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Escola Tomista – Apenas para uso dos alunos Página | 1

Escola Tomista
Professor Carlos Nougué

Aula 3
Bem-Vindos à terceira aula de nossa Escola Tomista. Lembremo-nos que
estamos na segunda aula da introdução filosófica às diversas ciências e às
diversas artes. Quero pedir-lhes perdão pela voz, mas não há outra maneira, é
preciso cumprir o cronograma de gravações, e se a cada gripe que eu tiver, no
meio deste frio em que vivo, eu adiar a gravação das aulas, a Escola Tomista
terminará em dez anos. Tenham-me hoje neste vídeo, como um professor
gripado diante de vocês em sala de aula. Mas, tentemos que aula seja a
melhor possível.

Repito que estamos na segunda aula de nossa introdução filosófica às diversas


ciências e às diversas artes. Esta introdução é fundamental, é nela que poderei
passar-lhes as primeiras e fundamentais noções da filosofia, o que terá
aplicabilidade necessária na própria teologia sagrada. Estas primeiras noções
são aquelas com que em geral o iniciante nessas matérias esbarra, esbarra
porque não as entende, não sabe de que se trata. Por isso mesmo, é que muito
particularmente nesta introdução serei monótono, serei lento, serei repetitivo,
porque quero que se fixem em seu intelecto o mais possível estas primeiras
noções, das quais muitos de vocês não tinham nem sequer notícia, até a
Escola Tomista.

Recapitularei a aula, de modo geral, e aprofundarei certos pontos dela, antes


de entrar na novidade desta aula três ou aula dois de nossa introdução. Pois
bem, vimos que entre o mundo inorgânico (o mundo dos não viventes) e o
mundo dos viventes há um salto ontológico (lembrem-se que ente em grego se
diz ón), do não vivente para o vivente, do mundo orgânico para o mundo dos
viventes, e depois outro salto, o salto do não conhecimento ao conhecimento.
Aí temos toda uma gradação, os animais inferiores que conhecem pelos
sentidos, no entanto, conhecem muitas vezes por um só sentido, o tato. Mas
nessa escadinha chegam os animais mais perfeitos que têm os cinco sentidos
externos, tato, olfato, audição, paladar, visão, além dos sentidos internos (que
veremos adiante). Deixei aí para vocês, como documento 2 desta aula, o
programa da Escola Tomista, para que eu possa remetê-los a cada referência
para um ponto futuro.
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Então, veremos ao tratar a biologia e a alma, que os animais têm não só os


cinco sentidos internos, mas os sentidos internos. A saber: o sentido comum, a
imaginação, a memória e a estimativa. Basta por hora que vocês ouçam estes
termos antes de entendê-los perfeitamente. Pela estimativa os animais são
capazes até de aprender, de certo modo, por experiência, e conseguem
estimar diferenças entre as coisas pelas aparências sensíveis, pelas
aparências que se lhes dão aos sentidos. E este é um modo de conhecimento,
é o modo de conhecimento dos animais brutos.

Eis, porém, que entre os animais brutos e o homem, há outro salto, outro salto
impressionante. É o salto do conhecimento meramente sensível para o
conhecimento intelectual, intelectivo, espiritual. Nós temos uma potência em
nossa alma que vai muito além, incomensuravelmente além do modo de
conhecer dos animais brutos, e assim como o objeto da visão é a cor e o objeto
da audição é o som, assim, o intelecto humano tem por objeto “o que é”. Não
me esqueço, obviamente, de que nós também temos o conhecimento sensível,
nós também temos os cinco sentidos externos, nós também temos os sentidos
internos, temos o sentido comum, a memória, a imaginação, a estimativa, mas
agora com outro nome, chama-se cogitativa ou razão inferior. Por quê? No
homem, ao contrário dos animais brutos superiores, nos quais a estimativa é o
que eles têm de superior para o seu conhecimento; nos homens ela se diz
cogitativa ou razão inferior, porque está submetida à razão superior.

Razão, intelecto, inteligência, mente, espírito são o mesmo, visto, porém, de


ângulos distintos, mas muitas vezes se usa um pelo outro. Pois bem, o objeto
do intelecto humano é o que é. E, o que é o que é? O ente. O ente é o que é.
Lembremo-nos que a palavrinha ente portuguesa vem do latim ens, entis, que
originalmente foi forjado como um particípio presente (que chamo eu modal),
mas que em filosofia só se usa de modo substantivado. Uma correlação, ente
se formou como um particípio modal, assim como fluente se formou de fluir,
mas é a mesma coisa que nutriente, eu digo que certo alimento é nutriente,
mas ao mesmo tempo eu posso usá-lo como substantivo: “os nutrientes de que
necessita nosso corpo”. Da mesma forma, ente em filosofia, conquanto se
origine de um particípio presente (ou modal), só se usa, repito, em filosofia e
em teologia, como substantivo, de maneira substantivada, é o ente.

O que é, este é o objeto do conhecimento propriamente humano. Não confundir


ente com ser. Imaginem se eu chamo ao ente (ou seja, o que é) ser. Então, eu
teria o seguinte absurdo: o ser é o que tem ser. É mais ou menos como dizer
que a brancura é branca. O ser tem ser ou o ser é, é um verdadeiro absurdo e,
no entanto, não só muitos tomistas, mas tantos outros costumam incorrer nesta
confusão. Quem já estudou Parmênides, as traduções são: o ser é, o não-ser
não é. Não é verdade. O ente é, o não-ente não é. Então, trata-se de ente, ente
é o que tem ser. Mas há outra coisa que é preciso desde já evitar, a confusão
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entre ser e existência. Temos três noções: ente, ser e existência. São três
coisas distintas, conquanto às vezes o verbo ser possa substituir-se por existir.

Quem já estudou Heidegger sabe que um de seus cavalos de batalha é o


famoso esquecimento do ser na filosofia ocidental, constata isso ele a partir da
contraposição entre essência e existência. Ele, em parte, tem razão, mas como
que ouviu o galo cantar e não sabe onde , e acaba enrolando-se em sua
mesma descoberta. O que vou dizer não é para que se entenda perfeitamente
agora, lembrem-se daquilo que eu disse, é uma seta numa estrada. Vou dar
uma fórmula que talvez só pouco de vocês a compreendam, e a maioria
certamente não e, no entanto, já devo dá-la para que não tropecem em
possíveis leituras, ou em possíveis pensamentos. Pois bem, já vimos o que é
essência na aula passada, voltaremos a vê-lo. A distinção entre essência e
existência é evidente para todos, todos os homens têm plena condição de
entender a diferença entre essência e existência. Por exemplo, a minha
essência é a humanidade e, no entanto, a minha existência pode acabar. Uma
coisa é a humanidade que está em mim, mas não só em mim, está também em
cada um de vocês, e a minha existência pode acabar antes da de vocês, ou
vice-versa, podemos morrer um antes do outro. E, no entanto, a essência
humanidade permanecerá em mim e em cada um de vocês. Morramos eu ou
outros, permanece a humanidade. Então, há uma distinção entre essência e
existência, mas essa distinção só existe na nossa razão, ela é de razão, ela
não é real.

