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O amor, um pássaro rebelde

O amor, um pássaro rebelde

Marisa Faermann Eizirik,1 Porto Alegre

O amor tem história, e deixa marcas: o amor platônico, o amor cortês, o amor
romântico, o amor líquido. Cada época tem uma paisagem, um cenário,
formas de amar e ser amado. O amor muda no tempo, e com o tempo.
Sempre rebelde a ser aprisionado, é fluxo e intensidade. Ao percorrer
alguns momentos da história do pensamento no que tange ao tema do
amor, encontramos rastros em nosso imaginário. Platão, por exemplo,
nos deixou textos antológicos sobre o amor. Marcou a cultura ocidental
profundamente, com a divisão corpo-alma, mundos dionisíaco e apolíneo.
Somente a revolução sexual da metade do século XX conseguiu fraturar
esse modelo, produzindo mudanças que chegaram ao século XXI como um
redemoinho, absorvidas por uma contemporaneidade irremediavelmente
afetada pela velocidade e pelo dilúvio da informação, o culto da imagem,
a internet, os sites de relacionamento, que atingem o corpo, o erotismo, a
busca de prazer, as relações amorosas. Esses são alguns tópicos de que
trata esse artigo.

Palavras-chave: amor, corpo, tempo, intimidade, contemporaneidade.

1
  Psicóloga. Doutora em Educação/UFRGS; consultora institucional; conferencista e coordenadora
de grupos de estudos sobre Ética, Poder, Subjetividade.

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Marisa Faermann Eizirik

Desassossegos

O amor é um surgimento de forças, um movimento de excesso, “um demônio


furioso”, no dizer de Nietzsche, que assiste, em lágrimas, à Ópera Carmen de Bizet
inúmeras vezes. Para ele, aí reside o espírito trágico que constitui a essência da
paixão amorosa, a guerra. Esta guerra se passa na profundidade do ser, no jogo
íntimo das pulsões que animam tudo o que somos, nossos desejos, nossos atos e
pensamentos (Nietzsche, 2008).

L’amour est un oiseau rebelle/L’amour est un oiseau rebelle/Que nul ne


peut apprivoiser
Et c’est bien en vain qu’on l’appelle/S’il lui convient de refuser/Rien n’y
fait, menaces ou prières
L’un parle bien, l’autre se tait/Et c’est l’autre que je prefere/Il n’a rien dit
mais il me plaît
L’amour! L’amour! L’amour! L’amour!
L’amour est enfant de Bohême/Il n’a jamais, jamais connu de loi (...).
L’oiseau que tu croyais surprendre/Battit de l’aile et s’envola/L’amour est
loin, tu peux l’attendre
Tu ne l’attends plus, il est là!/Tout autour de toi, vite, vite/Il vient, s’en va,
puis il revient/Tu crois le tenir, il t’évite
Tu crois l’éviter, il te tient/L’amour! L’amour! L’amour! L’amour2

Como se conjuga o amor nos encontros e desencontros, no que pode e não


pode ser dito, nos desassossegos do coração, no movimento incessante do que não
pode parar, não pode ser governado ou aprisionado, não conhece a lei?
Falar sobre o amor é abordar um dos temas mais recorrentes da vida humana
que todos experimentamos em alguma de suas formas. Difícil de ser conceituado.
Encontramos sua ambiguidade já na Grécia Clássica, em que o amor aparece em
três vocábulos (eros, philia e agapè) que enfatizam não o que se ama, e sim o tipo
de relação que se estabelece. Eros designa o amor acompanhado de desejo. Já a

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  Ópera Carmen, Bizet “O amor é um pássaro rebelde/O amor é um pássaro rebelde/Que ninguém
pode prender/Não adianta chamá-lo/Pois só vem quando quer/Não adiantam ameaças ou súplicas/
Um fala bem, o outro cala-se/É o outro que prefiro/Não disse nada, mas agrada-me/Amor! Amor!
Amor! Amor!
O amor é filho da boêmia/Que nunca, nunca conheceu qualquer lei (...) O pássaro que julgavas
surpreender/Bateu asas e voou/O amor está longe, podes esperá-lo/Já não o esperas, aí está ele/À
tua volta, depressa, depressa/Ele vem, ele vai, depois volta Julgas tê-lo apanhado, ele te escapa/
Julgas que te fugiu, ele agarra-te/Amor! Amor! Amor! Amor! (...).

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O amor, um pássaro rebelde

segunda palavra (philia) se refere ao amor por algo com o que nos associamos –
podendo ser tanto amor a uma pessoa, como na relação de amizade, como também
o amor a uma ideia ou a um valor, como na filo-sofia. Por fim, há a agapè, que se
encontra relacionada a um valor específico, talvez próximo da renúncia. Seria um
amor da ordem da ternura, sem reciprocidade, uma espécie de amor puro, como
o amor ao próximo pregado pela tradição cristã da caridade. Eros se relaciona
diretamente com o desejo, que se apresenta como falta na tradição platônica, ou
como força, produção na versão nietzscheana.

O poder do mito

O mito é uma fala, uma linguagem, um sistema de comunicação. É uma


forma de contar as coisas, um valor de que nos utilizamos para passar uma
mensagem. Herdada dos gregos, a palavra mito não se opõe, em princípio, ao logos
(pensamento verdadeiro e fundamentado), cujo sentido primeiro também é palavra,
discurso, antes de designar a inteligência, a razão, explica Jean-Pierre Vernant
(1998). O mythos designa realidades muito diversas: teogonias e cosmogonias,
mas também fábulas, genealogias, contos infantis, provérbios, ou seja, tudo o que
se diz de boca em boca, e que pode também ser conhecido como rumor, anônimo e
repetido. É somente no marco da exposição filosófica ou da investigação histórica
que, a partir do século V, mythos se coloca em oposição ao logos, desqualificado
de um poder de verdade.
O Amor é um dos temas mais frequentes da narrativa mítica, magistralmente
expresso em O Banquete, de Platão (1983). Trata-se do relato de Platão sobre um
jantar ocorrido em Atenas em 416 a.C., tendo o amor como tema. São sete os
convidados, dentre os quais destacarei Sócrates e Aristófanes.
Sócrates inicia sua participação com uma pergunta: pode-se amar aquilo
que já se tem ou somente algo que nos falta? Como poderia alguém desejar o que
já possui? Como se pode prescindir do que já se tem? O amor em relação a algo
parece surgir da falta deste. O discurso de Sócrates começa com a introdução de
Diotima, mulher muito sábia, a quem reconhece como sua mestra nas questões
do amor. O amor é um Daimon, nos diz ela, ou seja, o ponto médio entre o divino
e o mortal, o que comunica os dois extremos, um intermediário. Sobre a origem
do amor, Diotima se serve do mito de Poros e Penia – Abundância e Carência
(Recurso e Pobreza) – que, juntos, formam o amor; são seus pais, e deles herda
estas mesmas qualidades. Por uma parte, o amor é um intermediário entre os
deuses e os homens; por outra, também se move entre a abundância e a carência,

