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Título: Baratas
Título original: Kakerlakkene
Autor: Jo Nesbø
Tradução do inglês: Maria Georgina Segurado
Capa: Gito Lima
Foto de capa: Shutterstock
Revisão: Catarina Sacramento
Edição: Maria da Piedade Ferreira
ISBN: 9789722059220
© Jo Nesbø, 1998
© Publicações Dom Quixote, 2016
Publicado em Portugal com o acordo de Salomonsson Agency
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
www.dquixote.pt
www.leya.com
Terça-feira, 7 de janeiro
Depois de apagar o terceiro cigarro, lavou a boca com o amargo chá chinês
de Lee e levantou-se para uma última inspeção da maquilhagem no espelho
por cima do balcão.
– Vou acordá-lo – anunciou.
– Hum. Trouxeste os patins?
Ela ergueu o saco.
Os saltos altos faziam ruído na gravilha do acesso entre os quartos baixos
do motel. O quarto 120 ficava mesmo lá ao fundo; não conseguia ver nenhum
carro no exterior, mas havia uma luz na janela. Por isso, talvez ele estivesse
acordado. Uma brisa ligeira levantou-lhe a saia curta, mas não chegou a
refrescá-la. Estava ansiosa por que chegasse a monção, a chuva. Tal como,
após algumas semanas de chuva torrencial, ruas enlameadas e bolor na roupa
lavada, ansiava pelos meses secos, sem vento.
Bateu ao de leve à porta com os nós dos dedos e pôs o seu sorriso tímido
enquanto levava nos lábios a pergunta «Como se chama?». Ninguém
respondeu. Bateu novamente e olhou para o relógio de pulso. Talvez
conseguisse regatear algumas centenas de bahts no preço do vestido, ainda
que fosse no Robinson’s. Rodou o manípulo da porta e descobriu, para sua
surpresa, que não estava trancada.
Ele estava deitado de bruços na cama, e a primeira impressão que teve foi
de que estaria a dormir. Viu depois o brilho no cabo azul do punhal que lhe
saía do casaco amarelo garrido. Era difícil dizer qual dos pensamentos lhe
invadiu primeiro o cérebro, mas um deles foi, sem dúvida, que a viagem até
Banglamphu fora mesmo um desperdício. Depois, recuperou o controlo das
cordas vocais. Todavia, o grito dela foi abafado pela buzina estridente de um
camião ao desviar-se de um tuk-tuk desatento na Sukhumvit Road.
1 O bairro vermelho de Banguecoque. (N. da T.)
2 Planta aromática da família das Piperáceas, cujas folhas são muito empregadas em mistura
mastigatória no Sudeste Asiático. (N. da T.)
Quarta-feira, 8 de janeiro
– Não porque fosse uma pessoa encantadora, mas porque o povo confiava
que ela era quem afirmava ser. Confiança, eis a palavra-chave.
Os presentes à volta da mesa anuíram. Isto fazia, sem dúvida, parte dos
requisitos do currículo.
– Ora, o embaixador Molnes e o nosso atual primeiro-ministro eram muito
próximos, não só pelos laços de amizade mas também por causa das carreiras
políticas. Estudaram juntos, subiram juntos nas fileiras do partido, lutaram
pela modernização do movimento estudantil e chegaram a partilhar um
apartamento quando foram ambos eleitos para o Storting10, ainda muito
jovens. O Molnes abandonou voluntariamente a ribalta quando disputaram
juntos a liderança do partido. Ele deu todo o seu apoio ao primeiro-ministro
e, assim, fomos poupados a um agonizante duelo no seio do partido. Tudo
isto significa, obviamente, que o primeiro-ministro tinha uma enorme dívida
de gratidão para com o Molnes.
Askildsen humedeceu os lábios e olhou pela janela.
– Por outras palavras, o embaixador Molnes não tinha experiência
diplomática e não teria ido para Banguecoque se o primeiro-ministro não
mexesse os cordelinhos. Talvez isto se lhe afigure nepotismo, mas é a sua
forma aceitável, apresentada e instituída como prática corrente pelo Partido
Socialista. O Reiulf Steen não tinha qualquer experiência no Ministério dos
Negócios Estrangeiros quando foi nomeado para o cargo de embaixador no
Chile.
Os olhos voltaram a fixar-se em Møller, um lampejo malicioso a bailar
algures lá dentro.
– Não será demais frisar que esta situação poderia prejudicar a confiança
no primeiro-ministro, se viesse a saber-se que um amigo e camarada de
partido, que ele próprio nomeou, foi apanhado em flagrante num bordel. E,
como se isso não bastasse, assassinado.
O secretário de Estado fez sinal à comissária da Polícia para que
prosseguisse, todavia, Møller não conseguiu conter-se.
– E há alguém que não tenha um amigo que frequentou um bordel?
O sorriso de Askildsen rasgou-se.
O diretor do Ministério dos Negócios Estrangeiros com os seus óculos de
aço tossiu.
– Foi informado do que necessita de saber, Møller. Por favor, deixe os
juízos para nós. Na verdade, precisamos de alguém que garanta que a
investigação deste assunto não sofra… um malogrado revés. Naturalmente,
todos queremos que o assassino, ou assassinos, sejam detidos, mas as
circunstâncias que rodeiam o homicídio devem permanecer em segredo até
indicação em contrário. Para o bem do país. Estamos entendidos?
Møller olhou para as mãos. Para o bem do país. O tanas. Na sua família,
nunca tinham conseguido fazer o que lhes mandavam.
O pai nunca subira nas fileiras da Polícia.
– Diz-nos a experiência que a verdade acaba por vir sempre ao de cima,
herr11 Torhus.
– Efetivamente. Assumirei a responsabilidade desta operação em nome do
Ministério dos Negócios Estrangeiros. Como referi, trata-se de um assunto
um tanto delicado que exigirá a estreita cooperação com a Polícia tailandesa.
Como a embaixada se encontra envolvida, temos uma certa liberdade de
ação... imunidade diplomática e tudo isso... sem esquecer a necessária
cautela. Assim, gostaríamos de enviar alguém dotado de excelentes
capacidades de investigação, experiência internacional e capaz de apresentar
resultados.
Fez uma pausa e olhou para Møller, que se perguntava por que razão sentia
uma instintiva falta de boa vontade em relação ao diplomata de queixo
hostil.
– Podíamos reunir uma equipa com…
– Nada de equipa, Møller. Dá demasiado nas vistas. Além disso, a nossa
comissária é de opinião que uma divisão inteira dificilmente conduziria a um
bom relacionamento com a Polícia local. Um homem.
– Um homem?
– A comissária já indicou um nome, e considerámo-lo uma boa sugestão.
Agora, gostaríamos de saber a sua opinião. Pelas conversas que a comissária
da Polícia teve com o seu colega em Sydney, parece que este inverno ele fez
lá um excelente trabalho na investigação do caso da Inger Holter.
– Li a notícia nos jornais – afirmou Askildsen. – Um caso e tanto. Tem a
certeza de que ele deve ser o nosso homem?
Bjarne Møller engoliu em seco. Pelos vistos, a comissária da Polícia
sugerira que enviassem Harry Hole a Banguecoque. Ele fora chamado para
lhes asseverar que Hole era o melhor que a Polícia tinha a oferecer, o homem
perfeito para o caso.
Observou os presentes sentados à volta da mesa. Política, poder e
influência. Este era um jogo que não conseguia mesmo compreender, no
entanto, tinha consciência de que, de uma maneira ou de outra, acabaria por
lhe cair em cima, e que tudo o que pudesse dizer naquele momento teria
consequências para a sua carreira. A comissária da Polícia arriscara a pele ao
sugerir um nome. Provavelmente, um dos outros solicitara posteriormente
que as competências de Hole fossem reiteradas pelos seus superiores
hierárquicos. Olhou para a sua chefe e procurou interpretar a expressão dela.
Claro que Hole podia vir a fazer um bom trabalho. E se ele os dissuadisse de
o enviarem, isso não daria uma má imagem da comissária? Pedir-lhe-iam que
sugerisse uma alternativa e depois a sua cabeça estaria no cepo se o agente
em questão falhasse.
Møller olhou para o quadro por cima da comissária da Polícia: Trygve Lie,
o secretário-geral das Nações Unidas, fitava-o lá de cima com arrogância.
Também um político. Da janela viam-se os telhados dos prédios iluminados
pela ténue luz de inverno, a fortaleza de Akershus12 e um catavento que
tremelicava fustigado pelas rajadas de vento gélido, no cimo do Hotel
Continental.
Bjarne Møller sabia que era um agente competente, no entanto, nesta
situação, o caso mudava de figura e ele não conhecia as regras. O que lhe
teria aconselhado o pai a fazer? Bem, o agente Møller nunca tivera de lidar
com política, mas sempre soubera o que era importante se queria ser levado a
sério e proibira o filho de entrar para a Escola Superior de Polícia enquanto
não concluísse a primeira parte de um curso de Direito. Ele acatara a decisão
do pai e, após a cerimónia de formatura, o pai não parara de pigarrear,
embargado pela emoção, ao mesmo tempo que dava palmadas nas costas do
filho até ele ter de lhe pedir que parasse.
– Uma excelente sugestão – ouviu-se Bjarne Møller dizer alto e bom som.
– Ótimo – respondeu Torhus. – O motivo pelo qual queríamos uma opinião
tão rapidamente deve-se, como é óbvio, ao caráter urgente do assunto. Ele vai
ter de deixar todo o trabalho que tiver em mãos; partirá amanhã.
«Bem, talvez seja o tipo de trabalho de que o Harry precisa neste
momento», pensou Møller.
– Lamento termos de o privar de um homem tão importante – disse
Askildsen.
O PAS Bjarne Møller teve de fazer um esforço para não desatar às
gargalhadas.
6 Companhia de seguros norueguesa. (N. da T.)
7 A atual sede do Ministério dos Negócios Estrangeiros norueguês. O conjunto de edifícios situa-se no
centro de Oslo e foi construído no século XIX por Henrik Thrap-Meier. (N. da T.)
8 Município da Noruega localizado na zona metropolitana de Oslo. (N. da T.)
12 Situada no centro da cidade, junto ao fiorde de Oslo, a sua construção iniciou-se em 1299, sob as
ordens do rei Haakon V. Conseguiu resistir aos cercos das forças suecas. Foi modernizada no início do
século XVIII, durante o reinado de Cristiano IV. (N. da T.)
3
Quarta-feira, 8 de janeiro
15 Abreviatura de sister, forma carinhosa como Harry trata a irmã. (N. da E.)
4
Quinta-feira, 9 de janeiro
***
– Entre!
Harry abriu a porta e deu de caras com a boca escancarada de Bjarne
Møller. Estava recostado na sua cadeira com as pernas compridas esticadas
debaixo da secretária.
– Até que enfim! Ontem estive à sua espera, Harry.
– Assim me disseram. – Harry sentou-se. – Não trabalho quando estou
bêbedo. Ou vice-versa. É uma espécie de princípio. – Havia uma certa ironia
implícita.
– Um agente da Polícia é um agente da Polícia vinte e quatro horas por dia,
Harry, sóbrio ou não. Tive de convencer o Waaler a não apresentar queixa
sua, sabe?
Harry encolheu os ombros, dando a entender que já dissera tudo o que tinha
a dizer sobre aquele assunto.
– Muito bem, Harry, não vamos discutir isso agora. Tenho uma missão para
si. Na minha opinião não a merece, mas vou confiar-lha na mesma.
– Ficaria satisfeito se eu dissesse que não a quero?
– Deixe lá de se armar em Philip Marlowe16. Não combina consigo –
retorquiu Møller, com brusquidão. Harry esboçou um sorriso afetado. Sabia
que o PAS gostava dele. – Eu ainda não lhe disse do que se trata.
– Uma vez que enviou um carro para me ir buscar durante o meu tempo
livre, presumo que não seja para me pôr a fazer de polícia sinaleiro.
– E presume bem, por isso, agradeço que me deixe terminar.
Harry soltou uma gargalhada seca e breve debruçando-se na cadeira.
– Podemos deixar-nos de rodeios, PAS?
«Mas que rodeios?» quase perguntou Møller, no entanto, limitou-se a
anuir.
– Neste momento, não sou o homem indicado para missões importantes,
chefe. Calculo que tenha reparado como estão as coisas presentemente. Ou
como não estão as coisas. Ou quase não estão. Faço o meu trabalho, tarefas
de rotina, procuro não atrapalhar ninguém e pico o ponto sóbrio à entrada e à
saída. Se eu fosse a si, escolhia um dos outros rapazes.
Møller suspirou, recolheu laboriosamente as pernas e levantou-se.
– Posso deixar-me de rodeios, Harry? Se dependesse de mim, incumbia
outra pessoa. Mas eles querem-no. Por isso, o Harry far-me-ia um enorme
favor…
Harry ergueu o olhar, desconfiado. Ao longo do ano anterior, Bjarne
Møller livrara-o de bastantes apuros, pelo que era apenas uma questão de
tempo antes de ele começar a cobrar a dívida.
– Calma aí! Quem são eles?
– Pessoas em altos cargos. Pessoas que podem tornar a minha vida um
inferno, se não conseguirem o que querem.
– E o que vou receber, se aceitar a missão?
Møller franziu o sobrolho do modo mais hostil possível, no entanto, sempre
tivera dificuldade em estampar uma expressão austera no seu rosto
transparente e ameninado.
– O que vai receber? O seu salário. Enquanto a missão durar. Por amor de
Deus, o que vai receber?!
– Ah, já estou a perceber, chefe. Alguns daqueles manda-chuvas lá em
cima consideram que o agente que desvendou o caso em Sydney o ano
passado deve ser um gajo do caraças e compete-lhe a si metê-lo na ordem.
Estou enganado?
– Por favor, Harry, não estique demasiado a corda.
– Não estou enganado. E também não estava enganado ontem quando vi a
cara do Waaler. Foi por isso que já dormi sobre o assunto e aqui tem a
solução: sou um bom rapaz, compareço no trabalho e, quando o tiver
terminado, você cede-me dois detetives a tempo inteiro durante dois meses e
acesso total a todos os nossos dados.
– De que é que está a falar?
– O senhor sabe do que estou a falar.
– Se tem que ver com o caso da violação da sua irmã, lamento informá-lo
mas a minha resposta é não, Harry. O caso foi encerrado definitivamente,
lembra-se?
– Lembro-me, chefe. Lembro-me do relatório onde se afirmava que ela
tinha síndrome de Down e que, por isso, não era inconcebível que tivesse
inventado a violação para ocultar o facto de ter engravidado de um engate
fortuito. Sim, efetivamente, lembro-me.
– Não existiam quaisquer provas concretas…
– Ela não estava a esconder nada. Por Cristo, homem, eu fui ao
apartamento dela no Sogn e vi o sutiã dela no cesto da roupa suja na casa de
banho, cheio de sangue. Ele ameaçara cortar-lhe os mamilos. Ela ficou
aterrada. Ela pensa que toda a gente é como ela e, quando este sujeito
enfarpelado lhe pagou a refeição e perguntou se queria ver um filme no seu
quarto de hotel, ela pensou que ele estava só a ser simpático. E, ainda que se
lembrasse do número do quarto, este já teria sido aspirado, limpo e a cama
feita de lavado mais de vinte vezes desde que ela fora violada. Não se
encontrariam muitas provas concretas…
– Ninguém tinha qualquer lembrança de lençóis manchados de sangue…
– Já trabalhei em hotéis, Møller. Ficaria surpreendido com a quantidade de
lençóis manchados que são mudados ao longo de duas semanas. As pessoas
estão sempre a sangrar.
Møller abanou vigorosamente a cabeça.
– Lamento. Teve a sua oportunidade de o provar, Harry.
– Não foi suficiente, chefe. Não foi suficiente.