A distinção real -- disso que Heidegger passou longíssimo -- é entre essência e


ser. Não vou avançar a partir de aqui, vou dizer apenas que enquanto a
distinção entre essência e existência é evidente para todos, a distinção real
entre essência e ser, só é cognoscível, só é compreensível para os
sapientíssimos. Pois bem, por isso mesmo é que lhes recomendo essa
paciência. Um dia, nesta mesma Escola Tomista, no âmbito da metafísica, e
ainda mais no âmbito da Teologia Sagrada, todos os que me acompanharem
pacientemente até lá um dia acordarão sapientíssimos, e entenderão a
distinção que eu acabo de fazer. O que há, -- coisa que provocou em parte
confusões com as de Heidegger -- é que os próprios tomistas, como se trata de
uma distinção difícil, eles mesmos passaram a calar esta distinção, e a
conseqüência é que eles mesmos acabaram por esquecer-se da distinção.

Eu tenho no meu livro “Estudos Tomistas”, que saiu pelas Edições Santo
Tomás, um opúsculo em que trato exatamente isto, opúsculo que termina com
a tradução de uma parte de um livro importante do padre Cornelio Fabro. Não
lhes estou dizendo que compre nem que leiam agora, repito que isso demanda
tempo, apenas lhes indico; além do mais, sempre haverá, no momento
adequado, ofertas de livros meus a vocês por um preço bem baixo. Pois bem,
então apenas para saber que vocês terão orientação no momento adequado, lá
adiante, quanto a isto; deixo, no entanto, já posto como uma seta de estrada
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que vai indicando o caminho. Isto vai ficar marcado na mente de vocês, um dia,
repito, acordarão sapientíssimos e entenderão esta distinção que acabo de
fazer, desde que tenham a paciência de acompanhar-me durante anos na
devida ordem do aprendizado. Pois bem, é este mesmo aprendizado que faz
que o conhecimento do sábio, do cientista, do filósofo seja mais excelente que
o conhecimento do comum dos homens. Isso é o que diz Aristóteles na
Metafísica, na passagem já indicada na aula passada.

Nós temos hábitos intelectuais. Explico mais ou menos o que é um hábito


intelectual. Todos nós nascemos, em tese, com potência, com capacidade para
ser médicos, em tese, ou seja, não há nenhum óbice a que cada um de nós
potencialmente possamos ser médicos, já nascemos com essa potência. Nem
todos teriam olho clínico, mas em princípio, todos poderíamos ser médicos.
Pois bem, mas entre poder ser médico, ter a potência de ser médico e ser
médico em ato, ou clinicar, ou fazer uma operação, há algo chamado hábito,
que o estudo exatamente da medicina. É mediante o estudo da medicina
tornar-se alguém capaz de ser médico, médico em ato, em ação, isto é o
hábito; claro, estou simplificando. A mesma coisa, todos nascemos
instrumentistas em potência, mas para que em ato toquemos um piano são
necessários anos de estudo de piano, para que possamos ser pianistas em ato,
ou seja, precisamos adquirir o hábito intelectual da arte da música, da arte do
piano.

Temos vários hábitos intelectuais, aqui a esta altura do curso interessa-nos


dois: o hábito da ciência e o hábito da arte. Estes dois hábitos têm muito em
comum, antes de tudo porque são intelectuais ambos, mas também têm suas
diferenças, e grandes. O hábito das artes, entenda-se por arte não só o que
modernamente se entende por arte, entenda-se por arte qualquer disciplina
intelectual, qualquer hábito intelectual cuja finalidade é fazer algo; neste sentido
a marcenaria é uma arte, porque faz móveis; neste sentido a música é arte,
porque compõe peças musicais; neste sentido a equitação é uma arte, a
medicina é uma arte, há diversas espécies de artes, artes liberais, artes servis.
Às vezes uma arte participa das duas coisas, como é a arquitetura, por
exemplo. Diz-se arte servil, porque a arte servil é a que serve ao corpo, e a arte
liberal é a que serve espírito. Ora, a arquitetura, no mais das vezes, serva a
ambas as coisas. Pois bem, e a ciência, o que é? A ciência é aquele hábito
cujo fim é superar uma ignorância, tem um fim em si mesmo. Quando digo que
o ente é aquele que é, superei uma ignorância. Quando digo que há distinção
de razão entre essência e existência, superei uma ignorância. Quando digo
sobretudo que há uma distinção real entre essência e ser, superei uma enorme
ignorância, tornei-me sapiente.

Quando Aristóteles descobre as quatro causa, ou as dez categorias do ser, ele


supera uma ignorância, nada mais que isso. Aliás, quando ouvimos dizer “as
categorias de Aristóteles”, não, não são de Aristóteles no sentido de que ele as
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inventou, são de Aristóteles no sentido de que ele as descobriu, e enquanto


descobriu, ele superou uma ignorância e ponto final, ele não vai fazer nada
externamente. Mas às vezes, algumas ciências, alguns hábitos científicos
também fazem coisas; por exemplo, a matemática, a geometria, aritmética são
ciências antes de tudo, são hábitos intelectuais que visam tão somente a
preencher uma ignorância, a repousar num conhecimento que antes que antes
não se tinha, e, no entanto, quando fazemos uma equação, quando fazemos
uma multiplicação, quando fazemos um desenho geométrico, fazemos algo,
então por isso mesmo é que desde o Didascalion de Clemente de Alexandria
deu-se de chamar as matemáticas, ou seja, a aritmética e a geometria, artes
liberais. São, antes de tudo, ciências, conquanto tenham algo de arte liberal
também. Também lhes oferecerei, no devido tempo, um livro meu em que há
um estudo sobre as artes liberais, chama-se “A necessária revisão”.

Pois bem, tudo isso se oferecerá a vocês no devido tempo, por enquanto
vamos pondo setinhas que vão demarcando o caminho de modo que não
tomemos atalhos errados. Mas vejam bem, tanto as artes com as ciências têm
algo perfeitamente em comum, são intelectuais, pressupõe conhecimento. Por
exemplo, pergunto-lhes: na arte da agricultura (porque o é, ela faz algo), quem
é o artista, o agricultor ou o agrônomo? Poderia parecer que fosse o agricultor,
mas, como se trata de hábito intelectual, é antes o agrônomo, o ideal é que o
agrônomo seja agricultor e o agricultor seja agrônomo. Porque quando se tem
o hábito da arte na mente é-se capaz de ensinar essa arte. Ora, o agrônomo é
capaz de ensinar, e muito especialmente se também for agricultor, ao passo
que o agricultor no máximo ensina por experiência, não porque domina
intelectualmente as causas que fazem que aquela arte seja bem sucedida.

