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questões de poder

OS NOVOS CRIMES DE BOLSONARO


De aparelhamento da Polícia Federal a falsidade ideológica, Moro listou irregularidades cometidas pelo
presidente – mas também tem de se explicar pelos segredos que guardou
RAFAEL MAFEI RABELO QUEIROZ
24abr2020_18h49

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil

A
o deixar o cargo nesta sexta-feira (24), Sergio Moro desfruta de
um prestígio ecumênico: seu ato final, mais combativo que a
despedida carinhosa de Mandetta, é elogiado à direita e à
esquerda, entre os antigos críticos e os apoiadores de sempre, dentro
e fora do núcleo duro do bolsonarismo. João Doria e Wilson Witzel,
seus potenciais adversários em 2022, o aplaudem publicamente. Do
além, é provável que udenistas o contemplem com suspiros de
admiração: é o homem que fará desmoronar duas presidências, além
de uma candidatura.

Seu pronunciamento revela pontos importantes. O bom e velho juiz


da Lava Jato ergueria as sobrancelhas ao ouvir um agente público
revelar que barganhou sua participação no governo em troco de uma
mal explicada “pensão” para sua família, caso algo lhe acontecesse.
Mais ainda, desconfiaria do bom-mocismo de quem guardou segredo
por tanto tempo sobre ordens criminosas de seu superior para revelá-
las espetacularmente à imprensa: o procurador da República Yuri Luz
bem lembrou que, ao saber de ilícitos praticados por gente em seu
entorno, agentes públicos devem revelá-los imediatamente às
autoridades competentes para sua apuração – e não apenas
oportunamente, como Moro fez, acrescento eu. Mais ainda: se
Bolsonaro tivesse recuado por qualquer motivo estratégico, por
quanto tempo Moro guardaria segredo sobre os crimes tentados por
seu chefe contra a Polícia Federal? Dos pedidos impróprios feitos por
Bolsonaro à Polícia Federal, quais foram atendidos por Moro, mesmo
que a contragosto? Antes, porém, de julgarmos os segredos que Moro
guardou, é preciso avaliar o impacto de suas revelações sobre Jair
Bolsonaro e seu governo.

Tenho afirmado há algum tempo que razões jurídicas para o


impeachment não faltam. Jair Bolsonaro tornou-se um colecionador
de crimes de responsabilidade: ao abusar da retórica para atacar
adversários e incitar agressões a instituições de envergadura
constitucional, vive em permanente violação ao decoro do cargo (Lei
1.079, art. 9o, n. 7); atenta contra direitos individuais (art. 7o, 9) ao
atacar jornalistas e incitar campanhas contra veículos de imprensa
que não o bajulam; viola a Constituição ao impor alinhamento e
subserviência a instituições e políticas de natureza técnico-científica,
como o Inpe e o Ministério da Saúde (art. 9o, n. 4); estimula militares
a participarem de atos contra o Congresso e o STF, provocando
animosidade entre Forças Armadas e instituições civis (art. 7o, n. 8).

Na pandemia de covid-19, aumentou sua coleção ao fazer política por


meio da desinformação epidemiológica e da interferência autoritária
no terreno político de governadores, bem como na esfera técnica de
médicos e sanitaristas. Ambicioso que é, amealhou até violação
potencial ao direito fundamental à saúde, crime cometido por poucos
líderes mesmo na galeria dos mais perversos autocratas: com
objetivos políticos, desdenhou mentirosamente da gravidade da
doença e convidou ao desrespeito a medidas profiláticas
mundialmente consensuais. Com recordes de mortos e infectados
pela doença a cada dia, pagaremos a conta da falta de coordenação
sanitária por ele estimulada.

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O depoimento de Moro trouxe importantes acréscimos ao rol de


crimes cometidos por Bolsonaro. A tentativa de nomear
superintendentes e diretores da Polícia Federal que servissem a seu
propósito de instrumentalizar a atuação do órgão é evidente atentado
aos limites constitucionais no provimento de cargos públicos. A
jogada revela a permanente disposição de Bolsonaro em praticar o
nióbio dos crimes de responsabilidade: reduzir órgãos de Estado a
instrumentos para a prática de abuso de poder, possivelmente para
proteger aliados ou para prejudicar adversários.

