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LITERATURA E HISTÓRIA: A IRRUPÇÃO DA

POESIA MODERNA SEGUNDO PÉRICLES RAMOS

Diego Freitas Garcia

Na recomposição explicativa das forças que originam certo movimento literário, o


crítico – ou o historiador – encontra-se evidentemente com o desafio de selecionar os fatores
que considera determinantes e estabelecer na sua argumentação começo, meio e fim que
confiram certa coerência e situem temporalmente o fenômeno analisado. Os resultados são os
mais diversos possíveis e dependem da concepção teórico-metodológica do autor. Agora,
impõe-se de maneira inevitável nesse trabalho o tema das relações entre o literário e o
extraliterário, o texto e a sociedade, o que revelará também a noção de literatura adotada. O
presente artigo propõe-se a analisar estas relações entre literatura e história no livro Do
barroco ao modernismo, de Péricles Eugênio da Silva Ramos, mais precisamente no capítulo
“Poesia Moderna”, no qual o autor discorre sobre a gênese do movimento modernista.
Péricles Ramos (1919-1992) foi um poeta paulista pertencente à geração de 45, da
chamada fase construtivista do modernismo. Formado em Direito, atuou como crítico,
professor e tradutor de clássicos como Shakespeare, Virgílio e Góngora. A obra Do barroco
ao modernismo: Estudos de poesia brasileira, editada originalmente em 1967, é aqui analisada
já na sua segunda versão, de 1979, composta por 28 capítulos. Ramos reúne artigos
publicados em jornal e prefácios escritos em diferentes épocas de sua vida e com distintos
propósitos, tentando obedecer uma ordem cronológica capaz de dar unidade ao livro, intenção
muitas vezes traída por capítulos desproporcionais ou incompreensíveis quando distanciados
do objetivo original. Assim, é difícil caracterizar Do barroco ao modernismo como uma
história da literatura convencional, porque, apesar de conservar a periodização largamente
utilizada, a profusão de partes dedicadas a homenagens, ou livros específicos, além da
ausência de um prefácio detalhando os princípios de Ramos atribuem à escrita caráter
fragmentário e heterogêneo.
David Perkins convida a pensar a história da literatura como narrativa histórica,
argumentando que, através de um narrador, ela descreve a transição de um estado de coisas a
outro diferente. Dessa forma, a história da literatura teria também um enredo, no qual o
movimento literário, figura correspondente a do herói, passaria pelas batalhas iniciais e logo
iria modificando-se até chegar ao estado final. Compartilhando dessa ideia, conclui-se que o
historiador da literatura realiza um trabalho que é sempre incompleto – porque a forma da
narrativa não dá conta da multiplicidade do real – e arbitrário porque os mesmos episódios
poderiam ser narrados a partir de sequências diferentes. A contribuição é valiosa porque alerta
para a inevitabilidade do ato de tomar partido, sempre que, ao contar uma história, o narrador
participa ativamente dela na elaboração do enredo. Perkins não deixa de criticar os riscos a
que estão sujeitos os historiadores: o extremo partidarismo que se converte em agressão à
geração que o narrador pretende combater e o dualismo simplista do herói-vilão que
empobrece o enredo.
Portanto, sem que isso signifique abandonar a fidelidade ao passado, o ponto de
partida escolhido pelo narrador para apresentar certo movimento literário é arbitrário, “uma
linha desenhada sobre o curso de um rio” (PERKINS, 1999, p. 09-10). No que se refere ao
nosso objeto de estudo, Péricles Ramos, ao delimitar as origens do modernismo, decide partir
da formulação proposta por Mário de Andrade, um dos expoentes do movimento, como
veremos aqui:

Ninguém suporá que a Semana de Arte Moderna, de fevereiro de 1922, em São


Paulo, haja surgido de súbito para modificar todo um estado de coisas. Antecedendo-
a houve um período denominado “heróico” por Mário de Andrade, período esse que
se teria estendido da exposição de Anita Malfatti (dezembro de 1917) à Semana.
(RAMOS, 1979, p. 253)