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e o amor representa esta particular condição: ora germina e vive, ora morre e de
novo ressuscita. Sócrates afirma que o amor deriva da falta, do desejo de ter; e,
quando não lhe falta, não o deseja mais.
Aristófanes, autor de comédias e sátiras políticas, muito conhecido na época,
toma a palavra e define o amor como um íntimo desejo de restituição de uma
plenitude perdida, de reencontro com uma totalidade previamente experimentada.
Nos tempos antigos, explica, a humanidade era dividida em três gêneros, masculino
(sol), feminino (terra), e andrógino (Andros-masculino e Gino-feminino-lua). Eram
unidos pelo abdômen. Seu formato era redondo: suas costas e seus lados formavam
um círculo, e ele possuía quatro mãos, quatro pés e uma cabeça com duas faces
exatamente iguais, cada uma olhando numa direção, pousada num pescoço redondo.
Podiam andar eretos, como os outros seres humanos faziam, para frente e para trás.
Podiam, também, rolar sobre seus quatro braços e quatro pernas, cobrindo grandes
distâncias, velozes como um raio de luz. Sua força era extraordinária, e seu poder,
imenso. E isso os tornou ambiciosos. Quiseram desafiar os deuses, e incorreram
na hybris (desmesura), o que era intolerável. Destruí-los seria abrir mão de sua
adoração e de suas homenagens, como puni-los então?
Zeus determinou que vivessem. Arquitetou um plano para deixá-los mais
humildes: cortá-los ao meio e fazê-los andar sobre duas pernas, o que diminuiria
sua força e os tornaria mais numerosos. Imediatamente, Zeus começou a partir as
criaturas em duas metades. E, na medida em que os cortava, Apolo ia virando suas
cabeças, para que pudessem contemplar eternamente sua parte amputada. Com
isso, aprendiam a ser humildes. Apolo também curou suas feridas, deu forma ao
seu tronco e moldou sua barriga, juntando a pele que sobrava no centro (umbigo),
para que eles lembrassem o que haviam sido um dia.
Então, as criaturas começaram a morrer, de fome e de tristeza, unindo-se
num abraço desesperado. Quando uma das partes morria, a outra ficava perdida,
à procura. Diante disso, Zeus ficou com pena das criaturas. Pediu a Apolo que
virasse suas cabeças para que suas partes reprodutoras pudessem estar frente a
frente. Antes, eles copulavam com a terra. De agora em diante, se reproduziriam
um homem com uma mulher, num abraço. Assim os humanos seguiriam vivendo.
Com o tempo, eles esqueceriam o que foram um dia, mas permaneceriam com
o desejo de reencontrar a metade da qual tinham sido separados. Desejo nunca
inteiramente satisfeito, pois mesmo no ato de amar, em que um se dissolve no
outro, permaneceria a saudade daquela unidade jamais recuperada.
Um desejo jamais inteiramente saciado no ato de amar, porque mesmo
dissolvendo-se no outro pelo espaço de um instante, a alma saberia, ainda que

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não conseguisse explicar, que seu anseio jamais seria completamente satisfeito. E
a saudade da união perfeita renasceria.
Esse mito marca a influência de Platão sobre o conceito de amor no
ocidente. Conta a história de como um dia fomos fundidos num só, poderosos e
arrogantes, ao julgar que poderíamos competir com os deuses. Conta, também,
como fomos mutilados, amputados da outra parte que nos completava, e viramos
dois. Aprendemos a sentir saudade da intimidade e do amor. Daí por que seguimos
buscando, contínua e infinitamente, o abraço amoroso e a delícia de se sentir
amado e amando.
O amor em relação a algo (ou alguém) parece nascer de sua falta. O Banquete
de Platão instaurou no imaginário coletivo, há cerca de dois mil e quinhentos anos,
a ideia do desejo como falta e, portanto, do amor como algo sempre oscilante entre
a fartura e a saciedade (Poros e Penia), em uma busca constante da alma gêmea,
da cara metade (andrógino). Segundo essa lógica, da incompletude, para amar,
é necessário que algo essencialmente nos falte. Só se pode amar aquilo que não
se tem; sendo Eros filho do recurso e da pobreza, o objeto do amor será, a um só
tempo, sempre ausente e sempre desejado. Nós nos reconhecemos na nostalgia
da unidade primitiva, instaurada a partir do corte e impossível de restaurar. A
incompletude constitutiva compõe, até hoje, nosso imaginário sobre o amor. É aí
onde se fundam as bases do amor romântico, a busca pela unidade ideal.
Os dois mitos relatados, Sócrates (Poros e Penia) e Aristófanes (andrógino),
descrevem a carência, a dependência, a incompletude como marcas do amor e do
desejo, cravadas profundamente no imaginário ocidental. Como reverter isso? Uma
possibilidade seria através da conversão do amor como falta e força produtiva,
potência, devir.
Os mitos seguem ecoando em nós, como diz Lenk na epígrafe da Medeia
de Crista Wolf (1996):

Acronia não significa estarem as épocas indiferentemente umas ao lado das


outras, mas sim o elas estarem umas dentro das outras, seguindo o modelo
do tripé, como estruturas em fuga que se rejuvenescem. Podemos abri-las
como um harmônio, então é muito grande a distância de um extremo ao outro,
mas também podemos metê-las umas dentro das outras, como as bonecas
russas, então as paredes do tempo ficam muito perto umas das outras. As
pessoas de outros séculos ouvem a nossa grafonola roufenha, e nós vemos
através das paredes do tempo como elas estendem as mãos para o apetitoso
banquete (p. 5).

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Amor e verdade

Amar a vida, multifacetada, com seus sofrimentos e possibilidades, é


característica dos fortes; segundo Nietzsche (2003), é o “dizer sim” dionisíaco
contra a permanente rejeição proposta pelo moralismo apolíneo. Nietzsche opõe
o poder da formação à fraqueza da negação, o amor ao real ao desejo de um
ideal superior ao real e que o rejeita. A partir da cisão operada por Platão, com a
dissociação entre alma e o corpo, nos acostumamos a querer a ficção do ideal, ter
a vida regida pela moral.
Amar o destino (Amor fati) é desejá-lo e compreendê-lo como uma série
de encadeamentos que nos envolvem, um novo modo de ver o mundo, a vida e
a nós mesmos enquanto humanos, em oposição a um modelo ideal. Seria uma
aquiescência dionsíaca do mundo. É uma aprovação que exclui todas as formas
de condenação da vida. O amor fati é uma gestação, um processo.
Nietzsche (2008) espera muitas coisas novas dessa concepção de Amor fati:
um novo modo de ver o mundo e o homem, uma nova organização da filosofia, uma
determinação dos valores do futuro. Enquanto todos discutiam a respeito do modelo
ideal de sociedade, modelo ideal de homem, Nietzsche voltou-se inteiramente para
este mundo. Propôs uma reconciliação com a vida; preocupou-se não em saber
o que era o homem, como deveria ser ou portar-se, porém o seu questionamento
tomou um sentido oposto, o que nós estamos fazendo do homem.
Foucault, filósofo e historiador, autoexcomungado da igreja filosófica,
herege, não trata amor e sexo dicotomicamente: ele vê o amor como corporal,
unicamente corporal. O amor é, ele próprio, cheio de manhas, procedimentos,
pedidos de decisões, escolhas e, enfim e por isso tudo, a assunção de um ethos,
uma ética. Considera o começo do conhecimento através de regras e restrições, e
não com liberdade. Estas regras e restrições se inserem num regime de verdade,
num campo histórico de possibilidades, de discursos e práticas (Eizirik, 2005).
Segue Nietzsche (1978) em sua definição de verdade:

A verdade é um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos,


enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poetica e
retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um
povo sólidas, canônicas, obrigatórias: as verdades são ilusões, das quais se
esqueceu o que são, metáforas que se tornam gastas e sem força sensível,
moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como
metal, não mais como moedas (p. 43-52).

