lincoln Continental dominava a garagem, onde uma porta lateral dava
efetivamente acesso à casa. Løken contara que a fechadura da porta lateral
fosse mais fácil do que a da porta principal e, além disso, não podiam ser
vistos do portão.
Pegou na gazua e meteu mãos à obra.
– Está a contar o tempo? – perguntou.
Harry anuiu. De acordo com o horário, tinham dezasseis minutos até à
próxima ronda do guarda.
Doze minutos depois, Harry começou a sentir comichões no corpo todo.
Ao fim de treze minutos, desejou que Sunthorn aparecesse, como que por
magia, por entre uma nuvem de fumo.
Passados catorze minutos, percebeu que teriam de desistir da operação.
– Vamos embora daqui – murmurou.
– Mais um pouco – respondeu Løken, debruçado sobre a fechadura. – Só
mais uns segundos, apenas isso.
– Agora! – sibilou Harry por entre os dentes cerrados.
Løken não respondeu. Harry inspirou e passou um braço pelo ombro dele.
Løken virou-se para ele e olharam-se nos olhos. O dente de ouro cintilou.
– Bingo – murmurou Løken.
A porta abriu-se sem fazer qualquer ruído. Entraram pé ante pé, e
fecharam-na silenciosamente. Naquele momento, ouviram passos na
garagem, viram a luz de uma lanterna através da janela por cima da porta e
depois o puxador foi sacudido bruscamente. Ficaram de costas para a parede.
Harry sustinha a respiração enquanto o seu coração fazia circular o sangue
pelo corpo. Depois os passos afastaram-se.
Harry teve dificuldade em manter a voz baixa.
– Você disse vinte minutos!
Løken encolheu os ombros.
– Mais coisa menos coisa.
Harry contou, respirando pela boca aberta.
Acenderam as lanternas e preparavam-se para avançar pela casa quando
ouviram um ruído seco debaixo do pé de Harry.
– O que foi aquilo?
Apontou a lanterna para o chão. Havia uns pedacinhos brancos no soalho
escuro de parquet.
Løken fez incidir a lanterna na parede caiada.
– Ugh, o Klipra é um sapateiro. Esta casa devia ter sido construída apenas
em teca. – Bem, agora é que perdi por completo o respeito pelo gajo –
observou. – Vamos, Harry. O relógio está a contar!
Percorreram a casa de forma rápida e sistemática, seguindo as instruções de
Løken. Harry concentrou-se em fazer o que lhe mandavam, lembrando-se de
onde estavam as coisas antes de lhes ter mexido, sem deixar impressões
digitais e verificando se existiam pedaços de fita colados antes de abrirem
gavetas e armários. Duas horas depois, sentaram-se à mesa da cozinha. Løken
encontrara algumas revistas de pornografia infantil e um revólver que parecia
não ser disparado há anos. Tirara fotografias a ambos.
– O tipo saiu daqui muito à pressa – disse ele. – Estão duas malas vazias no
quarto dele, a bolsa de artigos de higiene na casa de banho e os roupeiros
atafulhados de roupa.
– Talvez ele tivesse uma terceira mala – alvitrou Harry.
Løken olhou-o com um misto de repulsa e indulgência. Tal como olharia
para um recruta esforçado e não propriamente inteligente, pensou Harry.
– Nenhum homem tem duas bolsas de artigos de higiene, Hole.
«Recruta», pensou Harry.
– Falta uma divisão – disse Løken. – O escritório no primeiro andar está
trancado e a fechadura é um monstro alemão que não consigo arrombar.
Tirou um pé de cabra da mochila.
– Tinha esperança de que não fôssemos precisar disto – disse. – Aquela
porta vai ficar em mau estado quando terminarmos.
– Não importa – disse Harry. – Também desconfio que arrumei os chinelos
dele na prateleira errada.
Løken soltou uma gargalhada.
Aplicaram o pé de cabra nas dobradiças e não na fechadura. Harry reagiu
com demasiada lentidão e a pesada porta caiu lá para dentro com uma
pancada forte. Permaneceram imóveis alguns segundos e ficaram à espera de
que o guarda gritasse.
– Acha que se ouviu? – perguntou Harry.
– Ná. Aqui há tantos ruídos por habitante que uma pancada a mais ou a
menos não fará diferença.
As lanternas deles subiram e desceram as paredes como baratas amarelas.
Na parede sobre a secretária estava pendurada uma bandeira vermelha e
branca do Manchester United e mais abaixo um cartaz emoldurado da equipa.
A seguir encontrava-se o brasão da cidade, em vermelho e branco, com um
navio talhado em madeira.
A lanterna deteve-se numa fotografia. Mostrava um homem com uma boca
grande a sorrir, um duplo queixo pronunciado e dois olhos salientes
dardejando de divertimento. Ove Klipra parecia ser um homem que se ria
muito. Tinha caracóis louros fustigados pelo vento. A fotografia devia ter
sido tirada a bordo de um barco.
– Ele não corresponde propriamente à imagem de um pedófilo – comentou
Harry.
– Os pedófilos raramente correspondem – respondeu Løken. Harry olhou
para ele, mas foi encandeado pela lanterna. – O que é aquilo?
Harry virou-se. Løken fez incidir a lanterna numa caixa cinzenta de metal
ao canto. Harry reconheceu-a de imediato.
– Posso dizer-lhe o que é – referiu, satisfeito por conseguir dar finalmente
um contributo. – É um gravador de cassetes que vale meio milhão de coroas.
Vi um idêntico no escritório do Brekke. Grava conversas telefónicas e a
gravação e o código de tempo não podem ser manipulados, por isso é útil em
caso de disputas legais. É ótimo quando se celebram acordos milionários por
via telefónica.
Harry remexeu nos documentos em cima da secretária. Viu papéis
timbrados de empresas japonesas e americanas, acordos, contratos, minutas
de acordos e alterações aos mesmos. O projeto de transporte, BERTS, era
mencionado em muitos deles. Reparou numa brochura do Barclays Thailand
agrafada por cima. Era um relatório de uma empresa chamada Phuridell.
Depois, apontou a lanterna para cima. E parou quando o feixe iluminou um
objeto na parede.
– Bingo! Olhe para ali, Løken. Este deve ser o outro punhal de que me
falou.
Løken não respondeu, estava de costas para Harry.
– Temos de sair daqui, Harry. Já!
Harry virou-se e viu a lanterna de Løken a apontar para uma caixinha na
parede com uma luz vermelha a piscar. Naquele momento, pareceu que lhe
tinham espetado uma agulha de tricô no ouvido. A lamúria foi tão forte que o
deixou logo meio surdo.
– Alarme retardado! – gritou Løken, já em movimento. – Apague a
lanterna!
Harry desceu atabalhoadamente as escadas atrás dele no escuro. Dirigiram-
se à porta da garagem.
– Espere. – Harry ajoelhara-se e, com as mãos, reuniu os bocados de
estuque no chão.
Lá fora, ouviram vozes e o tilintar de chaves. Um raio de luar, a que o vitral
na janela por cima da porta conferia uma coloração azul, incidia no soalho de
parquet diante deles.
– O que está a fazer?
Harry não teve tempo de responder porque ouviram a fechadura rodar.
Conseguiram chegar ao exterior e, no instante seguinte, corriam cabisbaixos
pela relva, enquanto a lamúria histérica do alarme ia perdendo cada vez mais
a intensidade atrás deles.
– Esta foi por um triz – disse Løken, quando se encontravam já do outro
lado do muro. Harry olhou para ele. O luar incidiu-lhe no dente de ouro.
Løken nem sequer estava ofegante.
69 Banda pós-punk formada no ano de 1976, em Manchester, Inglaterra. Acabou a 18 de maio de 1980,
após o suicídio do vocalista e guitarrista ocasional, Ian Curtis. A banda também tinha como integrantes
Bernard Sumner (guitarrista e teclista, à época chamado Bernard Albrecht), Peter Hook (baixista e
vocalista) e Stephen Morris (percussionista e baterista). (N. da T.)

70 Designação, na sua forma abreviada, de sepaktakraw. O jogo surgiu há mais de quinhentos anos, no
Sudeste Asiático. Tradicionalmente, o takraw era jogado em círculo, em que um jogador passava a bola
a outro sem deixá-la cair. No primeiro quartel do século passado, um grupo de entusiastas do desporto
introduziu o uso da rede e estabeleceu regras para o tornar mais atrativo. O principal objetivo é passar a
bola sobre a rede utilizando qualquer parte do corpo, exceto as mãos e os braços. Cada equipa é
composta por três jogadores. São permitidos, no máximo, três toques antes de a bola passar para o lado
do adversário, sendo que um mesmo jogador pode executar sozinho esses três toques. É permitido
bloquear, desde que as mãos e os braços não toquem na bola e o jogador não toque na rede. (N. da T.)
39

Segunda-feira, 20 de janeiro

Q uando Harry introduzira a tesoura na tomada, queimara-se um cabo


algures na parede, por isso estavam outra vez sentados à luz trémula de
uma vela. Løken acabara de abrir uma garrafa de Jim Beam.
– Porque está a torcer o nariz, Hole? Não lhe agrada o cheiro?
– Não há qualquer problema com o cheiro.
– Nesse caso, o sabor?
– O sabor é ótimo. O Jim e eu somos velhos amigos.
– Ah! – Løken serviu-se de um copo generoso. – E deixaram de ser
amigos?
– Dizem que exerce uma péssima influência sobre mim.
– Afinal, quem lhe faz companhia agora?
Harry ergueu uma garrafa de Coca-Cola.
– O imperialismo cultural americano.
– Completamente limpo neste momento?
– Houve uma boa dose de cerveja no outono.
Løken soltou uma gargalhada.
– Está tudo explicado. Tenho andado a matutar por que raio o Torhus o
escolheu.
Harry sabia que era um elogio indireto. Løken considerava que Torhus
podia ter escolhido idiotas mais chapados. Só podia existir outra razão, não
que ele fosse um polícia incompetente.
Harry indicou a garrafa com a cabeça.
– Isso entorpece a náusea? – Løken arqueou as sobrancelhas. – Ajuda-o a
esquecer o trabalho por momentos? Refiro-me aos rapazes. Às fotografias, a
toda a merda?
Løken emborcou a bebida e serviu-se de outra. Bebeu um gole, pousou o
copo e recostou-se na cadeira.
– Possuo habilitações especiais para este trabalho, Harry.
Harry tinha uma vaga ideia do que ele queria dizer.
– Sei o que eles pensam, o que os motiva, o que os excita, quais as
tentações a que conseguem resistir e aquelas a que não conseguem. – Exibiu
o seu cachimbo. – Conheço-os desde que me consigo lembrar. – Harry não
soube o que dizer. Por isso ficou calado. – Não diz nada? É bom nisso,
Harry? Em renunciar às coisas? Como na história sobre os cigarros. Você
toma uma decisão e não se desvia dela, aconteça o que acontecer?
– Bem, sim, presumo que sim – respondeu Harry. – O problema é que as
decisões nem sempre são boas.
Løken soltou uma nova gargalhada. Harry recordou-se de um velho amigo
que costumava rir-se da mesma maneira. Fora ao funeral dele em Sydney,
mas ele visitava regularmente Harry à noite.
– Nesse caso, somos iguais – respondeu Løken. – Nunca em toda a minha
vida toquei numa criança. Sonhei com isso, fantasiei sobre isso e chorei por
isso, mas nunca o fiz. Consegue entender? – Harry engoliu em seco. – Não
sei que idade tinha da primeira vez que o meu padrasto me violou, mas
calculo que não tivesse mais de cinco anos. Cravei-lhe um machado na coxa
quando tinha treze. Atingiu-lhe uma artéria, ele entrou em choque e por
pouco não morreu. Sobreviveu, mas ficou preso a uma cadeira de rodas.
Explicou que tinha sido um acidente. O machado fugira-lhe da mão quando
estava a cortar madeira. Provavelmente pensou que estávamos quites. –Løken
ergueu o copo e olhou intensamente para o líquido castanho. – Talvez pense
que isto é um enorme paradoxo – disse ele. – As crianças que sofreram
abusos sexuais são as que apresentam maiores probabilidades estatísticas de
se tornarem, por sua vez, abusadoras.
Harry fez uma careta.
– É verdade – disse Løken. – Muitas vezes, os pedófilos sabem exatamente
o sofrimento que estão a infligir às crianças. Muitos dos abusadores já
sentiram na pele o medo, a confusão e a culpa. Sabia que há psicólogos que
defendem que existe uma estreita relação entre a excitação sexual e o desejo
de morrer?
Harry abanou a cabeça. Løken esvaziou o copo de um trago e fez uma
careta.
– Sucede o mesmo com as mordeduras de vampiro. Pensamos que estamos
mortos e depois acordamos e constatamos que nos tornámos um vampiro.
Imortal, com uma sede insaciável de sangue.
– E uma vida eterna à espera de morrer?
– Precisamente.
– E o que o torna tão diferente?
– Somos todos diferentes, Hole. – Løken acabou de encher o cachimbo e
pousou-o em cima da mesa. Despira a camisola de gola alta e o suor reluzia
no seu corpo nu. Era magro, musculado e bem constituído, no entanto, as
pregas de pele descaídas e os músculos atrofiados denunciavam que
envelhecera e talvez um dia sempre acabasse por morrer. – Quando
encontraram uma revista de pornografia infantil no meu cacifo na messe dos
oficiais em Vardø, fui chamado ao comandante do posto. Tive sorte,
presumo; não apresentaram queixa. Fiquei sem mácula no meu cadastro,
apenas um pedido de exoneração da Força Aérea. Devido às minhas funções
no serviço de informações, tinha estado em contacto com o que outrora se
chamavam os Serviços Especiais, o precursor da CIA. Mandaram-me
frequentar um curso nos Estados Unidos, depois enviaram-me para a Coreia,
a pretexto de ir trabalhar para o hospital de campanha norueguês.
– E para quem trabalha, em concreto, neste momento?
Løken encolheu os ombros para indicar que, na verdade, isso não era
relevante.
– Não sente vergonha? – perguntou Harry.
– Claro que sim – respondeu Løken, com um sorriso cansado. – Todos os
dias. É o meu ponto fraco.
– Nesse caso, porque me está a contar tudo isto? – inquiriu Harry.
– Bem, em primeiro lugar, porque estou velho demais para andar por aí a
esconder-me. Em segundo, porque tenho de pensar nos outros e não apenas
em mim. E em terceiro, porque a vergonha reside mais no plano emocional
do que no intelectual. – Um canto da boca dele subiu num esgar sarcástico. –
Costumava assinar a Archives of Sexual Behaviour71 para perceber se havia
investigadores que conseguiam especificar que tipo de monstro era eu. Mais
por curiosidade do que por vergonha. Li um artigo sobre um monge pedófilo
na Suíça que, de certeza, também nunca tinha feito nada de nada, porém, a
meio do artigo ele trancara-se numa cela e bebera óleo de fígado de bacalhau
contendo fragmentos de vidro, por isso nunca terminei de o ler. Prefiro
encarar-me como um produto da minha educação e do meio envolvente, mas,
apesar de tudo, uma pessoa decente. Consigo viver comigo mesmo, Hole.
– Mas, sendo um pedófilo, como consegue lidar com a prostituição
infantil? Isso excita-o?
Løken baixou o olhar para a mesa, perdido em pensamentos.
– Já alguma vez fantasiou violar uma mulher, Hole? Não precisa de
responder, sei que sim. Isso não significa que queira violar alguém, pois não?
Assim como não significa que não esteja apto a trabalhar em casos de
violação. Mesmo que consiga entender que é muito fácil um homem perder o
autocontrolo. Está errado. Contraria a lei. O filho da mãe vai ter de pagar.
O terceiro copo foi emborcado. Ele já chegara ao rótulo da garrafa.
Harry abanou a cabeça.
– Lamento, Løken, estou a fazer um esforço para aceitar isso. Mas se
comprar pornografia infantil está a participar. Sem pessoas como você, não
existiria um mercado para esta nojice.
– É verdade. – Løken tinha os olhos vítreos. – Não sou nenhum santo. Sim,
ajudei a transformar o mundo neste vale de lágrimas. O que posso dizer?
Como diz o ditado: «Quem anda à chuva molha-se».
Subitamente, Harry também se sentiu velho. Velho e cansado.
– E então, o que eram os pedaços de estuque? – perguntou Løken.
– É só uma ideia maluca. Ocorreu-me que fosse como o gesso na chave de
parafusos que encontrámos na mala do carro do Molnes. Amarelado. Não
completamente branco como a cal normal. Vou mandar analisar os pedaços e
compará-los com o gesso no carro.
– E o que poderia querer dizer?
Harry encolheu os ombros.
– Nunca sabemos o que algo quer dizer. Noventa e nove por cento da
informação reunida durante um caso é inútil. Só temos de estar
suficientemente atentos ao um por cento mesmo debaixo do nosso nariz.
– Tem razão.
Løken fechou os olhos e recostou-se na poltrona.
Harry desceu as escadas até à rua e comprou sopa de aletria com gambas a
um homem desdentado com um boné do Liverpool. Ele tirou-a com uma
concha de um caldeirão preto, deitou-a num saco de plástico, deu-lhe um nó e
mostrou as gengivas. Na cozinha, Harry encontrou dois pratos de sopa.
Løken acordou sobressaltado quando ele o sacudiu, e comeram em silêncio.
– Desconfio que sei quem deu a ordem de investigação – disse Harry.
Løken não respondeu.
– Sei que você não podia esperar que o acordo com a Tailândia estivesse
assinado e selado para dar início à investigação. Era urgente, não era? Era
urgente obter um resultado, foi por isso que não esperou que lhe dessem luz
verde.
– Você não desiste, pois não?
– E isso tem alguma importância agora?
Løken soprou para a colher.
– Reunir provas pode demorar uma eternidade – disse ele. – Talvez anos. O
fator tempo é mais importante do que tudo o resto.
– Até aposto que não existe nada escrito que permita descobrir de quem
partiu a ordem, que se alguma vez isto transpirar, o Torhus, do Ministério dos
Negócios Estrangeiros, estará sozinho. Acertei?
– Os bons políticos certificam-se sempre de que cobrem a retaguarda, não é
verdade? Têm secretários de Estado para fazerem o trabalho sujo. E os
secretários de Estado não dão ordens. Limitam-se a dizer aos diretores o que
devem fazer para acelerar a progressão numa carreira estagnada.
– Por acaso não está a referir-se ao secretário de Estado Askildsen?
Løken sorveu ruidosamente uma gamba para a boca e mastigou-a em
silêncio.
– Afinal, o que acenaram ao Torhus para ele chefiar a operação? Um cargo
de diretor-geral?
– Não sei. Não falámos sobre esse tipo de coisas.
– Então e a comissária da Polícia? Não se está a arriscar muito?
– Presumo que deva ser uma boa social-democrata.
– Ambições políticas?
– É possível. Talvez nenhum deles esteja a arriscar tanto quanto julga. Ter
um gabinete no mesmo edifício que o embaixador não significa…
– Que se está a soldo dele? Então, para quem é que você trabalha? É
independente?
Løken sorriu à sua imagem na sopa.
– Diga-me, o que aconteceu àquela sua namorada, Hole?
Harry olhou para ele, perplexo.
– A que deixou de fumar.
– Já lhe contei. Conheceu um músico inglês e partiu para Londres com ele.
– E depois disso?
– E quem lhe disse que aconteceu algo depois?
– Você. A maneira como falou dela. – Løken soltou uma gargalhada.
Pousara a colher e recostara-se na cadeira. – Vá lá, Hole. Ela deixou mesmo
de fumar? Definitivamente?
– Não – respondeu Harry em voz baixa. – Mas agora deixou. De vez.
Olhou para a garrafa de Jim Beam, fechou os olhos e tentou recordar o
calor do primeiro copo, apenas um.
Harry ficou ali sentado até Løken adormecer. Depois, meteu os braços
debaixo dos ombros do homem mais velho, levou-o para a cama, tapou-o
com um cobertor e saiu.

O porteiro na River Garden também estava a dormir. Harry pensou acordá-


lo, mas mudou de ideias – naquela noite, toda a gente devia poder dormir um
pouco. Alguém introduzira uma carta debaixo da porta de Harry. Este deixou-
a por abrir em cima da mesa de cabeceira, dirigiu-se à janela e viu um
cargueiro deslizar por baixo da Taksin Bridge, negro e silencioso.
71 Revista académica de sexologia. Foi lançada em 1971 por Richard Green.
(N. da T.)
40

Terça-feira, 21 de janeiro

J á eram quase dez horas quando Harry chegou ao gabinete. Cruzou-se com
Nho, que vinha a sair.
– Já soube?
– Soube o quê?
– Das ordens da sua comissária da Polícia em Oslo?
Harry abanou a cabeça.
– Tivemos conhecimento na reunião desta manhã. Os manda-chuvas
estiveram reunidos.
Harry entrou de rompante no gabinete de Liz, que deu um pulo na cadeira.
– Bom-dia, Harry.
– Não, não é. Só me deitei às cinco. Mas o que vem a ser isto de abrandar a
investigação?
Liz suspirou.
– Parece que os nossos chefes estiveram outra vez a conferenciar. A sua
comissária da Polícia tem andado a falar de cortes orçamentais e reduções de
pessoal e quere-o de volta, e o nosso chefe da Polícia começou a ficar
nervoso por causa de todos os outros casos de homicídio que abandonámos
quando surgiu este. Claro que não falam em arquivar o caso, mas em alterar-
lhe o grau de prioridade para normal.
– O que significa...?
– Significa que me disseram para me certificar de que você embarcará num
avião dentro de dois dias.
– E?
– Eu disse-lhes que, em janeiro, os voos costumam estar completamente
lotados, por isso, pode demorar pelo menos uma semana.
– Logo, temos uma semana?
– Não. Se não houver lugares em turística, mandaram-me fazer a reserva
em executiva.
Harry soltou uma gargalhada.
– Trinta mil coroas. Cortes orçamentais? Eles estão mas é a ficar nervosos,
Liz.
A cadeira chiou quando Liz se recostou.
– Quer falar sobre o assunto, Harry?
– E você quer?
– Não sei se quero falar – disse ela. – Há coisas que é preferível deixar
como estão, não é verdade?
– Nesse caso, porque não fazemos isso?
Ela virou a cabeça, abriu as persianas e espreitou lá para fora. Da forma
como Harry estava sentado, parecia que a luz do sol conferia uma espécie de
auréola branca à careca reluzente de Liz.
– Sabe qual é o salário médio de um recruta da Polícia nacional, Harry?
Cento e cinquenta dólares mensais. Existem cento e vinte mil agentes na
força a tentar prover ao sustento das suas famílias, mas nós não conseguimos
pagar-lhes o suficiente para eles se sustentarem. Acha assim tão estranho que
eles tentem complementar os seus salários fazendo vista grossa?
– Não.
Ela suspirou.
– Pessoalmente, nunca consegui deixar as coisas como estão. Deus sabe
como me dava jeito ganhar mais algum extra, mas não me sinto confortável
com a situação. Provavelmente, isto parece um pouco o Juramento das
Escuteiras, mas, na verdade, alguém tem de fazer o trabalho.
– Além disso, é da sua…
– Responsabilidade, sim. – Esboçou um sorriso cansado. – Todos temos de
carregar as nossas cruzes.
Harry começou a falar. Liz foi buscar café, informou a central telefónica de
que não recebia chamadas, tomou nota de algo, foi buscar mais café, olhou
demoradamente para o teto, praguejou e, por último, mandou Harry retirar-se
para poder pensar.
Uma hora depois, voltou a chamá-lo. Estava furiosa.
– Merda, Harry, sabe o que me está a pedir para fazer?
– Sei e, pelos vistos, você também sabe.
– Se concordar dar-lhe cobertura a si e a esse Løken, estou a arriscar o meu
emprego.
– E eu agradeço.
– Vá-se lixar!
Harry fez um sorriso rasgado.