Então, entramos em outro ponto, que é a distinção entre ciência e experiência.


Já vimos que os animais aprendem por experiência, mas aprendem pela
estimativa. Às vezes não, o João de Barro já nasce com a capacidade de fazer
sua casainha e já a faz, o Castor idem. Mas outros animais aprendem com a
experiência, mas segundo a estimativa numa mescla com instintos (a palavra
instinto também tem de ser estudada mais precisamente mais adiante). O
homem não, o homem tem algo em sua mente que se chama espécies
inteligíveis (novamente, não pretendam entender isso agora, isso se estudará
na psicologia), isso já os faz diferentes. Por aí já se vê que é diferente.
Ademais, como disse eu, a estimativa nos homens chama-se cogitativa (ou
razão inferior, porque ela se rege pela razão superior), mas é inegável que há
certa semelhança entre o modo de aprender animal, e o modo de aprender, por
exemplo, daquele operário que apenas tem uma função: apertar certo
parafuso. Isso é pura experiência. Numa linha de montagem, aplicar pontos de
solda, ou então, talhar pedras sempre iguais; ele aprende por experiência, mas
ele não tem a ciência da coisa, quem tem a ciência da coisa é o construtor, é o
arquiteto.
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Então, duas distinções. Primeira, entre ciência e arte, ambas são hábitos
intelectuais e têm em comum o conhecimento das causas, por isso é que o
agrônomo é mais artista que o agricultor. Tanto a ciência como as artes
conhecem o seu assunto pelas causas. Com a diferença de que a arte faz algo
externo, sua finalidade é fazer algo, ao passo que a outra é um mero conhecer,
é um mero descansar na superação de certa ignorância. Mas, ambas em
conjunto se diferenciam, por sua vez, da mera experiência, que conquanto
humana, tem pontos de contato com a experiência animal adquirida pela
estimativa.

A sabedoria é, de certo modo, outro hábito, porque é ver tudo do ângulo da


causas e dos princípios primeiros. Por isso é que conquanto Aristóteles chame
ao filósofo, o cientista, o sábio, e é verdade, há que saber que sábio, mais
propriamente dito, é aquele que passa da física para a metafísica, e, no caso
nosso, para a Teologia Sagrada. E que mais sábios ainda que nós são os bem
aventurados que estão diante de Deus, e que mais sábios que os bem
aventurados é o próprio Deus, que aliás, não só tem sabedoria senão que é a
própria sabedoria. Tudo isso se verá no ápice desse curso. Repito algo que
disse meio an passant na aula passada: a sabedoria é um termo analógico. O
que é analogia? Outro ponto importantíssimo de nossa Escola Tomista.

O homem, admirando-se diante do mundo que o cerca, formula perguntas, e


assim como a arte do marceneiro guia a mão do marceneiro em sua produção,
assim também a arte da lógica guia nossa razão rumo a seus fins. A razão quer
encontrar respostas para suas perguntas, as perguntas que lhe são suscitadas
por sua admiração diante do mundo, primeiro das coisas mais terrenas, depois
do céu, e depois, o homem sendo o único animal cuja cerviz lhe permite olhar
para o céu, perguntar-se sobre Deus. Mas esse já é um ponto de chegada,
porque o filósofo, o sábio, o cientista (não há diferença entre ciência e filosofia)
não se cansa de perguntar enquanto não só não resolva determinado
problema, mas não resolva todos os problemas, o que é impossível nesta vida.

Então, a pergunta funda a filosofia, funda a ciência, enquanto a lógica (ou arte
de reger a razão a seus fins) lhes permite aos sábios, aos filósofos não só
perguntar, mas perguntar corretamente e na ordem correta. E mais, permite-lhe
expor as dificuldades para a obtenção da resposta. Permite-lhe conhecer a
atadura, porque se não se conhece a atadura, não se pode soltar, só se solta
se se conhece a atadura, lembremo-nos, é uma palavra de Aristóteles. Pois
bem, a arte da lógica é a que vai ensinar os sábios a fazer as perguntas
corretas, na ordem correta, com ordem, com facilidade e sem erro.

E qual é a primeira pergunta que faz não só o sábio, mas todos os homens? “O
que é?” O que é esta coisa? A diferença é que o sábio vai encontrar a resposta
correta, enquanto muitas vezes, talvez a maioria das vezes, o comum dos
homens não dê uma resposta adequada, correta, cabal, perfeita, ou não dê
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nenhuma. Mas, assim como o objeto da inteligência humana é o que é, o ente,


assim também, a primeira pergunta há de ser “o que é?”, em latim quid sit?
Quid est? Vimos depois na aula passada que para responder adequadamente
à pergunta “quid sit?”, cuja resposta será o quid (ou quidditas), ou seja, a
quididade. Vejam, a pergunta é quid sit, a resposta é quidditas. Para responder
corretamente a isso, devemos (eis a lógica funcionando, a lógica regendo
nossa razão para que encontremos as respostas com facilidade, com ordem e
sem erro) não levar em consideração todos os aspectos que se nos dão aos
sentidos. Lembremo-nos, ainda não estamos no suprassensível, estamos
diante do mundo que nos rodeia, que vemos, ouvimos, cheiramos, tocamos,
saboreamos; é preciso esse primeiro degrau, porque nosso intelecto foi feito
inicialmente para conhecer o mundo sensível. Somos animais, não somos
anjos, esse é o erro de toda filosofia intuicionista (de eu tratarei na parte
chamada História da Filosofia: do impulso Grego ao abismo moderno).

Pois bem, devemos separar o acidental do essencial (ou quiditativo, lembremo-


nos também que quiditativo e essencial, essência e quididade são, neste
primeiro momento e até à física, tratados como o mesmo). Há dois tipos de
aspetos acidentais, há os aspectos acidentais propriamente ditos, por exemplo:
gordo, alto, baixo, magro; mas, há os aspectos acidentais que são
propriedades, por exemplo: os ruminantes (girafas, bovídeos, veados) têm um
aparelho digestivo que é adequado à ruminação, o estômago tem quatro
câmaras, é diferente dos não-ruminantes; pois bem, é preciso que os bovídeos
tenham esse aparelho digestivo, de modo que se não nascer com ele,
achamos que falta algo àquela natureza. Aquela vaca foi despojada de algo
que lhe é próprio. Mas a vaca pode ser maior, menor, malhada, com chifres
maiores ou menores. Então, são dois tipos de acidentes: as coisas acidentais
que são propriedades das coisas e os aspectos que não são propriedades. Não
importa o tamanho da vaca, isso é acidente propriamente dito, mas importa
muito que ela tenha um aparelho digestivo ruminante, isso é uma propriedade
dela, sem isso ela não é propriamente vaca, ou, é vaca mas nasceu com um
defeito.