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O amor, um pássaro rebelde

Para Foucault (1988c), a verdade ou episteme, é um campo de possibilidades


históricas de um saber. Reside no que é o discurso e no que ele diz, nos efeitos
que produz. Os regimes de verdade regulamentam a produção e disseminação
dos discursos, pois a verdade está circularmente ligada a sistemas de poder, que
a produzem e apoiam, e a efeitos de poder, que ela induz e que a reproduzem. A
verdade é deste mundo, e ela passa pelo corpo. O corpo torna-se o lugar de inscrição
dos acontecimentos, o eixo dos procedimentos das práticas de si. Começa a emergir
a importância do comportamento sexual na definição da individualidade. E isso é
algo totalmente novo. Surge uma mudança na economia das condutas sexuais de
nossa sociedade, um outro regime de verdade.
A sexualidade quase não parece, hoje, figurar como o grande segredo da
vida, mas o desejo sexual ainda é um índice de sua identidade profunda. Mesmo
não sendo mais o grande segredo da vida, a sexualidade ainda é o que há de mais
secreto em nossa individualidade. Estamos na esfera do privado e da construção da
subjetividade. O modo como o sujeito faz a experiência de si mesmo em um jogo
de verdade em que está em relação consigo mesmo: observa-se, analisa-se, decifra-
se, reconhece a si mesmo como um domínio de saber possível (Foucault, 1988a).

Corpo e história

Cada cultura tem a sua maneira de construir o espaço mental e de utilizar


certo número de referenciais que influenciam as atitudes e as práticas dos sujeitos.
Isso constitui a sensibilidade de uma época, produzindo efeitos nas formas de sentir
e agir de homens e mulheres.
“Até o final do século XIX, o corpo era um pedaço de matéria, um feixe de
mecanismos. O século XX restaurou e aprofundou a questão da carne, isto é, do
corpo animado. O século XX inventou teoricamente o corpo” (Courtine, 2008,
p. 7). Passando por Freud, Husserl, Merleau-Ponty, Marcel Mauss, o corpo foi
ligado ao inconsciente, amarrado ao sujeito e inserido nas formas sociais da
cultura. A grande mudança na questão da consciência do corpo aconteceu com os
movimentos libertários do final da década de 1960, com os movimentos de protesto
contra o peso das hierarquias culturais, políticas e sociais, e as reivindicações de
igualdade de gêneros.

“Nosso corpo nos pertence!” – gritavam as mulheres no começo dos anos


1970, que protestavam contra as leis que proibiam o aborto, pouco tempo
antes que os homossexuais retomassem o mesmo slogan. O discurso e as

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estruturas estavam estreitamente ligadas ao poder, ao passo que o corpo


estava do lado das categorias oprimidas e marginalizadas; as minorias de
raça, de classe ou de gênero pensavam o próprio corpo para opor ao discurso
do poder, à linguagem como instrumento para impor silêncio aos corpos
(Courtine, p. 9).

Assim, o corpo foi investido no contexto das lutas travadas pelos direitos
das minorias no decorrer da década de 1970; tornou-se um instrumento crucial
de libertação, uma arma revolucionária implantada no coração dos debates e
das práticas, marcando um ponto de profunda ruptura nos valores e modos de
subjetivação de nossa época.
Jamais o corpo humano conheceu tamanha reviravolta, em termos de formas
de pensar e se pensar como sujeito dotado de um corpo, como no final do século
XX, já entrando no século XXI: corpo material, orgânico, de carne e sangue, corpo
agente e instrumento de práticas sociais, corpo subjetivo, erótico, sensual, sexuado.
Muda-se o olhar sobre o corpo, para o corpo: novas tecnologias de visualização
e exame se desenvolvem, penetram e fustigam esse corpo, obsessivamente
superexposto, brutalmente massacrado nas guerras e campos de concentração.
Corpo pintado, fotografado, filmado.
Vivemos paradoxos pois, ao mesmo tempo em que se legitima o prazer,
emergem novas normas e poderes – biológicos, políticos –, uma vez que a saúde
se tornou um direito e uma preocupação, o bem-estar individual uma exigência, a
saturação do espaço público uma realidade, a frieza dos simulacros sexuais uma
constatação.
Enorme importância ganhou o corpo na atualidade: adquiriu a conotação de
uma mudança de mentalidade, como marca de individualidade, busca de recursos
para melhorar a imagem; desenvolveu campos como a estética, a cosmética, a
moda utilizando recursos como o esporte, a ginástica, as massagens modeladoras,
cremes emagrecedores, cirurgia plástica. Está em andamento a produção de novos
modos de subjetivação, uma nova ética/estética da existência. O corpo materializa
a tensão entre desejos, impulsos sexuais e normas de controle social.

O amor no tempo e os tempos do amor

O amor não é imune ao tempo, ele existe no tempo. Poetizado, cantado,


sempre foi, e permanece, matéria para o sonho, o desejo, a lembrança, a inspiração, a
canção. O tempo nos constitui, somos seus protagonistas no teatro das metamorfoses

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que nos acompanham, da infância à velhice. Somos matéria, nada mais que poeira
e cinzas, que logo se dissolverão na água, transformando-se em cristal, como
predisse Schopenhauer. Nosso corpo é uma tela do tempo, e em face da morte
sabemos que o tempo continua, nós é que o deixamos. Há o tempo que passa, ou
que passou, e o tempo que dura; o que foge e o que promete; o tempo perdido, o
tempo reencontrado. Tememos a morte, angústia de quem vive, mas é esse medo,
e essa fragilidade, que nos faz aprender (ou querer aprender) a viver, a ser feliz,
a desejar e perseverar na busca da realização do desejo, na obtenção do prazer.
O amor não foi o mesmo ao longo do tempo. Construído dentro de um cenário
histórico, político, social, configura-se o amor de diversas maneiras: platônico (já
comentado), cortês, romântico, líquido, cada um com uma erótica associada a um
tipo de agenciamento amoroso (Rougemont, 2003; Duby, 1989).

