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Resumo
Este artigo objetiva refletir sobre os conceitos de colaboração e resistência no âmbito da realização
cinematográfica do cineasta goiano Martins Muniz no contexto de atuação do Sistema CooperAÇÃO
Amigos do Cinema. Um dos elementos que operam no bojo dos conceitos apresentados diz respeito às
Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs que, no caso das ações de produção cinematográficas
do cineasta, atuam na mudança do suporte material fílmico – a película fílmica – para o suporte digital
tornando o processo de realização acessível. Essa é uma das condições básicas para a sobrevivência do
Sistema, pois o custo tem influência direta na maneira de se atuar no espaço de realização que acontece
fora dos circuitos hegemônicos de circulação, realização e produção cinematográfica, como que em
um processo de guerrilha. Outra condição que determina a sobrevivência do coletivo de realização
cinematográfica é a circulação e distribuição dos filmes que, por meio do YouTube, uma plataforma de
compartilhamento de vídeos, Muniz e o Sistema tornam acessíveis as narrativas fílmicas realizadas pelo
grupo. Hoje o Sistema conta com mais de 57 mil visualizações de seus vídeos ao todo. Anteriormente,
os filmes eram exibidos em espaços privados ou eventos de baixa circulação de pessoas.
Palavras-chave: Martins Muniz; cinema; cinema artesanal; resistência; colaboração.
Introdução
A partir do cenário descrito, surge a inquietação em pensar como esse “cinema artesanal”
(2017) sobrevive ao contexto permeado pelos espaços mercadológicos e pelos espaços
elitizados, incluindo os espaços acadêmicos e cânones da arte, e, consegue assim, se fazer
presente e acessível. Para tal, participamos enquanto pesquisadores-realizadores de algumas
produções do coletivo Sistema CooperAÇÃO Amigos do Cinema (2011).
212
Aos setenta anos Martins Muniz opera no set de realização cinematográfica como um maestro
que rege uma orquestra. O comportamento observado acontece no âmbito da realização do
filme A Última Bandeira produzido em 2016 pelo Sistema CooperAÇÃO Amigos do Cinema,
afetivamente apelidado de Sistema – nomenclatura utilizada nesse texto – pelos membros
que integram o grupo, e dirigido por Martins Muniz.
Martins Muniz representa a manifestação de um cinema que conta histórias do povo para o
povo. Nesse sentido, o produto fílmico, peça fundamental de uma produção cinematográfica
hegemônica, é relegado aos planos de baixa prioridade. Não há interesse em se pautar por
alguma referência estética normativa, por mais que existam algumas características das
produções hollywoodianas em seus filmes. Assim, o motivo pelo qual suas produções e
realizações acontecem é pela possibilidade de materializar histórias possíveis, tangíveis.
O filme A Última Bandeira (2016a) nasce no contexto de coletivização e colaboração em
parcas condições de realização cinematográfica. As funções de direção, roteirista e produtor
executivo foram assumidas por Muniz. O restante da equipe se voluntariou para ocupar as
posições técnicas e cênicas do filme.
A concepção básica que constitui esse grupo de realização cinematográfica é que o “aprender 213
a fazer cinema acontece fazendo cinema” (MUNIZ, 2016b). Para Muniz, a sobrevivência das
narrativas cotidianas transformadas em narrativas cinematográficas, depende da capacidade
dos sujeitos em contar suas histórias. Em um esquema de rodízio, os integrantes da equipe
de realização do filme A Última Bandeira experimentaram mais do que uma função no ato de
fazer cinema. Uma integrante, por exemplo, atuou enquanto atriz e produtora. Nas cenas em
que não atuava, ela produzia.
Essa é a estratégia adotada por Muniz para tornar operante a máquina de realização
cinematográfica. A iniciativa permite com que todos os membros da equipe possam realizar
tarefas ou atividades de pessoas que, por ventura tenham faltado, suprindo eventuais
necessidades no set de filmagens. Um dos atores interpretou vários personagens, pois pessoas
que haviam se comprometido a participar não estiveram presentes no momento da filmagem.
O diretor em conjunto com a equipe utilizou artifícios para “mascarar” a ausência desse ator e
tornar as imagens verossímeis. Para Muniz, o importante era terminar o filme.
Assim, a premissa de atuação do grupo dirigido por Muniz é que toda história pode e deve ser
contada, independente do resultado estético ou da “qualidade” da imagem. O filme em análise
retrata a investida de Bandeirantes (PACIEVITCH, 2011) na exploração do território goiano
no início do século XVIII e os desdobramentos de explorar terras ocupadas por indígenas no
Estado de Goiás.