– Nunca é suficiente. Mas você tem de estabelecer o limite algures. Com os
nossos recursos…
– Bem, dê-me carta-branca. Durante um mês.
Subitamente, Møller levantou a cabeça com um olho fechado. Harry sabia
que fora descoberto.
– Seu filho da mãe manhoso. Você sempre quis a missão, não quis? Só
precisava de se fazer de difícil.
Harry projetou o lábio inferior e abanou a cabeça de um lado para o outro.
Møller olhou pela janela. Depois suspirou.
– Muito bem, Harry. Vou ver o que posso fazer. Mas, se você meter os pés
pelas mãos, terei de tomar algumas decisões que algumas pessoas aqui na
Polícia consideram que eu já devia ter tomado há muito tempo. E você sabe o
que isso significa, não sabe?
– Um pontapé no traseiro, chefe – Harry sorriu. – Qual é a missão?
– Espero que tenha levado o seu fato de verão à lavandaria e que se consiga
lembrar onde guardou o passaporte depois da última vez que o usou. O seu
avião parte dentro de doze horas para um destino longínquo.
– Quanto mais longe melhor, PAS.
Sexta-feira, 10 de janeiro
Sexta-feira, 10 de janeiro
Sexta-feira, 10 de janeiro
20 Personagem que surge em quatro peças de William Shakespeare (Henrique IV, 1.ª e 2.ª partes, As
Alegres Comadres de Windsor e Henrique V. É um ladrão e um alcoólico. (N. da T.)
8
Sábado, 11 de janeiro
Sábado, 11 de janeiro
– Eu era apenas a Hilde Melle da Quinta Melle, mas era a mais atraente –
disse ela com a mesma risada seca. Estampou-se-lhe no rosto uma expressão
sofrida e levou o copo aos lábios.
Harry não teve dificuldade em visualizar a viúva como uma beldade jovem
e pura.
Em especial, quando essa imagem acabara de aparecer junto à porta aberta
para o pátio.
– Runa, meu amor, chegaste! Este jovem é Harry Hole. É um agente da
Polícia norueguesa e vai ajudar-nos a descobrir o que aconteceu ao papá.
A filha mal se dignou a olhar para eles e encaminhou-se para o outro lado
da piscina, sem responder. Tinha a compleição e o cabelo escuros da mãe, e
Harry calculou que aquele corpo magro de membros compridos em fato de
banho rondasse os dezassete anos. Ele tinha a obrigação de saber a idade
dela; constava do relatório que lhe fora entregue antes de partir.
Teria sido uma beldade perfeita, tal como a mãe, não fosse um pormenor a
que o relatório não fizera alusão. Durante o tempo que ela levara a contornar
a piscina e a dar três passos lentos e elegantes ao longo da prancha de
mergulho, unindo as pernas e elevando-se no ar, Harry já sentia um nó no
estômago. Do ombro direito dela saía um fino coto em vez de um braço, o
qual conferia ao seu corpo uma forma curiosamente assimétrica, como um
avião com uma asa cortada, enquanto rodava num salto mortal com uma
pirueta. Tudo o que se ouviu foi um chape quando ela atravessou a superfície
verde e desapareceu de vista.
– A Runa é mergulhadora – referiu Hilde Molnes, desnecesariamente.
Ele continuava com o olhar fixo no ponto onde ela desaparecera quando
surgiu uma figura junto à escada da piscina do outro lado. Ela subiu os
degraus e Harry viu as costas dela a ondularem, o sol a reluzir nas gotículas
na sua pele, fazendo o cabelo preto molhado brilhar. O braço mirrado pendia
como uma asa de frango. A saída dela fora tão silenciosa quanto a entrada e o
mergulho; desapareceu pela porta do pátio sem articular uma palavra.
– Provavelmente, ela não sabia que o senhor estava aqui – disse Hilde
Molnes, como se para desculpá-la. – Sabe, ela não gosta que desconhecidos a
vejam sem a prótese.
– Compreendo. Como foi que ela recebeu a notícia?
– Vá-se lá saber. – Hilde Molnes olhava com ar pensativo na direção do
local por onde Runa desaparecera. – Está naquela idade em que não me conta
nada. Nem a ninguém, para dizer a verdade. – Ergueu o copo. – Penso que a
Runa é uma rapariga um pouco especial.
Harry levantou-se, agradeceu-lhe as informações e disse-lhe que ficasse a
aguardar notícias suas. Hilde Molnes chamou-lhe a atenção para o facto de
ele não ter bebido água; Harry fez uma vénia e pediu que a guardasse para a
próxima vez. Ficou com a sensação de que talvez aquelas não tivessem sido
as palavras mais apropriadas, mas, ainda assim, ela soltou uma risada e
esvaziou o seu copo enquanto ele se retirava.
Quando se encaminhava para o portão, um Porsche vermelho com teto de
abrir subiu o acesso. Viu de relance uma franja loura por cima de uns óculos
Ray-Ban e um fato cinzento Armani antes de o carro passar por ele e ir
estacionar na sombra junto à casa.
22 Região situada na parte setentrional da Noruega, na zona dos fiordes, cuja principal cidade é
Ålesund. (N. da T.)
24 A Birmânia é um país do sul da Ásia continental limitado ao norte e nordeste pela China, a leste
pelo Laos, a sudeste pela Tailândia, a sul pelo mar de Andamão e pelo canal do Coco, a oeste pelo
golfo de Bengala e a noroeste pelo Bangladesh e pela Índia. Em 2006, a capital do país foi transferida
de Rangum para Naypyidaw.
O país tornou-se independente do Reino Unido a 4 de janeiro de 1948, com o nome oficial de União da
Birmânia, designação que voltou a adotar após um período como «República Socialista da União da
Birmânia» (de 4 de janeiro de 1974 a 23 de setembro de 1988). A 18 de junho de 1989, o regime militar
birmanês anunciou que o nome oficial do país passaria a ser União de Myanmar. A nova designação foi
reconhecida pelas Nações Unidas e pela União Europeia, mas não pelos governos dos Estados Unidos e
do Reino Unido. De acordo com a Constituição de 2009, o nome do país mudou para «República da
União de Myanmar», medida implementada a 21 de outubro de 2010. (N. da T.)
10
Sábado, 11 de janeiro
Tinham subido bastante o rio. A inspetora apontou para uma casa ao fundo
de um enorme jardim.
– Vive ali um tipo norueguês – disse ela.
– Como é que sabe?
– Houve uma grande polémica nos jornais quando ele construiu aquela
casa. Como pode ver, assemelha-se a um templo. Os budistas sentiram-se
ultrajados com o facto de um «pagão» ir viver ali, chamaram-lhe uma
blasfémia. Para complicar ainda mais a situação, veio a saber-se que ele a
construíra usando materiais de um templo birmanês em território fronteiriço
sob disputa. A situação gerou alguma tensão na altura; houve diversos
tiroteios, e as pessoas acabaram por mudar-se dali. O norueguês comprou o
templo por tuta e meia e, como os templos birmaneses no Norte são
construídos inteiramente com teca, ele desmantelou-o todo e mandou-o
transportar para Banguecoque.
– Curioso – disse Harry. – Como é que ele se chama?
– Ove Klipra. É um dos maiores empreiteiros de Banguecoque. Calculo que
vá ouvir falar dele, se ficar cá uns tempos.
Deu ordem ao barqueiro para virar.
– Gosta de pronto a comer?
Harry olhou para a sopa de aletria na tigela de plástico. Os bocados brancos
faziam lembrar versões pálidas e escanzeladas de esparguete e sentiu-se
nervoso por a sopa se mexer inesperadamente quando enrolava a aletria nos
pauzinhos.
Rangsan entrou para anunciar que Tonya Harding comparecera para
recolha de impressões digitais.
– Já pode falar com ela, se quiser. E mais uma coisa: O Supawadee disse
que já estão a analisar a cápsula encontrada no carro. O resultado deverá
chegar amanhã. Deram-nos prioridade máxima.
– Diga olá e conversa da treta da Polícia – respondeu Harry.
– Digo o quê?
– Diga obrigado.
Harry sorriu com ar embaraçado e Liz engasgou-se de tal maneira que até
lhe saltaram bagos de arroz da boca.
25 Cidade que se localiza no estado da Florida. (N. da T.)
Sábado, 11 de janeiro
29 Pablo Escobar (1949-1993) conquistou fama mundial como barão da droga colombiano, tornando-se
um dos homens mais ricos do mundo graças ao tráfico de cocaína. Na década de 1980, ficou conhecido
internacionalmente e sua rede de distribuição de droga ganhou notoriedade. O Cartel de Medellín terá
sido responsável pela maior parte das drogas que entravam no México, em Porto Rico e na República
Dominicana, com cocaína comprada sobretudo ao Peru e à Bolívia, já que a colombiana era de
qualidade inferior. (N. da T.)
12
Domingo, 12 de janeiro
Domingo, 12 de janeiro
33 Østfold é um condado do Sudeste da Noruega que confina com o condado de Akershus e com a
Suécia a nordeste. Fica situado nas margens do fiorde de Oslo.
É uma região de colinas, coberta de densas florestas no Norte e Leste. Conta com estaleiros navais,
indústrias químicas, da borracha, madeireiras e de papel. (N. da T.)
34 É uma espécie de planta com flor, pertencente à família das Poáceas. Também chamada capim-
napier ou capim-napier-elefante, é nativa da África tropical, tendo sido introduzida nas Américas, Ásia
e Austrália. É uma espécie também presente no território português, nomeadamente no arquipélago da
Madeira. (N. da T.)
14
Domingo, 12 de janeiro
36 Trata-se de uma vasta região no Leste da Ásia que atualmente inclui o extremo nordeste da China e
uma parte da Sibéria. (N. da T.)
15
Domingo, 12 de janeiro
–O que é um pedófilo?
Ståle Aune soltou um suspiro profundo do outro lado da linha.
– Pedófilo? Que rica maneira de começar a conversa. Resumindo, é uma
pessoa que se sente atraída sexualmente por menores.
– E sem ser resumindo?
– Há muita coisa que desconhecemos sobre o fenómeno, mas se falar com
um sexólogo, provavelmente ele fará uma distinção entre os pedófilos
condicionados pela preferência e os pedófilos condicionados pela situação. A
figura clássica de alguém com um saco com guloseimas no jardim é o
condicionamento pela preferência. Os seus interesses pedófilos começam, por
norma, a manifestar-se na adolescência, não necessariamente por qualquer
conflito externo. Ele identifica-se com a criança, adapta o seu comportamento
à idade dela e pode, esporadicamente, assumir um papel pseudoparental. A
atividade sexual é, em regra, planeada cuidadosamente e, para ele, o sexo é
uma tentativa de resolver os problemas na sua vida. Vou ser pago por isto?
– E o condicionamento pela situação?
– Esse já é um grupo mais difuso. As suas preferências sexuais
concentram-se noutros adultos, e a criança tende a ser o substituto de alguém
com quem o pedófilo está em conflito.
– Fale-me do tipo com o saco de guloseimas. O que o estimula?
– Bem, habitualmente, os pedófilos têm uma baixa autoestima e o que se
designa por uma sexualidade frágil. Isto é, mostram-se inseguros, não são
capazes de assumir uma sexualidade adulta e sentem-se fracassados. Julgam
que só conseguem controlar a situação se concretizarem os seus desejos com
crianças.
– E é tudo inato ou adquirido, a habitual conversa fiada?
– Não é invulgar os agressores terem sido abusados sexualmente em
crianças.
– Como podemos reconhecê-los?
– Lamento, Harry, mas não funciona assim. Eles não dão propriamente nas
vistas. Por norma, são homens que vivem sozinhos e têm uma vida social
pobre. A sua identidade sexual pode estar afetada, mas conseguem funcionar
perfeitamente noutras áreas da vida.
– Estou a ver. Logo, não sabe.
– A vergonha gera artistas exímios em camuflagem. A maioria dos
pedófilos levou a vida inteira a treinar a ocultação das suas preferências
perante terceiros, por isso, a única coisa que posso dizer-lhe é que há muitos
mais por aí do que os que a Polícia consegue deter por abuso.
– Dez por cada um que é apanhado.
– O que disse?
– Nada. Obrigado, Ståle. A propósito, coloquei uma rolha na garrafa.
– Oh. Há quantos dias?
– Cerca de quarenta e oito horas.
– Tem custado?
– Bem, pelo menos os monstros permanecem debaixo da cama. Julguei que
pudesse ser pior.
– Ainda mal começou. Lembre-se de que vai ter dias maus.
– E há mais para além de dias maus?
Segunda-feira, 13 de janeiro
41 Alan Greenspan, economista norte-americano que foi presidente da Reserva Federal dos EUA até
janeiro de 2006. (N. da T.)
Segunda-feira, 13 de janeiro
Segunda-feira, 13 de janeiro
Segunda-feira, 13 de janeiro
45 Na mitologia dos países nórdicos, é um génio que simboliza o ar, representado como um anão com
poderes mágicos. (N. da T.)
48 Dispositivo que se adapta ao cano de descarga de um veículo a fim de reduzir o ruído da explosão de
combustível. (N. da T.)
20
Terça-feira, 14 de janeiro
***
– Harry!
Tonje Wiig foi ter com ele à receção, de faces ruborizadas e um sorriso tão
vermelho que desconfiou que ela tivesse aplicado batom antes de sair.
– Temos de tomar um chá – disse ela. – Ao!
Quando ele chegou, a menina Ao olhou para ele, paralisada pelo medo e,
embora ele se tivesse apressado a informar que aquela visita não tinha nada
que ver com a sua pessoa, reparou nos olhos dela, que eram iguais aos de um
antílope junto a uma poça de água, sempre a beber na mira dos leões. Ela
virou-lhes as costas e deixou-os sozinhos.
– Uma rapariga bonita – comentou Tonje, lançando um olhar inquiridor a
Harry.
– Encantadora – disse ele. – Jovem.
Tonje pareceu satisfeita com a resposta e acompanhou-o ao seu gabinete.
– Tentei ligar-lhe a noite passada – informou-o –, mas claro que não estava
em casa.
Harry percebeu que ela queria que lhe perguntasse por que motivo lhe
ligara, no entanto, refreou-se. A menina Ao entrou com o chá, e ele aguardou
que ela se retirasse.
– Preciso de umas informações – disse-lhe.
– Sim?
– Atendendo a que era a encarregada de negócios na ausência do
embaixador, presumo que tenha um registo das ausências dele.
– Como é óbvio.
Indicou-lhe quatro datas, que ela verificou na sua agenda. O embaixador
estivera três vezes em Chiang Mai49 e uma no Vietname. Harry ia tomando
notas lentamente, enquanto se preparava para o desenvolvimento.
– O embaixador conhecia outras norueguesas em Banguecoque para além
da mulher?
– Não… – respondeu Tonje. – Tanto quanto julgo saber. Bem, isto é, para
além de mim.
Harry esperou que ela pousasse a chávena de café antes de lhe perguntar:
– O que me responderia se eu lhe dissesse estar a pensar que você mantinha
uma relação com o embaixador?
Tonje Wiig ficou de queixo caído. Fazia jus à excelência dos cuidados
dentários noruegueses.
– Abrenúncio! – disse de forma tão desprovida de ironia que Harry só pode
presumir que «abrenúncio» ainda existia no vocabulário de algumas
mulheres. Pigarreou.
– Penso que a senhora e o embaixador passaram as datas que acabámos de
verificar no Hotel Maradiz e, a ser verdade, gostaria que me falasse da vossa
relação e me dissesse onde estava no dia em que ele morreu.
Foi surpreendente ver como uma pessoa tão pálida quanto Tonje Wiig pôde
empalidecer ainda mais.
– Devo falar com um advogado? – perguntou, por fim.
– Só se tiver algo a esconder.
Harry viu uma lágrima escorrer-lhe pelo canto do olho.
– Não tenho nada a esconder – retorquiu ela.