Amor cortês

O amor cortês se forma a partir de uma nova política do desejo, nos séculos
X, XI e XII, atrelada aos objetivos do reino. O que estava em jogo era o patrimônio
familiar, e eram privilegiadas a masculinidade e a primogenitura. Para evitar a
fragmentação da herança, na partilha, as filhas recebiam apenas um dote, podendo
ser dinheiro ou bens o que lhes permitiria arranjar um marido; já os filhos mais
jovens eram expulsos das casas paternas, correndo atrás de prostitutas, sonhando
com uma boa herdeira, uma casa que os acolhesse. Os acordos de casamento não
levavam em conta os sentimentos dos noivos – que geralmente só se conheciam
na noite de núpcias. Entre os cônjuges, não se estabelecia uma relação calorosa,
mas uma ligação fria de desigualdade. Amar, no século XII, era estar em ardente
desejo. Tratava-se de um sentimento voltado para fora do casamento, pois amor e
casamento não estavam unidos.
Os códigos estabelecidos para o amor cortês o situavam como um jogo, um
entretenimento, capaz de distrair e conduzir o desejo naquela sociedade. Como um
jogo educativo, o amor cortês envolvia um homem efetivamente jovem, porque
solteiro e ainda em formação, que assediava uma dama (uma mulher casada) que
deveria conduzir-se de forma a não ser tomada por esse rapaz. De algum modo,
o desejo estava ligado ao perigo, já que tal sociedade considerava o adultério da
esposa como a pior das subversões e ameaçava com castigos severos seu cúmplice.
Quanto mais perigosa a relação, maior seria o desejo e a luta contra suas investidas.
Durante o amor cortês, teríamos a erótica do desejo. Nessa erótica, a atenção
está na intensidade do desejo e seu controle. Há uma crescente incorporação do

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amor no quadro da vida social ao estimular o jogo que se desenrola em torno da


excitação e do controle da satisfação. Um grande desejo significa um grande valor,
pois o controle do desejo é também uma luta pelo controle de si mesmo (Roos &
Eizirik, 2004).
Apesar de essas lutas consigo mesmo já acompanharem os cidadãos do
mundo grego, na erótica do prazer, na erótica do desejo elas serão valorizadas.
Se antes o modelo de cidadão estava calcado numa certa naturalidade e soberania
com que o indivíduo lidava com essas forças perturbadoras de seu equilíbrio e de
seu autocontrole, na erótica do desejo observa-se a multiplicação das provas de
amor, ou seja, o trabalho sobre si passa a ser visualizado e adquire outro valor.

Amor romântico

Se na época medieval existia, em relação a si mesmo, um imperativo que


julgava o amor pela sua impossibilidade e pela contenção do desejo, com as
mudanças ocorridas na sociedade a partir do século XVIII novos valores entram
em cena e, com eles, outra forma de se conduzir no amor. O romantismo amoroso
é uma invenção cultural europeia que recebeu sua mais refinada expressão no
pensamento de Rousseau e, depois dele, no romantismo filosófico e literário da
Alemanha, Inglaterra e França.
A emoção amorosa característica do romantismo foi lentamente fabricada
por experiências culturais heterogêneas, das quais as mais importantes foram as
práticas de vida monástica e a linguagem da mística cristã; as práticas de vida das
Sociedades Cavaleirescas e a linguagem do Amor Cortês; a filosofia materialista,
que sustentava as teorias políticas dos séculos XVII e XVIII; as práticas de
contenção e interiorização sentimental das Sociedades de Corte do Antigo Regime;
e, por fim, as teses do romantismo filosófico, literário e artístico do século XX
(Costa, 1998).
Instala-se o capitalismo, após a Revolução Industrial e a necessidade de
organizar as forças produtivas. Para tanto, funda-se a família, o núcleo familiar
como era conhecido até há pouco tempo – núcleo doméstico e de domesticação,
arregimentação das forças, dominação e encerramento da sexualidade e do sexo,
contenção, e até mesmo expulsão, do desejo. Normas são estabelecidas, leis
reguladoras se constituem, múltiplos controles e vigilâncias também, produzindo
concomitantemente discursos e práticas que os sustentam, múltiplos e diferentes
modos de transgressão os acompanham. “A sexualidade é, então, cuidadosamente
encerrada. Muda-se para dentro de casa. A família conjugal a confisca, e absorve-a

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inteiramente, na função de reproduzir. Em torno do sexo, se cala” (Foucault, 1988,


p. 9).
O casal, legítimo representante da lei e da norma, é o dono da verdade
e do único lugar onde a sexualidade é reconhecida: o quarto do casal. O resto
acontece no segredo, reduzido ao silêncio, à hipocrisia das sociedades burguesas,
ao puritanismo moderno que impõe, aos outros lugares, o “tríplice decreto de
interdição, inexistência e mutismo”. (Foucault, 1988, p. 10) Prazer e instituição
não estavam vinculados até antes do romantismo. O casamento preocupava-se
principalmente com a transmissão de heranças, títulos e alianças políticas. O
casamento centrado no vínculo conjugal, e não nos filhos ou na família, também
era uma mudança radical iniciada no romantismo. Ao valorizar o afeto, a amizade
e o companheirismo, o casamento se configuraria como um refúgio dentro de um
mundo competitivo e individualista (Ariès, 1987, p. 153-62; Costa, 1998).
Lázaro (1996) trata esse momento chamando-o de erótica do sentimento.
Segundo ele, a erótica do sentimento diz de um mundo que passa a legitimar o
amor – séculos XVIII e XIX. O amor passa a ser justificado a partir de dentro da
interioridade do sujeito amante. A escolha do amado fará aparecer a singularidade.
A partir do interior e por um trabalho próprio, o amante admite-se como ser
singular, e identifica em seu objeto a mesma singularidade que o torna uno e
incomparável. A erótica do sentimento inaugura experiência amorosa no íntimo
do sujeito. O verdadeiro amor nasce do coração, elege seu objeto por critérios
pessoais e singulares e pode, portanto, ser acessível a qualquer um a partir de sua
própria interioridade. Buarque (1987)

Todo o Sentimento
Preciso não dormir/Até se consumar/O tempo da gente.
Preciso conduzir/Um tempo de te amar, Te amando devagar e
urgentemente.
Pretendo descobrir/No último momento/Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento/E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer/Até o amor cair/Doente, doente...
Prefiro, então, partir/A tempo de poder/A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,/Te encontro, com certeza, Talvez num tempo da
delicadeza.
Onde não diremos nada, nada aconteceu/Apenas seguirei, como
encantado/ Ao lado teu (Chico Buarque, 1987).

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Em tempos de pressa, ou liquidez