A mulher que atendeu o telefone na Câmara de Comércio de Banguecoque


desligou quando Harry falou em inglês. Ele pediu a Nho que ligasse então
para lá e escreveu o nome Phuridell, que vira na capa do relatório no
escritório de Klipra.
– Tenta saber o que fazem, quem é o dono, etc., etc.
Nho foi telefonar, e Harry pôs-se a tamborilar na secretária até pegar no
telefone e fazer uma chamada.
– Hole – ouviu responder.
Claro que era o nome do pai, no entanto, Harry sabia que era um hábito e
abrangia toda a família. Pelo som, até parecia que a mãe ainda estava sentada
na poltrona verde na sala de estar, a bordar ou a ler um livro. Harry
suspeitava que ele começara também a falar com ela.
O pai acabara de se levantar. Harry perguntou-lhe o que tencionava fazer
naquele dia e ficou surpreendido quando ele disse que ia à cabana em
Rauland.
– Cortar lenha – disse ele. – Está a acabar.
Ele raramente ia à cabana.
– Como vai isso? – perguntou o pai.
– Ótimo. Regresso em breve. Como está a Sis?
– Está a aguentar-se. Mas nunca vai ser uma boa cozinheira.
Riram-se os dois. Harry conseguiu visualizar o aspeto da cozinha depois de
Sis ter preparado o almoço de domingo.
– Espero que lhe tragas um presente bonito – disse ele.
– Ela não perde por esperar. E para si? Do que gostaria?
Silêncio do outro lado da linha. Harry amaldiçoou-se; sabia que estavam
ambos a pensar no mesmo, que o que ele queria Harry não podia comprar em
Banguecoque. Era sempre assim; quando julgava que tinha finalmente
conseguido trazer o pai à tona, dizia ou fazia algo que despertava nele uma
memória da mãe e ele ficava novamente perdido, regressando ao silencioso
isolamento que impusera a si mesmo. E para Sis ainda era pior. Ela ficava
duplamente sozinha durante as ausências de Harry.
O pai tossiu.
– Podias… podias trazer-me uma daquelas camisas tailandesas.
– Sim?
– Sim, seria simpático. E um par de ténis decentes da Nike. Devem ser
muito baratos na Tailândia. Ontem calcei os velhos e já não estão em
condições. A propósito, tens feito as tuas corridas? E estás preparado para
uma prova em Hanekleiva?
Quando Harry pousou o auscultador, sentiu um estranho aperto no peito.

Harry não fez nada o resto do dia.


Traçou rabiscos numa folha de papel e perguntou-se se eles lhe faziam
lembrar alguma coisa.
Jens ligou para lhe perguntar como ia o caso. Harry respondeu que estava
em segredo de Estado e Jens mostrou-se compreensivo, porém, disse que
dormiria melhor se soubesse que tinham outro suspeito principal. Depois,
contou-lhe uma anedota que acabara de ouvir ao telefone, sobre um
ginecologista que dissera a um colega que uma das suas pacientes tinha um
clitóris que parecia um pepino em conserva. «Tão grande?», perguntara o
colega. «Não», respondera o ginecologista. «Tão salgado.»
Jens pediu desculpa pela qualidade da anedota que circulava pelo mundo da
finança.
Mais tarde, Harry tentou contar a piada a Nho, no entanto, por deficiência
do seu inglês ou do de Nho, a situação acabara por tornar-se embaraçosa.
Depois, foi ter com Liz e perguntou-lhe se ela se importava que ele ficasse
ali sentado um bocado. Uma hora depois, já farta da presença silenciosa dele,
ela mandara-o embora.
Voltou a jantar no Le Boucheron. O francês falou com ele na sua língua
materna e Harry sorriu e respondeu algo em norueguês.

Harry tornou a sonhar com ela. Cabelo ruivo espalhado à sua volta e os
olhos calmos e seguros. Ficou à espera do que costumava seguir-se, algas a
saírem-lhe da boca e das órbitas, mas isso não sucedeu.
– Fala o Jens.
Harry acordou e apercebeu-se de que atendera o telefone a dormir.
– Jens?
Perguntou-se por que motivo o seu coração começara subitamente a bater
muito depressa.
– Desculpe, Harry, mas é uma emergência. A Runa desapareceu.
Harry ficou logo desperto.
– A Hilde está numa grande agitação. A Runa devia ter chegado a casa para
jantar, e já são três da manhã. Liguei à Polícia, e eles alertaram os carros-
patrulha, mas eu também queria a sua ajuda.
– Para fazer o quê?
– Para fazer o quê? Não sei. Podia vir até cá? A Hilde não para de chorar.
Harry conseguiu imaginar a cena. Não lhe apetecia nada assistir ao resto.
– Oiça, Jens, neste momento, pouco ou nada posso fazer. Dê-lhe um
Valium se ela não estiver demasiado embriagada e telefone a todos os amigos
da Runa.
– A Polícia disse o mesmo. A Hilde diz que ela não tem amigos.
– Merda!
PARTE CINCO
41

Quarta-feira, 22 de janeiro

E fetivamente, Hilde Molnes estava demasiado embriagada para tomar o


Valium. Estava demasiado embriagada para quase tudo, exceto
embriagar-se ainda mais.
Jens parecia não se aperceber. Andava num vaivém entre a cozinha e a sala
a trazer água e gelo, fazendo lembrar um animal enjaulado.
Harry sentara-se no sofá, dando parcialmente ouvidos ao balbuciar dela.
– Ela pensa que aconteceu algo terrível – disse Jens.
– Diga-lhe que mais de oitenta por cento das pessoas desaparecidas são
encontradas ilesas – referiu Harry, como se o que dissera precisasse de ser
traduzido para o balbuciar dela.
– Eu já lhe disse isso. Mas ela pensa que alguém fez alguma coisa à Runa.
Diz que tem um pressentimento.
– Que disparate!
Jens sentou-se na borda de uma cadeira, contorcendo as mãos. Parecia
completamente incapaz de pensar ou agir e olhou para Harry com ar de
súplica.
– A Runa e a Hilde discutiam muito ultimamente. Pensei que talvez… ela
pudesse ter fugido para castigar a mãe. Não é de excluir a hipótese.
Hilde Molnes tossiu, e registou-se movimento no sofá.
Sentou-se e emborcou mais gin. Há muito que a água tónica fora
esquecida.
– Às vezes ela fica assim – explicou Jens, como se Hilde não estivesse
presente. E, de certa forma, não estava, apercebeu-se Harry. Entreabrira a
boca e ressonava baixinho. Jens olhou para ela.
– A primeira vez que a vi, ela contou-me que bebia água tónica para não
apanhar malária. Contém quinino, sabe? Mas tem um sabor tão desenxabido
sem o gin. – Sorriu pesarosamente e levantou de novo o auscultador para ver
se tinha linha. – Não vá ela…
– Compreendo – disse Harry.
Foram sentar-se no terraço, a ouvir o ruído da cidade. Os sons dos martelos
pneumáticos sobrepunham-se ao zumbido do trânsito.
– A nova autoestrada elevada – disse Jens. – Agora estão a trabalhar nela
dia e noite. Vai atravessar pelo menos aquele bairro além. – Apontou.
– Constou-me que há um norueguês envolvido no projeto, o Ove Klipra.
Conhece-o? – Harry olhou para Jens pelo canto do olho.
– O Ove Klipra, sim, claro. Somos a corretora com quem mais trabalha. Já
efetuei umas quantas operações na bolsa para ele.
– Ah, sim? E sabe o que ele anda a tramar neste momento?
– A tramar? Ele tem estado a comprar uma série de empresas, se é a isso
que se refere.
– E que tipo de empresas?
– Principalmente empresas mais pequenas, dinâmicas e competitivas.
Pretende aumentar a sua capacidade para conseguir ficar com uma maior fatia
do contrato de transporte BERTS adquirindo subempreiteiros.
– E isso é sensato?
Jens animou-se, obviamente aliviado por mudar de assunto.
– Desde que as aquisições possam ser financiadas, é. E no pressuposto de
que as empresas não vão por água abaixo antes de terem recebido as
comissões estipuladas.
– Conhece uma empresa chamada Phuridell?
– Claro que conheço. – Jens soltou uma gargalhada. – O Klipra pediu-nos
que fizéssemos uma análise e nós recomendámos a sua aquisição. Porém, a
questão que se coloca é como teve você conhecimento da Phuridell.
– Não foi uma recomendação muito auspiciosa, pois não?
– Não propriamente… – Jens parecia perplexo.
– Ontem, pedi a alguém que fosse farejar e parece que está praticamente
falida – afirmou Harry.
– É verdade, mas qual o seu interesse na Phuridell?
– Digamos que estou mais interessado no Klipra. Você deve ter uma noção
geral do que ele possui. Isto vai ser um rude golpe para ele?
Jens encolheu os ombros.
– Em circunstâncias normais, não haveria problema, mas ele fez tantas
aquisições a crédito em simultâneo com o BERTS, que acabou por se
transformar tudo num castelo de cartas. Basta um sopro e desmorona-se por
completo, se é que me faço entender. E depois, o Klipra também ficou com
ela.
– Portanto, ele comprou a Phuridell por recomendação da sua empresa, ou
deveria dizer da sua pessoa? Decorridas apenas duas semanas, ela vai à
falência e agora existe a possibilidade de tudo o que ele construiu cair por
terra por causa do conselho de um corretor. Não percebo muito de análises
empresariais, mas sei que três semanas são um curtíssimo período de tempo.
Ele devia ter previsto que você lhe vendeu um carro em segunda mão sem
motor. Cowboys como você deviam estar atrás das grades.
O rumo dos pensamentos de Harry começava a fazer sentido para Jens.
– Não está a afirmar que o Ove Klipra…? Não diga isso nem a brincar!
– Bem, eu tenho uma teoria.
– E qual é?
– O Ove Klipra assassinou o embaixador no motel e certificou-se de que as
suspeitas recaíam diretamente sobre si.
Jens levantou-se.
– Agora passou das marcas, Harry!
– Sente-se e oiça-me, Jens.
Jens deixou-se cair na cadeira, soltando um suspiro. Harry debruçou-se
sobre a mesa.
– O Ove Klipra é um homem agressivo, não é? Aquilo que se chama um
homem de ação?
Jens hesitou.
– É.
– Suponhamos que o Atle Molnes tem algo contra o Klipra e lhe exige uma
avultada quantia em dinheiro precisamente quando o Klipra está a lutar para
não se afundar.
– Algo como o quê?
– Digamos simplesmente que o Molnes precisava de dinheiro e tinha em
seu poder algo que podia tornar a vida do Klipra bastante complicada. Em
circunstâncias normais, o Klipra conseguiria resolver a situação, mas dado o
seu aperto financeiro, a pressão torna-se insuportável para ele. Sente-se como
uma ratazana encurralada. Está a acompanhar-me?
Jens anuiu.
– Eles saem de casa do Klipra no carro do embaixador, porque aquele
insiste que procedem à entrega do material comprometedor e do dinheiro
num local mais discreto. O embaixador não levanta objeções, como
facilmente se compreende. Duvido que o Klipra estivesse a pensar em si
quando se apeou junto ao banco e despachou o embaixador para o motel. E
fê-lo para mais tarde poder entrar no motel sem ser visto. Mas depois põe-se
a pensar. Se calhar, pode matar dois coelhos de uma só cajadada. Sabe que o
embaixador tinha ido falar consigo ao início da tarde e que, de qualquer
forma, você acabaria por ser arrastado para a investigação policial. Depois,
começa a ponderar a ideia: provavelmente, o bondoso herr Brekke não tem
um álibi para a noite.
– Mas por que raio pensaria ele semelhante coisa?
– Porque lhe pediu uma análise empresarial para o dia seguinte. Você já é
corretor dele há tanto tempo que ele conhece um pouco o seu método de
trabalho. Talvez até lhe telefone de uma cabina e tenha a confirmação de que
você não está a receber chamadas e ninguém lhe pode dar um álibi. Sente já a
derrota do adversário e agora quer ir mais longe e persuadir a Polícia de que
você está a mentir.
– A gravação de vídeo?
– Como você é o consultor habitual de moeda corrente do Klipra, ele deve
ter ido falar consigo várias vezes e conhece o sistema no parque de
estacionamento. Talvez o Molnes mencionasse de passagem que você o
acompanhara até ao carro, e ele sabia que você diria isso no seu depoimento à
Polícia. E qualquer detetive competente iria verificar o vídeo.
– Então, o Ove Klipra subornou o funcionário do parque e matou-o depois
com ácido prússico? Lamento, Harry, mas é demasiado rebuscado imaginar o
Ove Klipra a regatear com um miúdo negro, a comprar ópio e a adicionar-lhe
ácido prússico na cozinha.
Harry tirou o último cigarro do seu maço; guardara-o o máximo de tempo
possível. Olhou para o relógio de pulso. Na verdade, não tinha motivos para
acreditar que Runa fosse telefonar às cinco da manhã. No entanto, apercebeu-
se de que se certificara de que o telefone estava no seu campo de visão
periférica. Jens estendeu-lhe o isqueiro antes de ele ter oportunidade de
encontrar o seu.
– Obrigado. Sabe alguma coisa sobre os antecedentes do Klipra, Jens? Sabe
que ele veio para aqui como o homem dos sete instrumentos, mas, na
verdade, estava a fugir da Noruega por causa de uns boatos desagradáveis
que tinham começado a espalhar-se?
– Eu sabia que ele nunca tinha terminado o curso de Engenharia que
iniciara na Noruega. O resto é uma novidade para mim.
– Acha mesmo que um refugiado como ele, alguém que já é um pária da
sociedade, tem alguns escrúpulos em usar os meios necessários para
enriquecer, em especial, se esses meios forem mais ou menos aceites em todo
o lado? O Klipra move-se há mais de trinta anos numa das indústrias mais
corruptas do mundo, num dos países mais corruptos do mundo. Conhece o
ditado: «Quem anda à chuva molha-se»?
Jens abanou a cabeça.
– O que estou a dizer é que, enquanto homem de negócios, o Klipra joga
segundo as regras de todos os outros. Estas pessoas têm de se certificar de
que não sujam as mãos, e é por isso que contratam outras para lhes limparem
a porcaria. Cá para mim, o Klipra nem sonha do que morreu o Jim Love.
Harry deu uma passa no cigarro. Não lhe soube tão bem quanto imaginara.
– Estou a ver – disse finalmente Jens. – No entanto, existe uma explicação
para a falência, por isso, não entendo porque me atribuiria as culpas. O que
aconteceu foi que nós comprámos a empresa a uma multinacional que não
fixou o valor da sua dívida em dólares porque os dólares lhes chegavam de
outras filiais.
– O quê?
– Resumindo e concluindo, ao mesmo tempo que a empresa se separou e
veio parar às mãos do Klipra, o dólar ficou sujeito a uma enorme pressão. Era
como uma bomba-relógio. Eu aconselhei-o a saldar imediatamente a dívida
vendendo os futuros em dólares, mas ele disse que preferia esperar, porque o
dólar estava sobrevalorizado. Com as flutuações cambiais, poder-se-ia dizer
que, no pior cenário possível, ele estava a correr um risco. Só que era bem
pior do que o pior cenário possível. Quando, em três semanas, o dólar quase
duplicou de valor em relação ao baht, a dívida da empresa também duplicou.
A empresa não ficou falida em três semanas mas em três dias!
Jens frisou tão sonoramente a última palavra que Hilde Molnes se agitou e
murmurou algo durante o sono. Ele olhou-a com preocupação e esperou que
se virasse para o outro lado e recomeçasse a ressonar.
– Três dias! – repetiu, e indicou quão reduzido era o tempo com o polegar e
o indicador.
– Portanto, não lhe pareceu razoável que ele o culpasse?
Jens abanou a cabeça. Harry apagou o cigarro; fora um anticlímax.
– Pelo que conheço do Klipra, «razoável» não consta do seu vocabulário.
Não devia subestimar o lado irracional da natureza humana, Jens.
– Como assim?
– Quando martela um prego e atinge o seu polegar, o que arremessa à
parede?
– O martelo?
– Bem, e qual é a sensação de ser um martelo, Jens Brekke?

Às cinco e meia, Harry telefonou para a esquadra da Polícia, foi atendido


por três pessoas antes de lhe aparecer alguém que conseguisse falar um inglês
aceitável e a mulher disse-lhe que não tinham visto nem ouvido nada.
– Ela vai aparecer – disse a mulher.
– Tenho a certeza de que sim – respondeu Harry. – Imagine que ela está
por aí num hotel. Não tarda, telefona a pedir que lhe levem o pequeno-
almoço.
– O quê?
– Presumo… esqueça. Obrigado pela ajuda.
Jens desceu as escadas com ele. Harry olhou para o céu; estava a ficar mais
claro.
– Quando tudo isto terminar, gostaria de lhe pedir um favor – disse Jens.
Inspirou fundo e sorriu timidamente. – A Hilde aceitou casar-se comigo e
preciso de um padrinho.
Passaram dois segundos antes de Harry perceber ao que ele se referia. Fora
apanhado tão de surpresa que não soube o que dizer.
Jens olhava para as pontas dos dedos dos pés.
– Sei que parece estranho casar-se passado tão pouco tempo da morte do
marido dela, mas temos as nossas razões.
– Sim, mas…
– Não me conhece já o suficiente? Eu sei, Harry. No entanto, se não fosse
você, eu não era um homem livre. – Levantou o queixo e sorriu. – Por favor,
não diga já que não.
Quando Harry mandou parar um táxi na rua, a aurora rompia no céu por
cima dos telhados a leste. A neblina dos fumos dos escapes, que Harry
presumira ter desaparecido durante a noite, descera sobre as casas para
repousar. Levantava-se agora com o astro-rei e integrava um magnífico
nascer do Sol vermelho. Seguiam pela Silom Road, e os pilares ao longo do
percurso projetavam longas sombras silenciosas no alcatrão banhado de
sangue, como dinossáurios adormecidos.

Harry estava sentado na cama, de olhos postos na mesa de cabeceira.


Esquecera-se por completo da carta até àquele momento. Pegou no envelope
ali pousado e rasgou-o com a chave. Talvez por os dois envelopes serem
idênticos, presumira que fosse de Runa. Tinha sido escrita no computador,
reproduzida numa impressora a laser e era concisa e incisiva:

Harry Hole. Estou de olho em si. Não se aproxime mais. Ela será
devolvida sã e salva quando você estiver no avião de volta ao seu país.
Consigo encontrá-lo seja onde for. Você está sozinho, muito sozinho. Número
20.

Sentiu-se como se alguém o tivesse agarrado pela garganta e ele precisasse


de se levantar para respirar.
«Isto não está a acontecer», pensou. «Isto não pode acontecer; não outra
vez.»
Estou de olho em si… Número 20.
Ele sabe o que eles sabem.
Você está sozinho.
Alguém dera com a língua nos dentes. Pegou no telefone para voltar logo a
pousá-lo. «Pensa, pensa.» Woo não levara nada. Levantou de novo o
auscultador e desatarraxou o bocal. Ao lado do microfone, que deveria lá
estar, encontrava-se um pequeno objeto preto que fazia lembrar um chip. Era
um modelo russo, provavelmente melhor do que o de escutas que a CIA
usava.
Depois de desferir uma violenta biqueirada na mesa de cabeceira, que a fez
voar, o latejar no seu pé sobrepôs-se a qualquer outra dor.
42

Quarta-feira, 22 de janeiro

L iz levou a chávena de café à boca e sorveu com tal ruído que Løken
trocou um olhar com Harry, de sobrolho arqueado, como se perguntasse
quem era aquela criatura. Estavam no Millie’s Karaoke. De uma fotografia na
parede, uma Madonna louro-platinada olhava-os com uma expressão de
desejo, enquanto uma versão digital para ser cantada de I Just Called to Say I
Love You72 ia avançando alegremente. Harry tentou desligar o controlo
remoto. Tinham lido a carta e ninguém respondera ainda. Harry encontrou o
botão certo e a música parou subitamente.
– Era o que lhe queria contar – disse Harry. – Como pode ver, temos uma
fuga.
– Então e a escuta que, segundo afirma, este tal Woo colocou no seu
telefone? – perguntou Løken.
– Não explica que o autor da carta saiba que andamos atrás dele. Eu pouco
ou nada disse ao telefone. De qualquer forma, a partir de agora, sugiro que
nos encontremos aqui. Se descobrirmos o informador, talvez ele ou ela nos
consiga levar ao Klipra, mas não creio que devamos começar por aí.

– E porque não? – perguntou Liz.


– Desconfio que o informador esteja tão bem protegido quanto o Klipra.
– A sério?
– Ao escrever aquela carta, o Klipra está a revelar que obtém as
informações internamente. Nunca o faria se tivéssemos alguma hipótese de
descobrir a fonte.
– E porque não colocar a questão mais óbvia? – perguntou Løken. – Como
sabe que o informador não é um de nós?
– Não sei. Mas se for, já perdemos, por isso vamos ter de arriscar.
Os outros anuíram.
– Escusado será dizer que corremos contra o tempo. E escusado será
também dizer que as probabilidades estão contra a rapariga. Setenta por cento
dos raptos desta natureza acabam com a morte da vítima.
Fora sua intenção proferir aquelas palavras num tom tão neutro quanto
possível, e evitara olhá-los nos olhos, na certeza de que tudo o que pensava e
sentia estava estampado nos seus.
– Por onde começamos, então? – perguntou Liz.
– Começamos por eliminar – disse Harry. – Eliminar onde ela não está.
– Bem, enquanto ele tiver a rapariga, é pouco provável que o deixem
atravessar quaisquer fronteiras internacionais – disse Løken. – Ou registar-se
num hotel.
Liz concordou.
– Provavelmente, estão num local onde possam ficar escondidos durante
muito tempo.
– Ele está sozinho? – perguntou Harry.
– O Klipra não está associado a qualquer das famílias do mundo do crime –
respondeu Liz. – O tipo de crime organizado em que ele está metido não se
envolve em raptos. Não é difícil encontrar alguém que dê conta de um
escravo do ópio como o Jim Love. Mas raptar uma rapariga branca, filha de
um embaixador… Qualquer pessoa que ele tentasse contratar verificava tudo
muito bem antes de aceitar. Saberia que ia ter a Polícia toda à perna, se
aceitasse o trabalho.
– Portanto, na sua opinião, ele está sozinho?
– Como disse, não pertence a nenhuma das famílias. Estas regem-se por
lealdades e tradições. Já o Klipra seria capaz de recorrer aos serviços de
alguém em quem não confiasse a cem por cento. Mais cedo ou mais tarde,
essa pessoa ia descobrir o motivo pelo qual ele queria a rapariga e podia usar
isso contra ele. O facto de se ter livrado do Jim Love sugere que não pretende
recuar perante nada para proteger a sua identidade.
– Muito bem, vamos presumir que ele está a agir sozinho. Onde a
esconderia?
– Em montes de sítios – respondeu Liz. – As empresas dele devem ser
donas de uma quantidade de propriedades, e algumas dessas estarão vazias.
Løken tossiu ruidosamente, recuperou de novo o fôlego e engoliu em seco.
– Há muito que desconfio que o Klipra tem um ninho de amor secreto.
Numa ocasião, ele levou dois rapazes no carro e ficou lá até de manhã. Nunca
consegui descobrir onde era; certamente não estará registado em lado
nenhum. Mas é óbvio que deve ser num sítio onde o deixem em paz, algures
não muito longe de Banguecoque.
– Não podíamos tentar descobrir alguns dos rapazes e perguntar-lhes? –
alvitrou Harry.
Løken encolheu os ombros e olhou para Liz.
– A cidade é enorme – disse ela. – Sabemos, por experiência, que estes
rapazes desaparecem como o orvalho pela manhã assim que começamos a
procurá-los. Além disso, teríamos de envolver imensa gente de fora.
– Pronto, esqueçam – disse Harry. – Não podemos correr o risco de o
Klipra saber o que andamos a fazer.
Harry batia ritmicamente com uma caneta na borda da mesa. Para sua
irritação, apercebera-se de que I Just Called do Say I Love You continuava a
borboletear-lhe na cabeça.
– Bom, resumindo, presumimos que o Klipra tenha levado a cabo este rapto
sem ajuda e se encontre num local remoto a alguma distância de
Banguecoque.
– O que fazemos agora? – inquiriu Løken.
– Eu vou para Pattaya – anunciou Harry.