Pois bem, ambos os aspectos acidentais, tanto as propriedades como os


acidentes propriamente ditos, eles não se devem levar em consideração para
que encontremos a quididade (ou essência), é necessário apenas encontrar os
aspectos essenciais. Por exemplo, uma árvore Pode ter folhas verdes,
amarelas ou vermelhas de acordo com a estação, isso é acidental
propriamente dito, mas decorre da essência da árvore o ter raízes; mas, na
hora de encontrar o essencial da árvore, não é que tenha raízes, o essencial é
que ela é um vegetal. Que tipo de vegetal? Este é outro problema. Então, esta
distinção entre aspectos acidentais (em seus dois tipos) e aspectos essenciais
é fundamental para o correto encontro da quididade, ou seja, da resposta à
pergunta “o que é esta coisa?”.
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Agora já entramos no que é esta aula mesma. Recapitulado o que se


recapitulou e aprofundado o que se tinha de aprofundar, entramos no sujeito
(sujeito aqui é pouco mais ou menos o mesmo que assunto, matéria) desta
aula. Mais adiante precisarei os sentidos filosóficos da palavra sujeito. O sujeito
desta aula começará agora.

Se olhamos dois gatinhos brincando, e esses gatos são diferentes, um é meio


tigrado, o outro é completamente negro; um mia de certa maneira, outro de
outra maneira; um mia mais, outro mia menos. Mas, se olharmos para cada um
deles, notaremos que debaixo do miado, de baixo da cor particular de cada um,
do tamanho, da gordura, do peso, das dimensões, da figura que têm os
gatinho, há algo que é como um suporte, um sustentáculo do ter esta ou aquela
cor, este ou aquele modo de pelo, este ou aquele miado, este ou aquele
tamanho. Debaixo do latido de cada cão há algo que suporte, no cavalo, por
exemplo, seu relincho. Olhando um cavalo vemo-lo empinar-se, vemo-lo
relinchar, vemo-lo trotar, vemo-lo abanar a cauda, mas não podemos duvidar
de que debaixo de cada uma destas coisas que acabei de dizer está algo que
sustenta isso, porque se assim não fosse, este cavalo se lhe raspássemos o
pelo, se lhe cortássemos a cauda, se por doença ele perdesse um monte de
coisas ele não seria aquele mesmo cavalo que outrora tinha o pelo brilhante,
que relinchava de modo potente, que empinava de modo potente, ele agora
está decrépito e, no entanto, é a mesma coisa. Em um momento esta mesma
coisa sustentava uma série de acidentes, agora sustenta outros, agora ele está
sem pelo, seus dentes estão velhos e, no entanto, é a mesma coisa.

Não é difícil notar que debaixo do relincho do cavalo, de seu cavalgar, de seu
empinar-se está algo. Que é este algo? É a importantíssima noção filosófica de
substância. É o documento três desta aula que lhes dou. O que é substância?
Substância é aquilo que sub stat, que está sob, que está debaixo dos
acidentes, e sem a qual os acidentes não poderiam existir. Olhamos para o
céu, vemo-lo azul, sabemos que esse azul não é do céu, é de algo, porque se
não houvesse algo que sustentasse a cor, ainda que esta cor seja só visível a
nós e desde certa distância, não poderia haver cor. Que não seja o céu, então,
é o quê? Algo tem de sustentar os acidentes, cor, figura, tamanho, dimensões;
algo tem de sustentá-los. Este algo é o que está sob, algo que está debaixo
dos acidentes, é um suporte, é um sustentáculo (vejam, todas palavras
começadas com “su”), é a substância.

Qual a diferença deste ângulo entre um gatinho e um cachorrinho, ou um


gatinho e outro gatinho, ou um cavalo e cada um nós? Nenhuma. Cada um de
nós é substância, porque cada um de nós é algo que sustenta nossos
acidentes, tanto os acidentes que são as propriedades como os acidentes
propriamente ditos. Todos somos substância. Encontramos assim a primeira
quididade, o primeiro aspecto quiditativo, o primeiro aspecto essencial, este é o
chamado gênero supremo. Eu sou substância, cada um de vocês é substância,
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o cachorrinho, o gatinho, o cavalo, a pedra, somos substâncias, porque, como


substâncias, estamos sob acidentes, debaixo de acidentes, somos suporte,
sustentáculo de acidentes. Vejam os que seguem o livro do padre Calderón,
que minha ordem exposição é diferente da dele.

Este é o chamado gênero supremo, dentro desse gênero estão todas as


substâncias, e neste sentido eu sou o mesmo que o cavalo, que é a mesma
coisa que o gato, que é a mesma coisa que a pedra, que é a mesma coisa que
o talo de grama, que é a mesma coisa que um corpo celeste, somos
substâncias. Pois bem, mas isso genérico, como responderia eu o que é este
corpo celeste, o que é este gato, o que é este homem, se eu respondo a todas
as perguntas “substância”? Afora o fato de que nem sempre nos é fácil saber
se é substância ou acidente, por exemplo, a maça na macieira, a laranja na
laranjeira são substância à parte ou são parte das árvores? Não o respondo
agora, estou lançando problemas, só se pode soltar-se se se conhece a
atadura. Os antigos quando olhavam para o céu e viam os corpos celestes,
com toda a lógica eles podiam duvidar quanto a se aquele corpo celeste era
uma substância, ou se era parte do céu, eles tinham todo o direito, não
incorriam em paralogismo com isso, era uma dúvida, eles não tinham
instrumentos que alcançassem a coisa.

Mas, sobretudo, voltemos, a resposta pelo gênero supremo é uma resposta


insuficiente. Saibamos ou não o termo substância, se perguntarmos ao comum
dos homens o que é isso?, o que é aquilo? Eles vão dizer que tudo é coisa.
Estamos com o termo filosófico, tudo é substância. Substância em grego se diz
ousía. Atenção, para os que já se aventuram por Aristóteles, ousía em
Aristóteles diz-se ousía, ou substância primeira ou substância segunda.
Quando Aristóteles usa ousía no sentido de substância segunda então é
sinônimo de essência, apenas registro para os que já estão avançados.
Estudaremos no devido momento o étimo, a etimologia da palavra ousía em
grego, e sua distinção etimológica com a palavra substância. Pois bem, se a
identidade de todos, ou seja, que todos sejam substância, não responde
satisfatoriamente a pergunta “quid sit?”, é preciso dar outro passo. Façamos
um parêntesis, para responder cabalmente a pergunta “o que é esta coisa?” é
preciso dividir, para dividir é preciso ir por semelhanças e diferenças. Quando
digo que algo é semelhante a outro é porque ele é em parte igual e em parte
diferente, e quando digo que algo é diferente de outro é porque ele é em parte
diverso e em parte igual, ou seja, é recíproco. Eu só sou pai porque sou pai de
meu filho, meu filho só é filho porque é filho de mim que sou seu pai.