– Nesse caso, devia falar comigo.
Ela limpou cuidadosamente o canto do olho, de modo a não esborratar o
rímel.
– Houve alturas em que tive vontade de o matar, detetive.
Harry reparou na mudança da forma de tratamento e aguardou
pacientemente.
– De tal forma, que quase fiquei feliz quando me disseram que estava
morto.
Harry reparou que a língua dela começava a soltar-se. Era importante não
dizer nem fazer nenhuma tolice que interrompesse o fluxo. Uma confissão
raramente vem só.
– Porque ele não queria deixar a mulher?
– Não! – Abanou a cabeça. – O senhor não compreende. Porque ele
estragou tudo por minha causa. Tudo o que…
O primeiro soluço foi tão amargo que Harry percebeu que tocara num
ponto qualquer. Depois, ela recompôs-se e enxugou os olhos.
– Tratou-se de uma nomeação política. Ele não estava minimamente
habilitado para o cargo. Enviaram-no para aqui precipitadamente, como se
não conseguissem tirá-lo da Noruega com rapidez suficiente. Já tinha havido
sinais de que eu seria a candidata ao cargo, mas fui obrigada a entregar as
chaves do gabinete do embaixador a alguém que não sabia distinguir um
encarregado de um adido. E nós nunca tivemos nenhum tipo de relação. Para
mim, só a ideia seria totalmente absurda. Não consegue entender?
– O que aconteceu depois?
– Quando fui chamada para o identificar, esqueci-me por completo da
questão da nomeação; iria ter uma nova oportunidade. Preferi lembrar-me do
homem inteligente e simpático que ele fora. Que ele era! – Proferiu aquelas
palavras como se Harry de alguma forma tivesse contestado. – Apesar de, a
meu ver, ele não ser grande coisa como embaixador. Há aspetos que são mais
importantes do que um emprego e uma carreira. Talvez eu não me devesse
sequer candidatar ao cargo. Veremos. Há tanta coisa em que pensar. Sim,
não, não vou comprometer-me, por enquanto.
Fungou duas vezes e pareceu recuperada.
– Sabe, é muito improvável que um encarregado de negócios seja nomeado
embaixador na mesma embaixada. Tanto quanto julgo saber, nunca
aconteceu.
Tirou um espelho, verificou a maquilhagem e disse, aparentemente de si
para si:
– Mas há sempre uma primeira vez para tudo, presumo.
A rapariga que transpôs a porta de vidro do Hard Rock Café era muito
diferente da que ele vira no jardim e no funeral, daquela que exibira uma
linguagem corporal introvertida e desligada e o semblante mal-humorado e de
desafio. O rosto de Runa rasgou-se num sorriso quando o avistou, sentado
com uma garrafa de Coca-Cola e um jornal diante de si. Trazia um vestido
azul às flores, de manga curta. Qual ilusionista exímia, a prótese passava
praticamente despercebida.
– Chegou cedo – disse ela com satisfação.
– É difícil calcular o tempo por causa do trânsito – respondeu ele. – Não
quis chegar atrasado.
Ela sentou-se e pediu um chá gelado.
– Ontem. A sua mãe…
– Estava a dormir – respondeu concisamente. Tão concisamente que Harry
presumiu tratar-se de um aviso. Mas ele não tinha tempo para estar com
rodeios.
– Embriagada, é isso?
Ela ergueu o olhar para ele. O sorriso feliz evaporara-se.
– Queria falar sobre a minha mãe?
– Entre outras coisas. Como era a relação dos seus pais?
– Porque não lhe pergunta?
– Porque acho que você mente mal – respondeu com sinceridade.
– Ah, sim? Nesse caso, eles pareciam cão e gato. – Retomara a expressão
de desafio.
– Tão mal assim?
Ela contorceu-se.
– Lamento, Runa, mas é o meu trabalho.
Ela encolheu os ombros.
– A minha mãe e eu não nos damos bem. Mas eu e o pai éramos grandes
amigos. Creio que ela tinha ciúmes.
– De quem?
– De nós os dois. Dele. Não sei.
– Porquê dele?
– Ele não parecia precisar dela. Ela era quase invisível para ele…
Harry nem queria acreditar no que se preparava para perguntar. Mas já vira
tantas coisas horríveis ao longo dos anos… Hesitou.
– Por vezes, o seu pai levava-a a um hotel, Runa? O Hotel Maradiz, por
exemplo.
Viu o espanto no rosto dela.
– Como assim? Por que motivo o faria?
Harry baixou o olhar para o jornal em cima da mesa, no entanto, obrigou-se
a erguê-lo.
– O quê? – perguntou ela de súbito, agitando energicamente a colher na
chávena e fazendo transbordar o chá. – Você diz cada coisa mais estranha.
Onde pretende chegar?
– Bem, Runa, eu sei que é difícil, mas penso que o seu pai fez coisas das
quais se viria a arrepender.
– O pai? O pai arrependia-se sempre. Arrependia-se, arcava com a culpa e
queixava-se… mas a bruxa não o deixava em paz. Andava sempre em cima
dele, não és isto e não és aquilo e arrastaste-me para aqui, etc., etc. Ela
julgava que eu não ouvia, mas ouvia. Cada palavra. Ela não tinha sido feita
para viver com um eunuco, ela era uma mulher cheia de paixão. Eu disse ao
meu pai que se fosse embora, mas ele recusou-se. Por minha causa. Ele não o
disse, mas eu sabia que era por isso.
– O que estou a tentar dizer – afirmou ele, baixando a cabeça para a olhar
nos olhos – é que o seu pai não tinha os mesmos desejos sexuais dos outros.
– É por isso que está tão atrapalhado? Por pensar que eu não sabia que o
meu pai era gay?
Harry resistiu ao impulso de abrir a boca.
– O que quer dizer exatamente com gay? – perguntou.
– Bicha. Homossexual. Larilas. Paneleiro. Panasca. Eu sou o resultado das
ínfimas quecas que a bruxa conseguiu arrancar ao meu pai. Ele achava-a
repugnante.
– Ele disse isso?
– Ele era demasiado decente para dizer algo do género. Mas eu sabia. Eu
era a melhor amiga dele. Ele disse isso. De vez em quando, dava a impressão
de que eu era a sua única amiga. «Tu e os cavalos são as únicas coisas de que
eu gosto», disse-me uma vez. Eu e os cavalos. Esta é boa, não? Penso que ele
teve um amante, um tipo, quando era estudante, antes de ter conhecido a
minha mãe. Mas ele deixou-o, não quis assumir a relação. Era justo. O pai
também não queria. Foi há muito tempo. As coisas eram diferentes na altura.
Proferiu aquelas palavras com a confiança inabalável de uma adolescente.
Harry levou a Coca-Cola à boca e bebeu devagar. Precisava de ganhar
tempo. Os desenvolvimentos não eram o que esperara.
– Quer saber quem estava no Hotel Maradiz? – perguntou-lhe Runa. – A
minha mãe e o amante dela.
49 Em tailandês «rosa do Norte», é a segunda maior cidade da Tailândia. Trata-se da capital cultural do
Norte da Tailândia e da província de Chiang Mai. Situa-se 800 km a norte de Banguecoque, numa
região montanhosa. A cidade é banhada pelo rio Ping, afluente do Chao Phraya. (N. da T.)
Terça-feira, 14 de janeiro
53 Gordon Gekko, personagem de ficção do filme de 1987, Wall Street. Foi interpretada por Michael
Douglas, que ganhou um Óscar para Melhor Ator. (N. da T.)
22
Terça-feira, 14 de janeiro
– Logo, esta cláusula sobre o direito de alienação poder ser transferido para
si não era algo de que tivesse já conhecimento?
– Pode ter sido mencionado. Assinei uns papéis, mas isto é extremamente
complicado, não lhe parece? De qualquer forma, nunca prestei atenção antes.
– Não mesmo? – perguntou Harry distraidamente. – Pensei que me tinha
referido algo sobre as pessoas de Sunnmøre…
Ela sorriu languidamente.
– Sempre fui uma má filha da terra.
Harry observou-a com atenção. Estava a fingir-se mais embriagada do que
realmente estava? Coçou o pescoço.
– Há quanto tempo é que a senhora e o Jens Brekke se conhecem?
– Há quanto tempo andamos a foder, é a isso que se refere?
– Bom, a isso também.
– Ora bem, vamos lá estabelecer a sequência correta. Deixe-me cá ver… –
Hilde Molnes franziu o sobrolho e semicerrou os olhos virando-se para o teto.
Tentou apoiar o queixo na mão, mas ele resvalou, e Harry percebeu que se
enganara. Ela estava bêbeda que nem um cacho.
– Conhecemo-nos na receção ao Atle, dois dias depois de chegarmos a
Banguecoque. Começou às oito, a comunidade norueguesa em peso fora
convidada e decorreu no jardim em frente da residência do embaixador. Ele
fodeu-me na garagem, isso deve ter sido passadas duas ou três horas,
suponho. Digo que ele me fodeu porque, provavelmente eu estava tão bêbeda
que ele nem precisou da minha cooperação. Ou consentimento. Mas teve-o na
ocasião seguinte. Ou então na que se seguiu a essa, não me lembro. De
qualquer forma, após alguns encontros, ficámos a conhecer-nos. Foi isso que
perguntou? Sim e, de então para cá, continuámos a conhecer-nos ainda
melhor. Já se dá por satisfeito, detetive?
Harry ficou irritado. Talvez fosse a maneira como ela exibira indiferença e
autodesprezo. Certo é que não lhe dera motivos para continuar a tratá-la com
paninhos quentes.
– Disse que não saiu de casa no dia em que o seu marido morreu. Onde
esteve exatamente desde as cinco da tarde até a informarem de que ele fora
encontrado morto?
– Não me lembro.
Soltou uma gargalhada esganiçada. Fez lembrar um corvo a crocitar numa
floresta silenciosa, e Harry percebeu que tinham começado a dar nas vistas.
Numa ocasião, por pouco ela não caiu da cadeira, mas conseguiu recuperar o
equilíbrio.
– Tire esse ar preocupado, detetive. Eu tenho um álibi, sabe? Não é assim
que se chama? Sim, de facto, um álibi fantástico, posso garantir-lhe. Penso
que a minha filha estará disposta a testemunhar que eu não me conseguia
mexer muito naquela manhã. Recordo-me de abrir uma garrafa de gin depois
do jantar e calculo que tenha adormecido, acordado, tomado mais uma
bebida, adormecido, acordado e assim sucessivamente. Tenho a certeza de
que compreende.
Harry compreendeu.
– Tem algo mais que queira perguntar-me, Hole?
Arrastou as duas vogais do nome dele, não muito, mas o suficiente para o
provocar.
– Apenas se matou o seu marido, fru Molnes.
Com um movimento ágil e extraordinariamente rápido, ela agarrou o copo
e antes que ele conseguisse detê-la, sentiu-o roçar-lhe a orelha e ouviu-o
estilhaçar-se contra a parede por detrás deles. Depois, ela esboçou um esgar.
– Depois disto pode não acreditar, mas fui a melhor marcadora da Divisão
14-16 das Ørsta Girls. – A voz dela estava calma, como se já tivesse deitado
para trás das costas o que acontecera. Harry olhou para os rostos assustados
que se tinham virado para eles. – Dezasseis anos, foi há um ror de tempo. Eu
era a rapariga mais bonita de… hum, provavelmente já lhe disse isto. E, nessa
altura, tinha curvas, não era como agora. Eu e uma amiga costumávamos
entrar acidentalmente de propósito no vestiário dos árbitros enroladas em
toalhas minúsculas, e dizíamos que nos tínhamos enganado na porta a
caminho do balneário. Tudo pela equipa, claro. Mas não creio que tenha
surtido grande efeito sobre os árbitros. Provavelmente estranharam irmos
tomar um duche antes do jogo.
Pôs-se subitamente em pé e gritou:
– Ørstagut, hei, hei, hei, Ørstagut, hei, hei, hei!
Deixou-se cair na cadeira. Fizera-se silêncio na sala.
– Era assim que os encorajávamos. Gritávamos pelos rapazes de Ørsta
porque a palavra para as raparigas não resulta, é isso. Perde completamente o
ritmo. Bem, quem sabe, talvez gostássemos simplesmente de nos exibir.
Harry agarrou-a pelo braço e ajudou-a a descer os degraus. Indicou a
morada dela ao taxista, deu-lhe uma nota de cinco dólares e pediu-lhe que se
certificasse de que ela chegava a casa em segurança. Provavelmente, o
homem não percebera muito do que ele lhe dissera, mas deu a impressão de
ter entendido o que ele pretendia.
Harry entrou num bar na Soi 2, ao fundo, na direção do bairro Silom. Não
havia quase ninguém ao balcão e, no palco, duas raparigas que não tinham
sido compradas para a noite dançavam energicamente, pelos vistos, já sem
muitas esperanças de que isso ainda viesse a acontecer. Bem podiam estar a
lavar loiça enquanto sacudiam conscienciosamente as pernas e os seios
subiam e desciam ao som de «When Susannah Cries»55. Harry não conseguia
dizer ao certo qual lhe parecia mais triste.
Colocaram diante dele uma cerveja que não pedira. Deixou-a intacta, pagou
e ligou para a esquadra da Polícia de uma cabina telefónica junto à casa de
banho dos homens. Não viu nenhuma porta para a das senhoras.
54 Movimento evangelista alemão criado por Johann Heinrich Wichern em 1848. Propagou-se
rapidamente a outros países. Procurava um «renascimento» do cristianismo através da doutrina do amor
fraterno e de um programa de serviço social e educação cristã. (N. da T.)
55 Sucesso musical da década de 1990 criado pelo cantor, compositor e produtor musical norueguês
Espen Lind. (N. da T.)
23
Terça-feira, 14 de janeiro
***
Quarta-feira, 15 de janeiro
58 Palavra oriunda da Mongólia que começou a ser usada no século XV, depois caiu em desuso e
voltou a estar em voga. Significa idiota. (N. da T.)
25
Quarta-feira, 15 de janeiro
***
Quinta-feira, 16 de janeiro
Harry viu a luz acender-se e uma figura à beira da piscina. Depois ela
desapareceu. Parecia uma mulher. Entrara em pânico? Harry apercebera-se
dos primeiros sinais de hipercapnia. Teoricamente, deveria proporcionar-lhe
uma sensação agradável, como começar a adormecer sob o efeito de um
anestésico, mas ele apenas sentiu o terror correr-lhe nas veias como água de
um glaciar. Fez um esforço para se concentrar, respirar calmamente, nem de
mais nem de menos, porém, processar os pensamentos estava a tornar-se um
desafio.
Como tal, nem se apercebeu de que o nível da água começava a baixar, e
quando a mulher saltou para a piscina e o puxou para a superfície, ele teve a
certeza de que um anjo viera buscá-lo.
PARTE QUATRO
27
Sexta-feira, 16 de janeiro
Sexta-feira, 17 de janeiro
Sexta-feira, 17 de janeiro
M aisan e Harry entraram numa rua estreita onde uma brisa escaldante
levantava o lixo acumulado ao longo das paredes frágeis das casas.
Maisan tinha a certeza de que tresandava a Polícia à légua. Além disso, temia
que pudessem levantar suspeitas se de repente entrassem três pessoas no Miss
Duyen’s.
– Fumar ópio não é propriamente uma cena social – explicou Maisan, numa
aproximação de uma pronúncia americana. Harry ficou curioso em saber se a
pronúncia e a T-shirt dos Doors não eram um nadinha excessivas para um
polícia infiltrado dos Narcóticos. Maisan estacou diante de um portão de
ferro forjado que se encontrava aberto, apagou a beata no alcatrão com o
tacão da bota direita e entrou.
Tendo acabado de deixar para trás o sol intenso, de início Harry não
conseguiu ver nada, porém, ouvia vozes baixas e murmuradas e seguiu duas
costas que desapareceram dentro de uma sala.