Para Ramos, o “herói” modernismo não travou suas primeiras batalhas na Semana de
22, mas a partir da exposição de Malfatti, isto é, na exigência de estabelecer um início para o
período que pretende analisar, Ramos atenta para o fato de que o movimento que eclodiu na
Semana vinha gestando-se nos anos anteriores, fato que considera de unânime
reconhecimento. Na esteira do argumento de Ramos, é possível afirmar que tampouco a
exposição de 1917 veio para mudar tudo, como a eclosão de um evento que não tivesse sua
causalidade entrelaçada com o tempo que o antecede.
Outro autor em outra história da literatura poderia remontar então aos estudos de Anita
Malfatti em Berlim, onde entrou em contato com o expressionismo, de 1910 a 1914, ou ainda
ao próprio surgimento do expressionismo, bem como à exposição de Lasar Segall, pintor
lituano, em São Paulo, no ano de 1913. Dessa forma, dezembro de 1917 é uma data arbitrária,
uma escolha de Péricles, sem que isso signifique a perda de referencialidade do real e a
primazia da imaginação que levaria a história da literatura a confundir-se com mero enredo
ficcional: a exposição realmente ocorreu e provocou considerável impacto na época, mas ela
mesma é resultado de outros fenômenos aos quais outra montagem explicativa poderia
conferir maior preponderância. Assim, como aponta David Perkins: “Ninguém pensa que o
Romantismo inglês realmente começou com a publicação das Baladas Líricas em 1798, ou a
literatura alemã com a Hildebrandslied: esses momentos inaugurais são convencionais, e
histórias da mesma literatura podem escolher diferentes pontos de partida.” (PERKINS, 1999,
p. 10).
Igualmente importante para entender o esquema de Péricles é destacar que, em
qualquer elaboração histórica, o estudioso parte de fontes anteriores. A escolha dessas fontes
revela a cosmovisão do autor ao mesmo tempo que o insere em uma tradição histórica, visto o
que destaca Perkins:

Assim, as histórias da literatura são feitas a partir de histórias da literatura. Não


apenas suas classificações, mas também seus enredos são derivados de histórias
anteriores na mesma área. Uma história literária pode ser uma mímese precisa do
passado somente se todas as histórias literárias que ela ecoa também o são. A
autoridade de um historiador da literatura se baseia em outras autoridades as quais
não são, de fato, menos autorizadas que a atual. (PERKINS, 1999, p. 45)

Daí impõe-se a pergunta: em quais autores Péricles baseia sua história? No trecho
apresentado, percebe-se que o autor endossa a visão de Mário de Andrade e reproduz sua ideia
de “período heroico”. Também pode-se apontar que a noção de que 1917 teria aberto o
período modernista no Brasil vai ao encontro do proposto por Mário da Silva Brito no seu
livro História do modernismo brasileiro, publicado em 1958. Brito conferiu à exposição de
Anita destaque, colocando-a como o “estopim” do movimento. Além disso, Péricles Ramos,
ao basear-se em Mário de Andrade, explica o Modernismo desde o próprio Modernismo,
pelos próprios artistas que o integraram, incorporando certamente avaliações que pretendem
legitimar o movimento dentro da tradição literária, o que desvela, nesse sentido, a filiação do
próprio Péricles Ramos ao projeto modernista.
Faz-se necessário seguir na análise dos fatores que, segundo Péricles Ramos,
possibilitaram a aparição da poesia moderna:

“A reação suscitada pela exposição Malfatti, mais a existência, em São Paulo, de


algumas figuras aglutinadoras ou literariamente informadíssimas a respeito dos
movimentos europeus de vanguarda, tornariam possível, aqui, o agrupamento dos
escritores novos, desejosos de sacudir a pacatez provinciana.” (RAMOS, 1979, p.
253)
A ação das “figuras aglutinadoras”, sobretudo de Oswald de Andrade, desloca a
irrupção do modernismo para o campo do individual. Sem esclarecer as condições sociais que
contribuíram para a existência dessas figuras e de sua erudição, Ramos reduz o tema a uma
questão de “desejo”, configurando-se como uma análise que privilegia o “gênio”, o grande
homem, excepcionalmente apto a introduzir as rupturas em um tempo histórico. Isso faz com
que o autor jamais se pergunte: por que São Paulo? Por que a cidade viu surgir essas figuras?
No prefácio da obra Pau Brasil, Haroldo de Campos traz as palavras de Oswald de Andrade
que poderiam ajudar a responder essa questão: “Se procurarmos a explicação do porquê o
fenômeno moderno se processou em São Paulo e não em qualquer outra parte do Brasil,
veremos que ele foi em consequência da nossa mentalidade industrial.” (ANDRADE, 2003, p.
21)
Pode-se depreender do trecho exposto que o surgimento do modernismo é apresentado
por Péricles Ramos sem um esforço de articulação com o contexto sócio-histórico do Brasil
no começo dos anos 20. Como no restante da obra, os marcos apresentados são de ordem
superestrutural, rechaçando uma intromissão de outros fatores nas relações causais e na
periodização estabelecida. Isso é evidenciado quando Ramos defende que a chamada fase
primitiva do modernismo encerra-se com a extinção da Revista da Antropofagia, e não com a
Revolução de 30, porque, segundo ele, “a literatura não precisa regular-se, ancilarmente, por
balizas extraliterárias quando em sua própria história se acham marcos muito mais coerentes”
(RAMOS, 1979, p. 272)
Roberto Acízelo de Souza (2003) expõe que a história da literatura nasce com a
ascensão da história como ciência moderna no século XIX. Sob essa condição, o paradigma
historicista ao qual a emergência da história estava atrelada dominava também o campo da
história da literatura e, por conseguinte, a exaustão daquele paradigma levou a exaustão desta
enquanto disciplina. Opondo-se à perspectiva de que os textos poderiam ser explicados pelos
contextos extraliterários – na época basicamente a vida dos escritores e a nação – surgiram
nas primeiras três décadas do século XX correntes que “desenvolveram teses sobre a
especificidade da literatura, que redundaram numa compreensão de obra literária como
arranjo linguístico intransitivo, artefato verbal autocontido na sua própria imanência”
(SOUZA, Roberto Acízelo, 2003, p. 149-150).
É possível perceber em Ramos determinada hostilidade à história, uma vez que sua
explicação não contempla as transformações sociais que fizeram da década de 20 período de
notável efervescência. Ainda que se preocupe em reconstituir as origens do modernismo, o faz
em termos unicamente da história do próprio modernismo, da exposição de Malfatti à
incorporação de outros nomes ao movimento, sem relacionar com o contexto geral.
Talvez motive Ramos o desejo de salvaguardar a literatura das tentativas de reduzi-la a
mero reflexo da estrutura, mas acaba no outro extremo ao não oferecer subsídios que
permitam entender o surgimento do modernismo dentro de um marco mais amplo de
renovação das relações sociais. Como aponta Hans Robert Jauss, “compreender a obra de arte
em sua história – ou seja, no interior da história da literatura definida como uma sucessão de
sistemas – ainda não é o mesmo que contemplá-la na história – isto é, no horizonte histórico
de seu nascimento, função social e efeito histórico.” (JAUSS, 1994, p. 20) Aqui não se trata
de uma obra específica, é certo, mas o aporte de Jauss ao mostrar as limitações do pensamento
dos formalistas, é atentar para o fato de que, um melhor entendimento tanto da literatura
quanto da sociedade depende de que se encontre uma adequada conexão entre “a série
literária” e a “não-literária”.
Diferentemente de Péricles Ramos, Nelson Werneck Sodré, no seu História da
Literatura Brasileira, liga o surgimento do modernismo aos efeitos da guerra, o crescimento
