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12/04/2020 O fazer-se da historiografia brasileira - uma introdução

O fazer-se da historiografia brasileira – uma


introdução
Erik Hörner
3º Ano - História/USP
erikhorner@klepsidra.net
historiografia.rtf - 24KB

Este ensaio pretende apresentar um pouco da historiografia brasileira no século XIX, ou seja, o
início da construção do pensamento e escrita da história nacional, de forma fluida e
metodologicamente mais consciente do que tudo que anteriormente fora feito. Porém, um assunto
de tamanha envergadura necessita de um recorte mais preciso para que possa caber nas
modestas dimensões deste trabalho.

Para tanto, o século em questão terá uma versão mais enxuta, com quase
quarenta anos a menos, iniciando-se em 1838, o ano da criação do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro. Quanto a outra margem do século o
recorte não é tão preciso, irá até o ano de 1900 sem muito rigor. Mais
correto seria estudar-se até 1930, ponto de virada praticamente indiscutível
do pensamento histórico brasileiro, no entanto, o presente trabalho tem
como preocupação maior mostrar as origens, os primeiros anos deste
pensar nacional, centrando olhares sobre a trajetória de Varnhagen e
Capistrano de Abreu. Alguns nomes importantes não serão contemplados,
como Joaquim Nabuco ou Barão de Rio Branco, o que não os diminui em Joaquim Nabuco
absolutamente nada, apenas deixa-os para uma melhor ocasião.

No dia dois de outubro de 1838 é criado, no Rio de Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) como proposta do Cônego Januário da Cunha Barbosa e do Brigadeiro
Raimundo de Cunha Matos. Uma data de certa significação se analisada junto aos objetivos
propostos pelos fundadores do Instituto. Estava-se a dois anos do fim da Regência, um período de
extrema importância para a compreensão da formação do Império e do Brasil como Estado
Nacional, fato que vai ao encontro dos objetivos da recém-criada entidade que apesar da forte
carga de idéias nativistas e um tanto ufanistas "os traços mais notáveis do órgão, no entanto, são
o pragmatismo da história e o gosto pela pesquisa", o que não desconsidera o estudo da história
como ferramenta pedagógica "orientadora dos novos para o patriotismo, com base no modelo dos
antepassados." (IGLÉSIAS: 2000, 61)

Apesar destas idéias pedagógicas, é a pesquisa que caracteriza o Instituto e o torna divisor de
águas, pois passa-se a fazer o que nunca havia sido feito. O trabalho anteriormente realizado,
desde o século XVII, era individual, episódico e sem continuidade. O IHGB foi responsável por
reunir os que pensavam a história e estavam interessados em discuti-la, mas não em formá-los
pois a entidade não possuía – e não possui, pois ainda existe – as características de uma
universidade, sua função era de conduzir discussões e, por meio da sua Revista, publicar
documentos pertinentes aos estudos históricos.

Ou seja, o caráter autodidata dos pensadores brasileiros


continuava: religiosos, militares, juristas e até médicos discutiam a
História Pátria, como se usava dizer.

Por um bom tempo, a preocupação do Instituto foi em periodizar a


História do Brasil, algo simples e óbvio hoje em dia mas que na
época era motivo de inúmeras discussões. Entre elas se encontra
o desentendimento entre o General José Inácio de Abreu e Lima,
que como periodização propôs a divisão da História do Brasil em
oito épocas ou capítulos, e Francisco Adolfo de Varnhagen,
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encarregado em dar um parecer em nome do IHGB no ano de


1843. A periodização do General era de fácil crítica devido a sua
excessiva e quase exclusiva história administrativa do país e ao
fato de ter pensado primeiramente as categorias para depois
inserir os acontecimentos. No entanto Abreu e Lima se mostrou
muito mais hábil na arte do "bate-boca" que com o pensamento
científico, terminando este embate em um texto de Varnhagen
intitulado "Réplica apologética de um escritor caluniado e Juízo
final de um plagiário difamador que se intitula General".