Vivemos a cultura do momento e a cultura da pressa, descritos por


Bauman (2011). A tendência é renegociar o significado de tempo. O tempo, na era
líquido-moderna da sociedade de consumo, não é nem cíclico nem linear, como
era normalmente para as outras sociedades conhecidas pela história moderna ou
pré-moderna.
Uma das marcas importantes de nosso tempo é a ideologia do consumo.
Consumimos e nos consumimos! A ideia de segurança terminou quando os humanos
começaram a derreter tudo que é sólido, e a profanar tudo que é sagrado. Ninguém
se sente realmente seguro. Ninguém sabe em que momento pode acabar no cesto
do lixo. A condição atual é estar em movimento e vivenciar a dolorosa experiência
de estar perdido – vulnerabilidade, incerteza e angústia frente à provisoriedade
e parcialidade das descobertas, avaliações e sínteses. A confiança era o elo que
sustentava a rede de compromissos humanos. Com ela desfeita, tudo fica mais
assustador.
O medo da morte é substituído pelo medo da vida. A vida consiste numa
sucessão de experiências momentâneas. No panorama da liquidez, o preço de cada
contrato, de cada compromisso é o desconforto da perda de liberdade, a renúncia
à independência. O que parecemos temer é o abandono, a exclusão; sermos
rejeitados, banidos, reprovados, despojados daquilo que somos, impedidos de ser
o que desejaríamos. Temos medo de que nos deixem sós, indefesos e infelizes,
sem companhia, corações amorosos ou mãos amigas. O que mais sentimos falta
é da certeza de que tudo isso não vai acontecer, não conosco.
A velocidade, a tecnologia, venceram as marcas do tempo, das distâncias;
ocupam os espaços das relações, afetando sobremaneira o estabelecimento e o
fortalecimento dos vínculos humanos. O amor, porém, continua em alta. E são
multidões à procura do par, seja ele hetero, homo, trans, bisexual. Não importa. É
sempre o desejo de outro, deste outro, algum outro, a que se aspira encontrar, que
existe no imaginário do desejo, ou em sua concretude. Desejo como falta? Desejo
como produção? Desejo que vai e vem? Seja o nome ou a função que dermos,
é a proposição de uma tarefa infinita pois, de acordo com Deleuze (1994), não
importam as mudanças de vocabulário: o espírito da utopia amorosa está no coração
de nosso tempo. Eu diria, de todos os tempos.
Da sociedade dos produtores passamos à sociedade dos consumidores,
acostumados a descartar, apressados, em busca de resultados rápidos e eficazes.
Trata-se de neutralizar o passado e abraçar avidamente a previsão do futuro, este
é o ideal da liberdade, com a possibilidade infinita de recomeços e renascimentos,

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O amor, um pássaro rebelde

ou seja, o poder da anulação das relações causais, das consequências dos atos
precedentes, do passado limitante.
Os imperativos amorosos atuais estabelecem que um relacionamento
amoroso precisaria estar baseado no presente e principalmente durar, mas sem
perder a intensidade; precisaria conjugar desejo com estabilidade, paixão com
intimidade, segurança com vertigens de liberdade. Ou seja, deveria proteger da
palidez do cotidiano, da solidão, da indiferença, e ao mesmo tempo não aprisionar,
não cobrar, não sufocar.
O amor, porém, é um pássaro rebelde que não pode ser aprisionado, como
bem sabemos, mas como é difícil resistir à ideia da posse, do desejo de eternidade?
Como não se extasiar com as intensas emoções que se produzem quando se ama, da
alegria extrema quando se anuncia e se instala à tristeza profunda quando termina?
Platão nos ajuda a compreender o sentimento de perda irreparável, e a ânsia por
recuperar o elo perdido, não só a pessoa amada, mas a vivência de estar amando
e ser amada. Queremos que dure para sempre. Por que dói o amor? pergunto,
inspirada em Eva Illouz (2012), porque implica em encontro e união, e também
em desencontro e desunião. É de sua natureza ser fluxo, estar sempre pronto a se
desfazer e refazer. O amor só é eterno enquanto dura, diz Vinicius de Moraes.
O amor, sabemos, não é imune ao tempo e, nas flutuações da história e das
revoluções que marcam a existência humana no Ocidente, vemos mutações nos
modos de amar, com múltiplas práticas eróticas e formas amorosas se desenhando,
a partir do exercício do amor como produção, energia, força, sempre em conflito,
pois essa é a característica básica do amor enquanto fluxo, abundância e carência.
Na experiência contemporânea, vivemos a velocidade como um valor em si
mesma, com sutis e profundas repercussões no plano das relações e das práticas
amorosas. Órfãos de nossas certezas, seguimos em busca de um chão menos
escorregadio, de vínculos, se não estáveis pelo menos intensos em seu significado
afetivo. E não importa a dor: amar e se apaixonar é tudo porque a vida vale a pena.
Segundo Luc Ferry (2012), é o amor que estimula nossa vida psíquica e
cultural e, até mesmo, intelectual e política. Sem ele, nada teria significado para
nós. Seria, nesse caso, o desencanto do mundo. Quando ele nos escapa, quando por
uma razão ou por outra ele nos vem a faltar – morte de um ente querido, separação,
rompimento ou simples período de seca amorosa –, o universo inteiro se torna
opaco e sombrio. Segundo Galeano (2005):

No nos da risa el amor cuando llega a lo más hondo de su viaje, a lo más alto
de su vuelo: en lo más hondo, en lo más alto, nos arranca gemidos y quejidos,

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Marisa Faermann Eizirik

voces de dolor, aunque sea jubiloso dolor, lo que pensándolo bien nada tiene


de raro, porque nacer es una alegría que duele (Galeano, 2005, p. 41).3

Intimidade e internet

Nos séculos XX e XXI, o amor está atrelado à experiência de intimidade, à


ideia de singularidade do indivíduo, uma vez que, quanto mais o homem moderno
vai se concebendo como unidade autônoma, o amor – como meio a partir do qual
se restabelece uma unidade interior, mediada pela experiência do outro – vai
adquirindo maior importância.
A interioridade vai se formando, segundo Vernant (1988), a partir de
mudanças nos planos social, religioso e espiritual. Com a importância dada à
consciência de si, a uma introspecção implacável e prolongada, ao exame da
vontade, do livre arbítrio, uma nova forma de identidade começa a se desenhar.
O indivíduo passa a ser definido em seus mais íntimos pensamentos, “das suas
imaginações secretas, dos seus sonhos noturnos, das suas pulsões cheias de
pecados, da presença constante, obsessiva, no seu foro íntimo, de todas as formas
de tentação” (Vernant, 1988, p. 43).
Ainda outros fatores concorreram para a formação do indivíduo tal como o
conhecemos, são eles o liberalismo econômico, a expansão das ideias iluministas,
a própria valorização dos sentimentos (romantismo), a ampliação da ação do
Estado, a separação das esferas pública e privada, o crescimento da vida nas
cidades com o esvaziamento da vida rural, modificações na instituição escolar, o
cuidado com a infância, e a instalação das políticas médicas voltadas ao indivíduo
e à população, etc.
A transparência, a pressão midiática de tudo informar e tudo querer saber,
afetam profundamente a intimidade (do lat. intimus, dentro, experiência interior,
relação consigo e com outro(s)), que se torna matéria particularmente apreciada.
Vivenciamos transformações nas regras estabelecidas de decência, recato,
pudor, nudez, instrumentos fundamentais na luta pela emancipação sexual e na
reivindicação igualitária entre os sexos. O pudor (do lat. pudere, ter vergonha, ou
fazer vergonha) remonta à memória humana, desde Adão e Eva, expulsos do Paraíso
e dando origem ao nascimento do mundo. O pudor está ligado ao olhar do outro,
desde tempos imemoriais. A transparência será a vertigem moderna do (im)pudor?
3
  N.R.: Em tradução livre: O amor não nos faz rir quando atinge as profundezas de sua jornada,
até o topo do seu voo: no mais profundo, no mais alto, nos arranca gemidos e lamentos, vozes de
dor, mesmo que seja uma dor alegre, que, pensando bem, nada tem de estranho, porque nascer é
uma alegria que dói.