Entre a semelhança e a diferença existe essa mutualidade, essa relatividade. O


que é semelhante à outra coisa é em parte igual e em parte diferente; e o que é
diferente é em parte diverso e em parte igual, ou seja, disse o mesmo de
ângulos diverso em algo mútuo. Pois bem, é por semelhanças e diferenças que
vamos conseguir pouco a pouco responder filosoficamente, segundo a arte da
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lógica, a cada pergunta quid sit (o que é esta coisa). Se é por semelhanças e
diferenças que devemos progredir para encontrar a resposta cabal, completa à
pergunta quid sit, e, se já vimos uma semelhança, tudo é substância e esse é o
gênero supremo, de modo que este gatinho, aquele gatinho, este cão, aquele
cão, aquele cavalo, aquela zebra, eu, aquela árvore somos todos substância,
no entanto, há uma diferença clara que também é um aspecto quiditativo (ou
essencial), conquanto não vá entrar na resposta, na quididade à pergunta quid
sit. É que tudo é substância, mas este gato é numericamente um, e aquele
outro gato é numericamente um; distintas substâncias numericamente falando,
eu sou um, cada um de vocês é um, este gato é um, aquele é um, um cavalo é
um , o outro cavalo é um; todos são substâncias, mas todos são diferente
numericamente.

Encontramos, antes de tudo, a quididade que torna as coisas iguais entre si,
por esta parte elas são iguais, são todas substância. Este é o gênero supremo,
é por aí que nós começamos a responder a pergunta quid sit. Vimos agora que
há uma diferença, uma diversidade entre as coisas, entre aquelas mesmas
substâncias que vimos ser iguais entre enquanto são substâncias, mas elas na
verdade não são iguais, porque elas são semelhantes e ser semelhante implica
uma diferença, e a diferença primeira que encontramos é que elas são
numericamente diferentes, cada substância é uma e não é a outra; cada gato é
aquele gato irrepetivelmente, é ele, enquanto outro é outro, cada um é um.

Se ao unirmos dez gatos ou dez substâncias encontramos o número dez é


porque este número completo se divide em um, um, um, um, assim
sucessivamente até dez, sendo cada um diferente do outro numericamente.
Esta é a segunda quididade (ou aspecto quiditativo) que encontramos. Repita-
se, é por diferenças e semelhanças que chegaremos à resposta cabal, mas,
por que ao responder ao fim e ao cabo a pergunta “o que é esta coisa” não
levamos em consideração a diferença numérica entre as substâncias? Por
desnecessário, está suposto, não é necessário, absolutamente é de desprezar
quando dermos a resposta cabal. Hoje já teremos, ao fim desta aula, o que eu
chamo um exercício dirigido (por mim, claro), para termos já uma primeira
noção do que só se compreenderá mais perfeitamente ao tratarmos de modo
formal a divisão.

Mas agora, assim como já se disse com muita propriedade, que o grande
universo se visto no tempo, ou seja, com as coisa sucedendo-se umas atrás
das outras, o grande universo é como uma longa e bela sinfonia, as de Anton
Bruckner, por exemplo, que são longas mesmo. Então, o universo visto do
ângulo do tempo é como uma longa e bela sinfonia. Visto do ângulo do espaço,
ou seja, do estático, é como um grande mural (no sentido de afresco), é um
grande afresco. Pois bem, assim como o universo é do ângulo do tempo uma
longa e bela sinfonia, e do ângulo do espaço é um imenso mural; olhemos
agora o mundo à nossa volta como se fora um teatro, uma peça teatral, um
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drama, como se estivesse diante de nós um palco, olhemos para o palco do


mundo e vejamos num olhar abrangente, tudo isso que vimos ser substâncias,
enquanto iguais e numericamente substâncias diferentes enquanto diversas.

Olhemos para tudo isto, não nos será difícil, se usarmos a inteligência (inter
legere), notar que se todas essas coisas são substâncias e numericamente
diversas entre si, com diferença numérica, por isso são semelhantes e
diferentes, porque em partes são iguais e em partes são distintas. Não nos é
difícil ver uma distinção. Não nos é difícil ver que no palco do mundo algumas
substâncias têm vida, enquanto outras não a têm. De um lado do palco estão
as substâncias viventes, do outro lado do palco estão as não-viventes; foi com
isso que começamos a nossa passada e esta aula mesma. Aquele salto que há
do não-vivente (inorgânico) ao vivente, esta distinção não nos é difícil ver, aliás,
para a maioria dos homens é fácil, qual homem não consegue distinguir entre
um ser vivo e um ser não vivo. Claro, já se disse que alguns fungos para
distingui-los de uma ferrugem é muito difícil, ou uma esponja de um vegetal,
mas isto são os casos limites, são os casos extremos. Não é difícil ao comum
dos homens, e muito mais ao filósofo, ver que este palco do mundo, depois da
igualdade de substâncias e da diversidade numérica destas mesmas
substâncias, estas mesmas substâncias se dividem em dois grandes grupos,
em duas grandes classes: a dos entes viventes e a dos entes não-viventes.

Vamos acostumando-nos com a terminologia lógica. Viventes e não-viventes


são espécies do gênero substância. Lembrem-se que já resolvemos deixar de
lado a quididade diferença numérica, deixamos de lado por inútil, resta aquele
gênero supremo chamado substância que se divide em duas espécies:
viventes e não-viventes. Viventes e não-viventes são espécies de substâncias,
que é o gênero supremo, acima dele não há nada, porque se eu dissesse que
acima da substância está o ente, eu incorreria num problema que só
entenderão bem adiante quando tratarmos os transcedentais. O gênero
supremo não é o ente, é a substância (entenderemos o porquê disso adiante).
Então, temos o gênero supremo (a substância) divida em duas espécies:
viventes e não-viventes. Mas, usando sempre a inteligência, veremos uma
coisa impressionante, estas duas espécies do gênero substância por sua vez,
são gêneros de outras espécies. Se olharmos para os não-viventes, é uma
divisão mais complexa, não quero tratar aqui, mas obviamente os não viventes
se dividem em espécies (tratá-lo-ei detidamente ao entrarmos no Órganon
aristotélico e em seu complemento que é a Isagoge de Porfírio).