Por se tratar de um filme de época, certas condições são necessárias com a finalidade de
garantir o mínimo de veracidade na representação cênica e cenográfica. A forma e a condição de
resolver essa questão imagética é que revela o lugar de realização do filme de Muniz enquanto
produto de um “cinema artesanal” (MUNIZ, 2017). Portanto, este conceito, o de cinema
artesanal, é voltado para o modus operandi e não necessariamente opera em detrimento de
uma baixa qualidade imagética determinada pelas condições técnicas.
Destarte, abordar o status da qualidade da imagem é necessário já que o avanço das Tecnologias
da Informação e Comunicação – TICs (CIRINO, 2013) possibilitou a criação de narrativas
imagéticas com alta qualidade técnica (MARTINS, 2013). A indústria cultural (ADORNO, 2008)
em uma abordagem simples, permeada pelas regras do mercado, opera para que sejamos
todos produtores de imagem em potencial e que assim possamos também consumir tais
imagens. Para isso, basta ter posse de um dispositivo com câmera que o sujeito está habilitado
a navegar e inundar o universo das imagens técnicas (FLUSSER, 2008).
O acesso a equipamentos de cinegrafia e edição são algumas das condições para a sobrevivência
do Sistema e de praticamente qualquer grupo que opere no objetivo de realizar cinema. O
Sistema iniciou suas atividades no ano de 1999 (SATLER, 2016, p. 180) com o objetivo de
inscrever um filme no I Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental – FICA (ESTADO DE
GOIÁS, 1999). Nesse período, o aparato utilizado para a produção do filme já consistia em um
equipamento de gravação em fitas magnéticas. 214
Figura 2: Muniz opera uma câmera mecânica ArriFlex 16mm na década de 70.
Em pé, Naves Ximenes, atua enquanto foquista.
Os filmes eram realizados em câmeras com suporte para fitas magnéticas do tipo S-VHS,
VHS, Betacam e por último, sistema ainda utilizado pelo grupo, a Mini-DV. Sem acesso a
equipamentos e material de consumo barato, Muniz afirma não ser possível fazer cinema,
pois as produções são onerosas. Inicialmente, na década de 70, o cineasta goiano rejeita as
“tecnologias” com receio de que a qualidade das imagens pudesse ser inferior, entretanto,
hoje ele se arrepende de não ter adotado a tecnologia à época afirmando que perdeu um
tempo precioso para realizar filmes.
Muniz relembra como era trabalhar com o equipamento em película fílmica, a forma tradicional
de fazer cinema, antes do acesso a dispositivos domésticos e mídias de baixo custo:
[...] a câmera era muito grande e necessitava de no mínimo duas pessoas
para trabalhar com ela. O sistema da câmera 35mm [ou qualquer câmera que
opere com fita fílmica como na Figura 2.] consistia em um processo mecânico
que fazia 24 fotos por segundo gravados no negativo. Como ela [a câmera]
fazia muito ruído era necessário utilizar uma caixa para suprimir o som do
obturador. Não tinha margem para erro. Com o digital é muito mais fácil. Se
você errar pode voltar na fita e gravar de novo. Sem falar que você faz tudo
direto na câmera, som e tudo. Por isso que a tecnologia é boa [...] hoje com o
celular todo mundo filma e eu acho muito bonito isso, o meu neto com três
anos de idade consegue filmar. (MUNIZ, 2017)
O diferencial, portanto, foi transferido da esfera técnica para a esfera simbólica. A técnica pode
ser compreendida enquanto recursos para captação e edição dos elementos audiovisuais –
imagem e som. Enquanto o simbólico consiste na estrutura da narrativa, ou seja, em como
contar histórias.
O que surpreende o público, portanto, não é tanto a captação de imagens perfeitas (ESPINOSA, 215
1969), pois os dispositivos mais simples estão habilitados a capturá-las nas mais altas definições
de qualidade estabelecidas pelo mercado cinematográfico, mas a capacidade e na maneira de
se narrar as histórias projetadas em telas cinematográficas.
Outro elemento que compõe esse conceito é a condição e a forma na qual o filme foi realizado.
No caso do A Última Bandeira, as ações de realização são correspondentes ao cinema de
guerrilha. Esse tipo de realização consiste na solução inteligente de problemas durante o
processo de construção fílmica considerando os recursos disponíveis. Normalmente, em
produções de cinema de guerrilha, o orçamento é escasso ou nulo. Os equipamentos são da
própria equipe e consistem basicamente em dispositivos de captura de imagens (uma câmera).