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O amor, um pássaro rebelde

A internet modificou, ou está modificando, nossa concepção de vida privada,


espaço privado e espaço público. Nas redes sociais, há sites híbridos, ora públicos,
ora privados, num amálgama de funcionalidades interativas – um site pode servir
para informar, publicar e trocar conteúdos, fotos, vídeos, ou para promover debates
através de fóruns. Diante da natureza das interações on line, as definições rígidas
entre público e privado não se sustentam, pois a maioria das comunicações se
produz simultaneamente, num lugar público e privado. Observa-se uma erotização
da imagem de si, através das emoções compartilhadas: novas formas de erotismo
e sensualidade se descortinam. A vida privada não é mais considerada como um
direito que autoriza a proteção contra os riscos do desvelamento pessoal, mas como
objeto de negociação no quadro da construção de um capital social, definido como
um conjunto de recursos materiais, informacionais e emocionais.
Estamos diante de poderosos dispositivos de poder, com a intensificação
dos mecanismos de excitação e incitação do prazer. Um novo pacto social, sexual,
educacional e profissional se desenvolve entre os sexos, com margens mais flexíveis
entre as normas sociais, os padrões de conduta aceitos, as formas de amor, o direito
ao prazer, a liberdade de opções sexuais. Como consequência, mudam os códigos
morais, e moralistas, em relação ao prazer e à sexualidade, à decência, ao recato,
ao pudor, à nudez. Algumas transformações da intimidade já são visíveis, através
das mudanças produzidas pela internet e as redes sociais. Será que ainda podemos
considerar intimidade como proximidade, aconchego, confiança, amor, vínculo?
Novas formas de subjetividade se apresentam, outras se anunciam, exigindo
um trabalho de cada um de nós sobre nós mesmos, em direção a uma abertura para
o que ainda não conhecemos, nos assusta, tira o chão estável das certezas, rompe
com modos de existência conhecidos. O íntimo, a intimidade se dissolvem, ao
romper-se o amor romântico. A revolução nas comunicações, a democratização
da informação, a globalização, atingem profundamente as formas de intimidade
até então conhecidas. O espaço da privacidade fica rarefeito.
A obsessão contemporânea pela sexualidade e pela identidade sexual
testemunha o que Foucault denunciava como o dispositivo de sexualidade no
capitalismo tardio. T. de Lauretis (2011) aborda a produção discursiva na atualidade
sobre as heterogeneidades sexuais (ou neossexualidades) e sua proliferação nos
anos 1990, modificando a concepção existente de sexualidade – antes reprimida
por razões econômicas, agora a sexualidade é produzida também por razões
econômicas.
O acento colocado sobre a sexualidade como um fenômeno histórico e
cultural mostra seus efeitos sobre as formas como nos tornamos sujeitos, nossos
espaços públicos e privados, com suas coerções e possibilidades, infinitamente

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Marisa Faermann Eizirik

se entrecruzando e metamorfoseando, de forma a caracterizar nossa experiência


subjetiva historicamente singular, na sociedade ocidental de hoje. Para além do
biopoder e da hegemonia do capital, experimentamos o desafio da economia
globalizada, das rupturas dos paradigmas da modernidade, do colapso da certeza,
da insegurança.
O século XX descobriu o corpo e revolucionou o sexo e a sexualidade, o
que segue acontecendo no século XXI. As famílias e as relações familiares se
transformaram, configurando uma complexidade que ainda estamos tentando
analisar e compreender. A exaltação da beleza, da juventude, da esbeltez, com sua
enorme implicação na autoestima, incentivou a cosmética e as cirurgias plásticas,
numa dimensão inimaginável há pouco tempo.
Vale mencionar um outro conceito para auxiliar a compreensão do que se
passa atualmente com relação à intimidade na internet, a extimidade, como explica
Serge Tisseron (2011). A extimidade acontece na internet, e especialmente nas
redes sociais digitais da web, na exteriorização da intimidade dos internautas para
fins de validação da imagem de si mesmos, e aumento do próprio capital social. É
o processo pelo qual os fragmentos do si mesmo íntimo são submetidos ao olhar
do outro antes de serem validados. Não é o oposto de intimidade, mas uma forma
com função social precisa: o processo de extimidade visa obter uma validação por
parte dos outros, buscando seu reconhecimento. Ela aparece como uma prática
de exposição e de desvelamento de si, destinada a consolidar e a se apropriar da
própria imagem e também aumentar seu capital social.

Uma nova ecologia das relações amorosas

Revoluções sociais, econômicas, culturais, políticas, morais (valores)


marcaram a segunda metade do século XX, e produziram, profundas e vigorosas
transformações no conceito de amor e nas formas de amar na contemporaneidade.
E hoje, o que chamamos de amor? Seguimos à procura da pessoa idealizada,
nossa outra metade? Sobrevive o amor a esse tempo tão utilitário, dentro de um
panóptico digital? questiona Byung-Chul Han (2012), filósofo sul-coreano, em
seu livro A agonia de Eros. Considera que a situação atual das relações amorosas
vai muito além da liberdade sem fim e das enormes possibilidades de eleições de
parceiros. Segundo o autor, vivemos em uma sociedade narcisista, em que a libido
se inverna na própria subjetividade – o mundo é uma projeção de si mesmo. A
erosão do outro é o que mata Eros. O narcisista não pode encontrar nada fora que
seja diferente de si, não há nada que possa amar. Há um excesso de positividade

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O amor, um pássaro rebelde

e ausência de negatividade. Não há espaço para o diferente, o estranho. Nossa é


a sociedade do rendimento. O máximo de informação visual destrói a fantasia
erótica. Passamos do dever ao poder, render, conseguir resultados, ir mais além.
Vale tanto para o trabalho como para as relações afetivas.
Para Han, o amor se positiva hoje como sexualidade, uma operação que está
submetida à ditadura do rendimento e em que o corpo equivale a uma mercadoria.
Temos que render sexualmente até nos satisfazer ao máximo. Nesse contexto, o
desejo do outro é substituído pelo conforto do igual. Considera que as elevadas
expectativas são causas do desencanto: queremos render, aproveitar, desfrutar ao
máximo. A realidade pode ser decepcionante. A extrema visibilidade, a nudez total,
a tarefa contábil e mecânica, que se realiza hoje nos contatos e relações sexuais,
anula a possibilidade da aparição do outro, de Eros – a existência de um “outro”
significativo que possa trazer a diferença.
Os males que afetam Eros não acontecem somente no âmbito dos sentimentos
e das experiências sexuais, pois penetram no terreno do pensamento, que se torna
repetitivo e aditivo (big data); torna supérflua a teoria que busca a causalidade.
Precisamos sair do inferno do igual. A diferença se coloca como ponto de inflexão.
Será que, em vez da nostalgia por um tempo que não existe mais, quem
sabe devemos pensar como o espírito humano está em vias de se reformatar? E
como podemos tirar partido disso, como fonte capaz de oferecer outra maneira
de conhecer? Isso é da ordem de uma mutação inacreditável. O que é ser
contemporâneo? Ser contemporâneo, segundo Agamben (2013), implica coragem
para perceber, na obscuridade da nossa época, uma luz que, dirigida para nós,
distancia-se infinitamente de nós.
Nietzsche diz ser contemporâneo o intempestivo o inatual; precisamos
percorrer um caminho carregado de perguntas, e não de respostas, e permanecer
alertas contra o(s) preconceito(s), o senso comum, contra as ideias herdadas e
não questionadas, que se infiltram de maneira insidiosa em nosso pensamento,
venenosas, pesadas, imóveis.
Tememos a morte, angústia de quem vive, mas é esse medo e essa fragilidade
que nos faz aprender (ou querer aprender) a viver, a ser feliz, a desejar e a perseverar
na busca da realização do desejo, na obtenção do prazer, mesmo que tenhamos
que enfrentar a tristeza, a solidão.
Vivemos, porém, em uma época em que tempo e espaço se desmancham,
se dissolvem no ciberespaço, numa cibercultura produzida através da internet;
predomina a acronia (ausência do tempo); a atopia (ausência do espaço). É
um tempo de desterritorialização de incerteza, descartabilidade dos vínculos,
provisoriedade, insegurança.