Do lado dos não viventes há divisões, há espécies. Vejam, não-viventes era


uma espécie de substância, agora se tornam, sem deixar de ser espécie da
substância, são gêneros de outras espécies. Se agora saltarmos para um
campo que nos é mais familiar -- a saber, os viventes, eles que também são
uma espécie de substancia, agora são gêneros de outras espécies. Que
espécies são estas? Duas, a sensitiva (ou animal) e a vegetal. Vamos
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esquecer por hora o gênero dos não-viventes e suas espécies, darei,


provavelmente na próxima aula, uma árvore, não é a árvore de Chomsky, mas
é algo semelhante à árvore de Porfírio, será aquela mesma árvore sem o erro
que comete Porfírio (explicarei também este erro).

Pois bem, não se assustem com a coisa, que já já vocês terão. Depois da aula
da divisão, que é isto que nós estamos dando hoje explicado mais
formalmente, aí sim poderei dar-lhes a árvore como se fora a árvore de Porfírio.
Estamos do lado dos viventes, que já vimos que é uma espécie do gênero
substância, e que por sua vez tem outras espécies abaixo. Quais são? De um
lado o animal (ou sensitivo), e do outro lado o vegetal (ou vegetativo). Não é
difícil, mesmo ao comum dos homens, distinguir animal de vegetal (excluído
aqueles casos aparentemente fronteiriços, já vimos que até a lesma do mar
realiza a fotossíntese, esse é um caso que estudaremos e que não justifica de
modo algum, diga-se desde já, o evolucionismo). Estamos do lado dos viventes
que sendo espécie de substância, por sua vez, se divide em duas espécies: o
gênero vegetal (ou nutritivo) e o gênero animal. Isso não é difícil, o homem
comum concluirá, o problema é que ele não sabe fazer essa ordem que estou
fazendo aqui, mas não lhe é difícil aprender esta quididade. Cada um destes
galhos da árvore que estou dizendo é um aspecto quiditativo, é um aspecto
essencial (lembremo-nos que deixamos de lado o aspecto da diferença
numérica, agora a diferença se faz por outras coisas).

Voltemos, estamos do lado do vivente, que é espécie da substância, e que por


sua vez é gênero de duas outras espécies: animal (ou sensitivo), vegetal (ou
nutritivo ou vegetativo). Para facilitar uma vez mais nossa vida deixemos de
lado a espécie vegetativa, aproximemo-nos da espécie animal, que nos é mais
cara, que nos é mais conhecida, que nos é mais íntima porque fazemos parte
dela. Então, não nos pecamos. A substância é gênero supremo de duas
espécies: vivente e não-vivente. Deixamos os não-viventes de lado. A dos
viventes se divide em animal e vegetal. Deixemos o vegetal de lado, por hora.
Atenhamo-nos à espécie animal. Agora é um pouquinho mais difícil, mas não é
impossível, mesmo ao homem comum, notar que entre os animais há duas
espécies. Animal é espécie de vivente, mas agora é gênero de duas outras
espécies. Primeira: racional. É o homem, é o animal que pensa. Segunda:
irracional (ou bruto). Então, o gênero animal, que é espécie de vivente, agora é
gênero de duas outras espécies: racional (ou humana) e irracional (ou bruta).

Vejamos se essa espécie de vivente que é a racional se divide, por sua vez,
em outras espécies. Não. O que vemos é que animal racional é o que se
chama espécie especialíssima. Homem é espécie especialíssima. Por quê?
Porque homem já não é gênero de nenhumas espécies. As diferenças abaixo
de homem são acidentais. Lembremo-nos, não devemos levar em conta para
encontrar a quididade completa de algo com respeito ao qual se pergunta o
que é (quid sit). Mas aqui são acidentes propriamente ditos. Abaixo da espécie
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homem, humana, racional só existe diferenças acidentais estritas. De que tipo?


De vários. Há diferenças acidentais raciais; não há a menor diferença essencial
entre o homem negro, amarelo, branco ou vermelho, de olho assim ou assado,
de cabelo assim ou assado. As diferenças abaixo de homem são acidentais, ou
raciais ou individuais; assim como eu tenho certa altura, você outra; tenho certo
formato de rosto, você outro; eu sou homem, você é mulher; são diferenças
acidentais. Sei que o ponto homem e mulher é muitas vezes entendido como
diferença essencial, não o é (vê-lo-emos em biologia). Não nos atenhamos a
questões que só se entenderão mais perfeitamente ao final, saiba-se, por hora,
que a distinção homem e mulher não é essencial, senão que é acidental; assim
como é acidental que eu seja branco ou preto, alto ou baixo, gordo ou magro,
isso tudo é acidental.

Estamos no âmbito da espécie especialíssima, que é humana ou racional, o


homem. Então repassamos o trajeto até agora de nossa árvore. Na cúpula
temos substância; vimos que se divide em duas espécies: viventes e não-
vivente. Deixamos os não-viventes de lado. Do lado dos viventes vimos que
eles, embora sejam espécie da substância, são gêneros de suas outras
espécies: animal e vegetal. Deixamos também de lado o vegetal. Vimos que
animal, -- que é espécie de vivente que, por sua vez, é espécie de substância --
é gênero de duas outras espécies: racional (homem) e irracional (brutos). E
viemos por fim que abaixo da espécie racional já não há espécies, apenas
diferenças acidentais, sejam de gênero sexual, sejam de raça, sejam acidentais
mais estritamente falando ainda. Homem é uma espécie especialíssima.

Pois bem, vamos agora para o lado dos irracionais. Se deixamos de lado os
não vivente e deixamos de lado os vegetais, agora interessa-me que nos
atenhamos um pouco sobre a dificuldade que nos oferece a espécies dos
irracionais. Porque, na verdade, agora temos de perguntar-nos “an sit” (an sit
quer dizer “se é”, “se existe”, agora podemos usar se existe aqui. Lembrem-se,
nem sempre pode usar-se existir pelo verbo ser, por exemplo, eu posso dizer
que ser cão é mais que ser minhoca, e ser minhoca é mais que ser grama, mas
eu não posso dizer que ser cão é existir mais que minhoca, isso não é
possível). Aqui esta pergunta tem que ver com se existe espécies da espécie
irracional, ou seja, se irracional, além de ser espécie de animal, é gênero de
outras espécies. Abaixo do homem só há diferenças acidentais. E abaixo de
irracional, são diferenças acidentais ou há outras quididades, outros aspectos
essenciais que façam que por sua vez irracional seja gênero de outras
espécies? Parece que a resposta é simples, mas não é. Daí a necessidade da
pergunta an sit, se existem espécies animais que constituam como espécie
aspectos essenciais em nossa busca, guiada pela lógica, das respostas à
pergunta quid sit, as quididades ou essências.