– Merda!
Harry batera com a cabeça na ombreira da porta e virou-se quando ouviu
gargalhadas familiares. No escuro, junto à parede, julgou distinguir um vulto
enorme, mas podia ter-se enganado. Provavelmente, naquele dia Woo tentaria
não dar nas vistas. Avançou rapidamente para não perder os dois que seguiam
na frente. Eles desapareciam ao fundo de umas escadas e Harry correu atrás
deles. As notas trocaram de mãos e a porta abriu-se o suficiente para eles se
esgueirarem.
Lá dentro tresandava a terra, urina, fumo e ao doce ópio.
A única ideia que Harry tinha de um antro de ópio provinha de um filme de
Sergio Leone60, no qual Robert de Niro ficava entregue aos cuidados de
mulheres que vestiam sarongues61 de seda, todos deitados em camas macias
com almofadas enormes; o ambiente era iluminado por uma luz amarela
suave que fazia com que todo o cenário parecesse sagrado. Pelo menos, era
assim que ele se recordava. Para além da luz suave, pouco mais fazia lembrar
Hollywood. A poeira suspensa no ar dificultava-lhe a respiração e, à exceção
de algumas tarimbas encostadas às paredes, todos estavam deitados em
tapetes e esteiras de bambu no chão de terra duro.
A escuridão e o ar peganhento onde ressoavam tosses esganiçadas e
pigarros ásperos levou Harry a presumir que estivessem apenas meia dúzia de
pessoas ali dentro. Porém, gradualmente, os seus olhos acostumaram-se à
obscuridade, e conseguiu ver uma divisão grande e aberta onde estaria uma
centena de pessoas, na sua maioria homens. Não fosse a tosse, reinava um
silêncio misterioso. A maior parte parecia estar a dormir, outros mal se
mexiam. Viu um velho a segurar um cachimbo com ambas as mãos e inalar
com tanta força que a pele enrugada à volta dos malares até ficou esticada.
Aquilo era insanidade organizada; estavam deitados em filas, que se
dividiam em quadrados para que houvesse espaço para circular entre elas,
muito à semelhança dos cemitérios. Harry seguiu Maisan, que percorria as
filas, olhava para os rostos e tentava suster a respiração.
– Consegue ver o seu homem? – perguntou ele.
Harry abanou a cabeça.
– Está escuro como breu.
Maisan esboçou um sorriso rasgado.
– Ainda tentaram colocar lâmpadas de néon nas paredes para evitar a
roubalheira. Mas as pessoas deixaram de vir.
Maisan aventurou-se ainda mais na escuridão da sala. Não tardou a emergir
do escuro e apontar para a saída.
– Disseram-me que o puto preto vai à Yupa House, ao fundo da rua. Há
pessoas que levam o ópio e fumam-no ali. O dono não os chateia.
Quando as pupilas de Harry já estavam suficientemente dilatadas para ele
conseguir vislumbrar no escuro, viram-se novamente expostos ao enorme
candeeiro de dentista fielmente suspenso no céu lá fora. Pegou nos óculos de
sol e colocou-os.
– Harry, conheço um sítio onde lhe consigo arranjar uns baratos…
– Não, obrigado, estes servem perfeitamente.
Foram buscar Nho. Para um polícia tailandês poder consultar o livro de
hóspedes a Yupa House exigia a identificação, e Maisan não queria ser
identificado naquele bairro.
61 Pano estampado de cores vivas, usado pelas mulheres do Sudeste Asiático e Oceania. É atado à
cintura para cobrir as pernas. (N. da T.)
62 Político sul-vietnamita que foi primeiro-ministro entre 1965 e 1967 e vice-presidente entre 1967 e
1971, altura em que decidiu retirar-se da política. (N. da T.)
30
Sexta-feira, 17 de janeiro
Estava uma carta à porta do seu apartamento e viu o nome de Runa na parte
de trás do envelope.
Desabotoou a camisa. O suor assentava-lhe como uma fina camada de óleo
no peito e no estômago. Procurou recordar-se do que era ter dezassete anos.
Estivera apaixonado? Provavelmente.
Colocou a carta na mesa de cabeceira, por abrir, uma vez que estava a
pensar devolvê-la. Recostou-se depois em cima da cama e meio milhão de
carros e um sistema de ar condicionado tentaram embalá-lo no sono.
Pensou em Birgitta, a rapariga sueca que conhecera na Austrália e que
afirmara amá-lo. Fora isso que Aune dissera? Que ele estava com medo de se
comprometer com outras pessoas? O último pensamento de que teve
consciência foi que toda a redenção se faz acompanhar de uma ressaca. E
vice-versa.
63 Povo pertencente a um grupo étnico nativo da Lapónia, que se estende pelas regiões setentrionais da
Noruega, Suécia, Finlândia e Rússia. (N. da T.)
31
Sábado, 18 de janeiro
J ens Brekke tinha ar de quem não dormia desde a última vez que Harry o
vira. Tinha os olhos raiados de sangue e agitava as mãos em cima da
mesa.
– Portanto, não se lembra do funcionário do parque de estacionamento com
o penteado afro – afirmou Harry.
Brekke abanou a cabeça.
– Como disse, não utilizo o parque de estacionamento.
– Vamos esquecer por agora o Jim Love – disse Harry. – Vamos
concentrar-nos na pessoa que está a tentar metê-lo na choldra.
– O que quer dizer?
– Que alguém se deu a imenso trabalho para destruir o seu álibi.
Jens arqueou tanto as sobrancelhas que estas quase se uniram à linha do
cabelo.
– No dia 13 de janeiro, alguém colocou a cassete do dia 7 de janeiro no
videogravador apagando, assim, o registo do carro do embaixador e do
momento em que o acompanhou ao parque de estacionamento.
As sobrancelhas de Jens voltaram a descer e franziram-se formando um
«M».
– Hã?
– Pense bem.
– Tenho inimigos, é isso que está a dizer?
– Talvez. Ou talvez seja apenas conveniente ter um bode expiatório.
Jens esfregou a nuca.
– Inimigos? Não me ocorre nenhum, pelo menos desse género. – O rosto
dele iluminou-se. – Mas isso deve querer dizer que vai libertar-me.
– Lamento, mas ainda não está livre de perigo.
– Mas acabou de dizer que…
– O chefe da Polícia não vai libertá-lo enquanto não tivermos um álibi. Por
isso, estou a pedir-lhe que faça um esforço para se lembrar. Houve alguém,
uma pessoa qualquer, que o viu depois de se ter despedido do embaixador e
antes de chegar a sua casa? Estava alguém na receção quando deixou o
escritório ou quando apanhou o táxi? Parou num quiosque, qualquer coisa?
Jens apoiou a testa nas pontas dos dedos. Harry acendeu um cigarro.
– Raios, Harry! Você provocou-me uma branca com aquela coisa do vídeo.
Não consigo pensar direito. – Soltou um gemido e bateu com a palma da mão
na mesa. – Sabe o que aconteceu a noite passada? Sonhei que tinha matado o
embaixador. Que saímos pela entrada principal e fomos para um motel onde
o apunhalei nas costas com uma faca de talhante. Tentei parar, mas não
conseguia controlar o meu corpo, era como se eu estivesse preso dentro de
um robot e continuasse a apunhalar, e eu…
Calou-se.
Harry não disse nada e deu-lhe todo o tempo de que ele necessitava.
– O problema é que eu odeio estar preso – disse Jens. – Nunca consegui
suportar tal coisa. O meu pai costumava…
Engoliu em seco e crispou a mão direita. Harry viu-lhe os nós dos dedos
ficarem brancos. Jens prosseguiu quase num murmúrio.
– Se alguém me apresentasse uma confissão dizendo que podia ir-me
embora se a assinasse, nem imagina o que eu era capaz de fazer.
Harry levantou-se.
– Continue a tentar lembrar-se de alguma coisa. Agora que percebemos o
que se passou com a prova do vídeo, talvez consiga pensar com um pouco
mais de clareza.
Encaminhou-se para a porta.
– Harry?
Harry perguntou-se o que levava as pessoas a falar quando se lhes virava as
costas.
– Sim?
– Porque me considera inocente quando todos os outros parecem pensar o
contrário?
Harry respondeu sem se virar.
– Em primeiro lugar, porque não temos nenhuma prova contra si, apenas
um motivo muito fraco e a ausência de um álibi.
– E em segundo?
Harry sorriu e virou a cabeça.
– Porque, da primeira vez que lhe pus a vista em cima, o achei um monte
de merda.
– E?
– Sou péssimo a avaliar as pessoas. Tenha um bom dia.
Quando Harry telefonou a Tonje Wiig para marcar uma reunião o mais
depressa possível, ela fizera questão de que se encontrassem no Authors’
Lounge do Hotel Oriental para tomarem um chá.
– Toda a gente lá vai – dissera ela.
Harry descobrira que «toda a gente» eram os brancos, os ricos e os bem
vestidos.
– Bem-vindo ao melhor hotel do mundo, Harry – pipilou Tonje das
profundezas de uma poltrona no átrio.
Vestia uma saia de algodão azul e segurava um chapéu de palha no colo, o
que, juntamente com todas as outras pessoas no átrio, conferia ao local um
toque do velho colonialismo indiferente.
Retiraram-se para o Authors’ Lounge, onde lhes foi servido chá e baixaram
gentilmente a cabeça aos outros brancos que pareciam convencidos de que
ser branco era motivo suficiente para se cumprimentarem. Nervoso, Harry fez
tinir a porcelana.
– Não é o seu estilo, Harry? – Tonje ia bebendo o seu chá aos golinhos,
enquanto espreitava maliciosamente por cima da borda da chávena.
– Estou a tentar perceber porque sorrio a americanos com roupa de golfe.
Ela soltou uma gargalhada.
– Oh, um ambiente ligeiramente refinado não faz mal a ninguém.
– E alguma vez as calças de xadrez foram refinadas?
– Hum, nesse caso, pessoas refinadas.
Harry apercebeu-se de que a cidade rural de Frederikstad não fizera muito
pela mulher sentada diante de si. Pensou em Sanphet, o velho motorista, que
fora vestir uma camisa engomada e calças compridas e se sentara ao sol
escaldante para que as suas visitas não ficassem embaraçadas com a vida
simples que levava. Aquilo fora mais refinado do que tudo o que vira até ali
entre os estrangeiros em Banguecoque.
Harry perguntou a Tonje o que sabia sobre os pedófilos na Tailândia.
– Apenas que a Tailândia atrai imensos. Como decerto se recordará, um
norueguês foi literalmente apanhado com as calças arriadas em Pattaya o ano
passado. Os jornais noruegueses publicaram uma fotografia
encantadoramente retocada de três rapazinhos a indicarem-no à Polícia. O
rosto do homem tinha sido tapado, mas os dos rapazes não. Na versão em
inglês do Pattaya Mail sucedeu o inverso. E colocaram o nome completo do
homem em destaque e depois disso chamaram-lhe sempre «o norueguês». –
Tonje abanou a cabeça. – As pessoas daqui, que nunca antes tinham ouvido
falar da Noruega, de repente, sabiam que Oslo era a capital porque vinha lá
escrito que as autoridades norueguesas queriam levá-lo para Oslo. Todos se
perguntaram por que carga de água o queriam de volta. Aqui, ele teria ficado
muito tempo atrás das grades.
– Se as sentenças aqui são tão rigorosas, porque existem tantos pedófilos?
– As autoridades querem que a Tailândia se livre da fama de Eldorado dos
pedófilos. Prejudica o turismo genuíno. Contudo, no seio da força policial,
não lhe dão prioridade porque a detenção de estrangeiros só acarreta sarilhos.
– Então, temos as autoridades a trabalharem umas contra as outras?
Tonje esboçou um sorriso radioso que, apercebeu-se Harry, não lhe era
destinado, mas a algum elemento do «toda a gente» que passara por detrás de
si.
– Sim e não – disse ela. – Alguns colaboram. Por exemplo, na Suécia e na
Dinamarca as autoridades celebraram um acordo com o governo tailandês
que lhes permite destacar agentes para aqui a fim de investigarem casos
específicos em que estejam envolvidos suecos ou dinamarqueses. Também
aprovaram legislação em que os nacionais suecos e dinamarqueses podem ser
condenados nos respetivos países por abuso sexual de menores na Tailândia.
– E a Noruega?
Tonje encolheu os ombros.
– Ainda não temos nenhum acordo. Sei que a Polícia norueguesa exigiu um
acordo equivalente, mas não creio que tenham a noção do que se passa em
Pattaya e em Banguecoque. Já reparou nas crianças que andam por aí a
vender pastilhas elásticas?
Harry anuiu. A zona à volta dos clubes noturnos no Patpong estava cheia
delas.
– É o código. A pastilha elástica significa que estão à venda.
Harry apercebeu-se, com um calafrio, de que comprara uma embalagem de
Wrigley’s a um rapaz de olhos negros, descalço, que ficara com um ar
apavorado, que Harry atribuíra à multidão e ao barulho.
– O Ivar Løken, o homem que me indicou na cerimónia fúnebre. Ex-
militar, disse? Pode falar-me um pouco mais do interesse dele pela
fotografia? Já viu algumas das suas fotos?
– Não, mas vi o equipamento dele e é muito impressionante.
As faces dela ruborizaram-se um nadinha quando lhe ocorreu por que
motivo Harry sorrira involuntariamente.
– E estas viagens à Indochina? Tem a certeza de que ele foi mesmo lá?
– Se tenho a certeza? Porque haveria ele de mentir?
– Tem alguma ideia do que o levaria a fazê-lo?
Ela cruzou os braços, como se julgasse que arrefecera.
– Na verdade, não. Como estava o chá?
– Preciso de lhe pedir um favor, Tonje.
– E qual é?
– Um convite para jantar.
Ela ergueu o olhar, surpreendida.
– Se tiver disponibilidade – acrescentou ele.
Brindou-o de novo com um sorriso malicioso.
– A minha agenda está sempre livre para si, Harry. Quando quiser.
– Ótimo. – Harry aspirou o ar entre os dentes. – Estava a perguntar-me se
você podia convidar o Ivar Løken para jantar esta noite entre as sete e as dez.
Ela sabia o suficiente para conseguir manter uma máscara que encobrisse
demasiado constrangimento. Depois, ele explicara-lhe os motivos, e ela até
concordara. Harry produziu mais um tinido com a chávena de porcelana,
disse que tinha de ir andando e retirou-se de forma súbita e desajeitada.
64 Faz fronteira com o condado de Troms, a Lapónia finlandesa e a Rússia (Murmansk). (N. da T.)
65 Localidade portuária da Noruega situada no mar de Barents, na parte mais oriental do condado de
Finnmark. (N. da T.)
32
Sábado, 18 de janeiro
Sábado, 18 de janeiro
L øken acendeu uma vela enquanto Harry observava a arma dele, uma
Glock 31, de fabrico especial. Retirara o pente e guardara-o no bolso. A
arma era mais pesada do que qualquer outra que já tivesse empunhado.
– Arranjei a arma quando prestei serviço militar na Coreia – disse Løken.
– Estou a ver. A Coreia. E o que fez por lá?
Løken guardou os fósforos numa gaveta e sentou-se à mesa diante de
Harry.
– A Noruega tinha lá um hospital de campanha das Nações Unidas, eu era
um jovem segundo-tenente e pensei que ia gostar da agitação. Depois do
armistício, em 1953, continuei a trabalhar para as Nações Unidas, para o
recém-criado Alto Comissariado para os Refugiados. Estes entravam pela
fronteira vindos da Coreia do Norte, e a vida era um pouco anárquica.
Dormia com ela debaixo da almofada. – Apontou para a arma.
– Estou a ver. E o que fez depois disso?