do mercado interno, o surto industrial e o desenvolvimento da classe média; assim como o
tenentismo, o modernismo é, para Sodré, um fenômeno inequivocamente de classe média – o
que ajudaria a entender o caráter heterogêneo do movimento e o colocaria em consonância
com a vida política do país. Enquanto para Ramos seu surgimento é fruto da ação de homens
aglutinadores e ilustrados, para Sodré resulta da dissolução dos elementos coloniais que
permitiram pela primeira vez a constituição de uma literatura nacional. Não há margem de
ação fortuita: “A originalidade, que define uma literatura, como o instrumento de expressão,
que é o seu veículo, não surge por acaso, senão no período próprio, quando as condições
sociais permitem.” (SODRÉ, 1976, p. 522)
A abordagem do materialismo histórico dialético empregada por Nelson Werneck
Sodré não está isenta de críticas: alguns consideram que, baseada em premissas clássicas, põe
em segundo plano o texto e não dá conta da sua análise, já que “somente uma porção reduzida
da produção literária é permeável aos acontecimentos da realidade histórica, e nem todos os
gêneros possuem força testemunhal no tocante à 'lembrança dos motivos constitutivos da
sociedade'” (JAUSS, 1994, p. 16). No entanto, não se trata aqui de buscar a força testemunhal
do modernismo, tornando-o mera ilustração de um processo econômico, mas de situá-lo
dinamicamente na complexidade das relações recíprocas que a literatura estabelece com as
demais forças. Seria difícil acreditar na emergência da poesia moderna em outro momento,
assim como, o momento seria outro caso o modernismo não tivesse surgido.
Péricles Ramos argumenta que a união de Menotti del Picchia ao grupo de Mário e
Oswald trouxe prestígio e eficiência. Um dos motivos é importante assinalar: “porque era
redator político do Correio Paulistano, então o órgão oficial do partido dominante, e assinava
uma crônica diária, sob o pseudônimo de Helios, na qual fazia proselitismo literário.”
(RAMOS, 1979, p. 254) E completa: “Oswald, por seu turno, escrevia no Jornal do Comércio,
dispondo pois os renovadores de tribunas das quais poderiam ser ouvidos.” (RAMOS, 1979,
p. 254)
Faz-se necessário destacar a importância da informação trazida por Ramos. O autor
não se aprofunda na análise da questão, não discorre sobre o significado de que um dos
maiores nomes do modernismo escrevesse regularmente no jornal. No entanto, pode-se inferir
que o espaço dado aos modernistas na imprensa da época tenha sido determinante para a
penetração e aceitação das mudanças estéticas propostas pelo grupo. Igualmente inquietante é
que a tribuna da qual dispunha Menotti era o órgão oficial do Partido Republicano Paulista,
representante da oligarquia que ocupava o poder desde a proclamação da República e
incorporava todo o conservadorismo que a novidade moderna pretendia supostamente
combater.
Como explicar esse paradoxo? Ângela Thalassa (2007) defende que a contradição é
apenas aparente, pois o desejo estético de romper com o passado era financiado pelos
oligarcas do café. A Semana de Arte Moderna recebeu inclusive financiamento público e foi
um evento restrito a um ínfimo público, elite cultural bem distante dos sentimentos populares.
Isso tem, é claro, explicação na própria origem social dos artistas formadores do grupo. No
mesmo sentido, Péricles Ramos explica que a Semana estava marcada por uma disparidade de
tendências: alguns queriam apenas sacudir a província, outros viam no evento a chance de
expressar um contundente anseio de modernidade. A partir disso, Ramos conclui que a
Semana não teve uma filosofia, e o próprio movimento teria de esperar até o manifesto pau-
brasil de 1924 para que ela surgisse. Assim os modernistas, pelo menos em um primeiro
momento, afirmavam ser necessário “assustar essa burguesia que cochila na glória dos seus
lucros” ao mesmo tempo em que beneficiavam-se de tais lucros para despontar no plano
artístico.
Ademais, Thalassa acredita que Menotti del Picchia pôde servir de porta-voz do grupo
no jornal Correio Paulistano também porque individualmente já dispunha à época de
reputação suficiente para transpor quaisquer barreiras editoriais. A autora, apesar de destacar
que o Correio foi o único veículo a posicionar-se positivamente com relação à Semana de Arte