Varnhagen

Curiosamente Varnhagen nunca se interessou em periodizar, atendo-se mais à documentação,


sua paixão pessoal. O historiador sorocabano foi um dos maiores compiladores de documentos do
Brasil, dando subsídios práticos aos demais historiadores graças às facilidades decorrentes do
cargo de diplomata. Até então a pouca documentação existente se encontrava dispersa e não
catalogada: poucos meios se tinha para estudar o Brasil Colônia ou o Nordeste Holandês, quase
nada se sabia do tipo, quantidade e estado dos documentos existentes na Bahia, Pernambuco,
Portugal ou Holanda. No entanto, Varnhagen não se limitou ao título de compilador, deixando
como obra mais importante "História Geral do Brasil", sendo o primeiro volume de 1854 e o
segundo de 1857. Publicou inúmeros trabalhos, entre obras documentais e textos críticos, vindo a
falecer em Viena no ano de 1878.

Cumpre voltarmos um pouco na questão pertinente à periodização, pois consiste assunto


vastíssimo. Quando surgiu a "polêmica" de Abreu e Lima uma periodização já era tida como oficial
pelo Instituto desde 1839 e proposta por um de seus idealizadores, Brigadeiro Cunha Matos. A
proposta do Brigadeiro, adotada post-mortem (ou in memorian?), dividia a História do Brasil em
três épocas: "a primeira, relativa aos aborígenes ou autóctones, a segunda, compreendendo as
eras do descobrimento pelos portugueses e a administração colonial, e a terceira, abrangendo
todos os conhecimentos desde a Independência" (RODRIGUES: 1957, 153). Cunha Matos
também propunha que diante da ignorância das Histórias das Províncias, primeiro se fizessem
estudos regionais e posteriormente se debruçasse sobre o todo brasileiro.

No entanto, a razoável coerência da periodização apresentada não impediu o lançamento de um


concurso que contemplaria com 200 mil réis aquele que apresentasse "um plano para se escrever
a história antiga e moderna do Brasil, organizado de tal modo que nele se compreendessem as
partes política, civil, eclesiástica e literária" (RODRIGUES: 1957, 160). Apresentaram trabalhos
apenas dois estudiosos - o naturalista alemão Karl Friedrich Philipp von Martius e Júlio de
Wallenstein.

Wallenstein, o "derrotado", apresentou um trabalho pouco inovador, no qual propunha o estudo da


História do Brasil por décadas, nos moldes do romano Tito Lívio ou do cronista português João de
Barros, e privilegiava a história política. A história civil, eclesiástica e literatura deveriam constar
como observação no fim de cada capítulo. Logicamente o Instituto pedia algo mais ousado,
mesmo que dentro do conservadorismo esperado de uma entidade que recebia o apoio intelectual
e financeiro do Imperador.

Já von Martius apresentou seu "Como se deve escrever a História do Brasil", escrito em 1843,
publicado na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro em 1845 e, finalmente, dado
como vencedor em 20 de maio de 1847. Trabalho que se situa entre a inovação e o característico
de uma época, "Como se deve escrever..." é fruto de atenta observação do naturalista enquanto
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esteve expedicionando pelo interior do Brasil sob patrocínio do rei da Baviera. Na verdade, o
estudioso alemão não apresentou uma periodização, mas sim um tratado contendo todos os
pontos e problemas que deveriam ser elucidados para a compreensão geral e ampla do Brasil. Foi
o primeiro a salientar a importância do índio e do negro, a necessidade de se conhecer mais a
fundo os costumes, a língua e a mitologia indígena, a falta de elementos cotidianos do colono
português e do escravo africano para a compreensão dos mecanismos coloniais. No entanto, é
necessário destacar que a inclusão de outras raças como responsáveis pela construção do país
não excluía, segundo von Martius, a responsabilidade do branco em mostrar os rumos da
civilidade, posição eurocêntrica típica e esperada.