Sentia-se como um peixe fora de água. Harry tinha a sensação de que não
era fulcral para o caso, tão-somente mais um norueguês à procura de um
clima melhor. Roald Bork estava com a mesma cara que no funeral, os
mesmos olhos azuis vivos e uma corrente de ouro bem à vista. Encontrava-se
ao portão quando Harry virou rapidamente o enorme Toyota 4x4 diante da
casa dele. A poeira assentou na gravilha enquanto Harry se desembaraçava
do cinto de segurança e tirava a chave da ignição. Como sempre, não estava
preparado para o calor que o atingiu quando saiu do carro e, instintivamente,
abriu a boca para poder respirar. Havia um travo a sal no ar, o que lhe indicou
que o mar ficava mesmo por detrás das colinas.
– Ouvi-o subir o acesso – disse Bork. – Um veículo e tanto, hein?
– Aluguei o maior que havia – explicou Harry. – Aprendi que nos confere
alguma prioridade. Precisamos dela com os malucos daqui a conduzirem pela
esquerda.
Bork soltou uma gargalhada.
– Deu com a nova autoestrada de que lhe falei?
– Dei, sim. Só que, como ainda não estava concluída, colocaram uma
barreira de sacas de areia em dois sítios. Mas toda a gente passou por cima
delas e eu segui-lhes o exemplo.
– Isso parece-me bem – respondeu Bork. – Não é completamente legal,
mas também não é ilegal. É assim tão estranho que nos apaixonemos por este
país?
Descalçaram-se e entraram na casa. As lajes de pedra fria fizeram
comichão nos pés de Harry. Na sala de estar havia fotografias de Fridtjof
Nansen73, Henrik Ibsen74 e da família real norueguesa. Numa, via-se um
rapazinho sentado numa cómoda, a olhar de soslaio para a objetiva. Rondaria
os dez anos e tinha uma bola de futebol debaixo do braço. Viam-se
documentos e jornais cuidadosamente arrumados em pilhas em cima da mesa
da sala de jantar e do piano.
– Tenho estado a tentar pôr um pouco de ordem na minha vida – disse
Bork. – Descobrir o que aconteceu e porquê.
Indicou uma das pilhas.
– Aqueles são os papéis do divórcio. Olho para eles e procuro lembrar-me.
Entrou uma rapariga que trazia uma bandeja. Harry provou o café que ela
servira e lançou-lhe um olhar enigmático quando se apercebeu de que estava
gelado.
– É casado, Hole? – perguntou-lhe Bork.
Harry abanou a cabeça.
– Ainda bem. Mantenha-se assim. Mais cedo ou mais tarde, vão tentar tirar-
nos tudo. Tenho uma mulher que me arruinou e um filho adulto que está a
tentar fazer o mesmo. E não consigo perceber que mal lhes fiz para merecer
tal sorte.
– Como veio parar aqui? – perguntou Harry, bebendo outro gole. Na
verdade, até nem era nada mau.
– Vim cá fazer um trabalho para a Televerket75 quando estavam a instalar
duas centrais para uma empresa telefónica. Depois da terceira viagem nunca
mais me fui embora.
– Nunca?
– Divorciei-me e tinha aqui tudo o que necessitava. Durante uns tempos
convenci-me mesmo de que sentia saudades de um verão norueguês, dos
fiordes e das montanhas e, bem, você entende, de tudo o resto. – Fez um
gesto com a cabeça na direção dos quadros na parede, como se eles pudessem
preencher tudo o resto. – Depois fui à Noruega duas vezes, mas de ambas
regressei passada uma semana. Não aguentei, fiquei desejoso de voltar para
cá assim que pisei solo norueguês. Apercebi-me agora de que o meu lugar é
aqui.
– E como ocupa o seu tempo?
– Sou um consultor de telecomunicações à beira da reforma, faço um
trabalho ou outro, mas não demasiados. Procuro calcular quanto tempo me
resta e de quanto vou necessitar nesse período. Não quero deixar um único
øre76 aos abutres. – Soltou uma gargalhada e a sua mão agitou-se por cima
dos papéis do divórcio como se para afastar um mau cheiro.
– Então e o Ove Klipra? Porque continua ele aqui?
– O Klipra? Hum, calculo que ele tenha uma história semelhante para
contar. Nenhum de nós tinha bons motivos para regressar.
– Provavelmente, o Klipra tinha muito bons motivos para não o fazer.
– Todos esses mexericos são um completo absurdo. Se o Ove estivesse
metido nesse tipo de coisa, eu nunca me relacionaria com ele.
– De certeza?
Os olhos de Bork dardejaram.
– Houve uns noruegueses que vieram para cá pelas razões erradas. Como
sabe, sou uma figura de relevo no círculo norueguês na cidade, e sentimos
uma certa responsabilidade pelo que os nossos compatriotas fazem aqui. A
maioria de nós é gente de bem, e fez o que tinha de ser feito. Esses malditos
pedófilos destruíram de tal forma a reputação de Pattaya que, quando as
pessoas nos perguntam onde moramos, muitas começaram a responder em
bairros como Naklua e Jomtien.
– O que significa ao certo «o que tinha de ser feito»?
– Digamos que dois voltaram para o seu país e um, infelizmente, não
conseguiu.
– Atirou-se de uma janela? – alvitrou Harry.
Bork soltou uma sonora gargalhada.
– Não, não chegámos a tanto. Mas é, provavelmente, a primeira vez que a
Polícia recebe uma chamada anónima em tailandês com pronúncia de
Nordland.
Harry sorriu.
– É o seu filho? – Indicou a fotografia em cima da cómoda.
Bork ficou um pouco desconcertado, mas assentiu.
– Parece um rapaz simpático.
– Nessa altura era. – Bork sorriu com olhos tristes e repetiu-se: – Era.
Harry olhou para o seu relógio de pulso. A viagem de Banguecoque
demorara quase três horas, mas ele conduzira como se fosse um aprendiz até
relaxar um pouco nos últimos quilómetros. Talvez conseguisse regressar em
pouco mais de duas. Tirou três fotografias da sua pasta e colocou-as em cima
da mesa. Løken ampliara-as para 24 x 30 centímetros, a fim de maximizar o
efeito de choque total.
– Pensamos que o Ove Klipra tem um esconderijo próximo de
Banguecoque. Podemos contar com a sua ajuda?
72 Tema interpretado por Stevie Wonder para o filme A Mulher de Vermelho, lançado em 1984.
Ganhou o Óscar de Melhor Canção Original em 1985. (N. da T.)

73 Fridtjof Nansen (1861-1930) foi um cientista, explorador polar, aventureiro e político norueguês.
Enquanto delegado norueguês na Sociedade das Nações, criou o passaporte Nansen para os refugiados,
tendo sido galardoado com o Nobel da Paz em 1922. (N. da T.)

74 Dramaturgo norueguês (1828-1906) considerado um dos criadores do teatro realista moderno. Entre
seus maiores trabalhos destacam-se: Peer Gynt, Um Inimigo do Povo, Casa de Bonecas ou Hedda
Gabler. (N. da T.)

75 Designação, à época em que o livro foi publicado na sua versão original (1998), da empresa pública
de telecomunicações da Noruega, hoje conhecida como Telenor. (N. da T.)

76 Uma coroa norueguesa divide-se em 100 øre. (N. da T.)


43

Quarta-feira, 22 de janeiro

S is parecia feliz ao telefone. Conhecera um rapaz, Anders. Ele acabara de


se mudar para o Sogn, vivia no mesmo corredor, e era um ano mais novo
do que ela.
– Ele também usa óculos. Mas isso não importa, porque é lindo de morrer.
Harry soltou uma gargalhada e imaginou a nova conquista da irmã.
– É completamente maluco. Pensa que nos vão deixar ter filhos juntos,
imagina só.
Só de imaginar aquilo, Harry apercebeu-se de que haveria lugar a algumas
conversas difíceis no futuro. Naquele momento, porém, ficou satisfeito por
Sis parecer tão contente.
– Porque estás triste?
A pergunta fez-se acompanhar de uma inspiração, como uma extensão
natural da notícia de que o pai fora visitá-la.
– Triste, eu? – perguntou Harry, plenamente ciente de que Sis conseguia
diagnosticar sempre o seu estado de espírito melhor do que ele próprio.
– Sim, estás triste com alguma coisa. É a rapariga sueca?
– Não, não é a Birgitta. Há uma coisa que me anda a incomodar neste
momento, mas não tarda fica tudo bem. Vou resolvê-la.
– Ainda bem.
Seguiu-se um raro silêncio, em que Sis não disse nada. Harry sugeriu que
era melhor desligarem.
– Harry?
– Sim, Sis?
Ouviu-a preparar-se.
– Achas que podíamos esquecer isso tudo agora?
– Tudo, o quê?
– Tu sabes, o homem. O Anders e eu, nós… nós estamos a divertir-nos
imenso. Não quero pensar mais nisso.
Harry ficou calado. Depois inspirou fundo.
– Ele atacou-te, Sis.
As lágrimas invadiram de imediato a voz dela.
– Eu sei. Não precisas de voltar a dizer-me. Não quero pensar mais nisso,
acredita.
Ela fungou, e Harry sentiu um aperto no peito.
– Por favor, Harry?
Apercebeu-se de que apertava o telefone.
– Não penses nisso. Não penses nisso, Sis. Vai ficar tudo bem.

Estavam deitados há quase duas horas no capim-elefante, à espera de que o


Sol se pusesse. A uma centena de metros dali, na orla de uma zona de
arbustos, encontrava-se uma casa tradicional tailandesa em bambu e madeira,
com um pátio aberto ao meio. Não existia portão, apenas um pequeno
caminho de gravilha até à porta principal. À frente encontrava-se o que
parecia ser uma gaiola colorida pendurada num suporte. Era um phra phum,
uma casa consagrada ao espírito protetor de um local.
– O dono tem de apaziguar os espíritos para que estes não invadam a casa –
disse Liz, esticando as pernas. – Para isso, tem de oferecer-lhes comida,
incenso, cigarros, etc., para que eles fiquem felizes.
– E isso é suficiente?
– Neste caso, não.
Não tinham ouvido nem avistado quaisquer sinais de vida. Harry procurou
abstrair-se para não pensar no que poderia encontrar lá dentro. Tinham
demorado apenas uma hora e meia de Banguecoque, mas parecia que tinham
chegado a outro mundo. O carro ficara estacionado atrás de uma cabana junto
à estrada, ao lado de uma pocilga, e tinham descoberto um caminho que
conduzia ao cimo da ladeira arborizada onde Roald Bork lhes explicara que
ficava a pequena casa de Klipra. A mata era verdejante, o céu azul e aves de
todas as cores do arco-íris sobrevoaram Harry quando ele se deitou de costas
a escutar o silêncio. A princípio, julgou que tinha algodão nos ouvidos, antes
de se aperceber do que era: desde que deixara Oslo que não sentia silêncio à
sua volta.
Mal a escuridão se instalou, foi o fim do silêncio. Primeiro ouviram-se
raspadelas e zumbidos, como uma orquestra sinfónica a afinar os
instrumentos. Depois o concerto começou com grasnidos e cacarejos e
atingiu um crescendo quando os uivos e os gritos intensos e estridentes
vindos das árvores se juntaram à orquestra.
– Estes animais estiveram sempre todos aqui? – perguntou Harry.
– Não me pergunte – respondeu Liz. – Sou uma rapariga da cidade.
Harry sentiu algo roçar-lhe a pele e recolheu a mão.
Løken soltou uma risada.
– São apenas rãs que vêm dar um passeio noturno – disse ele.
E, de facto, não tardaram a ficar rodeados de rãs, que saltavam quando lhes
dava na veneta.
– Bem, desde que sejam apenas rãs, por mim tudo bem – afirmou Harry.
– As rãs também são alimento – disse Løken. Puxara um capuz preto sobre
a cabeça. – Onde existem rãs também existem cobras.
– Está a brincar!
Løken encolheu os ombros.
Harry não estava minimamente interessado em saber a verdade, no entanto,
teve de perguntar.
– Que tipo de cobras?
– Cinco ou seis variedades de cobra-capelo, uma víbora verde, uma víbora
de Russel, todas estas e muitas mais. Tenha cuidado. Dizem que das trinta
variedades mais comuns na Tailândia, vinte e seis são venenosas.
– Merda. E como é que sabemos se são venenosas?
Løken lançou-lhe de novo aquele olhar de «coitado do recruta».
– Harry, tendo presentes as probabilidades, penso que devia partir apenas
do princípio que são todas venenosas.
Eram oito horas.
– Estou pronta – anunciou Liz, com impaciência e verificou, pela terceira
vez, se a sua Smith & Wesson estava carregada.
– Está com medo? – perguntou-lhe Løken.
– Só de que o chefe da Polícia descubra o que se passa antes de
terminarmos isto – disse ela. – Sabe qual é a esperança média de vida de um
polícia de trânsito em Banguecoque?
Løken assentou-lhe uma mão no ombro.
– Muito bem, vamos a isto.
Liz correu inclinada pela erva alta e desapareceu na escuridão.
Løken observou a casa com os binóculos, enquanto Harry cobria a frente
com a espingarda de caçar elefantes que Liz requisitara do depósito de armas
da Polícia, assim como uma pistola, uma Ruger SP101. Não estava
acostumado a andar com um coldre na barriga da perna, no entanto, os
coldres de ombro não se usam quando os casacos não são uma peça de
vestuário prática. Uma Lua cheia subira no céu e dava-lhe luz suficiente para
distinguir os contornos das janelas e das portas.
Liz acendeu a lanterna uma vez, o sinal de que estava a postos debaixo de
uma janela.
– É a sua vez, Harry – disse Løken, quando se apercebeu de que ele
hesitava.
– Merda, era preciso falar das cobras? – reclamou Harry, verificando se
tinha uma faca no cinto.
– Não gosta delas?
– Bem, as que conheci causaram-me uma péssima primeira impressão.
– Se for mordido, certifique-se de que apanha a cobra, para lhe ministrarem
o antídoto certo. Se for mordido uma segunda vez, não tem importância.
Harry não conseguia ver se Løken estava a sorrir no escuro, mas calculou
que estivesse.
Harry correu direito à casa que parecia irromper da noite. Como corria,
parecia que a silhueta da cabeça do feroz dragão no telhado se mexia.
Todavia, a casa não aparentava ter vida. O cabo da marreta na sua mochila
batia-lhe nas costas. Parara de pensar nas cobras.
Chegou à segunda janela, fez sinal a Løken e acocorou-se. Há já
algum tempo que não corria tanto; talvez por isso o seu coração batesse tão
acelerado. Ouviu uma respiração ligeira a seu lado. Era Løken.
Harry sugerira gás lacrimogéneo, no entanto, Løken rejeitara
categoricamente a ideia. O gás impedi-los-ia de ver algo, e não tinham
motivos para acreditar que Klipra estivesse à espera deles com uma faca
encostada à garganta de Runa.
Løken fez sinal a Harry erguendo um punho.
Harry anuiu e sentiu que tinha a boca seca, um sinal certo de que a
adrenalina lhe corria nas veias nas quantidades certas. A coronha da arma era
húmida e fria nas suas mãos. Verificou se a porta abria para dentro antes de
Løken levantar a marreta.
O luar refletiu-se no ferro e, por um breve segundo, fez lembrar um tenista
a servir, antes de a marreta descer com imensa força e embater na fechadura
com um estrondo.
No instante seguinte, Harry estava lá dentro e a sua lanterna descrevia
círculos na divisão. Viu-a imediatamente, porém, a luz continuou a deslocar-
se como se executasse as suas próprias instruções. Prateleiras da cozinha, um
frigorífico, uma bancada, um crucifixo. Já não conseguia ouvir os sons dos
animais. Foi transportado até Sydney, e ouviu apenas o som de correntes,
ondas a baterem de lado num barco numa marina e as gaivotas a grasnar,
talvez porque Birgitta estava estendida no convés e morta para sempre.
Uma mesa com quatro cadeiras, um louceiro, duas garrafas de cerveja, um
homem estendido no chão, imóvel, sangue debaixo da cabeça dele, a sua mão
escondida pelo cabelo dela, uma arma debaixo da cadeira, um quadro com
um prato de fruta e uma jarra vazia. Stilleben. Nature morte. Natureza-morta.
A lanterna iluminou-a e ele voltou a ver: a mão dela encostada à perna da
mesa, a apontar para cima. Ouviu a voz de Runa: «Consegue sentir? Pode
alcançar a vida eterna!» Como se ela estivesse a tentar reunir energia para um
derradeiro protesto contra a morte. Uma porta, uma arca frigorífica, um
espelho. Antes de ficar encandeado viu-se por um breve instante – uma figura
com roupas pretas com um capuz na cabeça. Parecia um carrasco. Harry
deixou cair a lanterna.

– Sente-se bem? – perguntou Liz.


Apoiou uma mão ao ombro dele. Harry fez menção de responder, abriu a
boca, mas não conseguiu emitir qualquer som.
– Este é o Olive Klipra, sim – afirmou Løken. Acocorou-se junto do morto,
a cena iluminada por uma lâmpada no teto sem quebra-luz. – Que estranho.
Ando a observar este sujeito há meses. – Colocou a mão na testa do morto.
– Não lhe toque!
Harry agarrou o colarinho de Løken e içou-o.
– Não…! – Largou-o imediatamente. – Desculpe, eu… Não mexa em nada.
Por enquanto.
Løken nada disse, e fitou-o. Liz tinha mais uma vez a sua ruga profunda
entre as sobrancelhas inexistentes.
– Harry?
Ele deixou-se cair numa cadeira.
– Já acabou, Harry. Lamento, lamentamos todos, mas acabou.
Harry abanou a cabeça.
Ela debruçou-se e assentou-lhe uma mão grande e quente no pescoço. Tal
como a mãe dele costumava fazer. Merda, merda, merda.
Levantou-se, repeliu-a e foi lá para fora. Conseguia ouvir os cochichos de
Liz e Løken no interior da casa. Olhou para o céu, procurou uma estrela, mas
não conseguiu vislumbrar nenhuma.

Era quase meia-noite quando Harry bateu à porta. Hilde Molnes abriu-a.
Ele baixou o olhar; não telefonara de antemão e percebeu, pela respiração
dela, que não tardaria a desfazer-se em lágrimas.
Sentaram-se um diante do outro na sala de estar. Não conseguia ver
nenhum resto na garrafa de gin, e ela parecia suficientemente lúcida. Limpou
as lágrimas.
– Ela ia ser mergulhadora, sabe?
Ele anuiu.
– Mas eles não a queriam deixar participar nas competições normais.
Diziam que os juízes não sabiam avaliá-la. Algumas pessoas diziam que era
uma injustiça. Mergulhar só com um braço trazia vantagens.
– Lamento – disse ele.
Foi a primeira coisa que disse desde que chegara.
– A Runa não sabia – disse ela. – Se soubesse não tinha falado comigo
daquela maneira.
O rosto dela contorceu-se, soluçou e as lágrimas escorreram-lhe pelas rugas
junto à boca como pequenos riachos.
– Ela não sabia o quê, fru Molnes?
– Que eu estou doente! – exclamou e cobriu o rosto com as mãos.
– Doente?
– Por que outro motivo julga que me anestesiava desta maneira? O meu
corpo não tarda a ser consumido. São apenas células podres, apenas células
mortas.
Harry ficou em silêncio.
– Eu fazia tenções de lhe contar – murmurou por entre os dedos. – Os
médicos deram-me seis meses. Mas eu queria contar-lhe num dia bom. – Mal
se lhe ouvia a voz. – Só que não houve dias bons.
Harry, incapaz de continuar sentado, pôs-se de pé. Encaminhou-se para a
janela grande com vista para o jardim, evitou as fotografias de família na
parede porque sabia quem os seus olhos iam encontrar lá. A Lua refletia-se
na piscina.
– Eles voltaram a telefonar, os homens a quem o seu marido devia
dinheiro?
Ela baixou as mãos. Os olhos estavam vermelhos do choro e feios.
– Telefonaram, mas o Jens estava aqui e falou com eles. Desde então, não
tive mais notícias.
– Portanto, ele cuida de si, não cuida?
Harry não soube porque lhe fizera especificamente aquela pergunta. Talvez
não passasse de uma tentativa desajeitada de a consolar, de lhe lembrar que
ainda tinha alguém.
Ela anuiu em silêncio.
– E agora vai casar-se?
– Tem alguma objeção?
Harry virou-se para ela.
– Não, porque haveria de ter?
– A Runa… – Não conseguiu prosseguir, e as lágrimas recomeçaram a
escorrer-lhe pelas faces. – Não fui muito amada na minha vida, Hole. Será
pedir muito querer alguns meses de felicidade antes do fim? Ela não podia
conceder-me isso?
Harry observou uma pequena pétala que descia em direção à piscina. Fez-
lhe lembrar os cargueiros que vinham da Malásia.
– Ama-o, fru Molnes?
No silêncio que se seguiu, ficou à espera de ouvir uma fanfarra.
– Amá-lo? Que importância tem isso? Sou capaz de imaginar-me a amá-lo.
Julgo que conseguia amar alguém que me ame. Compreende?
Harry olhou para o bar. Estava a três passos. Três passos, dois cubos de
gelo e um copo. Fechou os olhos e imaginou que ouvia os cubos de gelo a
tilintar no copo, o gorgolejar da garrafa ao deitar o líquido castanho sobre
eles e, por fim, o silvo da soda a misturar-se com o álcool.
44