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Marisa Faermann Eizirik

Como nos situamos nesse game, em que os fenômenos pertencem à escala


planetária? Que estratégias precisamos utilizar para resistir às pressões que nos
atingem, em nosso território íntimo, a partir das novas e múltiplas interfaces das
redes midiáticas? É possível exercer um poder de resistir ao poder, da tecnologia,
da vertiginosa derrubada das barreiras de tempo e espaço, das máquinas produtoras
de desejo?
Costumes, regularidades, necessidades produzem os hábitos que, repetidos
permanentemente, dão segurança. Oferecem o chão daquilo que conhecemos e
nos acostumamos a olhar, pensar, desejar, amar. São garantias da forma como
organizamos nossas vidas, dos inúmeros pactos que firmamos constantemente,
ou seja, contratos que contraímos cotidianamente, para permanecer os mesmos
e, ou, enfrentar os desafios contemporâneos que abrem espaços e tempos para
conhecimentos novos, a construção de uma renovada hermenêutica de si, de
relações com os outros, de modos de existência.
Experimentamos a destruição do campo simbólico, das formas de pensar
e agir, transformações sem precedentes no modo como nos constituímos como
sujeitos no mundo, nesse mundo.
Spinoza (2016; 2018) considera que o amor é a alegria (joy), aquilo que
aumenta nosso poder de agir. Não se impõe na falta, mas na presença – alegrar-
se com a presença, essa a verdadeira natureza do amor. Amar não traz sempre a
felicidade: pode advir o desespero, a ansiedade, o sofrimento, o desejo insatisfeito,
a perda da liberdade. Mesmo assim, queremos seguir amando. Sob o risco da
finitude, vivemos sob o signo do inatendido, da espera, expectantes da ânsia que
é próprio do viver. Feliz ou infeliz, correspondido ou não, amar é estar vivo. O
terreno do amor é repleto de sons e cores, de sobressaltos e êxtases, que nos desafia
ao desassossego.
A cultura popular ocidental não tem levado muito em conta o rosto mutante
do amor. O encontro amoroso está amplamente coberto por filmes, séries, novelas,
canções, óperas, músicas. O que não reconhecemos é que o amor é algo mais que
um sentimento: obedece às injunções do tempo e dos costumes, como já foi visto.
Amar se torna cada vez mais uma necessidade e um desafio, pois hoje se vive mais
tempo (nos séculos passados havia as guerras, as epidemias, as mortes no parto)
e mais tempo juntos, o que coloca o amor exposto à prolongada prova do tempo.
As sociedades ocidentais tiveram as pautas do amor alteradas por novas
variáveis: feminismo, homossexualidade, transgênero, AIDS, longevidade,
casamentos tardios e mães solteiras, cirurgia plástica, moda, diminuição dos índices
de nascimento, a publicidade, o desemprego. Em outras palavras, em parte alguma

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O amor, um pássaro rebelde

o amor existe no vazio. Deve enfrentar-se constantemente com novos problemas,


liberdades e expectativas.
O século XXI experimenta a alteração das leis tradicionais do amor, à medida
que as pessoas se dispõem a buscar novas versões da felicidade, tal como pode
ser revelado pelo crescente número de casamentos gays, separações, divórcios
e novos casamentos, pela obsessão com a aparência física e pelo anonimato dos
encontros na internet, entre outros.
Alain Badiou & Truong (2013), em O elogio ao amor, esboça uma teoria
do amor. Discorre sobre as formas de amor atuais e a tendência ao amor risco
zero – ou seja, reduzir os riscos do insucesso no amor –, e dá como exemplo os
sites de relacionamento.
Como acontecem hoje as relações amorosas? Podemos pensar, a partir daí,
nossos desassossegos, nossas inquietudes? A partir de nossas desterritorializações?
Do emergir de desejos e construção de novos agenciamentos?
O amor e o desejo são, por excelência, experiências de desassossego,
desterritorializações, e nos conduzem para agenciamentos. Como os atravessamentos
do tempo, da velocidade, das comunicações instantâneas, da opacidade gerada
pelo excesso de transparência, da liquidez e descartabilidade dos vínculos, da
convocação ao consumo estão produzindo profundas mudanças nas formas de
amar?
Uma nova ecologia das relações amorosas se constrói desse entrelaçamento
entre cultura e modos de subjetivação: amor, poder e tempo.
O nosso é o tempo da promessa de felicidade através do consumo, o frenesi de
ter (possuir), o sonho da superabundância, desejar cada vez mais o que é impossível
adquirir e, se conseguir, já estar desejando outra coisa, mais além, num movimento
interminável: os confortos materiais e os da alma, com novos mercados cada vez
mais ativos e diversificados, impulsionando o culto do efêmero, a apologia do
consumo e do individualismo.
O amor parece assumir um papel essencial, após ser subestimado ou residir
na esfera íntima, escondido, por muito tempo. O sentimento amoroso se desveste
do romantismo, do amor ideal, para assumir um caráter de rebeldia e de poder
revolucionário em nossa sociedade.
O que vale é o carpe diem, a celebração do efêmero, a felicidade de viver e
desfrutar o que se apresenta aqui e agora. A erótica social, descrita por Maffessoli
(2014), apela a uma concepção presenteísta, o reino da impermanência, onde o que
comanda é o desejo, o prazer, um tumulto de sentimentos, difíceis de compreender
em sua irracionalidade, ambivalência, contradição e complexidade. O autor evoca a
vida em permanente devir, e consequentemente a intranquilidade do ser, do existir.