O Negro, a Índia e o Senhor de Engenho Português

Não se deve pensar que, por ter ganho um concurso, a tese de von Martius passou a ser seguida
como lei, pois cada historiador poderia escrever como bem quisesse. O que ficou realmente como
legado foram as influências e o início de debates, sempre presentes quando algo novo surge. Um
historiador que com certeza ao menos leu "Como se deve escrever..." foi João Capistrano de
Abreu, nascido no Ceará e radicado no Rio de Janeiro desde 1875.

Capistrano de Abreu foi talvez o primeiro historiador a dar


importância a elementos populares ou menos elitistas, escrevendo
uma história sócio-econômica do Brasil, sendo capaz de desprezar
a Inconfidência Mineira pois para ele não passou de um
movimento de uma minoria intelectual, não chegando ao status de
ação. Entretanto, antes de alcançar o espírito crítico que lhe fez
conhecido, o historiador cearense passou por diferentes
"momentos". Logo que chegou ao Rio de Janeiro com 21 anos de
idade carregava em sua bagagem a escola positivista e o plano de
escrever uma História que mostrasse as influências permanentes
da natureza sobre a civilização, tudo fundamentado sobre as
leituras de Taine, Buckle e Agassiz. Sua formação teórica tomou
corpo a partir de 1881 através da amizade com Teixeira Mendes e
Miguel Lemos, os pais do positivismo no Brasil e da Igreja
Positivista.

Porém as mudanças em seu discurso historiográfico já são


perceptíveis a partir de 1882 – se é que podemos estabelecer uma
data com tanta precisão. Desde 1879 Capistrano de Abreu já fazia
parte da Biblioteca Nacional onde vinha tendo contato com
documentação inédita e com obras de novos historiadores, não Capistrano de Abreu
ligados às teorias de Comte, como Niebuhr, Ranke e Humbolt,
filhos do realismo histórico alemão.
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Seu período na Biblioteca rendeu frutos de importância incontestável e o contato com a


documentação resultou em uma série de edições documentais limpas de toda pesquisa crítica
prévia, apenas como instrumentos do saber histórico, assim como fez Varnhagen. Do mesmo
modo, o contato com os autores alemães proporcionou um alargamento dos horizontes
intelectuais de Capistrano de Abreu que não se contentando com as traduções logo aprendeu o
idioma para que pudesse acompanhar mais de perto a evolução da nova escola.

O historiador cearense caminhava rapidamente para o posto de


intelectual. Como complemento aos seus estudos lia obras de geografia,
economia, sociologia (então, em estado nascente) e psicologia,
dominava o francês, o inglês, o latim e agora o alemão. Tal crescimento
se tornava incompatível com o positivismo. Sua visão crítica exigia mais,
pois ele não tinha como permanecer ao lado de uma escola filosófica
que não pesa o valor do testemunho, ou pesquisa as fontes, sua
autenticidade e credibilidade. "O historiador sabe que não pode reduzir
as ações humanas a regras naturais, porque assim não veremos a vida
real, o drama da História. Os fatos reconstruídos, percebem-no todos
que exercitam a história, não se enquadram nas causas amplas e gerais
com que o positivismo quis explicar o curso da humanidade."
Auguste Comte (RODRIGUES: 1965, 39-40)
Uma de suas obras mais famosas sai em 1907, após 7 anos de preparo, uma edição comentada
de "História Geral do Brasil" de Varnhagen, na qual realizou anotações, esclarecimentos e críticas.
Os pontos e questões que considerou merecedores de maiores estudos Capistrano reservou lugar
em seu "Capítulos de História Colonial", onde tratou de assuntos tais como o indígena, os
franceses e ingleses no Brasil, a guerra flamenga, a expansão para o sertão e a formação dos
limites territoriais, entre outros. Porém, sua produção intelectual não se limita a isso, produziu
incansavelmente de 1878 a 1927, tendo editado "Caminhos Antigos e o Povoamento do Brasil" no
ano de 1899 e realizado inúmeras traduções, inclusive de livros de direito e medicina, durante sua
vida.