– Seguiu-se o Bangladesh e o Vietname. Fome, guerra e os barcos com
refugiados. Depois disto, a vida na Noruega parecia-me insuportavelmente
trivial, por isso não consegui permanecer afastado mais do que uns dois anos
antes de tornar a sair. Sabe como é.
Harry não sabia. Assim como não sabia se devia acreditar naquele
indivíduo magro sentado diante de si. Parecia um velho chefe índio, com um
nariz aquilino e olhos intensos, encovados. Tinha o cabelo branco, o rosto
bronzeado e enrugado. Além disso, parecia completamente descontraído
perante a situação, o que deixou Harry ainda mais de pé atrás.
– Porque voltou? E como conseguiu passar pelo meu colega?
O norueguês de cabelo branco exibiu um esgar lupino e um dente de ouro
cintilou à luz trémula da vela.
– A viatura em que se deslocou destoa bastante no bairro. Aqui só temos
tuk-tuks, táxis e chaços estacionados. Vi duas pessoas dentro de um carro,
ambas sentadas um pouco direitas de mais. Então, dobrei a esquina e entrei
no café, onde podia ficar a observar-vos. Passado um bocado, vi que a luz do
carro se acendeu e que saíram. Calculei que um dos dois ficasse de vigia e
esperei até o seu colega regressar. Depois, terminei a minha bebida, mandei
parar um táxi, que me levou ao parque de estacionamento subterrâneo e
apanhei o elevador. Que belo numerozinho aquele do curto-circuito…
– As pessoas comuns não reparam nos carros estacionados na rua. A menos
que tenham sido treinadas para o fazer ou estejam na retranca.
– Bem, em primeiro lugar, é pouco provável que a Tonje Wiig vá ganhar
um Óscar pela sua interpretação no convite para jantar.
– Nesse caso, o que faz realmente aqui?
Løken estendeu a mão para as fotografias e o equipamento, naquele
momento espalhados pelo chão.
– Ganha a vida tirando fotografias de… daquilo? – disse Harry.
– Sim.
Harry sentiu as suas pulsações acelerarem.
– Sabe quantos anos vai ficar preso por fazer isto na Tailândia? Calculo que
tenha o suficiente para dez anos.
Løken soltou uma gargalhada, curta e seca.
– Acha que sou estúpido, detetive? Se tivesse um mandado de busca, não
me teria assaltado a casa. Se me arrisco a ser punido pelo que fiz neste
apartamento, então, o que você e o seu colega acabaram de fazer vai, sem
dúvida, absolver-me. Qualquer juiz irá considerar inadmissíveis as provas
obtidas desta forma. Não só é irregular como absolutamente ilegal. Bem pode
contar com uma longa pena, Hole.
Harry agrediu-o com a arma. Foi como abrir uma torneira; o sangue jorrou
do nariz de Løken.
O homem não se mexeu, limitou-se a olhar para a camisa florida e as calças
brancas que iam ficando manchadas de vermelho.
– Isto é seda tailandesa genuína, sabia? – disse ele. – Não é barata.
A violência devia tê-lo feito travar, só que, ao invés, Harry sentiu a sua
fúria crescer.
– Você tem dinheiro para isso, seu pedófilo de um raio. Calculo que lhe
paguem bem por esta merda. – Harry deu um pontapé nas fotografias
espalhadas no chão.
– Bem, não estou tão certo disso – respondeu Løken, levando um lenço
branco ao nariz. – Está de acordo com a tabela salarial da função pública.
Mais um subsídio por colocação no estrangeiro.
– De que está a falar?
O dente de ouro voltou a cintilar. Harry apercebeu-se de que apertava a
arma com tanta força que começava a doer-lhe a mão. Ainda bem que retirara
o carregador.
– Há duas coisas que você não sabe, Hole. Se calhar, deviam tê-lo
informado mas, provavelmente, a sua comissária da Polícia considerou-o
desnecessário por não ter qualquer relação com a sua investigação de
homicídio. Mas agora que fui denunciado, pode ficar a saber o resto. A
comissária da Polícia e o Dagfinn Torhus do Ministério dos Negócios
Estrangeiros falaram-me das fotografias que você encontrou na pasta do
embaixador e, evidentemente agora já sabe que são minhas. – Prosseguiu
com a palma da mão estendida. – Tanto essas fotografias como as que está a
ver aqui são elos numa investigação de pedofilia que, por muitas e variadas
razões, é secreta até indicação em contrário. Há mais de seis meses que vigio
este homem. As fotografias constituem a prova disso.
Harry nem por um momento duvidou; sabia que era verdade. Tudo se
encaixava, como se, lá no fundo, sempre o soubesse. O secretismo em torno
do trabalho de Løken, o equipamento fotográfico, os binóculos de visão
noturna, as viagens ao Vietname e ao Laos, tudo se encaixava. E o homem
diante de si a sangrar do nariz deixara de ser seu inimigo, era um colega, um
aliado cujo nariz ele bem se esforçara por partir.
Anuiu lentamente e colocou a arma em cima da mesa.
– Muito bem, acredito em si. Porquê tanto secretismo?
– Tem conhecimento do acordo que a Suécia e a Dinamarca assinaram com
a Tailândia para investigarem casos de abuso sexual aqui?
Harry anuiu.
– Bem, a Noruega encontra-se em negociações com as autoridades
tailandesas e, enquanto isso, estou a conduzir uma investigação
extremamente oficiosa. Temos o suficiente para o prender, mas vamos ter de
esperar. Se o fizéssemos agora, teríamos de reconhecer ter andado a
investigar ilegalmente o caso em território tailandês, e isso politicamente é
inaceitável.
– Nesse caso, para quem trabalha?
Løken abriu as mãos.
– Para a embaixada.
– Eu sei, mas de onde partem as ordens? Quem se encontra por detrás de
tudo? E o Parlamento? Tem conhecimento disto?
– Quer mesmo saber de tudo, Hole?
Os olhos intensos cravaram-se nos de Harry. Ele ia dizer algo, mas
arrependeu-se e abanou a cabeça.
– Ao menos, diga-me quem é o homem na fotografia.
– Não posso. Lamento, Hole.
– É o Atle Molnes?
Løken olhou fixamente para a mesa e sorriu.
– Não, não é o embaixador. Ele foi o impulsionador deste caso.
– É…?
– Como disse, não tenho qualquer motivo para lhe contar neste momento.
Se os nossos casos chegarem a cruzar-se, pode vir a constituir um tema de
debate, mas a decisão caberá aos nossos superiores. – Pôs-se de pé. – Estou
cansado.
Domingo, 19 de janeiro
Domingo, 19 de janeiro
***
Domingo, 19 de janeiro
– O Ove Klipra constrói estradas. Para além disso, temos muito pouco
sobre ele. Sabemos que veio para a Tailândia com vinte e cinco anos, um
diploma em Engenharia e má reputação, e que mudou o nome de Pedresen
para Klipra, que é o nome de uma zona em Ålesund, onde ele cresceu.
Estavam sentados num sofá fundo de couro e, diante deles havia uma
aparelhagem estéreo, um televisor e uma mesa com uma cerveja, uma garrafa
de água, dois microfones e um livro de canções. Inicialmente, quando Løken
disse que iam a um bar de karaoke, Harry presumiu que ele estava a brincar
até lhe ser explicada a razão. Podiam arrendar uma sala insonorizada à hora,
sem referir nomes, encomendar as bebidas que quisessem e, além disso,
deixavam-nos em paz. Para além de haver pessoas suficientes para eles
entrarem e saírem sem serem notados. Era, simplesmente, o lugar ideal para
encontros secretos e, pelos vistos, já não era a primeira vez que Løken lá ia.
– Que tipo de má reputação?
– Quando começámos a aprofundar este caso, descobrimos dois episódios
com rapazes menores em Ålesund. Não tinha sido apresentada qualquer
queixa, mas os boatos espalharam-se e ele entendeu que chegara a hora de se
pôr a andar. Quando aqui chegou, criou uma empresa de engenharia, mandou
fazer uns cartões de visita profissionais, em que exibia o título de doutor, e
começou a bater às portas dizendo que sabia construir estradas. Nessa altura,
há vinte anos, só existiam duas maneiras de fazer aprovar projetos de
construção de estradas: ou ter conhecimentos no governo ou dinheiro
suficiente para o subornar. Como o Klipra não tinha nem uns nem outro,
obviamente as hipóteses não eram grandes. Mas tinha aprendido duas coisas
que constituem, sem dúvida, a base da fortuna que ele tem hoje: o tailandês e
a lisonja. Não exagerei na parte da lisonja; ele tem-se gabado dela aos
noruegueses que vivem aqui. Afirma que se tornou tão exímio a sorrir que até
os tailandeses consideraram exagerado. Além disso, partilhou o seu interesse
por rapazinhos com alguns políticos com quem começou a dar-se.
Possivelmente era vantajoso partilhar os vícios com eles, atendendo a que os
contratos para a construção da chamada Hopewell Bangkok Elevated Road
and Train System68, BERTS, iam ser atribuídos.
– Estrada e comboio?
– Sim. Provavelmente reparou nos enormes pilares de aço que estão a
cravar no solo por toda a cidade.
Harry anuiu.
– De momento, existem seis mil pilares, e mais serão. E não apenas para a
autoestrada, porque o novo comboio passará por cima dela. Estamos a falar
de cinquenta quilómetros de autoestrada ultramoderna e sessenta quilómetros
de carris no valor de vinte e cinco mil milhões de coroas, a fim de salvar esta
cidade de se sufocar. Entende? Este projeto será o mais grandioso em
construção rodoviária que alguma cidade já teve, o Messias do alcatrão e das
chulipas.
– E o Klipra está metido nisso?
– Parece que ninguém sabe quem está ou não metido nisto. O que se sabe é
que o principal interessado de Hong Kong se retirou e o orçamento e o plano
provavelmente irão por água abaixo.
– Uma derrapagem orçamental? Estou chocado – comentou Harry, com
secura.
– Mas isso significa que haverá, sem dúvida, mais para os outros
candidatos, e palpita-me que o Klipra já está muito envolvido no projeto. Se
houver desistências, os políticos terão de aceitar que os outros ajustem as
suas ofertas. Se o Klipra tiver capacidade financeira para agarrar o projeto
todo, não tarda pode vir a tornar-se um dos empresários mais poderosos da
região.
– Sim, mas e o que é que isso tem que ver com o abuso de menores?
– Apenas que os homens poderosos têm tendência para mudar as regras a
seu favor. Não tenho motivos para duvidar da integridade do atual governo,
mas se o homem tiver influência política e uma detenção vier atrasar ainda
mais todo o programa de construção, as hipóteses de extradição diminuem.
– Nesse caso, o que está a fazer?
– As coisas estão em marcha. Aguardamos a entrada em vigor do novo
acordo de extradição. Assim que isso acontecer, esperamos um pouco,
prendemos o Klipra e explicamos às autoridades tailandesas que as
fotografias foram tiradas após a assinatura do acordo.
– E condenamo-lo por abuso sexual de menores?
– E possivelmente por homicídio. – Harry recuou na cadeira. – Tem a
noção de que foi a única pessoa que conseguiu associar o punhal ao Klipra,
detetive? – perguntou Løken, tentando acender o cachimbo.
– O que sabe a respeito do punhal? – perguntou Harry.
– Acompanhei a Tonje Wiig ao motel quando ela foi identificar o
embaixador. Tirei algumas fotografias.
– Enquanto estava uma quantidade de agentes da Polícia de pé a observar?
– Bem, é uma máquina fotográfica muito pequena. Cabe num relógio de
pulso, como este aqui. – Løken sorriu. – Não se encontra à venda nas lojas.
– E depois fez a ligação entre o mosaico de vidro e a casa do Klipra?
– Estive em contacto com uma das pessoas envolvidas na venda do templo
ao Klipra, um pongyi do Centro Mahasi, em Rangum. O punhal fazia parte
dos ornamentos do templo e foi comprado pelo Klipra. Segundo o monge,
são fabricados aos pares. Deveria existir outro punhal idêntico.
– Espere aí – disse Harry. – Se contactou esse monge, deve ter calculado
que o punhal estava, de alguma maneira, ligado aos templos birmaneses.
Løken encolheu os ombros.
– Vá lá – disse Harry –, você também não é historiador de arte. E nós
tivemos de recorrer a um professor só para confirmar a existência de uma
ligação a um Shan qualquer. Você já desconfiava do Klipra antes sequer de
ter perguntado.
Løken queimou os dedos e largou o fósforo, entediado.
– Eu tinha motivos para acreditar que o homicídio podia ter algo que ver
com o Klipra. Sabe, eu estava sentado no apartamento em frente à casa do
Klipra no dia em que o embaixador foi assassinado.
– E?
– O Atle Molnes chegou por volta das sete. Às oito, ele e o Klipra saíram
no carro do embaixador.
– Tem a certeza de que eram eles? Eu vi o carro e, à semelhança da maior
parte dos automóveis da embaixada, os vidros são fumados, quase opacos.
– Eu vi o Klipra através da objetiva quando o carro chegou e estacionou na
garagem. E existe uma porta de acesso à casa, por isso, inicialmente só vi o
Klipra levantar-se e encaminhar-se para a porta. Depois não vi ninguém
durante um bocado, até avistar o embaixador a andar pela sala.
Posteriormente, o carro foi-se embora outra vez e o Klipra desapareceu.
– Não pode ter a certeza de que era o embaixador.
– Porque não?
– Porque do sítio onde estava sentado só podia ter visto a metade inferior
dele, o resto estava escondido pelo mosaico.
Løken soltou uma gargalhada.
– Bem, isso foi mais do que suficiente – disse ele e conseguiu finalmente
acender o cachimbo. Soltou baforadas com ar de satisfação. – Porque só
havia uma pessoa que andava por aí com um fato amarelo-vivo como o dele.
Noutras circunstâncias, Harry teria forçado um sorriso, naquele momento,
porém, havia muitas outras coisas às voltas na sua cabeça.
– Porque não foram o Torhus e a comissária da Polícia informados disto?
– E quem lhe diz que não foram?
Harry sentiu alguma pressão por detrás dos olhos. Os políticos tinham-no
mantido completamente às escuras. Olhou à sua volta em busca de algo para
partir.
67 Em espanhol no original. (N. da T.)
Domingo, 19 de janeiro
Segunda-feira, 20 de janeiro
70 Designação, na sua forma abreviada, de sepaktakraw. O jogo surgiu há mais de quinhentos anos, no
Sudeste Asiático. Tradicionalmente, o takraw era jogado em círculo, em que um jogador passava a bola
a outro sem deixá-la cair. No primeiro quartel do século passado, um grupo de entusiastas do desporto
introduziu o uso da rede e estabeleceu regras para o tornar mais atrativo. O principal objetivo é passar a
bola sobre a rede utilizando qualquer parte do corpo, exceto as mãos e os braços. Cada equipa é
composta por três jogadores. São permitidos, no máximo, três toques antes de a bola passar para o lado
do adversário, sendo que um mesmo jogador pode executar sozinho esses três toques. É permitido
bloquear, desde que as mãos e os braços não toquem na bola e o jogador não toque na rede. (N. da T.)
39
Segunda-feira, 20 de janeiro
Terça-feira, 21 de janeiro
J á eram quase dez horas quando Harry chegou ao gabinete. Cruzou-se com
Nho, que vinha a sair.
– Já soube?
– Soube o quê?
– Das ordens da sua comissária da Polícia em Oslo?
Harry abanou a cabeça.
– Tivemos conhecimento na reunião desta manhã. Os manda-chuvas
estiveram reunidos.
Harry entrou de rompante no gabinete de Liz, que deu um pulo na cadeira.
– Bom-dia, Harry.
– Não, não é. Só me deitei às cinco. Mas o que vem a ser isto de abrandar a
investigação?
Liz suspirou.