Parece simples, em alguns temos praticamente certeza. Um gato parece de


uma espécie distinta de um cão, mas vejam bem, olhamos para os cães, desde
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o Chihuahua ao Dog Dinamarquês; serão diferenças apenas raciais, ou


essenciais, de modo que uma constitui espécie e a outra também outra
espécie? Afinal, se pusermos para cruzar um Chihuahua com um Dog
Dinamarquês será impossível. Atenção, não respondo questões, lanço-as, ao
modo dialético. Muito bem, mas a coisa se complica. Ainda que consideremos
o chihuahua e o Dog Dinamarquês da mesma espécie, o cão é da mesma
espécie ou constitui uma espécie diferente do coiote, da hiena, do cachorro do
mato, do lobo? Parece que há coisas comuns a eles, e parece que há coisas
distintas, então, cabe a pergunta, neste caso, “an sit?”. Se existe a espécie cão
distinta da espécie lobo, da espécie hiena, espécie cachorro do mato, espécie
coiote. Mas há mais, da espécie irracional, supondo que o coiote seja uma
espécie, o cão seja outra, o gato seja outra, a zebra seja outra, o cavalo seja
outra, mas entre os irracionais estão as aves, estão os insetos, estão as
aranhas, as moscas, estão criaturas que parecem antes vegetais, que parecem
outras coisas; e aquela divisão entre mamíferos, vertebrados, invertebrados?
Cada uma dessas coisas constitui espécies ou são diferenças acidentais?
Cabe responder a isso no âmbito da biologia, mas a biologia quanto a isso e,
sobretudo, na classificação das espécies ela já começa com a pergunta “an
sit”; não tem o menor sentido perguntar se existe a substância, não tem o
menor sentido perguntar se existe o orgânico e o inorgânico, não há sentido
perguntar se existe o vegetal e o animal, se existe o homem e os demais
animais, não há nenhum sentido, mas há todo sentido em perguntar an sit à
espécie dos vertebrados e dos invertebrados, dos mamíferos e dos ovíparos,
ou seja, é um conjunto muito difícil de compreender, e que compete, no
entanto, à biologia. Veja que esta ciência já começa de certa maneira com este
problema: an sit. Quanto ao homem e a ciência, a psicologia ou a antropologia,
já não temos problemas, encontramos a espécie especialíssima, mas, muito
provavelmente, ainda não encontramos, nem de longe, as espécies
especialíssimas que decorrem da divisão de um gênero, que é o gênero
irracional, que por sua vez é espécie de animal, que por sua vez é espécie de
vivente, que por sua vez é espécie do gênero supremo chamado substância.

Às vezes o palco do mundo se nos oferece com facilidade, às vezes com


dificuldade. Ao homem comum é-lhe impossível sem a arte da lógica -- que é
propedêutica às demais ciências -- responder a estas questões que acabo de
pôr com respeito aos irracionais. Aí é o umbral em que se detém o homem
comum, aquele que não tem conhecimento excelente, como o tem o filósofo, o
cientista (lembrem-se, trata-se do mesmo, a diferença entre filósofo e cientista
é uma perversão moderna), o sábio. Por isso lhes dou aí o documento 1 da
aula 3, é uma espécie de exercício dirigido, vou lhes fazer perguntas, vou
respondê-las, e vocês acompanhem a resposta no documento que lhes dou; é
um primeiro exercício, dirigido este. Ao fim desta introdução, como em todos os
pontos da Escola, darei avaliações opcionais, quem não as quiser fazer não as
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faça, nem por isso deixará de receber seu certificado caso termine a Escola
Tomista.

Então, vamos ao documento 1 da aula 3. Pergunta-se “que é um cão?”. Eis a


pergunta de todo homem a qual, porém, só pode responder, guiado pela lógica,
o filósofo, o cientista, o sábio (depois veremos que sábio é ligeiramente
diferente de cientista, e que no mundo moderno, como que indevidamente,
cientista passou a diferenciar-se de filósofo). Que é um cão? Pensem o que é
um cão segundo aquela árvore que dei até agora. É antes de tudo uma
substância, leiam aí, é o aspecto quiditativo mais geral – constitui o gênero
mais amplo, acima dele não há nada. Mas isso vimos que ainda não é
responder. Que um cão seja substância, ora bolas, também o é o gato, também
o é a árvore, também o é a pedra, também o é um sem número de coisa. Então
devemos prosseguir por, lembremo-nos, semelhanças e diferença. Temos
agora a primeira diferença: é uma substância, apenas uma. No gênero anterior
ele é substância, agora, ele é uma substância. Pensem bem, é diferente de
toda e qualquer outra substância. Esse é um aspecto quiditativo absolutamente
geral também que, porém, não constitui gênero, o gênero é o da substância, é
tão aspecto quiditativo quanto o é a diferença numérica. O cão é substância, e
é uma substância, esta substância, mas este segundo deixamos de lado como
já disse e repeti.

Então, isto ainda é insuficiente. Se eu digo que um cão é uma substância e


uma substância, eu não respondi a nada cabalmente, dei aspectos quiditativos
ou essenciais, mas não encontrei a quididade geral ou essência. Porque se
digo que um cão é uma substância, e é apenas uma substância, a resposta
será idêntica a o que é um gato, é substância e apenas uma substância. Que é
o homem? É substância e é uma substância. Que é a pedra? É substância e é
uma substância. Ou seja, não encontrei a quididade geral, encontrei quididades
particulares. Ademais, esta segunda quididade, -- que seja o cão uma
substância e não outra, diferente de toda e qualquer outra – é desprezível, é de
desprezar.

Mas é preciso prosseguir no nosso caminho de semelhanças e diferenças.


Qual será o próximo passo? Lembrem-se da aula até agora. Um cão é
substância vivente. Leiam agora, é o aspecto quiditativo de algumas espécies
de substâncias – constitui um gênero menos amplo que o das substâncias e
contrapõe-se ao gênero dos não viventes, que reúne outras espécies de
substâncias. Então, já demos outro passo. Um cão é substância vivente. Mas,
se pergunto o que é o gato? O que é a zebra? O que é a minhoca? O que é a
mosca? Responderei também que são substâncias viventes, logo não
encontrei ainda a essência ou quididade de um cão. Demos o nosso próximo
passo no caminho de distinguir semelhanças e diferenças. O cão é substância
vivente. Qual é o próximo passo? Ele é substância vivente irracional (bruta). Eis
agora a explicação. Irracional é aspecto quididativo de algumas espécies de
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substâncias viventes sensíveis (ou animais). Repita-se, é o aspecto quiditativo


de algumas espécies de substâncias viventes sensíveis (ou animais) – constitui
um gênero menos amplo ainda que o dos viventes, e contrapõe-se ao gênero
dos racionais, que inclui uma só espécie, a do homem. Mas então eis que
topamos com um problema, é o problema do an sit (se existe), se irracionais
(ou brutos) é uma espécie especialíssima (ou última), ou se divide, portanto,
em outras espécies, sendo assim um gênero de outras espécies. Agora não se
trata de uma resposta, ainda encontramos novos aspectos quididativos para
responder o que é um cão.