O papel da equipe é fundamental na realização das atividades do Sistema já que não é disposto
de muito tempo para produzir o filme. Dessa forma, podemos conceber que a colaboração é
uma característica marcante nas produções do grupo goiano.
A locação, o ambiente onde serão filmadas as cenas, deve atender alguns requisitos.
Preferencialmente é um espaço público que não requeira qualquer tipo de investida
financeira ou espaços cedidos sem custo. Espaços externos, com incidência de luz natural são
eventualmente mais escolhidos por permitir filmagens sem equipamentos de iluminação. As
filmagens de A Última Bandeira foram iniciadas às 09h e foram finalizadas às 17h nos dois dias
para aproveitar a luz natural.
Portanto, a proposta do cineasta Martins Muniz com toda a sua produção cinematográfica,
neste caso representada pela análise dos processos e da narrativa visual do filme A Última
Bandeira, é fazer com que as pessoas possam se manifestar por meio do cinema. Para tal, a
escolha pelo método do cinema de guerrilha embasado na condição do Cinema Artesanal, faz
com que o sujeito se volte para a aquisição de experiências e vivências sem se frustrar com as
questões estéticas.
Referências
ADORNO, T. Indústria Cultural e Sociedade. São Paulo (SP): Paz e Terra, 2008.
A ÚLTIMA Bandeira. Direção: Martins Muniz. Goiânia: Sistema CooperAÇÃO Amigos do Cinema,
2016. Mídia digital (48 min). Som, colorido, ficção. Disponível em: <https://www.youtube.com/
watch?v=pSVpTNAa41o&list=PLDAA9A4D8B1B6C333&index=11>. Acesso em: 18 maio. 2016
CANCLINI, N. G. ¿De qué hablamos cuando hablamos de resistencia? REVISTARQUIS, v. 2, n. 1, 2013.
CIRINO, R. Brinca_Comigo: os sujeitos imagéticos e suas sensibilidades projetadas. Dissertação de
Mestrado—Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 2013.
ESPINOSA, J. G. POR UN CINE IMPERFECTO. Disponível em: <https://sergiotrabucco.wordpress.
com/2007/08/07/por-un-cine-imperfecto-julio-garcia-espinosa/>. Acesso em: 5 maio. 2016.
ESTADO DE GOIÁS. FICA – Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, 1999. Disponível em:
<http://fica.art.br/>
FESTIVAL DE CANNES. Festival de Cannes. Disponível em: <http://www.festival-cannes.com/fr/>.
Acesso em: 22 maio. 2017.
FLUSSER, V. Universo Das Imagens Tecnicas - Elogio Da Superficialidade. Edição: 1 ed. São Paulo:
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FRONTEIRA FESTIVAL. Cadmus e o Dragão - Martins Muniz e o Sitema Cooperação Amigos do Cinema.
Disponível em: <http://www.fronteirafestival.com/pt/noticia/197/mostra-cadmus-e-o-dragao-
martins-muniz-e-o-sistema-cooperacao-amigos-do-cinema>. Acesso em: 18 maio. 2016.
MARTINS, A. F. Catadores de sucata da indústria cultural. Goiânia, Goiás, Brasil: Editora UFG, 2013.
MUNIZ, M. Entrevista: quando tudo começou, 5 out. 2016b.
MUNIZ, M. Entrevista: Martins Muniz e o Sistema CooperAção Amigos do Cinema - tecnologias e
história, 4 jul. 2017.
PACIEVITCH, T. História de Goiás. Disponível em: <http://www.infoescola.com/historia/historia-de-
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SATLER, L. L. Tramas formativas em audiovisual: a minha ação docente à luz de experiências
audiovisuais coletivas. Tese—Goiânia: Universidade Federal de Goiás, 7 mar. 2016.
SISTEMA COOPERAÇÃO AMIGOS DO CINEMA. Sistema CooperAÇÃO Amigos do Cinema. Streaming de
Vídeos. Disponível em: <http://www.youtube.com/playlist?list=PLDAA9A4D8B1B6C333>. Acesso em:
3 maio. 2017.
TORÁCIO, T. DE A. P. G. Quando o processo colaborativo transborda na estética cinematográfica.
Dissertação de Mestrado—São Paulo: Universidade de São Paulo, 4 nov. 2014.
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Renato Cirino
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás
(PPGACV/UFG). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade
Federal de Goiás (PPGACV/UFG). Bacharel em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade
Federal de Goiás.
Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da Universidade Federal de Goiás
(PPGACV/UFG). Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Cultura da Universidade
Federal do Rio de Janeiro (PPGCOM/UFRJ). Tecnólogo em Cinema e bacharel em Comunicação Social/
Jornalismo.