– Parece que os nossos chefes estiveram outra vez a conferenciar. A sua
comissária da Polícia tem andado a falar de cortes orçamentais e reduções de
pessoal e quere-o de volta, e o nosso chefe da Polícia começou a ficar
nervoso por causa de todos os outros casos de homicídio que abandonámos
quando surgiu este. Claro que não falam em arquivar o caso, mas em alterar-
lhe o grau de prioridade para normal.
– O que significa...?
– Significa que me disseram para me certificar de que você embarcará num
avião dentro de dois dias.
– E?
– Eu disse-lhes que, em janeiro, os voos costumam estar completamente
lotados, por isso, pode demorar pelo menos uma semana.
– Logo, temos uma semana?
– Não. Se não houver lugares em turística, mandaram-me fazer a reserva
em executiva.
Harry soltou uma gargalhada.
– Trinta mil coroas. Cortes orçamentais? Eles estão mas é a ficar nervosos,
Liz.
A cadeira chiou quando Liz se recostou.
– Quer falar sobre o assunto, Harry?
– E você quer?
– Não sei se quero falar – disse ela. – Há coisas que é preferível deixar
como estão, não é verdade?
– Nesse caso, porque não fazemos isso?
Ela virou a cabeça, abriu as persianas e espreitou lá para fora. Da forma
como Harry estava sentado, parecia que a luz do sol conferia uma espécie de
auréola branca à careca reluzente de Liz.
– Sabe qual é o salário médio de um recruta da Polícia nacional, Harry?
Cento e cinquenta dólares mensais. Existem cento e vinte mil agentes na
força a tentar prover ao sustento das suas famílias, mas nós não conseguimos
pagar-lhes o suficiente para eles se sustentarem. Acha assim tão estranho que
eles tentem complementar os seus salários fazendo vista grossa?
– Não.
Ela suspirou.
– Pessoalmente, nunca consegui deixar as coisas como estão. Deus sabe
como me dava jeito ganhar mais algum extra, mas não me sinto confortável
com a situação. Provavelmente, isto parece um pouco o Juramento das
Escuteiras, mas, na verdade, alguém tem de fazer o trabalho.
– Além disso, é da sua…
– Responsabilidade, sim. – Esboçou um sorriso cansado. – Todos temos de
carregar as nossas cruzes.
Harry começou a falar. Liz foi buscar café, informou a central telefónica de
que não recebia chamadas, tomou nota de algo, foi buscar mais café, olhou
demoradamente para o teto, praguejou e, por último, mandou Harry retirar-se
para poder pensar.
Uma hora depois, voltou a chamá-lo. Estava furiosa.
– Merda, Harry, sabe o que me está a pedir para fazer?
– Sei e, pelos vistos, você também sabe.
– Se concordar dar-lhe cobertura a si e a esse Løken, estou a arriscar o meu
emprego.
– E eu agradeço.
– Vá-se lixar!
Harry fez um sorriso rasgado.
Harry tornou a sonhar com ela. Cabelo ruivo espalhado à sua volta e os
olhos calmos e seguros. Ficou à espera do que costumava seguir-se, algas a
saírem-lhe da boca e das órbitas, mas isso não sucedeu.
– Fala o Jens.
Harry acordou e apercebeu-se de que atendera o telefone a dormir.
– Jens?
Perguntou-se por que motivo o seu coração começara subitamente a bater
muito depressa.
– Desculpe, Harry, mas é uma emergência. A Runa desapareceu.
Harry ficou logo desperto.
– A Hilde está numa grande agitação. A Runa devia ter chegado a casa para
jantar, e já são três da manhã. Liguei à Polícia, e eles alertaram os carros-
patrulha, mas eu também queria a sua ajuda.
– Para fazer o quê?
– Para fazer o quê? Não sei. Podia vir até cá? A Hilde não para de chorar.
Harry conseguiu imaginar a cena. Não lhe apetecia nada assistir ao resto.
– Oiça, Jens, neste momento, pouco ou nada posso fazer. Dê-lhe um
Valium se ela não estiver demasiado embriagada e telefone a todos os amigos
da Runa.
– A Polícia disse o mesmo. A Hilde diz que ela não tem amigos.
– Merda!
PARTE CINCO
41
Quarta-feira, 22 de janeiro
Harry Hole. Estou de olho em si. Não se aproxime mais. Ela será
devolvida sã e salva quando você estiver no avião de volta ao seu país.
Consigo encontrá-lo seja onde for. Você está sozinho, muito sozinho. Número
20.
Quarta-feira, 22 de janeiro
L iz levou a chávena de café à boca e sorveu com tal ruído que Løken
trocou um olhar com Harry, de sobrolho arqueado, como se perguntasse
quem era aquela criatura. Estavam no Millie’s Karaoke. De uma fotografia na
parede, uma Madonna louro-platinada olhava-os com uma expressão de
desejo, enquanto uma versão digital para ser cantada de I Just Called to Say I
Love You72 ia avançando alegremente. Harry tentou desligar o controlo
remoto. Tinham lido a carta e ninguém respondera ainda. Harry encontrou o
botão certo e a música parou subitamente.
– Era o que lhe queria contar – disse Harry. – Como pode ver, temos uma
fuga.
– Então e a escuta que, segundo afirma, este tal Woo colocou no seu
telefone? – perguntou Løken.
– Não explica que o autor da carta saiba que andamos atrás dele. Eu pouco
ou nada disse ao telefone. De qualquer forma, a partir de agora, sugiro que
nos encontremos aqui. Se descobrirmos o informador, talvez ele ou ela nos
consiga levar ao Klipra, mas não creio que devamos começar por aí.
Sentia-se como um peixe fora de água. Harry tinha a sensação de que não
era fulcral para o caso, tão-somente mais um norueguês à procura de um
clima melhor. Roald Bork estava com a mesma cara que no funeral, os
mesmos olhos azuis vivos e uma corrente de ouro bem à vista. Encontrava-se
ao portão quando Harry virou rapidamente o enorme Toyota 4x4 diante da
casa dele. A poeira assentou na gravilha enquanto Harry se desembaraçava
do cinto de segurança e tirava a chave da ignição. Como sempre, não estava
preparado para o calor que o atingiu quando saiu do carro e, instintivamente,
abriu a boca para poder respirar. Havia um travo a sal no ar, o que lhe indicou
que o mar ficava mesmo por detrás das colinas.
– Ouvi-o subir o acesso – disse Bork. – Um veículo e tanto, hein?
– Aluguei o maior que havia – explicou Harry. – Aprendi que nos confere
alguma prioridade. Precisamos dela com os malucos daqui a conduzirem pela
esquerda.
Bork soltou uma gargalhada.
– Deu com a nova autoestrada de que lhe falei?
– Dei, sim. Só que, como ainda não estava concluída, colocaram uma
barreira de sacas de areia em dois sítios. Mas toda a gente passou por cima
delas e eu segui-lhes o exemplo.
– Isso parece-me bem – respondeu Bork. – Não é completamente legal,
mas também não é ilegal. É assim tão estranho que nos apaixonemos por este
país?
Descalçaram-se e entraram na casa. As lajes de pedra fria fizeram
comichão nos pés de Harry. Na sala de estar havia fotografias de Fridtjof
Nansen73, Henrik Ibsen74 e da família real norueguesa. Numa, via-se um
rapazinho sentado numa cómoda, a olhar de soslaio para a objetiva. Rondaria
os dez anos e tinha uma bola de futebol debaixo do braço. Viam-se
documentos e jornais cuidadosamente arrumados em pilhas em cima da mesa
da sala de jantar e do piano.
– Tenho estado a tentar pôr um pouco de ordem na minha vida – disse
Bork. – Descobrir o que aconteceu e porquê.
Indicou uma das pilhas.
– Aqueles são os papéis do divórcio. Olho para eles e procuro lembrar-me.
Entrou uma rapariga que trazia uma bandeja. Harry provou o café que ela
servira e lançou-lhe um olhar enigmático quando se apercebeu de que estava
gelado.
– É casado, Hole? – perguntou-lhe Bork.
Harry abanou a cabeça.
– Ainda bem. Mantenha-se assim. Mais cedo ou mais tarde, vão tentar tirar-
nos tudo. Tenho uma mulher que me arruinou e um filho adulto que está a
tentar fazer o mesmo. E não consigo perceber que mal lhes fiz para merecer
tal sorte.
– Como veio parar aqui? – perguntou Harry, bebendo outro gole. Na
verdade, até nem era nada mau.
– Vim cá fazer um trabalho para a Televerket75 quando estavam a instalar
duas centrais para uma empresa telefónica. Depois da terceira viagem nunca
mais me fui embora.
– Nunca?
– Divorciei-me e tinha aqui tudo o que necessitava. Durante uns tempos
convenci-me mesmo de que sentia saudades de um verão norueguês, dos
fiordes e das montanhas e, bem, você entende, de tudo o resto. – Fez um
gesto com a cabeça na direção dos quadros na parede, como se eles pudessem
preencher tudo o resto. – Depois fui à Noruega duas vezes, mas de ambas
regressei passada uma semana. Não aguentei, fiquei desejoso de voltar para
cá assim que pisei solo norueguês. Apercebi-me agora de que o meu lugar é
aqui.
– E como ocupa o seu tempo?
– Sou um consultor de telecomunicações à beira da reforma, faço um
trabalho ou outro, mas não demasiados. Procuro calcular quanto tempo me
resta e de quanto vou necessitar nesse período. Não quero deixar um único
øre76 aos abutres. – Soltou uma gargalhada e a sua mão agitou-se por cima
dos papéis do divórcio como se para afastar um mau cheiro.
– Então e o Ove Klipra? Porque continua ele aqui?
– O Klipra? Hum, calculo que ele tenha uma história semelhante para
contar. Nenhum de nós tinha bons motivos para regressar.
– Provavelmente, o Klipra tinha muito bons motivos para não o fazer.
– Todos esses mexericos são um completo absurdo. Se o Ove estivesse
metido nesse tipo de coisa, eu nunca me relacionaria com ele.
– De certeza?
Os olhos de Bork dardejaram.
– Houve uns noruegueses que vieram para cá pelas razões erradas. Como
sabe, sou uma figura de relevo no círculo norueguês na cidade, e sentimos
uma certa responsabilidade pelo que os nossos compatriotas fazem aqui. A
maioria de nós é gente de bem, e fez o que tinha de ser feito. Esses malditos
pedófilos destruíram de tal forma a reputação de Pattaya que, quando as
pessoas nos perguntam onde moramos, muitas começaram a responder em
bairros como Naklua e Jomtien.
– O que significa ao certo «o que tinha de ser feito»?
– Digamos que dois voltaram para o seu país e um, infelizmente, não
conseguiu.
– Atirou-se de uma janela? – alvitrou Harry.
Bork soltou uma sonora gargalhada.
– Não, não chegámos a tanto. Mas é, provavelmente, a primeira vez que a
Polícia recebe uma chamada anónima em tailandês com pronúncia de
Nordland.
Harry sorriu.
– É o seu filho? – Indicou a fotografia em cima da cómoda.
Bork ficou um pouco desconcertado, mas assentiu.
– Parece um rapaz simpático.
– Nessa altura era. – Bork sorriu com olhos tristes e repetiu-se: – Era.
Harry olhou para o seu relógio de pulso. A viagem de Banguecoque
demorara quase três horas, mas ele conduzira como se fosse um aprendiz até
relaxar um pouco nos últimos quilómetros. Talvez conseguisse regressar em
pouco mais de duas. Tirou três fotografias da sua pasta e colocou-as em cima
da mesa. Løken ampliara-as para 24 x 30 centímetros, a fim de maximizar o
efeito de choque total.
– Pensamos que o Ove Klipra tem um esconderijo próximo de
Banguecoque. Podemos contar com a sua ajuda?
72 Tema interpretado por Stevie Wonder para o filme A Mulher de Vermelho, lançado em 1984.
Ganhou o Óscar de Melhor Canção Original em 1985. (N. da T.)
73 Fridtjof Nansen (1861-1930) foi um cientista, explorador polar, aventureiro e político norueguês.
Enquanto delegado norueguês na Sociedade das Nações, criou o passaporte Nansen para os refugiados,
tendo sido galardoado com o Nobel da Paz em 1922. (N. da T.)
74 Dramaturgo norueguês (1828-1906) considerado um dos criadores do teatro realista moderno. Entre
seus maiores trabalhos destacam-se: Peer Gynt, Um Inimigo do Povo, Casa de Bonecas ou Hedda
Gabler. (N. da T.)
75 Designação, à época em que o livro foi publicado na sua versão original (1998), da empresa pública
de telecomunicações da Noruega, hoje conhecida como Telenor. (N. da T.)
Quarta-feira, 22 de janeiro
Era quase meia-noite quando Harry bateu à porta. Hilde Molnes abriu-a.
Ele baixou o olhar; não telefonara de antemão e percebeu, pela respiração
dela, que não tardaria a desfazer-se em lágrimas.
Sentaram-se um diante do outro na sala de estar. Não conseguia ver
nenhum resto na garrafa de gin, e ela parecia suficientemente lúcida. Limpou
as lágrimas.
– Ela ia ser mergulhadora, sabe?
Ele anuiu.
– Mas eles não a queriam deixar participar nas competições normais.
Diziam que os juízes não sabiam avaliá-la. Algumas pessoas diziam que era
uma injustiça. Mergulhar só com um braço trazia vantagens.
– Lamento – disse ele.
Foi a primeira coisa que disse desde que chegara.
– A Runa não sabia – disse ela. – Se soubesse não tinha falado comigo
daquela maneira.
O rosto dela contorceu-se, soluçou e as lágrimas escorreram-lhe pelas rugas
junto à boca como pequenos riachos.
– Ela não sabia o quê, fru Molnes?
– Que eu estou doente! – exclamou e cobriu o rosto com as mãos.
– Doente?
– Por que outro motivo julga que me anestesiava desta maneira? O meu
corpo não tarda a ser consumido. São apenas células podres, apenas células
mortas.
Harry ficou em silêncio.
– Eu fazia tenções de lhe contar – murmurou por entre os dedos. – Os
médicos deram-me seis meses. Mas eu queria contar-lhe num dia bom. – Mal
se lhe ouvia a voz. – Só que não houve dias bons.
Harry, incapaz de continuar sentado, pôs-se de pé. Encaminhou-se para a
janela grande com vista para o jardim, evitou as fotografias de família na
parede porque sabia quem os seus olhos iam encontrar lá. A Lua refletia-se
na piscina.
– Eles voltaram a telefonar, os homens a quem o seu marido devia
dinheiro?
Ela baixou as mãos. Os olhos estavam vermelhos do choro e feios.
– Telefonaram, mas o Jens estava aqui e falou com eles. Desde então, não
tive mais notícias.
– Portanto, ele cuida de si, não cuida?
Harry não soube porque lhe fizera especificamente aquela pergunta. Talvez
não passasse de uma tentativa desajeitada de a consolar, de lhe lembrar que
ainda tinha alguém.
Ela anuiu em silêncio.
– E agora vai casar-se?
– Tem alguma objeção?
Harry virou-se para ela.
– Não, porque haveria de ter?
– A Runa… – Não conseguiu prosseguir, e as lágrimas recomeçaram a
escorrer-lhe pelas faces. – Não fui muito amada na minha vida, Hole. Será
pedir muito querer alguns meses de felicidade antes do fim? Ela não podia
conceder-me isso?
Harry observou uma pequena pétala que descia em direção à piscina. Fez-
lhe lembrar os cargueiros que vinham da Malásia.
– Ama-o, fru Molnes?
No silêncio que se seguiu, ficou à espera de ouvir uma fanfarra.
– Amá-lo? Que importância tem isso? Sou capaz de imaginar-me a amá-lo.
Julgo que conseguia amar alguém que me ame. Compreende?