Moderna, minimiza tal apoio, expressando que ele restringiu-se “às colunas que tratavam
exclusivamente de arte, cultura ou eventos sociais – a Registro de Arte e a Chronica Social.
Jamais se publicou uma linha sequer na capa ou com grande destaque, nem mesmo no dia do
evento ou após a estréia.” (THALASSA, 2007, p. 152-153). No entanto, os artigos expostos
ao longo da dissertação de Ângela parecem desmentir esta conclusão. Já em 1913, Menotti,
sob o pseudônimo de Helios, escrevia no Correio Paulistano sobre a exposição de Lasar
Segall, exaltando a “muito interessante técnica” do pintor e qualificando-o como um “artista
de futuro”. Menotti publicou igualmente artigos que apresentavam ao público o escultor
Victor Brecheret, outros que repreendiam Monteiro Lobato pela dura crítica que havia feito da
exposição de Anita Malfatti, além de expor o tão criticado futurismo de Marinetti como “coisa
séria, raciocinada, honesta”.
Portanto, é possível sustentar que o referido “proselitismo literário” praticado por
Menotti foi imprescindível para o surgimento do modernismo, uma vez que introduziu no
meio cultural paulistano ideias de vanguarda e repercutiu as ações daquele “período heroico”,
constituindo-se como trincheira importante dos modernistas frente aos ataques escandalizados
da crítica passadista e reunindo entusiastas das inovações. A presença de espaço na imprensa
resultou, assim, relevante para a recepção das ideias emergentes na sociedade da época.
A estética da recepção pretendeu reconciliar história e literatura deslocando o centro
de análise da produção dos textos para a esfera da leitura. Tomou, para isso, as contribuições
do marxismo e do formalismo, que já haviam avançado tanto em relação ao positivismo
quanto ao idealismo. Dessa forma, a partir do efeito que essa obra produz com a sua chegada,
seria possível entendê-la com relação ao processo histórico geral. Neste sentido, afirma Jauss:
“A distância entre o horizonte de expectativa e a obra, entre o já conhecido da experiência
estética anterior e a 'mudança de horizonte' exigida pela acolhida à nova obra, determina, do
ponto de vista da estética da recepção, o caráter artístico de uma obra literária.” (JAUSS,
1994, p. 31)
O dado que Péricles Ramos elenca como um dos fatores que possibilitaram o
surgimento da poesia moderna – a atividade jornalística de alguns dos seus participantes –
ganha então sua real complexidade. A imprensa reagiu majoritariamente com assombro diante
da exposição de Anita Malfatti e das atividades da Semana de Arte Moderna, indicativo de
que havia considerável distância estética entre o horizonte de expectativa da época e as
produções que surgiam. Nesse contexto, a aprovação dada ao movimento por Menotti del
Picchia em suas colunas, seu trabalho praticamente pedagógico, orientou a compreensão do
novo cânone estético, não extinguindo o estranhamento, mas contribuindo para a paulatina
mudança de horizonte experimentada pelo público de uma sociedade também em
transformação.
Ainda que Ramos não explore adequadamente o tema, isto muito nos diz da relação
entre literatura e sociedade. Menotti praticava o seu “proselitismo literário” porque buscava
formar e/ou alterar os juízos do público com relação à vanguarda artística que representava;
em um momento no qual diversos jornais e renomados intelectuais, como Monteiro Lobato,
condenavam o modernismo como arte estrábica e efêmera, baseada na paranoia e
mistificação, Menotti trata de apresentá-lo como coisa séria, pensada. É assim que Menotti, e
Ramos ao mencionar as “tribunas”, têm consciência de que toda a criação pressupõe um leitor
e que este leitor não é abstrato senão habitante de um determinado tempo. A leitura, portanto,
é um ato social, influenciada por um contexto também conformado pela crítica jornalística.
Os modernistas buscaram visibilidade para suas ideias nos jornais, transformando-os em
espaços de disputa, visto que esse era um “meio em que prevaleciam gostos e opiniões já
enraizados, como a apreciação aos parnasianos, mesmo estando sua produção em plena
decadência.” (MACHADO, 2013, p. 34)
Literatura e história imbricam-se de maneira que pensar o surgimento da poesia
moderna é questionar sobre as possibilidades de recepção do projeto inovador no Brasil do
começo do século XX, conclusão amparada nas palavras de José Luís Jobim:

Mesmo sozinho em sua biblioteca, o leitor real não poderia desligar-se da tradição
cultural em que se situa sua visão de mundo, a partir da qual a leitura se efetuaria.
Ele não poderia renunciar a um repertório de normas e valores históricos
determinados, porque este repertório é parte integrante de seu mundo: constitui o
próprio horizonte no qual se forma sua consciência. (JOBIM, 2011, p. 139)

Outro motivo arrolado por Péricles Ramos seria o contato com as vanguardas
europeias. Nesse sentido, aponta uma dupla corrente de influências: por um lado, o futurismo
de Marinetti e por outro, o cubismo e o dadaísmo. Destaca a discussão em torno do juízo se os
modernistas eram futuristas ou não, celeuma superada pela incorporação do termo pelos
renovadores, mais no sentido de sentir-se enquanto vanguarda, grupo que representava o
futuro e que abria passo junto ao academicismo reinante. Para Ramos, Marinetti influenciou
os modernistas através da “profusão de imagens de concreto a concreto, observável em
Menotti del Picchia e outros poetas. Não se trata, nesses casos, de influência ou adoção
teórica do futurismo, mas do simples proselitismo estilístico desencadeado pelo Mafarka il
Futurista” (RAMOS, 1979, p. 256). Apesar das divergências que os modernistas
manifestaram com o futurismo, Ramos acredita que, na poesia moderna principalmente, essa
profusão de imagens marinettiana foi realmente intensa. A fim de comprová-lo, o autor expõe
algumas das passagens de Marinetti traduzidas por Menotti del Picchia no Correio Paulistano
e as compara com escritos do próprio del Picchia e de Guilherme de Almeida.
Faz-se necessário aqui trazer brevemente a reflexão de Iuri Tynianov sobre o tema da
influência. Tynianov defende que muitas vezes não se leva em conta a complexidade dessa
categoria, principalmente quando o crítico apresenta uma influência que não condiz com a
realidade, sendo que a criação frequentemente ocorre pela “convergência”. Para ele,

“O momento e a direção da 'influência' depende inteiramente da existência de certas


condições literárias. No caso de coincidências funcionais, o artista influenciado pode
encontrar na obra 'imitada' elementos formais que servem para desenvolver e para
estabilizar a função. Se essa 'influência' não existir, uma função análoga pode,
porém, levar-nos a elementos formais análogos, sem sua ajuda.” (TYNIANOV,
2013, p. 155)