O importante é notarmos o que realmente ocorreu ao longo do século XIX, considerado por alguns
como o "século da História". A História surge então como reveladora de gêneses, não que isso
nunca houvesse sido feito, porém passa-se a pensar como analisá-la , que ferramentas seriam
usadas, que teorias e práticas seriam pertinentes. Na verdade, é no oitocentos que se cria um
caráter científico para o que antes era considerado apenas literatura, adquirindo assim, métodos e
critérios. Segundo Francisco Iglésias o que se tenta fazer, a partir daí, é "reunir o maior número
possível de documentos, seja de produção atual seja de mais antiga, com a recuperação de
papéis perdidos ou desgastados pelo tempo" (IGLÉSIAS: 2000, 41). Estes documentos
proporcionaram bases sólidas para que estudiosos pudessem discutir suas diferentes visões.

Rapidamente a História virou "febre intelectual" resultando no surgimento de inúmeros institutos e


sociedades especializadas, tendência que o Brasil acompanhou de perto seguindo o modelo dado
pelo Instituto Histórico de Paris para a criação de seu Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro.
No entanto, não apenas de influências se fez a produção intelectual brasileira. As idéias francesas
e alemãs, logicamente, fizeram parte das rodas de discussões dos estudiosos deste lado do
Atlântico. Mas seria ingenuidade pensar que nada de original surgiu na América e que tudo foi
importado – pensamento existente até hoje. Se grande parte da história intelectual brasileira é
importada, é importante lembrar que as idéias e doutrinas aqui se "deformaram ou conformaram
às condições de um novo meio" (COSTA: 1987, 324).

Sendo assim, o IHGB foi o responsável por agremiar os historiadores ou apaixonados por história,
para que mais tarde estes autodidatas ou "filosofantes brasileiros", segundo as palavras de João
Cruz Costa, pudessem influenciar as gerações seguintes, disputando a atenção dos mais novos
com as idéias estrangeiras. É interessante pensar também que a "importação" de idéias e
doutrinas se faz mais forte quando não se possui meios com os quais rebate-las ou rechaça-las, e
que grandes revoluções – e aqui se incluem as intelectuais – só ocorrem quando há idéias
trabalhadas e adequadas aos revolucionários.
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Este ensaio não pretende, de forma alguma, discutir ainda se a historiografia "pós-anos 30" sofreu
uma revolução ou evolução, mas espera-se que tenha ficado demonstrado que apesar de
possíveis erros, incongruências ou inconseqüências uma futura renovação só pode se realizar
sobre algo pré-existente, ou seja, Francisco Adolfo de Varnhagen, João Capistrano de Abreu,
Joaquim Nabuco, Barão de Rio Branco, João Pandiá Calógeras, entre outros, foram o início para
que depois viessem Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Júnior, e
sucessivamente até os tempos atuais.

Gilberto Freire, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior

Bibliografia:

ABRÃO, Bernadette Siqueira – História da Filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
COSTA, João Cruz – O pensamento brasileiro sob o Império. In: HOLANDA, Sérgio Buarque
de – História Geral da Civilização Brasileira. T. II, vol.3. 6.ed. Rio de Janeiro: Bertrand-
DIFEL, 1987.
IGLÉSIAS, Francisco – Os historiadores do Brasil: capítulos de historiografia brasileira. 1.ed.
Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Belo Horizonte: UFMG- IPEA, 2000.
RODRIGUES, José Honório – Teoria da História do Brasil: Introdução Metodológica. Vol.1.
2.ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1957.
RODRIGUES, José Honório – História e Historiadores do Brasil. 1.ed. São Paulo: Fulgor,
1965.

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