Harry olhou para o bar. Estava a três passos. Três passos, dois cubos de
gelo e um copo. Fechou os olhos e imaginou que ouvia os cubos de gelo a
tilintar no copo, o gorgolejar da garrafa ao deitar o líquido castanho sobre
eles e, por fim, o silvo da soda a misturar-se com o álcool.
44
Quinta-feira, 23 de janeiro
Sexta-feira, 24 de janeiro
Harry estava sentado no gabinete de Liz quando ela entrou por ali adentro
completamente esbaforida. Tinha gotas de suor na testa.
– Oh, meu Deus! – disse ela. – Lá fora sente-se o alcatrão através das solas
dos sapatos.
– Como correu o briefing?
– Bem, presumo. Os chefes congratularam-nos pela resolução do caso e
não fizeram perguntas específicas sobre o relatório. Até engoliram a nossa
patranha das informações anónimas que nos levaram ao Klipra. Se o chefe
suspeitou de alguma coisa, decidiu não fazer alarido.
– Não creio que o fizesse. Afinal, ele não tem nada a lucrar.
– Deteto algum cinismo, senhor Hole?
– De modo algum, menina Crumley. Apenas um jovem detetive ingénuo
que começa a perceber as regras do jogo.
– Talvez, mas, no fundo, devem estar todos satisfeitos com a morte do
Klipra. Se o caso fosse a tribunal, viriam ao de cima algumas verdades
incómodas não só para alguns chefes da Polícia mas também para as
autoridades de ambos os países.
Liz descalçou-se e recostou-se, com ar satisfeito. As molas da cadeira
chiaram enquanto o inconfundível cheiro a chulé se espalhou pela sala.
– Sim, vinha mesmo a calhar para uma série de pessoas, não lhe parece? –
comentou Harry.
– O que quer dizer com isso?
– Não sei. Acho que cheira mal.
Liz olhou para os dedos dos seus pés e depois para Harry.
– Já lhe disseram que você é paranoico, Harry?
– Sim, claro. Mas isso não significa que os homenzinhos verdes não andem
atrás de si, pois não?
Ela pareceu abismada.
– Calma, Harry.
– Vou tentar.
– Afinal, quando é que se vai embora?
– Assim que tiver falado com o patologista e o Laboratório Forense.
– Porque quer falar com eles?
– Só para me livrar da paranoia. Sabe… tive umas ideias malucas.
– Está bem – respondeu Liz. – Já comeu?
– Já – mentiu Harry.
– Que pena, detesto comer sozinha. Não podia ao menos fazer-me
companhia?
– Pode ficar para a próxima?
Harry levantou-se e abandonou o gabinete.
***
Sexta-feira, 24 de janeiro
79 É um conto infantil escrito por L. Frank Baum, o primeiro de uma série de catorze livros, onde se
relatam as aventuras de uma menina, Dorothy Gale, do Kansas, na fantástica Terra de Oz. Ansiando
voltar para casa, a menina recebe dos habitantes do estranho lugar a orientação de que deveria procurar
a ajuda do Feiticeiro de Oz, na Cidade Esmeralda. O caminho era o mais fácil – bastava seguir a longa
estrada de tijolos amarelos, que atravessava o país. Tem, então, início a longa jornada através da Terra
de Oz. (N. da T.)
47
Sexta-feira, 24 de janeiro
I var Løken sabia que era o fim. Nem uma só fibra do seu corpo cedera, mas
era o fim. O pânico chegara em ondas, apoderara-se dele e abandonara-o.
E sempre soubera que a sua hora ia chegar. Fora uma conclusão
absolutamente intelectual, porém, a certeza escorreu por ele como gelo a
derreter. Quando caíra na armadilha em My Lai e ficara ali com uma estaca
de bambu a cheirar a merda atravessada na coxa e outra espetada no pé até ao
joelho, nem por um segundo pensara que ia morrer. Quando estava deitado a
arder em febre no Japão e lhe disseram que iam ter de lhe amputar o pé, ele
respondera que preferia morrer, no entanto, sabia que a morte não era uma
alternativa, era impossível. Quando lhe tinham trazido o anestésico, ele fizera
saltar a seringa da mão do enfermeiro.
Uma idiotice. Afinal tinham-lhe deixado ficar o pé. Enquanto houver dor
haverá vida, rabiscara na parede por cima da cama. Passara quase um ano no
hospital em Okabe, antes de vencer a luta contra a infeção no sangue.
Disse a si próprio que vivera uma longa vida. Longa. Podia dizer-se que era
um feito. E vira quem tivesse passado por muito pior. Para quê resistir,
então? O seu corpo recusou-se, tal como se recusara toda a sua vida.
Recusara-se a pisar o risco quando o desejo o movera, recusara-se a deixar
que o vergassem quando o exército o demitira, recusara-se a sentir pena de si
próprio quando a humilhação o fustigara e reabrira as feridas. Acima de tudo,
recusara-se a fechar os olhos. Por esse motivo, absorvera tudo: guerras,
sofrimento, brutalidade, coragem e humanidade. De tal forma que, podia
afirmar, sem receio de se contradizer, que vivera uma longa vida. Nem
mesmo naquele momento fechou os olhos; mal pestanejou. Løken sabia que
ia morrer. Se lhe restassem lágrimas, tinha-as vertido.
Liz olhou para o seu relógio de pulso. Eram oito e meia, e ela e Harry
estavam sentados no Millie’s Karaoke há cerca de uma hora. Na fotografia,
até Madonna começava a dar mostras de impaciência em vez de desejo.
– Onde é que ele está? – perguntou ela.
– O Løken virá – disse Harry.
Estava de pé junto à janela; levantara a persiana e via o seu próprio reflexo
iluminado pelos faróis dos carros que se arrastavam na Silom Road.
– Quando foi que falou com ele?
– Logo depois de ter falado consigo. Estava em casa, a arrumar as
fotografias e o equipamento fotográfico. O Løken virá.
Pressionou as costas das mãos sobre os olhos. Estavam irritados e
vermelhos desde que acordara naquele dia.
– Vamos começar – disse ele.
– O que quer dizer com isso?
– Temos de rever tudo – disse Harry. – Uma última reconstrução.
– Está bem. Mas porquê?
– Liz, nós seguimos sempre o caminho errado.
Soltou o cordão, a persiana desceu bruscamente e foi como se algo tivesse
caído através de folhagem espessa.
– Muito bem, agora ouça com atenção. – Harry sentara-se diante de Liz. –
No dia do homicídio, o carro do embaixador deslocou-se a casa do Ove
Klipra, mas o embaixador não ia ao volante.
– Não ia?
– Não. O segurança não se lembra de ver ninguém de fato amarelo.
– E?
– Você viu o fato, Liz. Ao pé dele, um funcionário de uma bomba de
gasolina não daria tanto nas vistas. Acha que conseguia esquecer-se de um
fato daqueles?
Ela abanou a cabeça, e Harry prosseguiu.
– O motorista estacionou o carro na garagem, tocou à campainha ao lado da
porta e, quando o Klipra abriu, provavelmente deparou-se com uma arma
apontada. A visita entrou, fechou a porta e pediu educadamente ao Klipra que
abrisse a boca.
– Educadamente?
– Estou a tentar dar um pouco de colorido à história. Pode ser?
Liz franziu os lábios e colocou um dedo sobre eles.
– Depois, introduziu o cano da arma, ordenou ao Klipra que cravasse os
dentes e disparou, a sangue-frio, impiedosamente. A bala saiu pela nuca do
Klipra e cravou-se na parede. O assassino limpou o sangue e… bem, você
sabe que fica tudo sujo.
Liz anuiu e fez-lhe sinal para prosseguir.
– Em suma: a pessoa misteriosa eliminou todos os vestígios. No fim, foi
buscar a chave de parafusos à mala do carro e serviu-se dela para retirar a
bala da parede.
– Como é que sabe isso?
– Encontrei gesso no chão do hall e um buraco deixado pela bala. A equipa
forense provou que é a mesma solução de água de cal que encontrámos na
chave de parafusos dentro da mala do carro.
– E depois?
– Depois, o assassino foi-se embora no carro e moveu o corpo do
embaixador para poder voltar a colocar a chave de parafusos no lugar.
– Portanto, ele já tinha matado o embaixador?
– Já voltamos a isso mais tarde. O assassino vestiu o fato do embaixador,
depois entrou no escritório do Klipra, levou um dos dois punhais dos Shan e
as chaves do esconderijo. Fez também um telefonema rápido do escritório do
Klipra e levou consigo a cassete com a conversa gravada. Depois, meteu o
corpo do Klipra na mala do carro e foi-se embora por volta das oito.
– Isto é muito difícil de acompanhar, Harry.
– Às oito e meia registou-se no motel do Wang Lee.
– Vá lá, Harry. O Wang Lee identificou o embaixador como a pessoa que
se registara.
– O Wang Lee não tinha motivos para suspeitar que o homem morto em
cima da cama não era a mesma pessoa que se registara. Ele apenas viu um
farang com um fato amarelo escondido atrás de uns óculos de sol. E não se
esqueça de que o embaixador tinha um incómodo punhal a sair-lhe das costas
quando Wang Lee teve de o identificar.
– Sim, então e o punhal?
– Sim, o embaixador foi morto com uma faca, mas muito antes de
chegarem ao motel. Uma faca dos Sami, imagino, visto estar suja de gordura
de rena. Pode comprar-se essa faca em qualquer sítio do condado de
Finnmark, na Noruega.
– Mas o médico disse que o ferimento correspondia ao do punhal dos
Shan.
– Bem, e correspondia. O punhal dos Shan tem uma lâmina mais comprida
e larga do que a faca dos Sami, por isso é impossível saber qual delas foi
usada primeiro. Acompanhe o meu raciocínio. O assassino veio ao motel com
dois corpos na mala, pediu um quarto o mais distante possível da receção,
para que pudesse arrumar o carro de marcha-atrás e transportar o Molnes
alguns metros até ao quarto. Pediu também para não ser incomodado até
comunicar que estava pronto. No quarto, voltou a mudar de roupa e vestiu o
fato ao embaixador. Mas como estava sob pressão, fez asneira. Lembra-se de
eu ter comentado que o embaixador ia certamente encontrar-se com uma
mulher porque tinha apertado o cinto dois furos acima do que era normal?
Liz emitiu um estalido encostando a língua ao palato.
– O assassino não reparou na marca do furo quando estava a apertar o
cinto.
– Um erro de pequena monta, nada que pudesse denunciá-lo, mas um dos
muitos aspetos triviais que contribuem para que este homicídio não bata
certo. Enquanto o Molnes estava em cima da cama, ele cravou
cuidadosamente o punhal dos Shan no ferimento prévio, antes de limpar o
cabo e eliminar quaisquer vestígios.
– Isto também explica por que motivo não havia muito sangue no quarto do
motel. Ele foi morto noutro sítio. Como é que o médico não se apercebeu
disso?
– É sempre difícil saber quanto sangue origina uma facada. Depende das
artérias que são cortadas e até que ponto a lâmina não estanca o fluxo. Não é
nada que pareça fora do vulgar. Por volta das nove, ele abandonou o motel
com o Klipra na mala e dirigiu-se ao esconderijo deste último.
– Ele sabia onde ficava a casa? Nesse caso, devia conhecer o Klipra.
– Conhecia-o bem.
81 Província da República Popular da China cuja capital é Changchun. Situa-se no Norte do país. (N.
da T.)
82 Canção da banda britânica The Beatles. Foi escrita por John Lennon e Paul McCartney e gravada em
1963. (N. da T.)
48
Sexta-feira, 24 de janeiro
Løken sentiu uma dor no peito. Nunca tivera problemas cardíacos, mas
sabia quais eram os sintomas. Se se tratasse de um ataque cardíaco, esperava
que fosse suficientemente forte para o matar. De qualquer forma, já ia morrer.
Por isso, era bom que pudesse privar Brekke de algum prazer. Embora, vá-se
lá saber, provavelmente ele não retirasse prazer algum daquilo. Talvez para
Brekke fosse o mesmo que fora para si: um trabalho que tinha de ser feito.
Um tiro, um homem cai, e já está. Olhou para Brekke. Viu a boca dele
mexer-se e apercebeu-se, para sua surpresa, de que não conseguia ouvir
nada.
– Assim, quando o Ove Klipra me pediu que resolvesse a dívida em dólares
da Phuridell, estávamos a almoçar e não a falar ao telefone – disse Jens. – Eu
nem queria acreditar no que ouvia. Uma ordem de cerca de quinhentos mil
milhões e ele dá-ma verbalmente, sem qualquer espécie de registo! É o tipo
de oportunidade por que esperamos em vão metade de uma vida.
Jens limpou a boca a um guardanapo.
– Quando regressei ao escritório, fiz a transação em dólares em meu nome.
Se o dólar descesse, eu podia transferir simplesmente a transação para a
Phuridell e dizer que estava a fixar o preço da dívida em dólares, conforme o
combinado. Se subisse, eu podia meter ao bolso o lucro e negar
categoricamente que o Klipra me pedira para interferir nas taxas do dólar. Ele
não podia provar nada. Adivinhe o que aconteceu, Ivar. Não se importa que
eu o trate por Ivar?
Amarfanhou o guardanapo e fez pontaria a um caixote do lixo junto à
porta.
– Sim, o Klipra ameaçou ir denunciar o caso à administração do Barclays
Thailand. Expliquei-lhe que se o Barclays Thailand o apoiasse, teriam de
repor o que ele perdera. Além disso, ficavam sem o seu melhor corretor. Por
outras palavras: não podiam fazer nada senão apoiar-me. Então, ele ameaçou
usar as suas influências políticas. Sabe uma coisa? Ele nunca chegou a fazê-
lo. Percebi que podia livrar-me de um problema, o Ove Klipra e,
simultaneamente, ficar com a empresa dele, a Phuridell, aquela que ia subir
em flecha. E quando digo isto, não é porque esteja firmemente convencido de
tal, como fazem estes patéticos especuladores de ações. Sei que vai.
Certificar-me-ei de que isso acontece. – Os olhos de Jens brilharam. – Assim
como sei que o Harry Hole e a mulher careca vão morrer esta noite. Vai
acontecer. Olhou para o relógio de pulso. – Peço desculpa pelo melodrama,
mas tempus fugit84, Ivar. Chegou o momento de zelar pelos seus melhores
interesses, não é verdade?
Løken fitou-o com um olhar vago.
– Não tem medo, hein? É um osso duro de roer? – Ligeiramente perplexo,
Brekke puxou um fio solto na casa de um botão. – Quer que lhe conte como
vão ser encontrados, Ivar? Cada um amarrado a uma estaca algures no rio
com uma bala no corpo e o rosto feito num bolo. Já tinha ouvido esta
expressão, não tinha, Ivar? Não? Talvez não se usasse quando era jovem,
hein? Nunca tinha conseguido imaginá-la. Até o meu amigo Woo aqui
presente me dizer que a hélice de um barco consegue arrancar literalmente a
pele a um homem e deixar a carne por baixo à mostra. Está a acompanhar-
me? Foi um belo truque que o Woo aprendeu com a máfia local. Claro que as
pessoas se podem perguntar o que fizeram eles para deixar a máfia tão
enfurecida, mas nunca hão de descobrir. Muito menos através de si, pois vai
ter direito a uma cirurgia grátis e cinco milhões de dólares para me contar
onde eles estão. Afinal, tem sido useiro e vezeiro em desaparecer, criar uma
nova identidade e tudo isso, não tem?