Quinta-feira, 23 de janeiro

E ram sete da manhã quando Harry regressou ao local do crime. Às cinco,


desistira de tentar dormir, vestira-se e metera-se no carro alugado
estacionado no parque de estacionamento. Não se via mais ninguém nas
redondezas, a equipa forense dera o seu trabalho por concluído e só
regressaria dali a uma hora, quando muito. Afastou a fita cor de laranja da
Polícia e entrou.
Parecia muito diferente à luz do dia: tranquilo e bem conservado. Só o
sangue e os contornos a giz no chão testemunhavam o facto de se tratar da
mesma divisão onde ele estivera na noite anterior.
Não tinham encontrado uma carta, porém, não restavam dúvidas a ninguém
quanto ao que acontecera. A questão era mais porque é que Klipra a matara,
para depois se suicidar. Percebera que não tinha saída? Nesse caso, porque
não a libertara simplesmente? Talvez não tivesse sido planeado, talvez a
houvesse matado por ela tentar fugir ou porque dissera algo que o fizera
perder o controlo. E depois suicidara-se? Harry coçou o couro cabeludo.
Analisou o contorno a giz do corpo dela e o sangue que não fora limpo.
Klipra alvejara-a no pescoço com a arma que tinham encontrado, uma Dan
Wesson. A bala atravessara-a, cortando a artéria principal, que conseguira
bombear tanto sangue que este escorrera para o lava-louça antes de o coração
parar de bater. O médico dissera que ela tinha ficado logo inconsciente
porque o cérebro não recebera oxigénio suficiente e morrera após três ou
quatro batimentos cardíacos. Um buraco na janela mostrava o local onde
Klipra se encontrava quando a alvejara. Harry colocou-se dentro da silhueta
do corpo de Klipra traçada a giz. O ângulo estava certo.
Olhou para o chão.
O sangue formava uma auréola negra coagulada no local onde estivera a
cabeça dele. Era tudo. Disparara sobre si próprio pela boca. Harry reparou
que a equipa do local do crime assinalara a giz o ponto onde a bala entrara na
parede dupla de bambu. Imaginou a posição em que Klipra se deitara, virara a
cabeça e olhara para ela, perguntando-se, quiçá, onde estava ela, antes de
puxar o gatilho.
Foi até lá fora e encontrou o buraco de saída da bala. Espreitou pelo orifício
e olhou diretamente para a parede oposta. A natureza-morta. Curioso. Julgara
que fosse ver a silhueta de Klipra. Prosseguiu em direção ao local onde
tinham estado estendidos na erva no dia anterior, batendo furiosamente com
os pés para afastar os répteis e estacou junto à casa dos espíritos. Uma
pequena imagem sorridente de Buda com a barriga protuberante ocupava a
maior parte do espaço, juntamente com algumas flores murchas numa jarra,
quatro filtros de cigarros e duas velas usadas. Uma cavidadezinha branca na
base da figura de cerâmica mostrava onde a bala entrara. Harry pegou na sua
faca do exército suíço e retirou um bocado de chumbo deformado. Olhou de
novo para a casa. A bala deslocara-se numa linha horizontal. Era evidente que
Klipra estava de pé quando fora alvejado. Porque se convencera de que ele
estava deitado?
Regressou à casa. Havia algo que não batia certo. Parecia tudo muito
arrumado. Abriu o frigorífico. Vazio, nada que mantivesse duas pessoas
vivas. Quando abriu o armário da cozinha, caiu-lhe um aspirador em cima do
dedo grande do pé. Soltou uma imprecação e voltou a metê-lo lá dentro, mas
o aparelho teimou em sair novamente de lá, antes que ele tivesse tempo de
fechar a porta. Observando melhor, viu um gancho para colocar o aspirador.
Um sistema. Existe aqui um sistema. Mas alguém andou a interferir nele.
Retirou as garrafas de cerveja que estavam em cima da arca frigorífica e
abriu-a. Carne pálida e vermelha brilhou na sua direção. Não estava
embrulhada, apenas guardada em pedaços grandes e, em alguns sítios, o
sangue congelara numa membrana preta. Levantou um pedaço, examinou-o
antes de amaldiçoar a sua imaginação mórbida e voltar a colocá-lo lá dentro.
Parecia simplesmente carne de porco vulgar.
Harry ouviu um som e virou-se bruscamente. Estava uma figura parada à
porta. Era Løken.
– Credo, você assustou-me, Harry. Tinha a certeza de que a casa estava
vazia. O que está aqui a fazer?
– Nada. A meter o nariz. E você?
– Só queria ver se havia alguns documentos que pudéssemos usar no caso
de pedofilia.
– E porquê? Esse caso já ficou resolvido agora que ele morreu, não ficou?
Løken encolheu os ombros.
– Precisamos de provas concretas de ter agido corretamente pois agora,
sem dúvida, a nossa vigilância irá estar no centro das atenções.
Harry olhou para Løken. Não parecia um pouco tenso?
– Por amor de Deus, você tem as fotografias. Quer melhor prova do que
essa?
Løken sorriu, mas não o suficiente para Harry lhe ver o dente de ouro.
– É capaz de ter razão, Harry. Provavelmente, não passo de um velho
nervoso que quer ter a certeza absoluta. Já descobriu alguma coisa?
– Isto – disse Harry, segurando a bala de chumbo.
– Hum. – Løken inspecionou-a. – Onde a encontrou?
– Na casa dos espíritos além. E não consigo perceber porquê.
– E porque não?
– Isto significa que o Klipra tinha de estar de pé quando se matou.
– E daí?
– Nesse caso, o sangue teria jorrado para o chão da cozinha. Mas não existe
sangue algum vindo dele, a não ser no sítio onde estava caído. E, mesmo
assim, não é muito.
Løken segurou a bala entre as pontas dos dedos.
– Já ouviu falar do efeito de vácuo nos casos de suicídio?
– Explique-me lá.
– Quando uma vítima liberta o ar dos pulmões e fecha a boca à volta do
cano de uma arma cria-se um vácuo, o que implica que o sangue aflua à boca
e não ao ferimento de saída. Dali, escorre para o estômago e deixa estes
pequenos mistérios.
Harry olhou para Løken.
– Isso é uma novidade para mim.
– Seria entediante se você soubesse tudo aos trinta e poucos anos – disse-
lhe Løken.
Tonje Wiig telefonara para dizer que tinham ligado de todos os principais
jornais noruegueses e os mais sedentos de sangue anunciado a sua iminente
chegada a Banguecoque. De momento, na Noruega, as manchetes focavam-se
na filha do recentemente falecido embaixador. Ove Klipra era, a despeito do
seu prestígio em Banguecoque, um ilustre desconhecido na sua terra. Era
verdade que a revista Kapital o entrevistara há uns anos, mas, como nem Per
Ståle Lønning nem Anne Grosvold o tinham convidado para aparecer nos
seus programas, passara despercebido aos olhos do público.
«A Filha do Embaixador» e «O Magnata Norueguês Desconhecido» tinham
ambos sido encontrados assassinados, provavelmente por intrusos ou
ladrões.
Todavia, na Tailândia, havia fotografias de Klipra escarrapachadas em
todos os jornais. O jornalista do Bangkok Post contestou a teoria da Polícia
de que fora um ladrão. Escreveu que não se podia excluir a possibilidade de
Klipra ter assassinado Runa Molnes, suicidando-se depois. O jornal
especulava também livremente acerca das consequências que o sucedido
poderia ter para o projeto de transporte BERTS. Harry ficou impressionado.
No entanto, ambos os países frisavam a escassez das informações
divulgadas pela Polícia tailandesa.

Harry chegou ao portão da residência de Klipra e buzinou. Tinha de admitir


que começava a gostar do enorme jipe Toyota. O segurança apareceu e Harry
baixou o vidro.
– Polícia. Liguei-lhe – disse ele.
O segurança lançou-lhe o esperado olhar profissional antes de abrir o
portão.
– Podia abrir-me a porta da frente?– pediu Harry.
O homem saltou para o estribo e Harry sentiu que os olhos dele o
examinavam. Harry estacionou na garagem. O segurança fez chocalhar um
molho de chaves.
– A porta principal fica do outro lado – informou-o, e por pouco Harry não
se descaiu dizendo que já sabia. Quando o segurança introduziu a chave na
fechadura e se preparava para rodá-la, virou-se para Harry. – Eu não o vi já
nalgum lado?
Harry sorriu. O que poderia ser? O aftershave? O sabonete que usava?
Dizem que o olfato é o sentido de que o cérebro melhor se recorda.
– É muito improvável.
O guarda retribuiu o sorriso.
– Lamento, senhor. Deve ter sido outra pessoa. Não consigo distinguir os
farangs.
Harry revirou os olhos, mas parou a meio do movimento.
– Diga-me, lembra-se de ver aqui um carro azul da embaixada mesmo antes
de o Klipra sair?
O guarda anuiu.
– Dos carros lembro-me bem. Também era um farang.
– Como é que ele era?
O guarda soltou uma gargalhada.
– Como disse…
– O que é que ele tinha vestido?
O homem abanou a cabeça.
– Um fato?
– Acho que sim.
– Um fato amarelo. Amarelo, como um frango.
O guarda franziu o sobrolho e ficou a olhar para ele fixamente.
– Frango? Ninguém tem um fato como um frango.
Harry encolheu os ombros.
– Bem, algumas pessoas têm.
Ficou no hall, por onde ele e Løken haviam entrado, e observou um
pequeno buraco circular na parede. Parecia que alguém quisera pendurar um
quadro, mas desistira de espetar um prego.
Subiu ao escritório, folheou os documentos, sobretudo de forma aleatória,
ligou o computador e foi-lhe pedida uma palavra-passe. Tentou «MAN U».
Incorreta.
Linguagem educada, inglês.
«OLD TRAFFORD». Novamente incorreta.
Uma última tentativa antes de bloquear automaticamente. Olhou à sua
volta, como se procurasse uma pista na divisão. Qual era a sua? Soltou uma
gargalhada. Claro. A palavra-passe mais comum na Noruega. Teclou
cuidadosamente as letras P-A-L-A-V-R-A-P-A-S-S-E, depois premiu a tecla enter.
A máquina pareceu ter uma breve hesitação. A seguir desligou-se e ele
recebeu uma mensagem menos cortês, preto no branco, de que lhe fora
negado o acesso.
– Merda.
Tentou ligar e desligar a máquina, mas só havia um ecrã branco.
Folheou mais papéis, encontrou uma lista recente dos acionistas da
Phuridell. Um novo acionista, a Ellem Ltd., detinha três por cento das ações.
Ellem. Harry foi acometido por uma ideia louca, mas descartou-a.
Encontrou, ao fundo de uma gaveta, o manual do dispositivo de gravação.
Viu as horas no seu relógio de pulso e suspirou. Tinha de começar a ler. Ao
fim de meia hora, reproduzia a cassete. A voz de Klipra tagarelava em
tailandês a maior parte do tempo, mas ouviu mencionar algumas vezes o
nome da Phuridell. Ao cabo de três horas, desistiu. A conversa com o
embaixador no dia do homicídio não constava em nenhuma das gravações.
Aliás, também não havia mais nenhuma daquele dia. Guardou uma das
cassetes no bolso, desligou a máquina e, à saída, certificou-se de que dava um
pontapé no computador.
45

Sexta-feira, 24 de janeiro

N ão ficou muito afetado. Assistir ao funeral foi o mesmo que a uma


repetição na TV. O mesmo lugar, o mesmo padre, a mesma urna, o
mesmo choque nos olhos quando se sai depois para o sol e as mesmas
pessoas de pé ao cimo das escadas, a olharem umas para as outras, sem
saberem o que fazer. Praticamente as mesmas pessoas. Harry cumprimentou
Roald Bork.
– Lá os encontrou, não é? – Não conseguiu dizer mais nada. Havia um véu
cinzento sobre os seus olhos vivos; parecia mudado, como se o que
acontecera tivesse adicionado anos à sua idade.
– Encontrámo-los.
– Ela era tão jovem.
Mais pareceu uma pergunta. Como se ele quisesse que alguém lhe
explicasse como podia acontecer uma coisa daquelas.
– Que calor – disse Harry, para mudar de assunto.
– Onde se encontra o Ove está mais calor. – Proferiu casualmente as
palavras, no entanto a sua voz possuía um tom duro, amargo. Limpou a testa
com um lenço. – A propósito, apercebi-me de que necessito de fazer uma
pausa deste calor. Vou regressar a casa.
– A casa?
– Sim, à Noruega. O mais rapidamente possível. Telefonei ao meu rapaz e
disse que queria encontrar-me com ele. Já passou tanto tempo que nem me
apercebi de que não foi ele quem atendeu o telefone, mas o filho dele. Eh-eh.
Estou a ficar gagá. Um avô gagá, que bonito.
Sanphet e a menina Ao estavam juntos, afastados dos outros, à sombra da
igreja. Harry foi ter com eles e retribuiu a saudação wai que lhe tinham
dirigido.
– Posso fazer-lhe uma pergunta rápida, menina Ao?
O olhar dela deslocou-se até Sanphet, antes de anuir.
– Costuma selecionar a correspondência da embaixada. Recorda-se de ter
chegado algo de uma empresa chamada Phuridell?
Ela ponderou a pergunta antes de responder com um sorriso pesaroso.
– Não me recordo. São tantas cartas. Posso procurar amanhã no gabinete do
embaixador, se quiser. Deve demorar algum tempo. Ele não era propriamente
uma pessoa arrumada.
– Eu não estava a pensar no embaixador.
Ela lançou-lhe um olhar de perplexidade.
Harry suspirou.
– Nem sequer sei se é importante, mas podia contactar-me, caso
descobrisse algo? – pediu-lhe.
Olhou Sanphet nos olhos.
– Ela fará isso, detetive – disse Sanphet.

Harry estava sentado no gabinete de Liz quando ela entrou por ali adentro
completamente esbaforida. Tinha gotas de suor na testa.
– Oh, meu Deus! – disse ela. – Lá fora sente-se o alcatrão através das solas
dos sapatos.
– Como correu o briefing?
– Bem, presumo. Os chefes congratularam-nos pela resolução do caso e
não fizeram perguntas específicas sobre o relatório. Até engoliram a nossa
patranha das informações anónimas que nos levaram ao Klipra. Se o chefe
suspeitou de alguma coisa, decidiu não fazer alarido.
– Não creio que o fizesse. Afinal, ele não tem nada a lucrar.
– Deteto algum cinismo, senhor Hole?
– De modo algum, menina Crumley. Apenas um jovem detetive ingénuo
que começa a perceber as regras do jogo.
– Talvez, mas, no fundo, devem estar todos satisfeitos com a morte do
Klipra. Se o caso fosse a tribunal, viriam ao de cima algumas verdades
incómodas não só para alguns chefes da Polícia mas também para as
autoridades de ambos os países.
Liz descalçou-se e recostou-se, com ar satisfeito. As molas da cadeira
chiaram enquanto o inconfundível cheiro a chulé se espalhou pela sala.
– Sim, vinha mesmo a calhar para uma série de pessoas, não lhe parece? –
comentou Harry.
– O que quer dizer com isso?
– Não sei. Acho que cheira mal.
Liz olhou para os dedos dos seus pés e depois para Harry.
– Já lhe disseram que você é paranoico, Harry?
– Sim, claro. Mas isso não significa que os homenzinhos verdes não andem
atrás de si, pois não?
Ela pareceu abismada.
– Calma, Harry.
– Vou tentar.
– Afinal, quando é que se vai embora?
– Assim que tiver falado com o patologista e o Laboratório Forense.
– Porque quer falar com eles?
– Só para me livrar da paranoia. Sabe… tive umas ideias malucas.
– Está bem – respondeu Liz. – Já comeu?
– Já – mentiu Harry.
– Que pena, detesto comer sozinha. Não podia ao menos fazer-me
companhia?
– Pode ficar para a próxima?
Harry levantou-se e abandonou o gabinete.

***

O jovem patologista limpou os óculos enquanto falava. Por vezes, as


pausas chegavam a ser tão longas que Harry se perguntou se o lento fluxo de
palavras não teria cessado por completo. Mas depois, lá vinha outra palavra, a
seguir outra, a rolha saltava e ele continuava. Parecia recear que Harry fosse
criticar o seu inglês.
– O homem estava ali há dois dias, no máximo – disse o médico. – Mais
algum tempo, com este calor… – Encheu as bochechas de ar e demonstrou
com os braços – … e teria o aspeto de um enorme balão de gás. E você teria
reparado no cheiro. Quanto à rapariga… – Olhou para Harry e tornou a
encher as bochechas de ar. – Idem.
– Quanto tempo demorou o Klipra a morrer depois do tiro?
O médico humedeceu os lábios e Harry teve a sensação de que conseguia
mesmo sentir o tempo a passar.
– Rapidamente.
– E ela?
O médico da Polícia guardou o lenço de assoar no bolso.
– Imediatamente.
– Quero dizer, há hipótese de algum deles se ter mexido depois do tiro, ter
tido convulsões ou algo do género?
O médico colocou os óculos, assegurou-se de que estavam direitos e voltou
a tirá-los.
– Não.
– Li que, durante a Revolução Francesa, antes de existir a guilhotina,
quando as execuções ainda se efetuavam manualmente, os condenados eram
avisados de que, por vezes, o carrasco falhava e, se eles conseguissem
levantar-se e abandonar o cadafalso, era-lhes devolvida a liberdade. Consta
que alguns tentavam levantar-se sem cabeça e dar vários passos, mas depois
caíam, para tremendo gáudio da multidão, claro. Se a memória não me falha,
um cientista explicou que o cérebro pode, de certa forma, estar pré-
programado e os músculos continuarem a funcionar enquanto grandes
quantidades de adrenalina chegam ao coração antes de a cabeça ser cortada. É
isso que acontece quando os frangos são decapitados.
O médico sorriu de satisfação.
– Muito divertido, detetive. – Mas, infelizmente isso são histórias da
carochinha.
– Nesse caso, como explica isto?
Entregou ao médico uma fotografia que mostrava Klipra e Runa estendidos
no chão. O médico olhou para a fotografia, depois colocou os óculos e
examinou-a em pormenor.
– Explico o quê?
Harry apontou para a fotografia.
– Olhe para ali. A mão está coberta pelo cabelo dela.
O médico pestanejou, como se uma partícula de poeira no olho não o
deixasse ver ao que Harry se referia.
Harry enxotou uma mosca.
– Oiça, sabe que o seu subconsciente consegue retirar instintivamente
conclusões, não sabe?
O médico encolheu os ombros.
– Bem, sem se dar conta disso, o meu concluiu que o Klipra devia estar ali
estendido quando se suicidou, porque seria a única forma de ele poder ter a
mão debaixo do cabelo dela. Mas o ângulo do tiro mostra que ele estava de
pé. Como é possível tê-la alvejado e depois a si próprio e, no entanto, o
cabelo dela estar por cima e não por baixo da mão dele?
O médico tirou os óculos e recomeçou a limpá-los.
– Talvez tenha sido ela a matar os dois – referiu, mas nessa altura Harry já
lá não estava.

Harry tirou os óculos de sol e olhou de soslaio, incomodado pela claridade,


para o restaurante na sombra. Uma mão agitou-se no ar e ele encaminhou-se
para uma mesa debaixo de uma palmeira. Quando o homem se levantou, uma
faixa de sol fez com que as armações metálicas dos seus óculos brilhassem.
– Vejo que recebeu a mensagem – disse Dagfinn Torhus.
Um casaco pendia nas costas da cadeira e a camisa dele apresentava
grandes círculos escuros debaixo dos braços.
– A inspetora Crumley disse-me que tinha ligado. O que o traz aqui? –
inquiriu Harry, estendendo uma mão.
– Obrigações burocráticas na embaixada. Cheguei esta manhã para
despachar alguma papelada. E preciso de nomear um novo embaixador.
– A Tonje Wiig?
Torhus esboçou um sorriso fraco.
– Veremos. Existem imensas coisas a ponderar. O que se come aqui?
Um empregado encontrava-se já junto à mesa deles, e Harry ergueu o
olhar, inquiridor.
– Enguias – disse o empregado. – Especialidade vietnamita. Com vinho
rosé vietnamita e…
– Não, obrigado – respondeu Harry, inspecionando a ementa e apontando
para a sopa de leite de coco. – Com água mineral, se faz favor.
Torhus encolheu os ombros e indicou o mesmo.
– Parabéns. – Torhus colocou um palito entre os dentes. – Está então de
partida?
– Muito obrigado, mas infelizmente as felicitações são um pouco
prematuras, Torhus. Ainda há umas pontas soltas que têm de ser atadas.
O palito imobilizou-se.
– Arrume as suas coisas e vá-se embora.
– Não é assim tão fácil.
Os olhos azuis duros do burocrata chisparam.
– Acabou, percebeu? O caso foi desvendado. Ontem nas primeiras páginas
dos jornais em Oslo podia ler-se que o Klipra matou o embaixador e a filha
dele. Havemos de sobreviver, Hole. Presumo que se esteja a referir ao chefe
da Polícia em Banguecoque, que diz que não encontram motivo para tal e que
o Klipra deve ter enlouquecido. Tão simples e tão absolutamente
incompreensível. Mas o mais importante é que as pessoas acreditem. E elas
estão a acreditar.
– Nesse caso, o escândalo foi evitado?
– Sim e não. Conseguimos abafar aquilo do motel. O mais importante é que
o primeiro-ministro não seja envolvido num escândalo. Agora temos outras
preocupações em mente. A imprensa anda a ligar-nos para saber por que
razão a notícia da morte do embaixador não foi tornada pública mais cedo.
– E o que responde a isso?
– O que raio posso responder? Que houve problemas de comunicação,
equívocos, que inicialmente a Polícia tailandesa nos enviou informações
incompletas, esse tipo de coisa.
– E eles vão engolir isso?
– Não vão, não. Mas também não podem acusar-nos de desinformação. No
comunicado à imprensa, afirma-se que o embaixador foi encontrado morto
num hotel e isso está correto. O que disse quando encontrou a filha e o
Klipra, Hole?
– Não disse. – Harry inspirou fundo algumas vezes. – Oiça, Torhus,
encontrei duas revistas pornográficas em casa do Klipra, que indiciam que ele
era pedófilo. Isso não foi mencionado em nenhum relatório da Polícia.
– A sério? Ora, ora. – Nem por um instante a voz deixou transparecer que
estivesse a encobrir algo. – De qualquer modo, você já não tem nenhuma
missão aqui na Tailândia, e o Møller quer que regresse o mais depressa
possível.
Colocaram sopa de coco a ferver em cima da mesa e Torhus olhou
desconfiado para ela. Ficou com os óculos embaciados.
– O Verdens Gang vai tirar-lhe uma fotografia bonita quando você chegar
ao Aeroporto de Fornebru – disse, em tom acrimonioso.
– Experimente uma das vermelhas – sugeriu Harry, apontando.
46