Moro apontou também para a possível prática de crimes comuns, que


igualmente exigem autorização da Câmara dos Deputados para seu
processamento, mas são julgados pelo Supremo Tribunal Federal e
não pelo Senado. É possível que a pressão exercida junto a Moro e à
Polícia Federal configure crime de advocacia administrativa, já que
Bolsonaro usou seu poder para mover as engrenagens do Estado em
favor de seus interesses pessoais. A mal explicada publicação da
demissão de Maurício Valeixo da Diretoria-Geral da Polícia Federal
“a pedido”, e com suposta concordância de Moro, cujo nome aparece
junto ao de Bolsonaro na divulgação do ato no Diário Oficial, pode
configurar também crime de falsidade ideológica. Nesse último caso,
a efetiva configuração do crime dependerá de investigação que apure
como é a real rotina burocrática do sistema governamental que
publica esses atos: é preciso que saibamos se ele foi violado para que
um ato saísse com duas informações falsas que interessavam ao
presidente da República, e quem agiu para que isso acontecesse.

Se as acusações de Moro não são determinantes para viabilizar


juridicamente o afastamento de Bolsonaro da Presidência da
República, pois razões não faltavam antes delas, elas são sem dúvida
propulsoras políticas fundamentais para despertar o Congresso da
letargia. Impeachments são processos únicos porque exigem a
comunhão entre fundamentação jurídica e uma narrativa de vilania
política: a acusação precisa comunicar, de forma clara, que o
presidente da República agiu mal e quebrou a lei de modo grave e
imperdoável. Moro contribuiu decisivamente para fechar esse circuito
ao narrar didaticamente o comportamento criminoso de Jair
Bolsonaro, agora exposto como político vilão de filme vespertino.
Nesse sentido, seu depoimento traz acusações de qualidade única.

A dificuldade estará em prová-las, já que, como Bolsonaro apontou


em sua resposta, os pedidos feitos a Moro frequentemente deram-se a
dois, sem testemunhas. Talvez Moro os tenha gravado
clandestinamente, pois a captura da conversa à revelia do presidente,
nessas circunstâncias, não invalidaria a prova – disso o ex-juiz sabe
bem. Talvez nem seja necessário se preocupar tanto com a prova, já
que Bolsonaro, incapaz de entender a diferença entre ações de
governo e órgãos de Estado, admitiu em seu pronunciamento várias
das interferências de que é acusado. Entre elas, ter tido acesso a um
depoimento sigiloso e ter determinado à PF que ouvisse no presídio
federal de Mossoró um ex-sargento acusado de envolvimento na
morte de Marielle Franco, por motivos de seu interesse pessoal – “está
comigo a cópia do interrogatório”, arrematou.

Já chovem pedidos de impeachment em reação ao “pandemoro”. Eles


exigem que as instituições, especialmente a presidência da Câmara, se
manifestem. Manter-se ao lado de Bolsonaro, doravante, implicará
assumir apoio ao político publicamente exposto como líder
inescrupuloso e sem limites, dedurado pela figura pública de maior
prestígio do Brasil. É um grande ônus para quem vive de votos ou
cultua sua imagem pública para multidões: nos instantes seguintes ao
pronunciamento, aliados de primeira hora no Congresso, no mundo
empresarial e nas comunidades evangélicas vieram jogar pedra em
Bolsonaro, colocando-se ao lado de Moro.

Bolsonaro poderá tentar reação política junto ao Centrão, agora mais


próximo dele. Isso lhe garantiria uma barreira suficientemente forte
para barrar autorizações para quaisquer processos. Roberto Jefferson,
grão-mensaleiro e presidente do PTB com quem o presidente engatou
noivado virtual há poucos dias, será um importante termômetro, por
sua notória disposição em abraçar políticos pustulentos até o extremo
limite: em 1992, ficou ao lado de Collor e liderou sua tropa de choque
até seus instantes finais.

Em qualquer cenário, por impeachment ou crime comum, o


afastamento de Bolsonaro demorará o tempo dos ritos da justiça –
um tempo mais lento do que pedem a política e a economia,
especialmente no contexto de crise atual. Idealmente, Bolsonaro pode
ser convencido a renunciar. Nos EUA, Richard Nixon abandonou a
presidência para escapar de um impeachment e foi perdoado por seu
sucessor, Gerald Ford, pelos crimes por ele cometidos no exercício da
Presidência. Como barganhou a pensão com Moro, Bolsonaro pode
também tentar acordar alguma forma de proteção futura para si e
para seus filhos em troca de uma renúncia. Haveria dois obstáculos: o
primeiro, a contestação judicial que uma tal medida sofreria, por
violação aos princípios constitucionais da impessoalidade e da
moralidade; o segundo, a disposição em fazer cumprir um
combinado que assegura a impunidade do presidente que terá caído
justamente por trair a bandeira do combate à corrupção política. Os
aliados a quem Bolsonaro pedir esse favor poderão, ironicamente,
sair-se com o precedente aberto por ele próprio quando a fatura lhes
for cobrada: não cumprir o prometido, como ele mesmo não entregou
a carta branca que prometera a Sergio Moro.

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