Ivar Løken viu que os lábios de Jens se mexiam e ouviu o eco de uma voz
ao longe. Palavras como hélice de um barco, cinco milhões e uma nova
identidade passaram a adejar. Nunca fora um herói aos seus próprios olhos e
nunca sentira um desejo exagerado de morrer como tal. Mas sempre soubera
distinguir entre o certo e o errado, e dentro dos limites razoáveis, esforçara-se
por fazer o que estava certo. Mais ninguém, a não ser Brekke e Woo, viria a
saber se ele fora ou não ao encontro da morte de cabeça erguida, ninguém
falaria sobre o velho Løken enquanto bebia uma cerveja com os veteranos
nos serviços secretos ou no Ministério dos Negócios Estrangeiros, e isso
tanto fazia a Løken. Não precisava de reputação depois de morrer. A sua vida
fora um segredo bem guardado, por isso, era muito natural que a sua morte
lhe seguisse os passos. No entanto, se esta situação não era favorável a um
gesto nobre, sabia também que tudo o que ganharia se desse a Brekke o que
ele queria era uma morte mais rápida. E já não sentia qualquer dor. Por isso,
não valia a pena. Não faria qualquer diferença, mesmo que Løken soubesse
os pormenores da sugestão de Brekke. Nada faria qualquer diferença. Porque,
naquele momento, o telemóvel preso ao seu cinto começara a emitir um sinal
sonoro.
83 Referência ao fresco «A Criação de Adão» no teto da Capela Sistina. Foi pintado entre 1508-10. (N.
da T.)
Sexta-feira, 24 de janeiro
86 Termo italiano que se usa em música para indicar que cada nota deve ser salientada com nitidez. (N.
da T.)
88 Canção escrita por Jerry Leiber e Mike Stoller que foi gravada mais de duzentas e cinquenta vezes.
No entanto, a nova versão de 1956, cantada por Elvis Presley, é a mais conhecida. (N. da T.)
89 Tradicional bebida norte-americana servida na ceia de Natal e muito semelhante à gemada, mas que
pode conter álcool. (N. da T.)
50
Sexta-feira, 24 de janeiro
D e cada vez que ele dava um passo, atirava a perna para a frente,
esperando que ela não cedesse sob o seu peso. Tudo dançava diante dos
seus olhos e sabia que era o cérebro a tentar fugir à dor. Passou a coxear pela
rapariga da receção, que parecia presa numa pose para O Grito90, sem que
saísse qualquer som dos seus lábios.
– Chame uma ambulância – gritou Harry, e ela acordou. – Um médico!
Depois encontrava-se lá fora. O vento amainara; estava apenas calor, um
calor sufocante. Um carro atravessara-se na rua, viam-se marcas de
derrapagem no alcatrão, a porta tinha ficado aberta e o condutor saíra e
agitava os braços. Apontava para o ar. Harry levantou os braços e atravessou
a rua a correr sem olhar, sabendo que, se vissem que ele se estava nas tintas,
talvez resolvessem parar. Ouviu-se um guincho de borracha. Ergueu o olhar
para onde o homem apontava. Uma caravana de silhuetas cinzentas de
elefantes elevava-se acima de si. O seu cérebro fazia e deixava de fazer
contacto como um autorrádio mal sintonizado, e um barrito solitário encheu a
noite. Por completo. Harry sentiu a deslocação de ar do camião de grande
tonelagem a apitar e que, por pouco, não lhe arrancou a camisa quando
passou ruidosamente rente aos seus calcanhares.
Estava outra vez de volta, os seus olhos examinando os pilares de betão. A
Estrada Elevada de Tijolo Amarelo. O projeto de transporte BERTS. Sim,
porque não? De certa forma, fazia sentido.
Uma escada de ferro conduzia ao betão diretamente por cima dele, quinze,
vinte metros lá no alto. Conseguia ver uma nesga da Lua através do intervalo.
Colocou o punho da arma entre os dentes, reparou que tinha o cinto
pendurado, tentou não pensar no que uma bala que passara de raspão pelo
cinto podia ter feito à sua anca e subiu a escada a pulso. O ferro fazia pressão
no golpe deixado pelo cabo do microfone.
«Não consigo sentir nada», pensou Harry, e soltou uma imprecação quando
o sangue que lhe cobria a mão como uma luva de borracha vermelha fez com
ele que se soltasse. Inclinou o pé direito no degrau, exerceu pressão, subiu
para o seguinte e voltou a exercer pressão. Agora estava melhor. Desde que
não perdesse os sentidos. Olhou lá para baixo. Dez metros? Era mesmo bom
que não perdesse os sentidos. Em frente e para cima. Ficou tudo escuro.
Ainda pensou que fosse dos seus olhos e parou, mas quando olhou para baixo
conseguiu ver os carros lá ao fundo e ouviu uma sirene da Polícia cortar o ar
como a lâmina de uma espada. Olhou de novo para o alto. A abertura no cimo
da escada era preta; já não conseguia ver a Lua. O céu anuviara-se? Caiu uma
gota na coronha da arma. Outro aguaceiro das mangas? Harry passou ao
degrau seguinte, o seu coração palpitou, falhou dois batimentos e depois
continuou, estava a fazer o melhor que podia.
De que lhe valia?, pensou, olhando para baixo. O primeiro carro da Polícia
não tardaria a chegar ali. Provavelmente, Jens correra pela estrada fantasma
soltando gargalhadas esganiçadas, e descia já uma escada dois quarteirões
adiante para depois, num estalar de dedos, se perder na multidão. O maldito
Feiticeiro de Oz.
Uma gota escorreu pela coronha e depois para os dentes cerrados de Harry.
Surgiram-lhe três pensamentos em simultâneo. O primeiro foi que, se Jens
o vira sair do Millie’s Karaoke vivo, provavelmente não ia fugir. Não tinha
alternativa; impunha-se terminar o serviço.
O segundo foi que as gotas de chuva não têm um gosto doce e metálico.
O terceiro foi que o céu não se anuviara, estava alguém a bloquear a
abertura, estava alguém a sangrar.
Depois, aconteceu tudo muito rapidamente.
Esperava que lhe restassem ainda nervos suficientes na mão para a manter
agarrada ao degrau. Harry tirou a arma da boca com a mão direita, viu
centelhas saltarem do degrau por cima, ouviu o silvo do ricochete, sentiu
depois algo a passar-lhe de raspão pela perna das calças antes de apontar a
arma ao círculo negro, recebendo o recuo no maxilar ferido quando disparou.
Uma boca de arma iluminou-se e Harry esvaziou o carregador. Continuou a
pressionar. Clique, clique, clique. Maldito amador.
Já conseguia ver de novo a Lua, deixou cair a arma e, antes de ela embater
no solo, já ele subia a escada. Depois chegara lá acima. A estrada, as caixas
de ferramentas e o equipamento de construção pesada eram banhados pela luz
amarela de um balão ridiculamente grande que alguém atara por cima deles.
Jens estava sentado num monte de areia, os braços cruzados sobre a barriga,
baloiçando-se para trás e para a frente, soltando gargalhadas.
– Merda, Harry, você estragou mesmo tudo. Olhe.
Ele descruzou os braços. O sangue saía em borbotões, espesso e brilhante.
– Sangue negro. Quer dizer que você me atingiu o fígado, Harry. Muito
provavelmente, o meu médico vai proibir-me de beber álcool. Uma maçada.
As sirenes da Polícia ouviam-se de forma cada vez mais nítida. Harry fez
um esforço para controlar a respiração.
– Não leve isso a sério, Jens. Ouvi dizer que o brandy servido nas prisões
tailandesas não presta.
Avançou a coxear em direção a Jens, que mantinha uma arma apontada a
ele.
– Ora, ora, Harry, não exagere, só dói um bocadinho. Nada que não se
consiga resolver com dinheiro.
– Acabaram-se-lhe as balas – disse Harry, continuando a avançar.
Jens riu-se e tossiu.
– Boa tentativa, Harry, mas, infelizmente, quem ficou sem balas foi você.
Esquece-se de que eu sei contar.
– Sabe mesmo?
– Hã, hã. Julguei que lhe tinha dito. Números. Tenho a obrigação de saber,
já que ganho a vida a trabalhar com eles.
Mostrou a Harry os dedos da mão que tinha livre.
– Duas contra si e a fufa na espelunca de karaoke e três na escada. Sobra
uma para si, Harry. Vale a pena guardar porque ainda nos pode vir a fazer
falta, sabe?
Harry estava apenas a dois passos.
– Você tem andado a ver demasiados filmes de ação da treta, Jens.
– Não me diga?
Jens levantou-se, com uma expressão desconsolada no rosto, e puxou o
gatilho. O estalido foi ensurdecedor. O esgar de Jens foi substituído pela
incredulidade.
– Só nos filmes de ação da treta é que todas as armas têm seis balas, Jens.
Essa é uma Ruger SP101. Cinco.
– Cinco? – Jens olhou ameaçadoramente para a arma. – Cinco? Como é
que você sabe?
– Tenho a obrigação de saber, já que ganho a vida a trabalhar com elas.
Harry conseguia ver as luzes azuis na estrada debaixo deles.
– É melhor entregar-ma, Jens. A Polícia costuma disparar quando vê uma
arma.
Confusão era o que estava estampado no rosto de Jens quando entregou a
arma a Harry, que a enfiou no cós das calças. Talvez porque o cinto não
estava lá, a arma desceu-lhe pela perna das calças, talvez porque estava
cansado, descontraiu-se quando viu o que julgou ser capitulação nos olhos de
Jens. Recuou quando o soco o atingiu, apanhado desprevenido pela rapidez
com que Jens se moveu. Sentiu a perna esquerda ceder debaixo de si, depois
a cabeça embater no betão com um estalo.
Apagou-se por um segundo. «Não posso perder os sentidos». O rádio
procurava desesperadamente o posto. A primeira coisa que viu foi um dente
de ouro a reluzir. Harry pestanejou. Não era um dente de ouro; era o reflexo
da Lua na lâmina de uma faca dos Sami. Depois, o aço sedento desceu em
arco na direção dele.
Harry nunca iria saber se agira instintivamente ou se fora um processo
mental que determinara a sua ação. A mão esquerda elevou-se com os dedos
abertos, direita ao aço reluzente. A faca atravessou a palma da sua mão com
extraordinária facilidade. Quando a faca chegou ao cabo, Harry puxou a mão
e deu um pontapé com a perna boa. Atingiu o alvo algures no sangue negro,
Jens curvou-se, gemeu e caiu de lado na areia. Harry ajoelhou-se a custo.
Jens encolhera-se na posição fetal e levara as mãos à barriga. Gritava. De riso
ou de dor, vá-se lá saber.
– Foda-se, Harry! Dói imenso, mas é simplesmente fantástico. – Arfou,
berrou e riu, por esta ordem.
Harry levantou-se. Olhou para a faca que lhe saía dos dois lados da mão,
sem saber qual era a atitude mais acertada: puxá-la ou deixá-la ficar para o
sangue não sair?
Ouviu algo ser gritado através de um megafone lá em baixo na rua.
– Sabe o que vai acontecer agora, Harry? – Jens fechara os olhos.
– Nem por isso.
Jens fez uma pausa para se recompor.
– Então vou explicar-lhe. O dia de hoje vai ser um jackpot para uma
quantidade de polícias, advogados e juízes. Seu sacana, isto vai sair-me bem
caro.
– Como assim?
– Como assim? Então você resolveu voltar a armar-se em escuteiro
norueguês? Tudo pode ser comprado. Desde que se tenha dinheiro. Além
disso… – Tossiu. – Há alguns políticos com interesses pessoais na indústria
de construção que não querem ver o BERTS ir pelo cano abaixo.
Harry abanou a cabeça.
– Desta vez não, Jens. Desta vez não.
Jens expôs os dentes, num doloroso misto de sorriso e esgar.
– Quer apostar?
«Vá lá», pensou Harry. «Não faças nada de que venhas a arrepender-te,
Hole.»
Olhou para o seu relógio de pulso, um gesto reflexo na sua profissão.
Estava na hora de formalizar a detenção.
– Estava aqui a pensar numa coisa, Jens. A inspetora Crumley julgou que
eu estava a abrir demasiado o jogo quando lhe perguntei sobre a Ellem Ltd.
Se calhar até estava. Mas há muito que você sabia que eu sabia que era você,
não é verdade?
Jens tentou focar-se em Harry.
– Há algum tempo. Foi por isso que nunca percebi porque se esforçou tanto
para me libertar da prisão. Porquê, Harry?
Harry sentiu uma vertigem e sentou-se numa das caixas de ferramentas.
– Bem, talvez ainda não me tivesse ocorrido que sabia que era você. Talvez
eu quisesse ver qual era a sua próxima cartada. Talvez eu quisesse que você
se revelasse. Não sei. O que o levou a pensar que eu sabia?
– Contaram-me.
– Impossível. Eu não falei disto a ninguém senão ontem à noite.
– Alguém sabia sem que você o tivesse revelado.
– A Runa?
As faces de Jens tremeram e tinha saliva branca aos cantos da boca.
– Sabe uma coisa, Harry? A Runa tinha aquilo a que alguns chamam
intuição. Eu chamo-lhe capacidade de observação. Temos de aprender a
esconder melhor os nossos pensamentos, Harry. Não abra o jogo com o
inimigo. É incrível o que uma mulher está disposta a revelar quando
ameaçamos cortar-lhe o que faz dela uma mulher. Você…
– Como é que a ameaçou?
– Os mamilos. Ameacei cortar-lhe os mamilos. O que tem a dizer-me sobre
isso, Harry?
Harry ergueu o rosto para o céu e fechou os olhos, como se à espera de
chuva.
– Eu disse algo de errado, Harry? – Harry sentiu o ar quente sair-lhe pelas
narinas. – Ela estava à sua espera, Harry.
– Em que hotel costuma ficar quando está em Oslo? – murmurou Harry.
– A Runa disse que você viria salvá-la, ela disse que você sabia quem a
raptara. Ela chorou como um bebé e agrediu-me com a prótese. Foi muito
divertido. Tão…
O som de metal a vibrar. Clang, clang, clang. Vinham a subir a escada.
Harry olhou para a faca espetada na sua mão. Não. Olhou à sua volta. A voz
de Jens arranhou-lhe os ouvidos. Começou a sentir um suave formigueiro
algures no estômago, um ligeiro silvo na cabeça, como se estivesse a
embebedar-se com champanhe. «Não faças isso, Hole, aguenta-te firme.»
Mas conseguia sentir já o êxtase da queda livre. Libertou-se.
A fechadura da caixa de ferramentas cedeu ao segundo pontapé. O martelo
pneumático era um Wacker, leve, provavelmente não pesaria mais de vinte
quilos, e começou a funcionar à primeira pressão sobre o botão. Jens fechou
imediatamente a boca e os seus olhos arregalaram-se quando o cérebro
começou a aperceber-se do que ia acontecer.
– Harry, você não pode…
– Abra-a bem – ordenou Harry.
O ruído da máquina a estremecer abafou o do trânsito debaixo deles, a
estridência do megafone e o som da escada de ferro a vibrar. Harry debruçou-
se sobre Jens com as pernas afastadas, o rosto ainda erguido para o céu e os
olhos fechados. Estava a chover.
Harry deixou-se cair na areia. Deitou-se de costas e olhou para o céu;
estava na praia, ela perguntara-lhe se não se importava de lhe espalhar
protetor nas costas, tinha uma pele muito sensível. Não queria apanhar um
escaldão. Não queria. Depois ficaram ali, vozes altas, botas no betão e o
estalido lubrificado de armas a serem engatilhadas. Abriu os olhos e ficou
ofuscado com a luz no seu rosto. Depois, a lanterna afastou-se de si e pôde
ver a silhueta de Rangsan.
Harry detetou o cheiro da sua própria bílis antes de o conteúdo do
estômago lhe encher a boca e o nariz.
90 Edvard Munch (1863-1944) foi um pintor norueguês, considerado um dos precursores do
expressionismo. Aos trinta anos pinta O Grito, considerada a sua obra máxima. Representa uma figura
andrógina num momento de angústia e desespero existencial profundos. É considerada uma das mais
importantes da história daquela corrente artística. (N. da T.)
Epílogo
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