Sexta-feira, 24 de janeiro

N a opinião de Liz, Supawadee era a pessoa que resolvera mais casos de


homicídio na Tailândia. Os seus instrumentos mais importantes eram
um microscópio, uns tubos de ensaio e papel de tornassol77. Sentado em
frente a Harry, sorria radiosamente.
– Isso está correto, Harry. Os pedaços de reboco de cal que nos trouxe
contêm a mesma solução de água de cal que o pó na chave de fendas que
encontraram na mala do carro do embaixador.
Ao invés de se contentar em responder sim ou não às questões de Harry,
repetia todas as perguntas, para que não houvesse o menor equívoco.
Supawadee possuía um excelente domínio de linguística; sabia que, em
inglês, as perguntas e as respostas podiam ser complicadas para um tailandês.
Se Harry tivesse apanhado o autocarro errado na Tailândia, começando a
duvidar de si mesmo e perguntasse a outro passageiro: «Este não é o
autocarro para Hua Lamphong, pois não?» com a tónica e a entoação
corretas, o tailandês poderia ter respondido «sim», no sentido de «sim, o
senhor tem razão, este não é o autocarro para Hua Lamphong». Os farangs
sabem que isto acontece. E Supawadee sabia, por experiência, que a maioria
dos farangs, sendo menos inteligente, não se apercebia da forma como
funcionavam as perguntas, por isso, chegara à conclusão de que era preferível
dar a resposta completa às mesmas.
– Isso também está correto, Harry. O conteúdo do saco do aspirador na
cabana do Klipra revelou-se muito interessante. Continha fibras da alcatifa da
mala do carro do embaixador e também do casaco do Klipra.
Harry tomou nota daquilo com crescente entusiasmo.
– Então e as duas cassetes que lhe enviei. Mandou-as para Sydney?
Supawadee sorriu ainda mais, se tal fosse possível, pois era a parte que lhe
agradava sobremaneira.
– Estamos no século XX, detetive, não enviamos cassetes. Levam pelo
menos quatro dias a chegar. Passámo-las para uma cassete de gravação digital
e enviámos as gravações por e-mail a este vosso perito de som.
– Credo, você consegue fazer isso? – perguntou Harry, em parte para
deixar Supawadee feliz e em parte resignado. Os maluquinhos dos
computadores faziam-no sempre sentir-se velho. – E o que disse o Jésus
Marguez?
– De início, eu disse-lhe que era completamente impossível saber de que
tipo de divisão estava alguém a telefonar, com base numa mensagem deixada
no gravador de chamadas. Mas o seu amigo foi extremamente persuasivo.
Falou imenso sobre domínios de frequência e hertz, o que foi muito
instrutivo. Sabia, por exemplo, que, num microssegundo, o ouvido consegue
distinguir entre um milhão de sons diferentes? Acho que ele e eu podía…
– A conclusão, Supawadee?
– A conclusão dele foi que as duas gravações são de duas pessoas
diferentes. No entanto, é muito provável que tenham sido gravadas na mesma
divisão.
Harry sentiu os seus batimentos cardíacos acelerarem.
– Então e a carne na arca congeladora?
– Está novamente correto, Harry. A carne na arca congeladora era de
porco.
Supawadee piscou os olhos e riu de puro júbilo. Harry sabia que vinha aí
mais.
– E?
– Mas o sangue não era só de porco. Parte dele era humano.
– E sabe de quem?
– Bem, serão necessários alguns dias até eu obter a resposta definitiva do
teste de ADN, por isso, apenas posso dar-lhe uma resposta provisória com
noventa por cento de rigor.
Harry estava convencido de que, se Supawadee tivesse uma trombeta,
primeiro certamente tinha tocado uma fanfarra.
– O sangue é do nosso amigo, nai78 Klipra.
Harry conseguiu finalmente apanhar Jens no escritório.
– Como vai isso, Jens?
– Bem.
– Tem a certeza?
– O que quer dizer com isso?
– Você parece… – Harry não conseguiu encontrar uma palavra para o que
ele parecia. – Parece um pouco triste – disse.
– Sim. Não. Não é fácil de dizer. Ela perdeu toda a família e… – A voz
dele enfraqueceu gradualmente.
– E você?
– Não comece.
– Vá lá, Jens.
– Mesmo que eu quisesse desistir deste casamento, agora seria
completamente impossível.
– E porquê?
– Meu Deus, ela não tem mais ninguém senão eu, Harry. Por isso, sei que
devia estar a pensar nela e em tudo aquilo por que passou, mas só estou a
pensar em mim e naquilo em que me vou meter. Obviamente, sou uma má
pessoa, mas tudo isto me assusta. Consegue entender?
– Acho que sim.
– Raios, se fosse apenas uma questão de dinheiro, ainda conseguia
entender. Mas estes… – Procurou a palavra.
– Sentimentos? – sugeriu Harry.
– Isso mesmo. É uma grande merda. – Riu-se sem alegria. – De qualquer
forma, tomei a decisão de, ao menos uma vez na vida, fazer algo que não me
diz respeito só a mim. E quero que você esteja presente e me dê um pontapé
no traseiro se detetar o mais ínfimo sinal de resistência. A Hilde precisa de
pensar noutras coisas, por isso já marcámos a data. O dia 4 de abril. Páscoa
em Banguecoque. Parece-lhe bem? Ela já começa a ficar mais animada e está
meio decidida a beber menos. Vou enviar-lhe o bilhete pelo correio, Harry.
Lembre-se de que estou a contar consigo, por isso, não se atreva a voltar com
a palavra atrás.
– Se sou o seu melhor candidato a padrinho, nem quero imaginar como é a
sua vida social, Jens.
– Enganei todos aqueles que conheço pelo menos uma vez na vida. Não
quero nenhuma dessas histórias no discurso do padrinho, pode ser?
Harry soltou uma gargalhada.
– Está bem, dê-me uns dias para matutar no assunto. No entanto, estou a
telefonar-lhe para lhe pedir um favor. Estou a tentar descobrir algo sobre um
dos donos da Phuridell, uma empresa conhecida como Ellem Ltd., mas no
registo da empresa só consigo encontrar uma caixa postal em Banguecoque e
a confirmação de que o capital social já foi pago.
– Deve ser um proprietário relativamente recente. Nunca ouvi o nome. Vou
fazer uns telefonemas e ver se consigo desencantar alguma coisa. Depois
ligo-lhe.
– Não, Jens. Isto é estritamente confidencial. Só eu, a Liz e o Løken temos
conhecimento, por isso, não deve mencioná-lo a ninguém. Ninguém mais na
Polícia está a par do assunto. Esta noite vamos reunir-nos os três em segredo,
por isso, seria ótimo se já soubesse algo nessa altura. Eu telefono-lhe, está
bem?
– Está bem. Isto parece sério. Julguei que o caso tinha sido concluído com
êxito.
– Esta noite será.

O som dos martelos pneumáticos na rocha era ensurdecedor.


– O senhor é o George Walters?
Harry gritou ao ouvido do homem com o capacete de proteção amarelo,
que os trabalhadores de fato-macaco lhe tinham indicado.
Ele virou-se para Harry.
– Sim, e quem é o senhor?
Vinte metros abaixo deles, o trânsito arrastava-se a passo de caracol. Ia ser
outra tarde de engarrafamento.
– Detetive Hole. Da Polícia norueguesa.
Walters enrolou um esboço técnico e entregou-o a um dos dois homens a
seu lado.
– Ah, sim.
Fez sinal de pausa ao homem do martelo pneumático e quando ele desligou
a máquina instalou-se um relativo silêncio como um filtro nos tímpanos.
– Um Wacker – disse Harry. – LHV5.
– Oh, não me diga que já o conhecia?
– Há uns anos, tive um emprego de verão numa obra. Fiquei com os rins
moídos por causa de um deles.
Walters anuiu. O sol descolorara-lhe as sobrancelhas, deixando-as brancas,
e tinha um ar cansado. Já se viam rugas no seu rosto de meia-idade.
Harry apontou para a estrada de betão que se estendia como um aqueduto
romano por um deserto petrificado de casas e arranha-céus.
– Com que então isto é o BERTS, a salvação de Banguecoque?
– É – respondeu Walters, olhando na mesma direção que Harry. – Está em
cima dele neste momento.
A reverência na voz do homem, aliada ao facto de se encontrar ali e não
num gabinete, disse a Harry que o chefe da Phuridell era mais feliz a
trabalhar na obra do que a tratar da burocracia. Era mais excitante ver o
projeto ganhar forma do que envolver-se demasiado na resolução da dívida
em dólares da empresa.
– Faz lembrar a Grande Muralha da China – observou Harry.
– Isto vai aproximar as pessoas, e não afastá-las.
– Vim aqui falar-lhe sobre o Klipra e este projeto. E a Phuridell.
– Uma tragédia – disse Walters, sem especificar a que elemento em
particular se referia.
– Conhecia o Klipra, senhor Walters?
– Eu não iria tão longe. Encontrámo-nos em diversas reuniões da
administração e ele telefonou-me algumas vezes. – Walters colocou uns
óculos de sol. – Apenas isso.
– Ele telefonou-lhe algumas vezes? A Phuridell não é uma empresa de
grandes dimensões?
– Mais de oitocentos empregados.
– O senhor é responsável por isto e está a dizer-me que mal falou com o
dono da empresa para a qual trabalha?
– Bem-vindo ao mundo dos negócios.
Walters observou a estrada e a cidade como se tudo o resto não lhe dissesse
respeito.
– Ele investiu imenso dinheiro na Phuridell. Está a tentar dizer-me que ele
não se interessava?
– Como é óbvio não tinha quaisquer objeções quanto à forma como a
empresa estava a ser administrada.
– E sabe alguma coisa sobre uma empresa chamada Ellem Ltd.?
– Vi o nome na lista de acionistas. Ultimamente, tivemos outros assuntos
em mente.
– Como resolver o problema da dívida em dólares?
Walters virou-se novamente para Harry. Viu uma versão distorcida de si
mesmo nos óculos de sol.
– O que sabe sobre esse assunto?
– Sei que a sua empresa precisa de se recapitalizar para continuar a
funcionar. O senhor não é obrigado a dar informações pois o seu nome já não
consta da lista na bolsa de valores, por isso pode esconder os seus problemas
do mundo exterior durante uns tempos, esperando que apareça um salvador
com novo capital. Seria frustrante desistir, agora que está em posição de obter
mais contratos com o BERTS, não é verdade?
Walters fez sinal aos engenheiros para que fizessem uma pausa.
– O meu palpite é que este salvador vai aparecer – prosseguiu Harry. – Vai
comprar a empresa por tuta e meia e provavelmente ficará muito rico quando
os contratos começarem a chegar. Quantas pessoas têm conhecimento da
situação real da empresa?
– Oiça lá, amigo…
– Hole. O conselho de administração, claro. Mais alguém?
– Informámos todos os donos. Para além disso, não vemos motivo para
informar toda a gente de assuntos que não lhes dizem respeito.
– Quem pensa que vai comprar a empresa, senhor Walters?
– Eu sou o diretor administrativo – ripostou Walters. – Fui contratado pelos
acionistas. Não me envolvo em questões de propriedade.
– Mesmo que isso pudesse levar ao despedimento de oitocentos
trabalhadores? Mesmo que não o deixem dar continuidade a este projeto? –
Harry indicou com a cabeça o betão que desaparecia na bruma. – Walters não
respondeu. – Na verdade, talvez seja mais a Estrada de Tijolos Amarelos. De
O Feitceiro de Oz79, conhece? – George Walters anuiu lentamente. – Oiça,
senhor Walters, telefonei ao solicitador do Klipra e a alguns pequenos
acionistas que voltaram. Nos últimos dias, a Ellem Ltd. comprou as vossas
ações na Phuridell. Nenhum dos outros teria condições para recapitalizar a
Phuridell, e assim, estão satisfeitos por terem deixado uma empresa sem
perderem todo o investimento. Diz que não está interessado nos donos,
senhor Walters, mas parece-me um homem responsável. E a Ellem é o seu
novo dono.
Walters tirou os óculos de sol e esfregou os olhos com as costas da mão.
– Vai dizer-me quem está por detrás da Ellem Ltd., senhor Walters?
Os martelos pneumáticos retomaram a sua atividade e Harry teve de se
aproximar dele para ouvir.
Harry anuiu.
– Era tudo o que queria ouvir – respondeu, gritando também.
77 Matéria corante extraída de uma espécie de líquene e usada como indicador químico (fica vermelho
em meio ácido e azul em meio alcalino) e na preparação deste papel. (N. da T.)

78 Em tailandês no original: senhor. (N. da T.)

79 É um conto infantil escrito por L. Frank Baum, o primeiro de uma série de catorze livros, onde se
relatam as aventuras de uma menina, Dorothy Gale, do Kansas, na fantástica Terra de Oz. Ansiando
voltar para casa, a menina recebe dos habitantes do estranho lugar a orientação de que deveria procurar
a ajuda do Feiticeiro de Oz, na Cidade Esmeralda. O caminho era o mais fácil – bastava seguir a longa
estrada de tijolos amarelos, que atravessava o país. Tem, então, início a longa jornada através da Terra
de Oz. (N. da T.)
47

Sexta-feira, 24 de janeiro

I var Løken sabia que era o fim. Nem uma só fibra do seu corpo cedera, mas
era o fim. O pânico chegara em ondas, apoderara-se dele e abandonara-o.
E sempre soubera que a sua hora ia chegar. Fora uma conclusão
absolutamente intelectual, porém, a certeza escorreu por ele como gelo a
derreter. Quando caíra na armadilha em My Lai e ficara ali com uma estaca
de bambu a cheirar a merda atravessada na coxa e outra espetada no pé até ao
joelho, nem por um segundo pensara que ia morrer. Quando estava deitado a
arder em febre no Japão e lhe disseram que iam ter de lhe amputar o pé, ele
respondera que preferia morrer, no entanto, sabia que a morte não era uma
alternativa, era impossível. Quando lhe tinham trazido o anestésico, ele fizera
saltar a seringa da mão do enfermeiro.
Uma idiotice. Afinal tinham-lhe deixado ficar o pé. Enquanto houver dor
haverá vida, rabiscara na parede por cima da cama. Passara quase um ano no
hospital em Okabe, antes de vencer a luta contra a infeção no sangue.
Disse a si próprio que vivera uma longa vida. Longa. Podia dizer-se que era
um feito. E vira quem tivesse passado por muito pior. Para quê resistir,
então? O seu corpo recusou-se, tal como se recusara toda a sua vida.
Recusara-se a pisar o risco quando o desejo o movera, recusara-se a deixar
que o vergassem quando o exército o demitira, recusara-se a sentir pena de si
próprio quando a humilhação o fustigara e reabrira as feridas. Acima de tudo,
recusara-se a fechar os olhos. Por esse motivo, absorvera tudo: guerras,
sofrimento, brutalidade, coragem e humanidade. De tal forma que, podia
afirmar, sem receio de se contradizer, que vivera uma longa vida. Nem
mesmo naquele momento fechou os olhos; mal pestanejou. Løken sabia que
ia morrer. Se lhe restassem lágrimas, tinha-as vertido.

Liz olhou para o seu relógio de pulso. Eram oito e meia, e ela e Harry
estavam sentados no Millie’s Karaoke há cerca de uma hora. Na fotografia,
até Madonna começava a dar mostras de impaciência em vez de desejo.
– Onde é que ele está? – perguntou ela.
– O Løken virá – disse Harry.
Estava de pé junto à janela; levantara a persiana e via o seu próprio reflexo
iluminado pelos faróis dos carros que se arrastavam na Silom Road.
– Quando foi que falou com ele?
– Logo depois de ter falado consigo. Estava em casa, a arrumar as
fotografias e o equipamento fotográfico. O Løken virá.
Pressionou as costas das mãos sobre os olhos. Estavam irritados e
vermelhos desde que acordara naquele dia.
– Vamos começar – disse ele.
– O que quer dizer com isso?
– Temos de rever tudo – disse Harry. – Uma última reconstrução.
– Está bem. Mas porquê?
– Liz, nós seguimos sempre o caminho errado.
Soltou o cordão, a persiana desceu bruscamente e foi como se algo tivesse
caído através de folhagem espessa.

Løken estava sentado numa cadeira. Em cima da mesa, diante dele,


encontrava-se uma fila de facas. Cada uma delas era capaz de matar um
homem em segundos. Na verdade, era estranho que fosse tão fácil matar
outro ser humano. Tão fácil que, por vezes, parecia incrível que a maior parte
das pessoas conseguisse chegar a uma idade tão avançada. Um movimento
circular, como descascar uma laranja, e a garganta era cortada. O sangue
jorrava a tal velocidade que a morte ocorria em segundos, pelo menos se o
homicídio fosse perpetrado por alguém mestre no seu ofício.
Já uma punhalada nas costas requeria maior precisão. Era possível dar vinte
ou trinta estocadas sem atingir nada em particular; estando apenas a retalhar
inofensivamente carne humana. No entanto, para quem tivesse
conhecimentos de anatomia, ou soubesse perfurar um pulmão ou o coração,
era uma brincadeira de crianças. Se se apunhalasse pela frente, era preferível
apontar baixo e puxar para cima, de forma a entrar sob a caixa torácica e
atingir órgãos vitais. Contudo, era mais fácil pelas costas, desde que se
visasse a parte lateral da espinha.
E era fácil alvejar alguém? Muito fácil. A primeira vez que ele tinha
matado fora na Coreia, com uma semiautomática. Fizera pontaria, puxara o
gatilho e vira um homem cair. Já estava. Sem nunca ter problemas de
consciência, pesadelos ou esgotamentos nervosos. Talvez porque se travava
de uma guerra, mas ele não acreditava que fosse só essa a explicação. Se
calhar, faltava-lhe empatia? Um psicólogo explicara-lhe que ele era um
pedófilo porque tinha a alma danificada. Podia muito bem ter dito malévola.

– Muito bem, agora ouça com atenção. – Harry sentara-se diante de Liz. –
No dia do homicídio, o carro do embaixador deslocou-se a casa do Ove
Klipra, mas o embaixador não ia ao volante.
– Não ia?
– Não. O segurança não se lembra de ver ninguém de fato amarelo.
– E?
– Você viu o fato, Liz. Ao pé dele, um funcionário de uma bomba de
gasolina não daria tanto nas vistas. Acha que conseguia esquecer-se de um
fato daqueles?
Ela abanou a cabeça, e Harry prosseguiu.
– O motorista estacionou o carro na garagem, tocou à campainha ao lado da
porta e, quando o Klipra abriu, provavelmente deparou-se com uma arma
apontada. A visita entrou, fechou a porta e pediu educadamente ao Klipra que
abrisse a boca.
– Educadamente?
– Estou a tentar dar um pouco de colorido à história. Pode ser?
Liz franziu os lábios e colocou um dedo sobre eles.
– Depois, introduziu o cano da arma, ordenou ao Klipra que cravasse os
dentes e disparou, a sangue-frio, impiedosamente. A bala saiu pela nuca do
Klipra e cravou-se na parede. O assassino limpou o sangue e… bem, você
sabe que fica tudo sujo.
Liz anuiu e fez-lhe sinal para prosseguir.
– Em suma: a pessoa misteriosa eliminou todos os vestígios. No fim, foi
buscar a chave de parafusos à mala do carro e serviu-se dela para retirar a
bala da parede.
– Como é que sabe isso?
– Encontrei gesso no chão do hall e um buraco deixado pela bala. A equipa
forense provou que é a mesma solução de água de cal que encontrámos na
chave de parafusos dentro da mala do carro.
– E depois?
– Depois, o assassino foi-se embora no carro e moveu o corpo do
embaixador para poder voltar a colocar a chave de parafusos no lugar.
– Portanto, ele já tinha matado o embaixador?
– Já voltamos a isso mais tarde. O assassino vestiu o fato do embaixador,
depois entrou no escritório do Klipra, levou um dos dois punhais dos Shan e
as chaves do esconderijo. Fez também um telefonema rápido do escritório do
Klipra e levou consigo a cassete com a conversa gravada. Depois, meteu o
corpo do Klipra na mala do carro e foi-se embora por volta das oito.
– Isto é muito difícil de acompanhar, Harry.
– Às oito e meia registou-se no motel do Wang Lee.
– Vá lá, Harry. O Wang Lee identificou o embaixador como a pessoa que
se registara.
– O Wang Lee não tinha motivos para suspeitar que o homem morto em
cima da cama não era a mesma pessoa que se registara. Ele apenas viu um
farang com um fato amarelo escondido atrás de uns óculos de sol. E não se
esqueça de que o embaixador tinha um incómodo punhal a sair-lhe das costas
quando Wang Lee teve de o identificar.
– Sim, então e o punhal?
– Sim, o embaixador foi morto com uma faca, mas muito antes de
chegarem ao motel. Uma faca dos Sami, imagino, visto estar suja de gordura
de rena. Pode comprar-se essa faca em qualquer sítio do condado de
Finnmark, na Noruega.
– Mas o médico disse que o ferimento correspondia ao do punhal dos
Shan.
– Bem, e correspondia. O punhal dos Shan tem uma lâmina mais comprida
e larga do que a faca dos Sami, por isso é impossível saber qual delas foi
usada primeiro. Acompanhe o meu raciocínio. O assassino veio ao motel com
dois corpos na mala, pediu um quarto o mais distante possível da receção,
para que pudesse arrumar o carro de marcha-atrás e transportar o Molnes
alguns metros até ao quarto. Pediu também para não ser incomodado até
comunicar que estava pronto. No quarto, voltou a mudar de roupa e vestiu o
fato ao embaixador. Mas como estava sob pressão, fez asneira. Lembra-se de
eu ter comentado que o embaixador ia certamente encontrar-se com uma
mulher porque tinha apertado o cinto dois furos acima do que era normal?
Liz emitiu um estalido encostando a língua ao palato.
– O assassino não reparou na marca do furo quando estava a apertar o
cinto.
– Um erro de pequena monta, nada que pudesse denunciá-lo, mas um dos
muitos aspetos triviais que contribuem para que este homicídio não bata
certo. Enquanto o Molnes estava em cima da cama, ele cravou
cuidadosamente o punhal dos Shan no ferimento prévio, antes de limpar o
cabo e eliminar quaisquer vestígios.
– Isto também explica por que motivo não havia muito sangue no quarto do
motel. Ele foi morto noutro sítio. Como é que o médico não se apercebeu
disso?
– É sempre difícil saber quanto sangue origina uma facada. Depende das
artérias que são cortadas e até que ponto a lâmina não estanca o fluxo. Não é
nada que pareça fora do vulgar. Por volta das nove, ele abandonou o motel
com o Klipra na mala e dirigiu-se ao esconderijo deste último.
– Ele sabia onde ficava a casa? Nesse caso, devia conhecer o Klipra.
– Conhecia-o bem.

Uma sombra incidiu sobre a mesa e um homem sentou-se diante de Løken.


A varanda deixava entrar o ruído ensurdecedor do trânsito lá fora e toda a
sala tresandava ao fumo dos escapes.
– Está preparado? – perguntou Løken.
O gigante de trança fitou-o, manifestamente surpreendido por ele falar
tailandês.
– Estou preparado – respondeu ele.
Løken, pálido, sorriu. Sentia-se muito cansado.
– Afinal do que está à espera? Despache-se lá.
– Quando ele chegou ao esconderijo do Klipra, correu a fechadura da porta
e meteu-o na arca congeladora. De seguida, lavou e aspirou a mala do carro
para que não restassem quaisquer vestígios dos corpos.
– Muito bem, mas como é que sabe isto?
– O Laboratório Forense encontrou sangue do Klipra na arca congeladora e
fibras da mala do carro e das roupas dos dois homens mortos no aspirador.
– Credo! Pelos vistos, o embaixador não era assim tão obcecado com a
arrumação, como afirmou quando examinámos o carro?
Harry sorriu.
– Eu percebi que o embaixador não era uma pessoa arrumada e organizada
quando vi o gabinete dele.
– Será que ouvi bem? Está a admitir que cometeu um erro?
– Sim, ouviu. – Harry levantou um dedo indicador. – Mas o Klipra era
arrumado e organizado. Na cabana estava tudo muito limpo e muito
organizado, recorda-se? Até havia um suporte no armário para pendurar o
aspirador. Porém, quando abri a porta do armário, ele saltou cá para fora.
Como se a pessoa que o usara da última vez não conhecesse os cantos à casa.
Foi isso que me chamou a atenção e me fez mandar o saco do aspirador para
o Laboratório Forense.
Liz abanou lentamente a cabeça enquanto Harry prosseguia.
– Mas, quando vi a carne na arca apercebi-me de que era muito fácil
guardar um homem morto lá dentro durante semanas sem que o corpo… –
Harry encheu as bochechas de ar e exemplificou com as mãos.
– Você tem um problema qualquer – disse Liz. – Devia consultar um
médico.
– Quer ouvir o resto ou não?
Ela quis.
– Depois, ele regressou ao motel, estacionou o carro e entrou no quarto
onde colocou as respetivas chaves no bolso do Molnes. A seguir, desapareceu
na noite sem deixar rasto. Literalmente.
– Calma aí! Quando fomos à cabana demorámos noventa minutos à ida,
certo? É mais ou menos a mesma distância daqui. A nossa amiga Dim
encontrou-o às onze e meia, portanto, segundo você, duas horas e meia
depois de o assassino abandonar o motel. Era impossível que ele tivesse
regressado ao motel antes de o corpo do Molnes ser encontrado. Ou já se
esqueceu desse pormenor?
– De modo algum. Eu até efetuei o percurso. Saí às nove, esperei meia hora
na cabana e regressei.
– E?
– Estava de volta à meia-noite e um quarto.
– Estou a ver. Não bate certo.
– Recorda-se do que disse a Dim sobre o carro quando a interrogámos?
Liz mordeu o lábio superior.
– Ela não se lembrava de nenhum carro – afirmou Harry. – Porque ele não
estava lá. À meia-noite e um quarto eles estavam na receção à espera da
Polícia e não se aperceberam da chegada sorrateira do carro do embaixador.
– Cristo, julguei que estivéssemos a lidar com um assassino cuidadoso. A
Polícia podia estar à espera quando ele regressasse.
– Ele foi cuidadoso, mas não podia prever que o crime ia ser descoberto
antes do seu regresso. O combinado era que a Dim não entrasse no quarto
enquanto ele não lhe ligasse, não era? Mas o Wang Lee ficou impaciente e
por pouco não estragou todo o plano. O assassino não terá desconfiado de
nada quando veio devolver as chaves do carro.
– Nesse caso, foi pura sorte?
– Este homem não brinca com a sorte.

