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Em seu “Mal estar na civilização”, Freud retoma o mais antigo imperativo ético cristão do amor

ao próximo. Mas para ele o amor ao próximo não é a cimento social que permite aos
indivíduos viverem harmoniosamente em sociedade, mas a impossibilidade desse elo, quando
se leva em conta a pulsão de morte e agressividade inerente à natureza humana. Não é isso
que demonstra divinamente bem Lars Von Trier em Dogville? A bela e pura Grace, com seu
coração de ouro, não é a expressão do amor ao próximo que se deixa estoicamente submeter
aos instintos mais sórdidos e sombrios dos moradores da pacata cidadezinha de Dogville? Mas
para Lacan, não cabe restringir o amor ao próximo em nome do elo social, mas o contrário: o
compromisso ético fundamental é justamente conduzir o amor ao próximo às suas últimas
consequências, e demolir as leis simbólicas que sustentam o distanciamento formal em relação
ao outro. É isso que ele quer dizer com seu imperativo ético: não cedas de teu desejo! Na sua
visão, o desejo é o único veículo autêntico de radicalização ética. O mérito do filme, ganhador
do Oscar, “Os Parasitas”, do sul-coreano Bong Joon Ho, foi ter expressado com perfeição essa
ideia. O estranhamento do outro, o próximo da ética cristã, é detectado pelo odor que excede
os limites da divisão de classe: o cheiro do ralo. O momento de inflexão do filme é quando esse
cheiro perturbador que emerge da classe baixa é exatamente o que incita as fantasias sexuais
do casal burguês. Ou seja, o cheiro repulsivo que os mantém separados é o mesmo que
libidinalmente os unem. A partir dali, Kim, o motorista do casal, já não pode mais ceder de seu
desejo. O amor ao próximo só pode ser expresso na abolição completa da diferença de classe
que os mantém separados. E é esse mesmo desejo devastador que imprime a utopia final de Ki
em ver um dia seu pai subir pelas escadas do porão em direção ao terraço ensolarado.

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