Agora temos a pergunta: é de uma espécie especialíssima? É preciso agora


que nos perguntemos an sit (se é, se existe) a espécie cão. Não se responda
tautologicamente; não se responda como uma petição de princípio, que é uma
falácia. O que seria o cão? Substância vivente animal irracional canina. Não,
isso é uma petição de princípio. É mais ou menos dizer que o ser é, ou que a
brancura é branca. Que o cão seja canino não responde nada. Logo, temos um
problema que não se resolve aqui, senão que depois da aula seguinte, onde
trataremos mais formalmente a divisão, terão os especialistas em biologia, em
zoologia condições de resolver. Eu mesmo já adiantarei a solução disso.
Obviamente os biólogos terão mais condições que eu, os biólogos de
especialidade, de profissão, mas eu já afastarei muitas pedras do caminho.

Perguntamo-nos “que é um cão?”, agora, que é um homem (ser humano)?


Primeira resposta é aquele gênero geral, substância, igual ao cão. Qual é o
segundo aspecto quiditativo (ou essencial)? O mesmo do cão, ele é um
homem, este homem, e não aquele outro homem. E este aspecto quididativo,
que é a diferença numérica, já sabemos que o devemos deixar de lado na
resposta cabal à pergunta “o que é um homem?”, ou seja, a sua quididade (ou
essência) completa. Mas, assim como vimos antes, dizer que o homem é
substância é dizer algo, mas não se responde a pergunta quid sit. Então,
continuemos com esta marcha de divisão segundo semelhanças e diferenças,
e encontraremos algo semelhante ao que encontramos para o cão, é vivente. O
homem é um vivente. Leiam aí de novo, é aspecto quididativo de algumas
espécies de substâncias – constitui um gênero menos amplo que o das
substâncias, e contrapõe-se ao gênero dos não viventes, que reúne outras
espécies de substâncias. Até agora entre o homem e o cão só existem
igualdades quididativas (ou essenciais), até agora cão e homem não são
semelhantes, são iguais, porque ser semelhante é ser em parte igual, e parte
diferente, até agora eles só são iguais.

Demos mais um passo para ver se conseguimos encontrar a resposta cabal (a


quididade) à pergunta “o que é um homem?”. E o próximo passo é também
igual ao do cão: é sensível (ou animal). Leia-se aí, aspecto quididativo de
algumas espécies de substâncias viventes – constitui um gênero menos amplo
ainda que o dos viventes, e contrapõe-se ao gênero dos vegetais, que reúne
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outras espécies de substâncias viventes. Continuamos na igualdade, até agora,


um cão e um homem são exatamente a mesma coisa, são substâncias
viventes animais (ou sensíveis). Continuemos na nossa marcha da distinção
segundo semelhanças e diferenças. Agora sim, encontramos algo distinto do
cão. Ele, o homem, é racional, é um aspecto quiditativo de uma espécie de
substância vivente sensível (ou animal). E já vimos que é espécie
especialíssima, a espécie homem. Diferentemente do que sucede com o cão,
ou com a zebra, ou com a hiena, ou com a minhoca, ou com a mosca, ou com
a lesma do mar, encontramos para o homem a espécie especialíssima e,
quando se encontra a espécie especialíssima, responde-se cabalmente a
pergunta “o que é um homem?”. Um homem é substância vivente sensível (ou
animal) racional. Como veremos, para definir o homem – porque ao ponto
divisão seguir-se-á o ponto definição – basta a definição animal racional, mas a
definição completa, segundo a divisão completa, que responde a pergunta “o
que é um homem?”, é esta: um homem é substância vivente animal racional.

Dou três corolários deste brevíssimo exercício dirigido, apenas para estimular
vocês a acompanhar-me. Vejam aí “Donde”. A) Substâncias de uma mesma
espécie só têm entre si uma distinção essencial ou quididativa: a distinção
numérica. Isso quer dizer o seguinte: a distinção entre um gato e outro gato é
que ele é um gato, e um gato, outro gato. B) Substâncias de espécies
diferentes pertencem a um mesmo gênero quando são semelhantes em certas
partes essenciais. Homem e brutos pertencem ao mesmo gênero de animais,
racionas e irracionais, mas ao mesmo gênero de animas, ou seja, temos uma
igualdade quiditativa e uma distinção específica. C) O gênero mais amplo é
precisamente aquele a que todas pertencem: o gênero das substâncias.

Ainda algumas observações, acompanhem no documento. A) Um gênero


divide-se em espécies, mas também constitui espécie de outro gênero (exceto
o da substância, que é o gênero superior e não é espécie de nenhum outro).
Aqui só estou insistindo no que já vimos, isso serve para fixação e
memorização; sugiro-lhes que leiam e releiam este documento. B) Diz-se
espécie especialíssima a espécie que não se divide em diferenças quiditativas
ou essenciais, só em diferenças acidentais (individuais ou raciais).

Uma orientação. Pode ser que muitos de vocês, pela novidade da coisa que
estão ouvindo, estejam um pouco aturdidos, é assim mesmo; tenho certeza
que eu passei alguns anos aturdido diante da leitura das obras de Santo
Tomás. Pelo menos de 45 a 52 anos eu era puro aturdimento diante da Suma
Teológica. Vocês estão tendo a possibilidade que eu não tive: alguém que os
guie, que comece do começo, que os levem pela mão como um pedagogo. Só
me começaram a levar pela mão como um pedagogo quando eu já tinha 55, 56
anos. Este aturdimento de vocês é muito mais saudável que o aturdimento que
eu tive. Por quê? Porque é um aturdimento inicial. Eu comecei pelo fim, então
não era aturdimento, era quase um desespero. O que vocês têm agora, se é
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que o tem, é um aturdimento diante de uma novidade. Não é preciso,


tampouco, que amanhã cada um de vocês entre em uma sala de aula, e
comece a dar aula sobre isso, é impossível, vocês estão estudando, estão
aprendendo, e todo aprendizado implica certo impacto que se vai
sedimentando pouco a pouco, até que um dia, vocês acordam sabendo aquilo.
Daqui a alguns anos o saberão explicar ao menos a seus filhos. Por hora,
estamos diante de certo espanto, de certo aturdimento; algo novo se nos dá,
mas algo novo que começa a fazê-los penetrar o palco do mundo, e entendê-
lo, já não como homem comum, que muitas vezes nem sequer o conhece
realmente, mas sabendo como aprendizes de sábios.

Muito obrigado.

Até nossa próxima aula.

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