Ele deve ser manchu80, pensou Løken. Talvez da província de Jilin81.


Durante a Guerra da Coreia, tinham-lhe contado que o Exército Vermelho
recrutara muitos soldados de lá por serem bastante altos. Fosse qual fosse a
lógica, a verdade é que eles se afundavam mais na lama e eram os maiores
alvos. A outra pessoa na sala encontrava-se por detrás dele a cantarolar uma
canção. Løken era capaz de jurar que lhe parecia ser I Wanna Hold Your
Hand82.
O chinês pegara numa faca que estava em cima da mesa, se é que se pode
chamar faca a um sabre curvo com setenta centímetros. Tomou-lhe o peso
nas mãos, tal como um jogador de basebol escolhe um bastão, depois ergueu-
a acima da cabeça, sem proferir uma palavra. Løken cerrou os dentes.
Simultaneamente, a agradável sonolência da sua sedação com barbitúrico
passou-lhe, o sangue gelou-se-lhe nas veias e ele perdeu o autocontrolo.
Quando gritou e puxou as tiras de couro que lhe prendiam as mãos à mesa, o
cantarolar aproximou-se por detrás. Uma mão agarrou-lhe o cabelo, puxou
bruscamente a cabeça para trás e uma bola de ténis foi-lhe enfiada na boca.
Sentiu a superfície peluda na língua e no palato; atraía a si a saliva como um
mata-borrão e os gritos dele tornaram-se fracos gemidos.
O torniquete à volta do antebraço estava tão apertado que há muito deixara
de ter sensibilidade na mão e, quando o sabre desceu com uma pancada surda
e não sentiu nada, julgou, por um instante, que tivessem falhado. Depois viu a
sua mão direita do outro lado da mesa. Estivera crispada e abria-se devagar
naquele momento. Fora um golpe limpo. Conseguia ver dois ossos brancos
cortados a saírem de lá. O rádio e o cúbito. Vira-os noutras pessoas, mas
nunca em si próprio. Por causa do torniquete, não havia muito sangue. Não
era verdade o que diziam as pessoas, que as amputações súbitas não doem. A
dor era insuportável. Ficou à espera do choque, do estado paralisante de
inexistência, mas essa via fora imediatamente encerrada. O homem que
estivera a cantarolar espetou-lhe uma seringa no braço, através da camisa,
sem tentar sequer encontrar uma veia. Era o que a morfina tinha de bom.
Funcionava onde quer que fosse injetada. Estava ciente de que podia
sobreviver àquela provação. Por muito tempo. Enquanto ele quisesse.

– Então e a Runa Molnes?


Liz palitava os dentes com um fósforo.
– Ele pode tê-la ido buscar quando muito bem lhe apeteceu – disse Harry.
– E a seguir levou-a para o esconderijo do Klipra. O que aconteceu depois
disso?
– O sangue e o orifício da bala na janela sugerem que ela foi alvejada
dentro da cabana. Provavelmente assim que chegaram.
Quase não lhe custava falar dela assim, como uma vítima de homicídio.
– Isso não faz sentido – disse Liz. – Porque a raptou e matou logo a seguir?
Pensei que o objetivo era usá-la para impedir a sua investigação. Ele só podia
fazer isso se a Runa Molnes estivesse viva. Você podia exigir uma prova de
que ela estava bem antes de se sujeitar às exigências dele.
– E como me sujeitaria eu às exigências dele? – perguntou Harry. –
Voltando para a Noruega, e depois a Runa ia para casa toda sorridente? E o
raptor podia respirar de alívio só porque eu tinha prometido que iam deixá-lo
em paz, embora ele não tivesse outra forma de pressionar? Era assim que via
o desenrolar dos acontecimentos? Pensou que ele ia simplesmente deixá-
la…?
Harry reparou nos olhos de Liz e apercebeu-se de que levantara a voz.
Decidiu calar-se.
– Não pensei, não. Estou a falar do que o assassino estava a pensar – disse
Liz, ainda de olhos cravados nele. A ruga de preocupação na testa voltara.
– Peço desculpa, Liz. – Pressionou o maxilar com as pontas dos dedos. –
Devo estar cansado.
Levantou-se e reaproximou-se da janela. O frio lá dentro e o ar quente e
húmido no exterior da vidraça tinham-se unido para produzir uma fina
camada cinzenta de condensação no vidro.
– Ele não a raptou por recear que eu descobrisse mais do que devia. Ele não
tinha motivos para acreditar em tal; eu não conseguia ver um palmo diante do
nariz.
– Nesse caso, qual foi o motivo do rapto? Para confirmar a nossa teoria de
que foi o Klipra quem esteve por detrás do homicídio do embaixador e do
Jim Love?
– Esse foi o motivo secundário – disse ele para o vidro. – O principal foi
que ele também tinha de a matar. Quando eu…
Conseguiam ouvir os sons ténues de um baixo na sala ao lado.
– Sim, Harry?
– Quando eu a vi, ela já estava condenada.
Liz inspirou.
– São quase nove horas, Harry. Não seria melhor contar-me quem é o
assassino antes de o Løken chegar?

Às sete, Løken trancara a porta do seu apartamento e descera a rua para


apanhar um táxi para o Millie’s Karaoke. Vira de imediato o carro. Era um
Toyota Corolla, e o homem ao volante parecia encher todo o veículo.
Detetou, no lugar do pendura, a silhueta de outra pessoa. Perguntou-se se
devia aproximar-se do carro e descobrir o que queriam, no entanto, decidiu
pô-los primeiro à prova. Julgava saber o que pretendiam e quem os mandara.
Løken mandou parar um táxi e, depois de ele ter percorrido alguns
quarteirões, viu que o Toyota Corolla efetivamente os seguia.
O taxista apercebeu-se de que o farang lá atrás não era um turista e não
mencionou a oferta de massagem. Porém, quando Løken lhe pediu que
fizesse alguns desvios, o taxista reviu, ao que tudo indicava, a sua opinião.
Løken olhava para ele através do espelho.
– Ver vistas, senhor?
– Sim, ver algumas vistas.
Passados dez minutos já não havia a menor dúvida. O plano era,
evidentemente, que Løken levasse os dois polícias ao local do encontro
secreto. Løken perguntou-se como teriam os encontros deles chegado aos
ouvidos do chefe da Polícia. E porque este levara tão a mal que um dos seus
inspetores estivesse envolvido numa cooperação algo irregular com
estrangeiros. Podiam não ter sido respeitadas todas as regras, mas acabara por
produzir resultados.
Na Sua Pa Road o trânsito estava parado. O taxista enfiou-se num intervalo
entre dois autocarros e apontou para os pilares que estavam a ser construídos.
Ainda a semana passada caíra uma viga e matara um taxista. Ele lera a
notícia. Tinham publicado também as fotografias. O taxista abanou a cabeça,
agarrou num pano e limpou o tablier, os vidros, a figura de Buda e a
fotografia da família real, antes de desdobrar um exemplar do Tai Rath em
cima do volante, soltando um suspiro e abrindo-o na secção de desporto.
Løken espreitou pelo vidro traseiro. Havia apenas dois carros entre eles e o
Toyota Corolla. Olhou para o seu relógio de pulso. Sete e meia. Ia chegar
atrasado, mesmo que conseguisse livrar-se daqueles dois idiotas. Løken
tomou uma decisão e bateu no ombro do taxista.
– Estou a ver um conhecido meu – disse em inglês e gesticulou para trás de
si.
O taxista ficou na dúvida, desconfiado de que o farang ia fugir sem lhe
pagar.
– Volto já – disse Løken, encolhendo-se para sair pela porta.
Um dia a menos de vida, pensou, enquanto inspirava CO2 em quantidade
suficiente para eliminar uma família de ratazanas, e caminhou calmamente
por entre o trânsito em direção ao Toyota. Um farol devia estar desalinhado
porque a luz incidiu-lhe diretamente no rosto. Preparara já o seu discurso, na
expetativa de ver os rostos surpreendidos deles. Løken estava apenas à
distância de uns metros e conseguia distinguir as duas pessoas dentro do
carro. De repente, ficou na dúvida. Havia algo no aspeto deles que não batia
certo. Mesmo tendo em conta que os polícias não eram, por norma, as
pessoas mais inteligentes, pelo menos sabiam que o primeiro mandamento
quando se seguia alguém era a discrição. O homem no banco do pendura
usava óculos de sol, não obstante o facto de aquele já se ter posto há algum
tempo, e o gigante sentado ao volante dava muito nas vistas. Løken ia virar-
se quando a porta do automóvel se abriu.
– Ei, cavalheiro – disse uma voz suave. Aquilo estava uma confusão.
Løken tentou regressar ao táxi, mas um carro atravessara-se e cortara-lhe o
caminho. Olhou para o Corolla. O chinês avançava na direção dele. – Ei,
cavalheiro – repetiu ele quando os carros na faixa contrária começaram a
andar. Foi como murmurar durante um furacão.
Uma vez, Løken matara um homem com as próprias mãos. Esmagara-lhe a
laringe com um golpe de coelho, precisamente como lhe tinham ensinado no
campo de treino no Winconsin. Mas isso já fora há muito tempo, nessa altura
ele era jovem. E ficara apavorado. Mas agora não, ficara apenas zangado.
Provavelmente não faria qualquer diferença.
Quando sentiu os dois braços à sua volta e os pés serem levantados do
chão, percebeu que não faria mesmo qualquer diferença. Tentou gritar, mas o
ar de que as suas cordas vocais precisavam para vibrar saíra dele à força. Viu
o céu estrelado rodar lentamente antes de ser encoberto pelo forro do
tejadilho de um carro.
Sentiu calor, um bafo fazer-lhe cócegas no pescoço e olhou pelo para-
brisas do Corolla. O homem com óculos de sol estava de pé junto ao táxi e
fazia passar umas notas pela janela do condutor. A pressão sobre Løken
abrandou e, numa longa inspiração trémula, inalou o ar imundo como se
fosse água de nascente.
O taxista subira o vidro e o homem de óculos de sol regressava na direção
deles. Acabara de tirar os óculos de sol e, quando a luz do farol desalinhado
incidiu nele, Løken reconheceu-o.
– Jens Brekke? – murmurou, pasmado.
80 Elemento pertencente a um grupo étnico que teve origem no nordeste da Manchúria. Os manchus
conquistaram a dinastia Ming no século XVII e fundaram a dinastia Qing, que governou a China até
1911. Hoje, os manchus foram em grande parte assimilados pelos chineses que os rodeavam, e a língua
manchu encontra-se quase extinta. Formam uma das 56 nacionalidades oficialmente reconhecidas pela
República Popular da China. (N. da T.)

81 Província da República Popular da China cuja capital é Changchun. Situa-se no Norte do país. (N.
da T.)
82 Canção da banda britânica The Beatles. Foi escrita por John Lennon e Paul McCartney e gravada em
1963. (N. da T.)
48

Sexta-feira, 24 de janeiro

–O Jens Brekke? – bradou Liz.


Harry anuiu.
– Impossível! E o álibi dele, o raio da gravação infalível que comprova que
ele ligou à irmã às oito?
– Sim, ele ligou-lhe mesmo, mas não do escritório. Perguntei-me por que
motivo ligaria para casa da irmã, durante as horas de expediente, sabendo que
ela era viciada em trabalho. Ele alegou que se esquecera da diferença horária
na Noruega.
– E?
– Já teve conhecimento de algum corretor de câmbio que se esquecesse do
fuso horário de outro país?
– Não estou a perceber.
– Ficou tudo claro quando vi que o Klipra tinha um aparelho semelhante ao
do Brekke. Depois de matar o Klipra, ele ligou do escritório dele para o
gravador de chamadas da irmã, sabendo que não estava lá ninguém e que a
chamada ficaria registada, e trouxe consigo a cassete. Ela indica a hora a que
foi efetuada a chamada, mas não de onde. Nunca pusemos a hipótese de a
gravação poder ser de outro gravador. Mas posso provar que a cassete foi
retirada do escritório do Klipra.
– Como?
– Recorda-se de que, ao início da tarde do dia 7 de janeiro, foi efetuada
uma chamada para o Klipra do telemóvel do embaixador? Ela não consta de
nenhumas das gravações no escritório dele.
Liz soltou uma gargalhada.
– Aquele cretino inventou um álibi perfeito e ficou muito sossegadinho na
prisão à espera de jogar o trunfo para parecer o mais convincente possível?
– Creio detetar alguma admiração na sua voz, inspetora.
– É puramente profissional. Acha que ele planeou tudo desde o início?
Harry olhou para o seu relógio de pulso. O seu cérebro começara a enviar
uma mensagem em Morse de que se passava algo errado.
– Se há uma coisa de que estou certo, é que tudo o que o Brekke fez foi
planeado. Não deixou nenhum pormenor ao acaso.
– Como pode estar tão certo disso?
– Bem – disse Harry, encostando um copo vazio ao rosto –, ele contou-me.
Detesta riscos. Só joga quando sabe que vai ganhar.
– Nesse caso, calculo que também já saiba como é que ele matou o
embaixador?
– Em primeiro lugar, seguiu o embaixador até ao parque de estacionamento
subterrâneo. O rececionista pode confirmá-lo. Depois, apanhou o elevador
para cima. A rapariga que ele convidou para sair também pode confirmá-lo.
Provavelmente, matou o embaixador no parque de estacionamento,
apunhalou-o nas costas com a faca dos Sami quando o embaixador ia entrar
no carro, tirou-lhe as chaves e meteu-o na mala. Depois, trancou o carro, foi
até ao elevador e esperou que alguém premisse o botão para ter a certeza de
que havia outra testemunha quando fosse subir novamente.
– Ele até a convidou para sair, para que a mulher se lembrasse dele.
– Isso mesmo. Se aparecesse mais alguém, ele teria outro plano na manga.
Depois, bloqueou as chamadas recebidas para fazer parecer que estava
ocupado, apanhou de novo o elevador para baixo e foi até à cabana do Klipra
no carro do embaixador.
– Mas se ele matou o embaixador no parque de estacionamento, a câmara
devia tê-lo registado.
– Porque pensa que desapareceu a cassete do CFTV? É evidente que
ninguém tentou sabotar o álibi do Brekke. Ele obrigou o Jim Love a entregar-
lhe a cassete. Na noite em que nos encontrámos no combate de boxe, ele
estava com pressa de regressar ao escritório. Não para falar com clientes
americanos mas para se encontrar com o Jim Love para ele poder fazer uma
gravação por cima das imagens em que ele aparecia a matar o embaixador. E
reprogramar o temporizador como se alguém estivesse a tentar sabotar o álibi
dele.
– E porque não retirou apenas a cassete original?
– Ele é um perfecionista. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, algum jovem
detetive ia perceber que a gravação e a hora não batiam certo.
– Como?
– Ele usou uma cassete de outra noite para gravar por cima da cena em
questão. Mais cedo ou mais tarde, a Polícia ia falar com os empregados do
edifício que atestariam que eles tinham passado pela câmara entre as cinco e
as cinco e meia no dia 7 de janeiro. Claro que a prova de que a cassete foi
manipulada é, na verdade, a ausência deles na gravação. A chuva e os rastos
dos pneus molhados significam que nos apercebemos mais cedo do que
sucederia noutras circunstâncias.
– Então, você não foi mais inteligente do que ele queria que fosse?
Harry encolheu os ombros.
– Pois não. Mas consigo viver com isso. Já o Jim Love não conseguiu.
Recebeu a paga em ópio envenenado.
– Porque foi uma testemunha?
– Como referi, o Brekke não gosta de correr riscos.
– E qual foi o móbil?
Harry esvaziou o ar das bochechas. Fez lembrar um camião de grande
tonelagem a travar.
– Lembra-se de nos termos perguntado se dispor de mais de cinquenta
milhões de coroas durante seis anos era um motivo suficientemente bom para
matar o embaixador? Não era. Mas tê-lo o resto da sua vida era um motivo
suficientemente bom para o Jens Brekke matar três pessoas. Por testamento, a
Runa herdaria o dinheiro quando atingisse a maioridade, mas como o
documento é omisso em relação ao que acontece se ela morrer, é óbvio que o
dinheiro seguirá a linha de sucessão. Isto é, a fortuna pertencerá à Hilde
Molnes. O testamento não a impede de ter acesso a ela agora.
– E como é que o Brekke a vai obrigar a entregar-lhe o dinheiro?
– Ele não precisa de fazer nada. A Hilde Molnes tem seis meses de vida. É
tempo mais do que suficiente para se casar com ele, e mais do que suficiente
para o Brekke fazer o papel de perfeito cavalheiro.
– Portanto, livrou-se do marido e da filha para poder herdar a fortuna
quando ela morrer?
– E não apenas isso – disse Harry. – Ele já gastou o dinheiro.
Liz franziu a testa.
– Ele assumiu o controlo de uma empresa quase falida chamada Phuridell.
Se acontecer o que o Barclays Thailand pensa que vai acontecer, a empresa
poderá vir a valer vinte vezes o que ele pagou.
– Mas, nesse caso, porque é que os outros a venderam?
– De acordo com o George Walters, o dono da Phuridell, «os outros» são
dois pequenos acionistas que se recusaram a vender o seu lote de ações ao
Ove Klipra quando ele se tornou o acionista maioritário, porque sabiam que
estava na forja algo grande. Mas, depois de o Klipra sair de cena, foram
informados de que a dívida em dólares podia deitar abaixo a empresa, de
modo que aceitaram de bom grado a oferta do Brekke. O mesmo se aplica aos
solicitadores da empresa que estão a administrar o património do Klipra. O
preço total da aquisição é de cerca de cem milhões de coroas.
– Mas o Brekke ainda não tem o dinheiro.
– O Walters diz que metade do dinheiro é entregue no momento da
assinatura, a outra metade dentro de seis meses. Não sei como é que ele vai
pagar a primeira metade. Deve ter conseguido reunir o dinheiro de alguma
outra maneira.
– E o que acontece se ela não morrer dentro de seis meses?
– Por alguma razão, acredito que o Brekke se certificará de que isso
acontece. Ele prepara-lhe as bebidas…
Liz olhou para o ar, pensativa.
– E ele não conseguiu prever que levantaria suspeitas aparecendo como o
novo dono da Phuridell neste preciso momento?
– Sim, e foi por isso que ele comprou as ações em nome de uma empresa
chamada Ellem Ltd.
– Mas alguém podia descobrir que ele estava por detrás dela.
– Ele não está, tanto quanto é possível avaliar. A empresa foi constituída
em nome da Hilda Molnes. Mas claro que ele vai herdá-la quando ela
morrer.
Liz moldou os lábios num «Oh» silencioso.
– Mas como conseguiu descobrir isto tudo?
– Com a ajuda do Walkers. Mas fiquei um pouco desconfiado quando vi a
lista de acionistas da Phuridell em casa do Klipra.
– A sério?
– Ellem. – Harry sorriu. – De início, tive algumas suspeitas em relação ao
Ivar Løken. A alcunha dele na Guerra do Vietname era LM. Mas a solução
era ainda mais trivial.
– Desisto.
– Se inverter Ellem, obtém Melle. O nome de solteira da Hilde Molnes.
Liz olhou para Harry como se ele fosse uma atração do jardim zoológico.
– Você não existe – murmurou ela.

Jens olhou para a papaia que segurava na mão.


– Sabe uma coisa, Løken? Quando damos uma dentada numa papaia sabe a
vomitado. Já se tinha dado conta?
Ele cravou os dentes na polpa. O suco escorreu-lhe pela face.
– E depois sabe a rata.
Recostou-se e soltou gargalhadas.
– Sabe, uma papaia custa cinco bahts na Chinatown; quase uma ninharia.
Todos a podem comprar. Comer uma papaia é um dos chamados prazeres
simples. E, à semelhança dos outros prazeres simples, só lhe damos valor
quando deixamos de tê-los. É como… – Jens gesticulou, como se procurasse
uma analogia adequada. – Como conseguirmos limpar o rabo. Ou
masturbarmo-nos. Só precisamos de uma mão.
Levantou a mão cortada de Løken pelo dedo médio e segurou-a diante do
rosto dele.
– Ainda lhe resta a outra. Pense bem. E pense em todas as coisas que não
pode fazer sem mãos. Eu já pensei no assunto, por isso vou dar-lhe uma
ajuda. Não pode descascar uma laranja, não pode acariciar o corpo de uma
mulher nem desabotoar as calças. Sim, nem sequer pode matar-se, caso se
sinta tentado a fazê-lo. Vai precisar que alguém o ajude em tudo. Tudo. Pense
bem nisso.
O sangue escorria da mão, saltava para a borda da mesa e salpicava a
camisa de Løken de pequenas pintas vermelhas. Jens pousou a mão. Os dedos
apontavam para o teto.
– Por outro lado, com ambas as mãos intactas, não existe limite para o que
se pode fazer. Pode-se estrangular uma pessoa, enrolar um charro e segurar
um taco de golfe. Sabe que, hoje em dia, a medicina já deu grandes passos?
Jens ficou à espera, até ter a certeza de que Løken não ia responder.
– Conseguem coser uma mão sem afetar um nervo sequer. Vão pelo seu
braço acima e puxam os nervos como se fossem elásticos. Seis meses depois,
mal se perceberá que foi cortada. Claro que depende da rapidez com que
conseguir arranjar um médico e não pode esquecer-se de levar a mão
consigo.
Passou por detrás da cadeira de Løken, assentou o queixo no ombro dele e
segredou-lhe ao ouvido.
– Veja só esta linda mão. Uma beleza, não lhe parece? Quase como a mão
pintada pelo Miguel Ângelo83. Como é que se chama?
Løken não respondeu.
– Você sabe, a que usaram no anúncio da Levi’s.
Løken fixara o olhar num ponto no ar por cima dele. Jens suspirou.
– Pelos vistos, nenhum de nós é um entendido em arte, hein? Bom, talvez
compre alguns quadros famosos quando isto acabar, para ver se consigo
despertar algum interesse. A propósito, quanto tempo pensa que temos antes
que seja tarde demais para lhe coserem a mão? Meia hora? Uma hora? Talvez
mais, se a pusermos em gelo, mas, infelizmente hoje já se nos acabou. A sua
sorte é que a viagem daqui até ao Answut Hospital só leva quinze minutos.
Inspirou fundo, aproximou a boca da orelha de Løken e gritou:
– ONDE ESTÃO O HOLE E A MULHER?
Løken deu um pulo e expôs os dentes num esgar de dor.
– Desculpe – disse Jens. Apanhou um pedaço de papaia da face de Løken.
– É mesmo muito importante para mim apanhá-los.
Os lábios de Løken moveram-se num murmúrio rouco.
– Tem razão…
– O quê? – disse Jens. Aproximou-se da boca dele. – O que disse? Fale,
homem!
– Tem razão sobre as papaias. Cheiram a vomitado.

Liz cruzou as mãos no cimo da cabeça.