Não se trata, na especificidade da relação futurismo-modernismo, da negação da


influência do primeiro, já que o amplo debate suscitado à época pelos poetas em torno da
questão traz incontestáveis evidências de sua existência. Primeiramente, a questão parece ser:
como se processa tal influência? A partir de Tynianov, pode-se argumentar que cada elemento
exerce função determinada em cada série, de maneira que no modernismo brasileiro a figura
do mar, como exemplo citado por Ramos, não cumpriria o mesmo papel que aquele
desempenhado na poética de Marinetti.
Aquilo que Péricles Ramos apresenta como paralelismo automático, transposição
imediata de imagens certamente abriga diferenças que o autor relega, não levando em conta a
necessária adaptação às condições literárias particulares. Sem embargo, como já citado aqui,
“compreender a obra de arte em sua história – ou seja, no interior da história da literatura
definida como uma sucessão de sistemas – ainda não é o mesmo que contemplá-la na história
– isto é, no horizonte histórico de seu nascimento, função social e efeito histórico.” (JAUSS,
1994, p. 20) Ao afirmar que a literatura deve ser entendida no processo geral da história, Jauss
evita a concepção imanente do cultural na qual cai por vezes Ramos e que o leva a ignorar
também uma segunda questão: por que a influência? Ou seja, o contato com as vanguardas
europeias estava condicionado por questões literárias e extra-literárias e a análise das últimas
em sua complexidade enriqueceria a compreensão do surgimento de nosso modernismo.
No breve esforço apresentado aqui, chegou-se à conclusão de que Péricles Ramos em
seu Do barroco ao modernismo: Estudos de poesia brasileira, no capítulo que trata do
surgimento da poesia moderna, concentra-se na história interna do modernismo, que
raramente é articulada com o contexto sócio-histórico de produção do fenômeno literário. O
autor expõe como uma das causas o “desejo de sacudir a pacatez provinciana”, atribuindo ao
plano de impulso individual a irrupção do movimento, particularmente pela ação aglutinadora
de Oswald de Andrade. Ramos cita a existência das tribunas das quais o modernismo pôde ser
ouvido, avançando ao abordar um fator da ordem da recepção, embora não aprofunde o tema
que poderia ser a oportunidade em sua análise de conjugar a crítica estética às origens
históricas dos modernistas e o trabalho que realizaram simultaneamente desde a imprensa e
das artes para modificar o horizonte de expectativa do Brasil da década de 1920.
REFERÊNCIAS

ANDRADE, Oswald de. Pau Brasil. São Paulo: Globo, 2003.

BRITO, Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974.

JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária. São Paulo:
Ática, 1994.

JOBIM, José Luís. O lugar da História da Literatura. In: BAUMGARTEN, Carlos Alexandre
(Org.) História da Literatura: itinerários e perspectivas.

MACHADO, Marcia Regina Jaschke. Considerações sobre a formação do Modernismo


brasileiro. Remate de males, Campinas, jan/dez. 2013, p. 31-50.

PERKINS, David. História da Literatura e narração. Cadernos do Centro de Pesquisas


Literárias da PUCRS, Porto Alegre, v.3, n.1, mar.1999, p. 1-58. Série Traduções.

RAMOS, Péricles Eugênio da Silva. Do Barroco ao modernismo: estudos da poesia brasileira.


Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos, 1979.

SODRÉ, Nelson Werneck. História da literatura brasileira: seus fundamentos econômicos.


Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976.

SOUZA, Roberto Acízelo de. A ideia da história da literatura: constituição e crises. In:
MOREIRA, Maria Eunice (Org.) Histórias da literatura: teorias, temas e autores. Porto
Alegre: Mercado Aberto, 2003.

THALASSA, Ângela. Correio Paulistano: O primeiro diário de São Paulo e a cobertura da


Semana de Arte Moderna. São Paulo: PUC, 2007.

TYNIANOV, Iuri. Da evolução literária. In: TODOROV, Tzvetan. Teoria da literatura: textos
dos formalistas russos. São Paulo: Ed. UNESP, 2013.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE
INSTITUTO DE LETRAS E ARTES
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
MESTRADO EM HISTÓRIA DA LITERATURA
TEORIA DA HISTÓRIA DA LITERATURA

DIEGO FREITAS GARCIA

LITERATURA E HISTÓRIA:
A IRRUPÇÃO DA POESIA MODERNA
SEGUNDO PÉRICLES RAMOS

Ensaio apresentado para a disciplina


de Teoria da História da Literatura,
ministrada pelo prof. Dr. Mauro Póvoas.

Rio Grande,
novembro de 2016.

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