– A cena do Jim Love. Não estou a imaginar o Brekke na cozinha a
misturar ácido prússico no ópio.
Harry pôs um sorriso tolo.
– O Brekke disse o mesmo sobre o Klipra. Você tem razão. Eles contaram
com a ajuda de um profissional.
– Não se põe propriamente um anúncio a pedir esse tipo de pessoas, pois
não?
– Não.
– Talvez alguém que ele conhecesse por acaso? Ele frequenta uns sítios
bastante manhosos. Ou… – calou-se quando se apercebeu de que ele a
olhava. – Sim? – disse. – O que foi?
– Não é óbvio? É o nosso velho amigo Woo. Ele e o Jens já trabalham
juntos há muito tempo. Foi o Jens quem o mandou pôr uma escuta no meu
telefone.
– Parece demasiada coincidência que o mesmo tipo que estava a trabalhar
para os credores do Molnes estivesse também a trabalhar para o Brekke.
– Isso é porque não se trata de uma coincidência. A Hilde Molnes contou-
me que os rufias do agiota que lhe tinham telefonado depois da morte do
embaixador deixaram imediatamente de o fazer depois de ela falar ao
telefone com o Brekke. Duvido que ele os assustasse, digamos assim.
Quando fizemos uma visita à Thai Indo Travellers, o senhor Sorensen disse
que não tinha contas a ajustar com o Molnes. Pode ter dito a verdade. Calculo
que tenha sido o Brekke a pagar as dívidas do embaixador. Em troca de
outros serviços, naturalmente.
– Os serviços do Woo.
– Exatamente. – Harry olhou para o seu relógio de pulso. – Raios, o que
aconteceu ao Løken?
Liz levantou-se e soltou um suspiro.
– Vamos tentar ligar-lhe. Talvez tenha adormecido.
Harry coçou o queixo, perdido em pensamentos.
– Talvez.

Løken sentiu uma dor no peito. Nunca tivera problemas cardíacos, mas
sabia quais eram os sintomas. Se se tratasse de um ataque cardíaco, esperava
que fosse suficientemente forte para o matar. De qualquer forma, já ia morrer.
Por isso, era bom que pudesse privar Brekke de algum prazer. Embora, vá-se
lá saber, provavelmente ele não retirasse prazer algum daquilo. Talvez para
Brekke fosse o mesmo que fora para si: um trabalho que tinha de ser feito.
Um tiro, um homem cai, e já está. Olhou para Brekke. Viu a boca dele
mexer-se e apercebeu-se, para sua surpresa, de que não conseguia ouvir
nada.
– Assim, quando o Ove Klipra me pediu que resolvesse a dívida em dólares
da Phuridell, estávamos a almoçar e não a falar ao telefone – disse Jens. – Eu
nem queria acreditar no que ouvia. Uma ordem de cerca de quinhentos mil
milhões e ele dá-ma verbalmente, sem qualquer espécie de registo! É o tipo
de oportunidade por que esperamos em vão metade de uma vida.
Jens limpou a boca a um guardanapo.
– Quando regressei ao escritório, fiz a transação em dólares em meu nome.
Se o dólar descesse, eu podia transferir simplesmente a transação para a
Phuridell e dizer que estava a fixar o preço da dívida em dólares, conforme o
combinado. Se subisse, eu podia meter ao bolso o lucro e negar
categoricamente que o Klipra me pedira para interferir nas taxas do dólar. Ele
não podia provar nada. Adivinhe o que aconteceu, Ivar. Não se importa que
eu o trate por Ivar?
Amarfanhou o guardanapo e fez pontaria a um caixote do lixo junto à
porta.
– Sim, o Klipra ameaçou ir denunciar o caso à administração do Barclays
Thailand. Expliquei-lhe que se o Barclays Thailand o apoiasse, teriam de
repor o que ele perdera. Além disso, ficavam sem o seu melhor corretor. Por
outras palavras: não podiam fazer nada senão apoiar-me. Então, ele ameaçou
usar as suas influências políticas. Sabe uma coisa? Ele nunca chegou a fazê-
lo. Percebi que podia livrar-me de um problema, o Ove Klipra e,
simultaneamente, ficar com a empresa dele, a Phuridell, aquela que ia subir
em flecha. E quando digo isto, não é porque esteja firmemente convencido de
tal, como fazem estes patéticos especuladores de ações. Sei que vai.
Certificar-me-ei de que isso acontece. – Os olhos de Jens brilharam. – Assim
como sei que o Harry Hole e a mulher careca vão morrer esta noite. Vai
acontecer. Olhou para o relógio de pulso. – Peço desculpa pelo melodrama,
mas tempus fugit84, Ivar. Chegou o momento de zelar pelos seus melhores
interesses, não é verdade?
Løken fitou-o com um olhar vago.
– Não tem medo, hein? É um osso duro de roer? – Ligeiramente perplexo,
Brekke puxou um fio solto na casa de um botão. – Quer que lhe conte como
vão ser encontrados, Ivar? Cada um amarrado a uma estaca algures no rio
com uma bala no corpo e o rosto feito num bolo. Já tinha ouvido esta
expressão, não tinha, Ivar? Não? Talvez não se usasse quando era jovem,
hein? Nunca tinha conseguido imaginá-la. Até o meu amigo Woo aqui
presente me dizer que a hélice de um barco consegue arrancar literalmente a
pele a um homem e deixar a carne por baixo à mostra. Está a acompanhar-
me? Foi um belo truque que o Woo aprendeu com a máfia local. Claro que as
pessoas se podem perguntar o que fizeram eles para deixar a máfia tão
enfurecida, mas nunca hão de descobrir. Muito menos através de si, pois vai
ter direito a uma cirurgia grátis e cinco milhões de dólares para me contar
onde eles estão. Afinal, tem sido useiro e vezeiro em desaparecer, criar uma
nova identidade e tudo isso, não tem?
Ivar Løken viu que os lábios de Jens se mexiam e ouviu o eco de uma voz
ao longe. Palavras como hélice de um barco, cinco milhões e uma nova
identidade passaram a adejar. Nunca fora um herói aos seus próprios olhos e
nunca sentira um desejo exagerado de morrer como tal. Mas sempre soubera
distinguir entre o certo e o errado, e dentro dos limites razoáveis, esforçara-se
por fazer o que estava certo. Mais ninguém, a não ser Brekke e Woo, viria a
saber se ele fora ou não ao encontro da morte de cabeça erguida, ninguém
falaria sobre o velho Løken enquanto bebia uma cerveja com os veteranos
nos serviços secretos ou no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e isso
tanto fazia a Løken. Não precisava de reputação depois de morrer. A sua vida
fora um segredo bem guardado, por isso, era muito natural que a sua morte
lhe seguisse os passos. No entanto, se esta situação não era favorável a um
gesto nobre, sabia também que tudo o que ganharia se desse a Brekke o que
ele queria era uma morte mais rápida. E já não sentia qualquer dor. Por isso,
não valia a pena. Não faria qualquer diferença, mesmo que Løken soubesse
os pormenores da sugestão de Brekke. Nada faria qualquer diferença. Porque,
naquele momento, o telemóvel preso ao seu cinto começara a emitir um sinal
sonoro.
83 Referência ao fresco «A Criação de Adão» no teto da Capela Sistina. Foi pintado entre 1508-10. (N.
da T.)

84 Locução latina: o tempo voa. (N. da T.)


49

Sexta-feira, 24 de janeiro

Q uando Harry se preparava para desligar, ouviu um estalido e um novo


sinal, apercebendo-se de que a comunicação ia ser reencaminhada do
número de casa de Løken para o telemóvel dele. Esperou, ouviu sete vezes o
sinal de chamada antes de desistir e agradeceu à rapariga de tranças ao balcão
por tê-lo deixado usar o telefone.
– Temos um problema – anunciou, quando regressou à sala. Liz descalçara
os sapatos para examinar uma secura na pele.
– O trânsito – disse ela. – É sempre o trânsito.
– Fui reencaminhado para o telemóvel dele, mas também não o atendeu.
Isto não me agrada.
– Calma. O que podia acontecer-lhe aqui na pacífica Banguecoque? Deve
ter deixado o telemóvel em casa.
– Cometi um erro – disse Harry. – Disse ao Brekke que nos íamos
encontrar esta noite e pedi-lhe que descobrisse quem estava por detrás da
Ellem Ltd.
– Você fez o quê?
Liz tirou os pés de cima da mesa.
Harry deu um murro na mesa com o punho fazendo saltar as chávenas de
café.
– Porra, porra, porra! Queria ver como ele reagia.
– Reagia? Harry, isto não é brincadeira nenhuma!
– Não estou a brincar. Combinei ligar-lhe da reunião para marcarmos
encontro num sítio qualquer. O meu plano era o Lemon Grass.
– O restaurante onde fomos da outra vez?
– Fica perto e é preferível a corrermos o risco de uma emboscada em casa
dele. Somos três, por isso imaginei uma detenção a la85 Woo.
– Mas, depois, assustou-o ao mencionar a Ellem? – gemeu Liz.
– O Brekke não é estúpido. Consegue topar uma marosca a léguas. Veio
outra vez com a conversa absurda do padrinho de casamento para me pôr à
prova, para ver se eu o tinha na mira.
Liz resfolegou.
– Mas que grande treta de machos! Se vocês os dois têm alguma disputa
pessoal nisto, é melhor desistirem. Por amor de Deus, Harry, julguei que
fosse demasiado profissional para fazer uma coisa destas.
Harry não respondeu. Sabia que ela tinha razão: agira como um amador.
Mas por que raio fora mencionar a Ellem Ltd.? Podia ter inventado uma
centena de outros pretextos para se encontrarem. Talvez houvesse algum
fundamento no que Jens dissera, que algumas pessoas gostam do risco só
pelo risco. Talvez ele fosse um dos jogadores que Brekke achara bastante
patético. Não, não fora isso. Pelo menos não apenas isso. Uma vez, o avô
explicara-lhe por que motivo nunca matava um tetraz quando ele estava
pousado; não é delicado.
E porque seria? Uma espécie de ética de caça adquirida: assustava-se a
presa para ela levantar voo, dava-se-lhe uma oportunidade simbólica de fuga.
Liz interrompeu-lhe a corrente do pensamento.
– Então, o que fazemos agora, detetive?
– Esperamos – respondeu Harry. – Vamos dar meia hora ao Løken. Se ele
não aparecer, ligamos ao Brekke.
– E se o Brekke não atender?
Harry inspirou fundo.
– Nesse caso, telefonamos ao chefe da Polícia e mobilizamos todos os
recursos.
Liz praguejou por entre os dentes cerrados.
– Já lhe contei como é a vida de um polícia de trânsito?

Jens olhou para o visor do telemóvel de Løken. Silenciara-se.


– Tem aqui um belo telemóvel, Ivar – disse ele. – A Ericsson fez um
magnífico trabalho, não concorda? Consegue ver-se o número de onde estão
a ligar. Assim, se for alguém com quem não quer falar, escusa de atender. Ou
muito me engano, ou alguém está a perguntar-se porque é que você não
apareceu. Porque você não tem muitos amigos que lhe telefonem a esta hora
do dia, pois não, Ivar?
Atirou o telefone por cima do ombro e Woo desviou-se agilmente para o
lado, apanhando-o.
– Descobre a quem pertence o número e onde está. Imediatamente.
Jens sentou-se ao lado de Løken.
– Esta operação começa a parecer bastante urgente, Ivar.
Apertando o nariz, olhou para o chão onde se formara uma poça à volta da
cadeira.
– Estou a falar a sério, Ivar.
– O Millie’s Karaoke – disse Woo, em inglês staccato86. – Sei onde fica.
Jens deu uma palmadinha no ombro de Løken.
– Lamento, mas vamos ter de nos retirar agora, Ivar. Quando voltarmos
passamos pelo hospital.
Løken apercebeu-se da vibração dos passos a afastarem-se e esperou pela
deslocação de ar da porta a bater. Não aconteceu. Ouviu antes o eco distante
de uma voz junto ao seu ouvido.
– Ah sim, quase me esquecia, Ivar.
Sentiu o bafo quente na sua têmpora.
– Precisamos de algo para os amarrar às estacas. Empresta-me o seu
torniquete? Eu depois devolvo-lho. Prometo.
Løken abriu a boca e sentiu o muco na garganta soltar-se quando gritou.
Outrem assumira o controlo do seu cérebro e nem sentiu o puxão nas tiras de
couro quando viu o sangue espalhar-se sobre a mesa e as mangas da camisa
absorverem-no até ficarem vermelhas. Não se apercebeu de que a porta se
fechara.

Harry deu um pulo quando ouviu a pancada leve na porta.


Involuntariamente, fez um esgar quando viu que não era Løken, mas a
rapariga da receção.
– Você Harry, senhor?
Ele anuiu.
– Telefone.
– O que foi que eu lhe disse? – perguntou Liz. – Cem bahts em como é o
trânsito.
Seguiu a rapariga até à receção, registando no seu subconsciente que tinha
o mesmo cabelo negro e o mesmo pescoço esguio de Runa. Olhou para os
finos cabelos pretos na nuca. Ela virou-se, brindou-o com um sorriso rápido e
estendeu-lhe a mão. Ele anuiu e pegou no auscultador.
– Sim?
– Harry? Sou eu.
Harry pareceu sentir os vasos sanguíneos alargarem-se no momento em que
o seu coração começou a bombear sangue mais rapidamente pelo corpo.
Inspirou duas vezes antes de falar calma e claramente.
– Onde está o Løken, Jens?
– O Ivar? Ele tem as mãos muito ocupadas e não pode falar.
Harry percebeu, pela voz dele, que a fantochada acabara; quem falava
naquele momento era Jens Brekke, a mesma pessoa com quem falara no
escritório da primeira vez. O mesmo tom brincalhão e provocador de um
homem que sabe que vai ganhar, mas quer desfrutar dessa sensação antes de
desferir o coup de grâce87. Harry tentou perceber o que podia ter virado o
jogo contra si.
– Tenho estado a aguardar o seu telefonema, Harry. – Esta não era a voz de
um homem desesperado, mas de alguém que seguia no lugar do condutor,
segurando descontraidamente o volante com uma mão.
– Bem, você antecipou a sua jogada, Jens.
Jens soltou uma gargalhada.
– Parece que é sempre assim, Harry. Que tal a sensação?
– Desgastante. Onde está o Løken?
– Não quer saber o que a Runa disse antes de morrer?
Harry sentiu um formigueiro sob a pele da testa.
– Não – ouviu-se responder. – Só quero saber onde está o Løken, o que lhe
fez e onde podemos encontrá-lo a si.
– Harry, isso são três desejos num só!
A membrana no microfone do telefone vibrou com a gargalhada dele. No
entanto, havia algo mais a lutar pela atenção de Harry, algo que ele não
conseguia identificar bem. A gargalhada cessou bruscamente.
– Sabe a dose de sacrifício pessoal que é necessária para executar um plano
destes, Harry? Para verificar e tornar a verificar, seguir todos os pequenos
atalhos que o tornam infalível? Já para não falar do desconforto físico. Matar
é uma coisa, mas julga que gostei de passar todo aquele tempo na prisão?
Pode não acreditar em mim, mas o que eu disse a respeito de estar preso é
verdade.
– Nesse caso, porque se deu ao trabalho de tantos atalhos?
– Já antes lhe tinha dito, eliminar riscos tem o seu custo, mas vale a pena,
vale sempre a pena. Para incriminar o Klipra foi necessário um trabalho
minucioso.
– Nesse caso, porque não o simplificou? Aniquilá-los a todos e atirar as
culpas para cima da máfia?
– Você pensa como um dos falhados que costuma perseguir, Harry. Vocês
são como os jogadores, esquecem-se do quadro geral, das consequências.
Claro que eu podia ter matado o Molnes, o Klipra e a Runa de maneiras mais
simples e certificar-me de que não deixava quaisquer vestígios. Mas isso não
teria sido suficiente. Porque, quando me apoderasse da fortuna dos Molnes e
da Phuridell, tornar-se-ia bastante óbvio que eu tinha um motivo para matar
os três, não é verdade? Três homicídios e uma pessoa com um motivo para
todos eles. Até a Polícia conseguiria apurar isso, não lhe parece? Mesmo que
você não tivesse encontrado nenhuma maldita prova incriminatória, podia ter-
me dificultado imenso a vida. Assim, fui obrigado a criar um cenário
alternativo para si. Em que uma das vítimas era o perpetrador. Uma solução
que não fosse tão difícil que você não conseguisse deslindá-la, nem tão fácil
que você não ficasse satisfeito com ela. Devia agradecer-me, Harry. À minha
conta, fez boa figura ao andar no rasto do Klipra, não fez?
Harry apenas o ouvia parcialmente; voltara atrás no tempo. Nessa altura,
também escutara a voz de um assassino junto ao seu ouvido. Depois fora o
som da água ao fundo que o denunciara, mas agora Harry apenas conseguia
ouvir o ténue cicio de música que podia vir de qualquer lado.
– O que pretende, Jens?
– O que pretendo? Bem, o que será que eu pretendo? Apenas conversar,
presumo. – «Manter-me em linha», pensou Harry. «Ele quer manter-me em
linha. Porquê?» Ouviu o som cortante de pratos sintéticos e as modulações
subtis de um clarinete.
– Mas se quiser saber ao certo, só liguei para dizer…
Harry conseguiu ouvir em fundo I Just Called to Say I Love You.
– …que a sua colega está a precisar de fazer um lifting facial. O que me
diz, Harry? Harry?
O auscultador baloiçava para cá e para lá num arco mesmo acima do chão.

Harry sentiu a doce descarga de adrenalina como se tivesse sido injetada


enquanto avançava rapidamente pelo corredor. A rapariga de tranças
encostara-se à parede, de ar apavorado, quando ele largara o auscultador,
sacara a sua Ruger SP101 emprestada do coldre na barriga da perna e a
carregara, tudo num movimento fluido. Teria ela percebido quando lhe gritara
que chamasse a Polícia? Agora não havia tempo para matutar naquilo. Tinha
chegado lá. Harry deu um pontapé na primeira porta e olhou diretamente para
quatro rostos em choque por cima das miras.
– Desculpem.
Na sala seguinte, por pouco não disparou um tiro de puro medo. No meio
do chão encontrava-se um tailandês minúsculo de pele escura, com as pernas
afastadas, vestindo um fato prateado e óculos de estilo porno. Harry demorou
dois segundos a aperceber-se do que ele fazia e o resto de Hound Dog88 ficou
preso na garganta do Elvis tailandês.
Harry olhou para o fundo do corredor. Ao todo existiriam, no mínimo,
cinquenta salas. Um alarme começara a soar algures na sua cabeça, no
entanto, o seu cérebro estava já tão sobrecarregado que tentara abafá-lo.
Agora conseguia ouvir com toda a clareza. Liz! Merda, merda, merda. Jens
estivera a empatá-lo ao telefone.
Seguiu disparado pelo corredor e, quando virou a esquina, viu que a porta
da sala deles estava aberta. Não pensou mais, não teve medo, não acalentou
esperança, correu simplesmente, sabendo que transpusera a fronteira da
relutância-em-matar. Já não era como um pesadelo, já não era como correr
com água pela cintura. Entrou disparado pela porta e viu Liz encolhida por
detrás de um sofá. Rodou a arma, mas foi tarde demais. Algo o atingiu abaixo
dos rins, tirou-lhe o ar dos pulmões e, no instante seguinte, sentiu um aperto
cada vez maior à volta do pescoço e avistou um cabo de microfone enrolado,
e o cheiro do hálito dele foi avassalador.
Harry levou o cotovelo atrás; encontrou algo e ouviu um gemido.
– Tay – disse uma voz, e um punho veio de trás e atingiu-o abaixo da
orelha, deixando-o atordoado. Sentiu que algo de grave acontecera ao seu
maxilar. Depois, o cabo à volta do seu pescoço tornou a apertar. Tentou
introduzir um dedo, mas era escusado. A sua língua, inerte, estava a ser
forçada a sair da boca, como se alguém o beijasse lá por dentro. Talvez não
tivesse de pagar a conta do dentista, já que começava a ver tudo negro.
O cérebro de Harry borbulhava. Não conseguia aguentar mais, tentou tomar
a decisão de morrer, todavia o seu corpo recusou-se a obedecer.
Instintivamente ergueu um braço ao ar, mas agora não havia rede de piscina
que lhe valesse. Só havia uma prece, como se ele estivesse de pé na ponte da
Siam Square, a suplicar pela vida eterna.
– Pare!
O cabo à volta do pescoço dele afrouxou e o oxigénio entrou-lhe em
catadupa nos pulmões. Mais, precisava de mais! Parecia não existir ar
suficiente na sala, e sentia os pulmões prestes a sair-lhe do peito numa
explosão.
– Liberte-o! – Liz conseguira ajoelhar-se e apontava o seu Smith & Wesson
650 a Harry.
Harry sentiu Woo acocorar-se atrás de si enquanto tornava a apertar o cabo,
mas desta vez Harry deixara a mão entre ele e o seu pescoço.
– Dispare – grasnou Harry com voz de Pato Donald.
– Largue-o! Já!
As pupilas de Liz estavam negras do medo e da raiva. Escorria-lhe um fio
de sangue da orelha, passava por cima da clavícula e entrava-lhe no decote.
– Ele não vai largar. Vai ter de o matar – murmurou Harry, com voz rouca.
– Agora! – exclamou Liz.
– Dispare! – berrou Harry.
– Cale-se! – A arma de Liz vacilou enquanto ela tentava manter o
equilíbrio.
Harry inclinou-se para trás, na direção de Woo. Foi como se se tivesse
encostado a uma parede. Liz tinha lágrimas nos olhos, e a cabeça pendia-lhe
para a frente. Harry já o vira antes. Ela tinha um traumatismo grave, e
restava-lhes pouquíssimo tempo.
– Liz, oiça-me, por favor!
O cabo foi apertado, e Harry ouviu trilhar a pele na extremidade da sua
mão.
– As suas pupilas estão completamente dilatadas, você está prestes a entrar
em choque, Liz! Oiça! Tem de disparar agora, antes que seja tarde demais!
Vai perder os sentidos não tarda, Liz!
Aflorou-lhe um soluço aos lábios.
– Vá-se lixar, Harry! Eu não consigo. Eu…
O cabo ia-lhe dilacerando a carne como se deslizasse em manteiga. Tentou
fechar o punho, mas alguns nervos deviam ter sido cortados.
– Liz! Olhe para mim, Liz!
Liz piscou os olhos, voltou a piscá-los e olhou para ele com a vista turva.
– Muito bem, Liz. Se conseguir não me acertar, atinge-o de certeza!
Olhou para ele, boquiaberta, depois baixou a arma e desatou às
gargalhadas. Harry tentou travar Woo, que começara a avançar, mas foi como
colocar-se diante de uma locomotiva. Estavam mesmo sobre ela quando algo
explodiu no rosto de Harry. Uma dor aflitiva percorreu-lhe os canais
nervosos, uma nova dor, desta vez ardente. Cheirou o perfume dela, sentiu o
corpo dela ceder sob o peso de Woo, imobilizando os três no chão. O eco de
trovoada ribombou através da porta aberta e pelo corredor fora. Depois fez-se
silêncio.
Harry respirava. Estava preso entre Liz e Woo, mas o seu peito subia e
descia. Isso só podia querer dizer que estava vivo. Algo continuava a pingar.
Procurou reprimir a memória; não havia tempo para isso naquele momento, a
corda molhada, as gotas frias salgadas no convés. Não estava em Sydney. As
gotas caíam na testa de Liz, nas suas pálpebras. Depois, tornou a ouvir a
gargalhada dela. Os seus olhos abriram-se e havia duas janelas negras com
caixilhos brancos numa parede vermelha. O avô brandia o machado, golpes
surdos, abafados, a pancada quando a madeira caía no solo duro e pisado. O
céu estava azul, a erva fazia-lhe cócegas nos ouvidos, uma gaivota ora
aparecia ora desaparecia do seu campo de visão. Queria dormir, mas o rosto
ardia-lhe, sentia o cheiro da sua própria carne devido à pólvora que lhe
queimara os poros.
Com um gemido, conseguiu sair a rebolar de dentro da sanduíche humana.
Liz continuava a rir à gargalhada, tinha os olhos arregalados e Harry deixou-a
permanecer assim.
Fez rolar Woo para que ficasse deitado de costas. O rosto dele imobilizara-
se numa expressão de surpresa; o maxilar pendia aberto em protesto contra o
negro ferimento de entrada na sua testa. Harry fizera deslocar Woo, no
entanto, continuava a ouvir pingar. Virou-se para a parede por detrás deles e
viu que não era imaginação sua. Madonna voltara a mudar a cor do cabelo. A
trança de Woo colara-se ao cimo da moldura e conferira-lhe um penteado
preto à punk, de onde escorria algo que parecia ser uma mistura de eggnog89 e
sumo de frutos vermelhos. Caía na carpete espessa com um suave chape.
Liz continuava a gargalhar.
– Combinaram uma festa? – ouviu uma voz vinda da porta dizer. – E não
convidaram o Jens? E eu a pensar que éramos amigos…
Harry não se virou; os seus olhos esquadrinhavam o chão procurando
desesperadamente uma arma. Devia ter caído para baixo da mesa ou para trás
da cadeira quando Woo lhe desferira um murro nas costas.
– Está à procura disto, Harry?
Claro. Virou-se então devagar e olhou para a boca da sua própria Ruger
SP101. Preparava-se para dizer algo quando viu que Jens ia disparar.
Segurava a arma com ambas as mãos e inclinara-se já um nadinha para a
frente para absorver o recuo.
Harry viu o agente da Polícia que se baloiçara na cadeira no Schrøder, o
sorriso escarninho que não esboçara, mas que continuava lá. O mesmo sorriso
invisível da comissária da Polícia quando pedia um momento de silêncio.
– Acabou-se a brincadeira, Jens – ouviu-se dizer. – Não vai conseguir
escapar desta.
– Acabou-se a brincadeira? E quem o decide? – Jens suspirou e abanou a
cabeça. – Tem andado a ver demasiados filmes de ação da treta, Harry.
O dedo dele curvou-se em torno do gatilho.
– Mas, está bem, pronto, agora acabou mesmo. Você conseguiu que isto
ainda saísse melhor do que eu tinha planeado. Quem pensa que vai arcar com
as culpas quando encontrarem um guarda-costas da máfia e dois agentes da
Polícia mortos com as balas uns dos outros?
Jens fechou um olho, um movimento quase desnecessário a uma distância
de três metros. Não era um jogador, pensou Harry, fechando os olhos e
inspirando subconscientemente, pronto para ser alvejado.
Os seus tímpanos sofreram um abalo. Três vezes. Não era um jogador.
Harry sentiu as costas atingirem a parede, o chão, não soube o quê, e o cheiro
a cordite a arder-lhe nas narinas. O cheiro a cordite. Não percebia nada. Jens
não disparara três vezes? Não devia ter deixado de sentir o cheiro?
– Merda!
Soou como se alguém estivesse a gritar debaixo de um edredão.
O fumo dissipou-se e então viu Liz, sentada de costas para a parede, com
uma mão a segurar a arma fumegante, a outra agarrada à barriga.
– Jesus, ele atingiu-me! Está aí, Harry?
«Estou?», perguntou-se Harry. Lembrava-se vagamente do pontapé na anca
que o fizera dar meia-volta.
– O que aconteceu? – gritou Harry, ainda surdo.
– Eu disparei primeiro. Sei que o atingi, Harry. Como é que ele fugiu?
Harry levantou-se, derrubou as chávenas pousadas em cima da mesa e
conseguiu finalmente firmar-se. A sua perna esquerda estava dormente.
Dormente? Levou a mão à anca e sentiu que tinha as calças ensopadas. Nem
quis olhar. Estendeu uma mão.
– Dê-me a arma, Liz.
Os olhos dele estavam cravados na ombreira. Sangue. Havia sangue no
linóleo. Por ali. Por ali, Hole. Segue apenas o caminho que foi marcado para
ti. Olhou para Liz. Crescia-lhe um nariz vermelho entre os dedos na sua
camisa azul. Porra, porra, porra! Ela gemeu e entregou-lhe a sua Smith &
Wesson 650.
– Traga-o de volta, Harry.
Ele hesitou.
– Isto é uma ordem!
85 Em francês no original: à maneira de. (N. da T.)

86 Termo italiano que se usa em música para indicar que cada nota deve ser salientada com nitidez. (N.
da T.)

87 Em francês no original: golpe de misericórdia. (N. da T.)

88 Canção escrita por Jerry Leiber e Mike Stoller que foi gravada mais de duzentas e cinquenta vezes.
No entanto, a nova versão de 1956, cantada por Elvis Presley, é a mais conhecida. (N. da T.)

89 Tradicional bebida norte-americana servida na ceia de Natal e muito semelhante à gemada, mas que
pode conter álcool. (N. da T.)
50

Sexta-feira, 24 de janeiro

D e cada vez que ele dava um passo, atirava a perna para a frente,
esperando que ela não cedesse sob o seu peso. Tudo dançava diante dos
seus olhos e sabia que era o cérebro a tentar fugir à dor. Passou a coxear pela
rapariga da receção, que parecia presa numa pose para O Grito90, sem que
saísse qualquer som dos seus lábios.
– Chame uma ambulância – gritou Harry, e ela acordou. – Um médico!
Depois encontrava-se lá fora. O vento amainara; estava apenas calor, um
calor sufocante. Um carro atravessara-se na rua, viam-se marcas de
derrapagem no alcatrão, a porta tinha ficado aberta e o condutor saíra e
agitava os braços. Apontava para o ar. Harry levantou os braços e atravessou
a rua a correr sem olhar, sabendo que, se vissem que ele se estava nas tintas,
talvez resolvessem parar. Ouviu-se um guincho de borracha. Ergueu o olhar
para onde o homem apontava. Uma caravana de silhuetas cinzentas de
elefantes elevava-se acima de si. O seu cérebro fazia e deixava de fazer
contacto como um autorrádio mal sintonizado, e um barrito solitário encheu a
noite. Por completo. Harry sentiu a deslocação de ar do camião de grande
tonelagem a apitar e que, por pouco, não lhe arrancou a camisa quando
passou ruidosamente rente aos seus calcanhares.
Estava outra vez de volta, os seus olhos examinando os pilares de betão. A
Estrada Elevada de Tijolo Amarelo. O projeto de transporte BERTS. Sim,
porque não? De certa forma, fazia sentido.
Uma escada de ferro conduzia ao betão diretamente por cima dele, quinze,
vinte metros lá no alto. Conseguia ver uma nesga da Lua através do intervalo.
Colocou o punho da arma entre os dentes, reparou que tinha o cinto
pendurado, tentou não pensar no que uma bala que passara de raspão pelo
cinto podia ter feito à sua anca e subiu a escada a pulso. O ferro fazia pressão
no golpe deixado pelo cabo do microfone.
«Não consigo sentir nada», pensou Harry, e soltou uma imprecação quando
o sangue que lhe cobria a mão como uma luva de borracha vermelha fez com
ele que se soltasse. Inclinou o pé direito no degrau, exerceu pressão, subiu
para o seguinte e voltou a exercer pressão. Agora estava melhor. Desde que
não perdesse os sentidos. Olhou lá para baixo. Dez metros? Era mesmo bom
que não perdesse os sentidos. Em frente e para cima. Ficou tudo escuro.
Ainda pensou que fosse dos seus olhos e parou, mas quando olhou para baixo
conseguiu ver os carros lá ao fundo e ouviu uma sirene da Polícia cortar o ar
como a lâmina de uma espada. Olhou de novo para o alto. A abertura no cimo
da escada era preta; já não conseguia ver a Lua. O céu anuviara-se? Caiu uma
gota na coronha da arma. Outro aguaceiro das mangas? Harry passou ao
degrau seguinte, o seu coração palpitou, falhou dois batimentos e depois
continuou, estava a fazer o melhor que podia.
De que lhe valia?, pensou, olhando para baixo. O primeiro carro da Polícia
não tardaria a chegar ali. Provavelmente, Jens correra pela estrada fantasma
soltando gargalhadas esganiçadas, e descia já uma escada dois quarteirões
adiante para depois, num estalar de dedos, se perder na multidão. O maldito
Feiticeiro de Oz.
Uma gota escorreu pela coronha e depois para os dentes cerrados de Harry.
Surgiram-lhe três pensamentos em simultâneo. O primeiro foi que, se Jens
o vira sair do Millie’s Karaoke vivo, provavelmente não ia fugir. Não tinha
alternativa; impunha-se terminar o serviço.
O segundo foi que as gotas de chuva não têm um gosto doce e metálico.
O terceiro foi que o céu não se anuviara, estava alguém a bloquear a
abertura, estava alguém a sangrar.
Depois, aconteceu tudo muito rapidamente.
Esperava que lhe restassem ainda nervos suficientes na mão para a manter
agarrada ao degrau. Harry tirou a arma da boca com a mão direita, viu
centelhas saltarem do degrau por cima, ouviu o silvo do ricochete, sentiu
depois algo a passar-lhe de raspão pela perna das calças antes de apontar a
arma ao círculo negro, recebendo o recuo no maxilar ferido quando disparou.
Uma boca de arma iluminou-se e Harry esvaziou o carregador. Continuou a
pressionar. Clique, clique, clique. Maldito amador.
Já conseguia ver de novo a Lua, deixou cair a arma e, antes de ela embater
no solo, já ele subia a escada. Depois chegara lá acima. A estrada, as caixas
de ferramentas e o equipamento de construção pesada eram banhados pela luz
amarela de um balão ridiculamente grande que alguém atara por cima deles.
Jens estava sentado num monte de areia, os braços cruzados sobre a barriga,
baloiçando-se para trás e para a frente, soltando gargalhadas.
– Merda, Harry, você estragou mesmo tudo. Olhe.
Ele descruzou os braços. O sangue saía em borbotões, espesso e brilhante.
– Sangue negro. Quer dizer que você me atingiu o fígado, Harry. Muito
provavelmente, o meu médico vai proibir-me de beber álcool. Uma maçada.
As sirenes da Polícia ouviam-se de forma cada vez mais nítida. Harry fez
um esforço para controlar a respiração.
– Não leve isso a sério, Jens. Ouvi dizer que o brandy servido nas prisões
tailandesas não presta.
Avançou a coxear em direção a Jens, que mantinha uma arma apontada a
ele.
– Ora, ora, Harry, não exagere, só dói um bocadinho. Nada que não se
consiga resolver com dinheiro.
– Acabaram-se-lhe as balas – disse Harry, continuando a avançar.
Jens riu-se e tossiu.
– Boa tentativa, Harry, mas, infelizmente, quem ficou sem balas foi você.
Esquece-se de que eu sei contar.
– Sabe mesmo?
– Hã, hã. Julguei que lhe tinha dito. Números. Tenho a obrigação de saber,
já que ganho a vida a trabalhar com eles.
Mostrou a Harry os dedos da mão que tinha livre.
– Duas contra si e a fufa na espelunca de karaoke e três na escada. Sobra
uma para si, Harry. Vale a pena guardar porque ainda nos pode vir a fazer
falta, sabe?
Harry estava apenas a dois passos.
– Você tem andado a ver demasiados filmes de ação da treta, Jens.
– Não me diga?
Jens levantou-se, com uma expressão desconsolada no rosto, e puxou o
gatilho. O estalido foi ensurdecedor. O esgar de Jens foi substituído pela
incredulidade.
– Só nos filmes de ação da treta é que todas as armas têm seis balas, Jens.
Essa é uma Ruger SP101. Cinco.
– Cinco? – Jens olhou ameaçadoramente para a arma. – Cinco? Como é
que você sabe?
– Tenho a obrigação de saber, já que ganho a vida a trabalhar com elas.
Harry conseguia ver as luzes azuis na estrada debaixo deles.
– É melhor entregar-ma, Jens. A Polícia costuma disparar quando vê uma
arma.
Confusão era o que estava estampado no rosto de Jens quando entregou a
arma a Harry, que a enfiou no cós das calças. Talvez porque o cinto não
estava lá, a arma desceu-lhe pela perna das calças, talvez porque estava
cansado, descontraiu-se quando viu o que julgou ser capitulação nos olhos de
Jens. Recuou quando o soco o atingiu, apanhado desprevenido pela rapidez
com que Jens se moveu. Sentiu a perna esquerda ceder debaixo de si, depois
a cabeça embater no betão com um estalo.
Apagou-se por um segundo. «Não posso perder os sentidos». O rádio
procurava desesperadamente o posto. A primeira coisa que viu foi um dente
de ouro a reluzir. Harry pestanejou. Não era um dente de ouro; era o reflexo
da Lua na lâmina de uma faca dos Sami. Depois, o aço sedento desceu em
arco na direção dele.
Harry nunca iria saber se agira instintivamente ou se fora um processo
mental que determinara a sua ação. A mão esquerda elevou-se com os dedos
abertos, direita ao aço reluzente. A faca atravessou a palma da sua mão com
extraordinária facilidade. Quando a faca chegou ao cabo, Harry puxou a mão
e deu um pontapé com a perna boa. Atingiu o alvo algures no sangue negro,
Jens curvou-se, gemeu e caiu de lado na areia. Harry ajoelhou-se a custo.
Jens encolhera-se na posição fetal e levara as mãos à barriga. Gritava. De riso
ou de dor, vá-se lá saber.
– Foda-se, Harry! Dói imenso, mas é simplesmente fantástico. – Arfou,
berrou e riu, por esta ordem.
Harry levantou-se. Olhou para a faca que lhe saía dos dois lados da mão,
sem saber qual era a atitude mais acertada: puxá-la ou deixá-la ficar para o
sangue não sair?
Ouviu algo ser gritado através de um megafone lá em baixo na rua.
– Sabe o que vai acontecer agora, Harry? – Jens fechara os olhos.
– Nem por isso.
Jens fez uma pausa para se recompor.
– Então vou explicar-lhe. O dia de hoje vai ser um jackpot para uma
quantidade de polícias, advogados e juízes. Seu sacana, isto vai sair-me bem
caro.
– Como assim?
– Como assim? Então você resolveu voltar a armar-se em escuteiro
norueguês? Tudo pode ser comprado. Desde que se tenha dinheiro. Além
disso… – Tossiu. – Há alguns políticos com interesses pessoais na indústria
de construção que não querem ver o BERTS ir pelo cano abaixo.
Harry abanou a cabeça.
– Desta vez não, Jens. Desta vez não.
Jens expôs os dentes, num doloroso misto de sorriso e esgar.
– Quer apostar?
«Vá lá», pensou Harry. «Não faças nada de que venhas a arrepender-te,
Hole.»
Olhou para o seu relógio de pulso, um gesto reflexo na sua profissão.
Estava na hora de formalizar a detenção.
– Estava aqui a pensar numa coisa, Jens. A inspetora Crumley julgou que
eu estava a abrir demasiado o jogo quando lhe perguntei sobre a Ellem Ltd.
Se calhar até estava. Mas há muito que você sabia que eu sabia que era você,
não é verdade?
Jens tentou focar-se em Harry.
– Há algum tempo. Foi por isso que nunca percebi porque se esforçou tanto
para me libertar da prisão. Porquê, Harry?
Harry sentiu uma vertigem e sentou-se numa das caixas de ferramentas.
– Bem, talvez ainda não me tivesse ocorrido que sabia que era você. Talvez
eu quisesse ver qual era a sua próxima cartada. Talvez eu quisesse que você
se revelasse. Não sei. O que o levou a pensar que eu sabia?
– Contaram-me.
– Impossível. Eu não falei disto a ninguém senão ontem à noite.
– Alguém sabia sem que você o tivesse revelado.
– A Runa?
As faces de Jens tremeram e tinha saliva branca aos cantos da boca.
– Sabe uma coisa, Harry? A Runa tinha aquilo a que alguns chamam
intuição. Eu chamo-lhe capacidade de observação. Temos de aprender a
esconder melhor os nossos pensamentos, Harry. Não abra o jogo com o
inimigo. É incrível o que uma mulher está disposta a revelar quando
ameaçamos cortar-lhe o que faz dela uma mulher. Você…
– Como é que a ameaçou?
– Os mamilos. Ameacei cortar-lhe os mamilos. O que tem a dizer-me sobre
isso, Harry?
Harry ergueu o rosto para o céu e fechou os olhos, como se à espera de
chuva.
– Eu disse algo de errado, Harry? – Harry sentiu o ar quente sair-lhe pelas
narinas. – Ela estava à sua espera, Harry.
– Em que hotel costuma ficar quando está em Oslo? – murmurou Harry.
– A Runa disse que você viria salvá-la, ela disse que você sabia quem a
raptara. Ela chorou como um bebé e agrediu-me com a prótese. Foi muito
divertido. Tão…
O som de metal a vibrar. Clang, clang, clang. Vinham a subir a escada.
Harry olhou para a faca espetada na sua mão. Não. Olhou à sua volta. A voz
de Jens arranhou-lhe os ouvidos. Começou a sentir um suave formigueiro
algures no estômago, um ligeiro silvo na cabeça, como se estivesse a
embebedar-se com champanhe. «Não faças isso, Hole, aguenta-te firme.»
Mas conseguia sentir já o êxtase da queda livre. Libertou-se.
A fechadura da caixa de ferramentas cedeu ao segundo pontapé. O martelo
pneumático era um Wacker, leve, provavelmente não pesaria mais de vinte
quilos, e começou a funcionar à primeira pressão sobre o botão. Jens fechou
imediatamente a boca e os seus olhos arregalaram-se quando o cérebro
começou a aperceber-se do que ia acontecer.
– Harry, você não pode…
– Abra-a bem – ordenou Harry.
O ruído da máquina a estremecer abafou o do trânsito debaixo deles, a
estridência do megafone e o som da escada de ferro a vibrar. Harry debruçou-
se sobre Jens com as pernas afastadas, o rosto ainda erguido para o céu e os
olhos fechados. Estava a chover.
Harry deixou-se cair na areia. Deitou-se de costas e olhou para o céu;
estava na praia, ela perguntara-lhe se não se importava de lhe espalhar
protetor nas costas, tinha uma pele muito sensível. Não queria apanhar um
escaldão. Não queria. Depois ficaram ali, vozes altas, botas no betão e o
estalido lubrificado de armas a serem engatilhadas. Abriu os olhos e ficou
ofuscado com a luz no seu rosto. Depois, a lanterna afastou-se de si e pôde
ver a silhueta de Rangsan.
Harry detetou o cheiro da sua própria bílis antes de o conteúdo do
estômago lhe encher a boca e o nariz.
90 Edvard Munch (1863-1944) foi um pintor norueguês, considerado um dos precursores do
expressionismo. Aos trinta anos pinta O Grito, considerada a sua obra máxima. Representa uma figura
andrógina num momento de angústia e desespero existencial profundos. É considerada uma das mais
importantes da história daquela corrente artística. (N. da T.)
Epílogo

51

L iz acordou com a consciência de que ia ver o teto amarelo com a racha


em T no estuque. Há duas semanas que olhava para ela. Não podia ler
nem ver televisão por causa de uma fratura craniana, apenas ouvir rádio. O
ferimento de bala ia cicatrizar depressa, tinham-lhe dito, não haviam sido
afetados órgãos vitais.
Pelo menos, não eram vitais para ela.
Um médico viera visitá-la e perguntara-lhe se tencionava ter filhos. Ela
abanara a cabeça, não quisera ouvir o resto e ele aquiescera. As más notícias
poderiam ficar para mais tarde; agora queria tentar concentrar-se nas boas
notícias. Como não ter de ir regular o trânsito nos anos mais próximos. E o
chefe da Polícia passara por lá para dizer que ela podia tirar umas semanas
para descansar.
Os olhos dela vaguearam até ao parapeito da janela. Tentou virar a cabeça,
mas tinham-lhe colocado um aparelho semelhante a uma plataforma
petrolífera, que lhe impossibilitava os movimentos.
Não gostava de estar sozinha, nunca gostara. Tonje Wiig viera visitá-la na
véspera e perguntara-lhe se sabia o que acontecera a Harry. Como se ele a
tivesse contactado por telefone enquanto ela estivera em coma. Porém, Liz
apercebera-se de que a preocupação de Wiig não era meramente profissional
e não fizera qualquer comentário. Só dissera que ele acabaria por aparecer.
Tonje Wiig parecera-lhe tão sozinha e abandonada. Bem, ia sobreviver. Era
dessas. Fora informada de que ia ser a nova embaixadora, tomando posse do
cargo em maio.
Tossiram. Ela abriu os olhos.
– Que tal vai isso? – disse uma voz rouca.
– Harry?
Ouviu-se o estalido de um isqueiro e ela sentiu o cheiro a fumo de cigarro.
– Então, está de volta? – disse ela.
– Estou apenas a manter-me à tona.
– O que está a fazer?
– A experimentar – respondeu ele. – A tentar encontrar uma maneira
definitiva de perder os sentidos.
– Disseram-me que você saiu do hospital pelo seu pé.
– Não podiam fazer mais nada por mim.
Ela riu-se, cautelosa, expelindo o ar em pequenas quantidades.
– O que foi que ele disse? – perguntou Harry.
– O Bjarne Møller? Que está a chover em Oslo. Parece que a primavera vai
chegar cedo este ano. Para além disso, nada de novo. Pediu-me que lhe
apresentasse cumprimentos e lhe dissesse que suspiram todos de alívio de
ambos os lados. O diretor-geral Torhus veio trazer flores e perguntou por si.
Pediu-me que o felicitasse.
– O que disse o Møller? – repetiu Harry.
Liz suspirou.
– Muito bem, transmiti-lhe o seu recado e ele foi verificar.
– E?
– Você sabe que é improvável que o Brekke pudesse ter algo que ver com o
ataque à sua irmã, não sabe?
– Sei.
Conseguiu ouvir o crepitar do tabaco quando ele inalou.
– Talvez devesse ir-se embora, Harry.
– Porquê?
– A ex-mulher do Brekke não entendeu as perguntas. Ela deixou-o por o
considerar um chato, por nenhum outro motivo. E… – Ela inspirou. – E ele
nem sequer estava em Oslo quando a sua irmã foi atacada.
Liz fez um esforço por perceber como estava ele a receber a notícia.
– Lamento – disse-lhe.
Ela ouviu o cigarro cair e um calcanhar de borracha esmagá-lo nos
ladrilhos de pedra.
– Bem, só queria ver como você estava – disse ele. As pernas de uma
cadeira arrastaram no chão.
– Harry?
– Estou aqui.
– Só uma coisa. Volte. Prometa-me que o fará. Não ande por aí.
Conseguiu ouvir a respiração dele.
– Hei de voltar – respondeu sem qualquer entoação, como se estivesse farto
daquele refrão.
52

V iu a poeira dançar diante de um solitário feixe de luz que invadira uma


fenda no soalho de madeira por cima deles. A camisa colava-se-lhe
como uma mulher apavorada, o suor fazia-lhe arder os lábios e o cheiro do
chão de terra causava-lhe náuseas. Mas depois estenderam-lhe o cachimbo,
uma mão segurou a agulha e espalhou o alcatrão preto no buraco; manteve o
cachimbo imóvel sobre a chama e a vida voltou a ser despreocupada. Após a
segunda passa, eles apareceram: Ivar Løken, Jim Love e Hilde Molnes. Após
a terceira, vieram os restantes. Exceto uma pessoa. Inalou o fumo até ao
fundo dos pulmões, reteve-o ali até pensar que ia explodir e depois, ela estava
finalmente ali. Encontrava-se de pé, junto à porta para uma varanda, com o
sol a incidir-lhe de um lado do rosto. Dois passos, depois ela flutuou pelo ar,
negra e curvada das solas dos pés às pontas dos dedos da mão, um arco
delicado, infinitamente lento, a cortar a superfície com um suave beijo,
mergulhando cada vez mais fundo na água até ela se fechar atrás de si.
Encheu-se de bolhas; uma onda bateu na parte lateral da piscina. Depois ficou
imóvel e a água verde refletiu novamente o céu como se ela nunca tivesse
existido. Ele inalou pela última vez, deitou-se na esteira de bambu e fechou
os olhos. Foi então que ouviu o suave chapinhar das braçadas.

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