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Marisa Faermann Eizirik

Até que ponto esses jogos econômico-culturais-histórico-políticos – que


constituem nossa sociedade em seus aspectos lúdicos e multidimensionais, fazendo
da vida um eterno devir e partindo das coisas e atingindo os afetos – produzem
uma demanda impossível de satisfazer e, de roldão, repercutem na fragilização da
autoestima, dos vínculos e das relações amorosas, constituindo uma nova ecologia.
Sem apagar da memória as formas de amar do que foi o amor cortês ou o
amor romântico, o que estará, daqui em diante, na ordem do dia é o resgate de
campos possíveis na (re)significação de amor e desejo, dentro das condições de
nosso tempo, com desterritorializaçãoes e desdobramentos em outros devires, novos
agenciamentos individuais e coletivos, potencialmente capazes de se desenvolver
e proliferar, com a criação de diferentes e intensos territórios existenciais. Isso
fica muito claro, por exemplo, na lógica das matriochkas, bonecas russas, que se
guardam umas dentro das outras; as paredes se tocam, as vozes se conectam em
acronia.
É difícil romper com antigos modos de pensar as relações afetivas e conviver,
ao mesmo tempo, com as pressões maciças sobre o amor, a sexualidade, o (des)
compromisso, a vulnerabilidade, a dificuldade de se conectar, a vitimização, a
necessidade de reconhecimento, a competição, a mercantilização do mercado
matrimonial, sexual, erótico.
Esse é o desafio contemporâneo: enfrentar o achatamento das diferenças;
combater o poder de normalização; enfrentar o medo do sólido, do estranho, do que
pode me contaminar e transformar, o medo de mudar. Esse é o vínculo amoroso,
que requer trabalho. Parece não haver mais tempo para a paciência que o trabalho
amoroso requer. Aspira-se chegar sem viajar. E viajar é preciso.
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm
a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre
aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos
ficado, para sempre, à margem de nós mesmos (Pessoa, 1982).
Na travessia, o amor nos espreita. Ora nos toma, ora nos abandona. É sempre
intensidade, movimento de forças, expansão de potências.

Amor, um pássaro rebelde

Não temos mais o terreno das certezas, das cadeias que prendem e fixam
os laços, ao reconhecermos o amor como um pássaro rebelde, que não se deixa
aprisionar. Mas, mesmo assim, não permanece a quimera, buscada com paixão,
mesmo que fadada a durar um instante, alguns momentos, meses ou poucos anos

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O amor, um pássaro rebelde

(quem se importa?) de encontrar uma outreidade que nos complete? Não estará
presente no coração de nosso tempo, de todos os tempos, ainda e mais uma vez,
o espírito da utopia amorosa?
Abandonamos o conceito platônico de amor como falta, desejo de completude
no encontro com a outra metade perdida, fundamento de toda forma romântica do
amor? Ou estaremos usando novas roupagens, ferramentas, artifícios, estratégias
e, até mesmo, tecnologias, para seguir buscando o encontro, alguém com quem
dividir nossos sonhos, solidões e anseios incansáveis?
Estaremos em luta contra o idealismo romântico e o ceticismo estoico?
Teremos medo do encontro, da intimidade, da solidão, da morte?
Queremos respostas para um fenômeno tão complexo como o amor, que
se desdobra em muitas nuances, bem descritas por Riso (2010), como o amor
torturante, o amor desconfiado, o amor subversivo, o amor egoísta, o amor
perfeccionista, o amor violento, o amor desvinculado ou indiferente, o amor caótico,
o amor saudável (ou a sabedoria do não).
Vivemos a orfandade dos estereótipos, do status congelado das evidências,
o coma anestesiado do excesso (fluxo, velocidade e intensidade da informação),
sob o efeito dos discursos vazios, da tirania da mídia, do peso econômico do lucro.
Temos uma sensação de perda do próprio mundo, frente à volatilidade e à
imprevisibilidade com que as mudanças acontecem, radicais e repentinas. Estamos
em processo de invenção de novos comportamentos e mentalidades, que certamente
atingem o amor e as formas de amar.
Estamos caminhando em direção a uma nova ética, uma dimensão ética
desconhecida, ainda sem registro. Os conceitos e os princípios organizadores de
nossos pensamentos e práticas, se descolorem, debilitam e desmoronam. Não temos
hipóteses plausíveis, ferramentas explicativas eficientes, que aliviem o mal-estar
gerado pela incerteza, a fugacidade, a inconstância dos valores.
O regime de verdade em que estamos inscritos define uma arte de viver, um
conjunto de regras de conduta, um modo de se comportar, de falar, de sentir, de amar.
Diante da problematização de nosso modo de existência, muitas perguntas
emergem: quais os nexos que temos hoje com o erotismo, o prazer, o sexo, o amor,
com a inexistência de códigos, obrigações, proibições? Como Apolo e Dionísio
se relacionam hoje? Como convivem as lógicas de diversos tempos: da carência,
da incompletude, da dependência, lógica das intensidades ou eco-lógicas, com a
produção de eróticas: do prazer, do sentimento, do corpo?
De que forma nos constituímos como sujeitos, com a falta de espessura, a
tirania do breve, do descartável, da total transparência (ou será opacidade?), da
ausência do pudor, do encantamento, do mistério? Estamos em mutação, ou seja,

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Marisa Faermann Eizirik

uma transformação radical. Uma outra ética subjetiva contempla as questões do


amor. Uma nuvem de ignorância nos envolve e instiga.
Usamos como sinônimos de amor conceitos nem sempre claros, como
ilusão, enamoramento, paixão, desejo, erotismo. A ilusão nasce de uma
necessidade desejada, muitas vezes não cumprida, que depositamos em alguém. O
enamoramento é o entusiasmo gerado pela presença de alguém que nos atrai e em
quem colocamos um conjunto de atributos. A paixão é uma atração aguda por uma
pessoa com quem nos conectamos de forma intensa e muitas vezes inexplicável. O
desejo pode ser tanto a busca cega e urgente da satisfação daquilo que falta, como
a força produtiva que realiza e expande o próprio ser do sujeito.
E o erotismo? Como se pode compreendê-lo, descrevê-lo, vivê-lo, em nossos
modernos tempos? Que sinais temos de seu percurso, tão semovente e mutável ao
longo da história, do pudor e dos véus, dos subtendidos e dos toques, dos mistérios
dos olhares, das seduções e fetiches de todas as épocas?
Estaremos observando a morte do erotismo, em face do grande mercado do
amor, ou ainda, e sempre, seguimos em busca do abraço amoroso? Mesmo que
esse abraço seja fugaz, incontrolável, rebelde a qualquer lei, não venha e não se vá
quando se quer, surpreendente e doloroso, intenso e inesquecível, é tudo porque
a vida vale a pena.  r

Abstract

Love, a rebellious bird


Love is historical, as we can see in different periods: platonic love, courteous
love, romantic love, liquid love. Every time has a landscape with ways to love
and to be loved. Love changes in time, and with time. Always rebellious to be
imprisoned, is flow and intensity. As we go through some moments in the history
of thought regarding the theme of love, we find traces in our imagination. Plato,
for example, left us anthological texts about love, which deeply impact in Western
culture, with the body and soul division, Dionysian and Apollonian worlds. Only
the sexual revolution of the middle of the twentieth century managed to fracture this
model, producing changes that came to the XXI century like a swirl, absorbed by
a contemporaneousness hopelessly affected by the speed and flood of information,
image worship, virtual relations, with implications in love, eroticism, the pursuit
of pleasure, love relationships. These are some topics covered by this article.

Keywords: love, body, time, intimacy, contemporaneity.

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O amor, um pássaro rebelde

Resumen

El amor, un pájaro rebelde


El amor tiene historia, y deja marcas: el amor platónico, el amor cortés, el amor
romántico, el amor neto. Cada época tiene un paisaje, un escenario, formas de
amar y ser amado. El amor cambia en el tiempo, y con el tiempo. Siempre rebelde
a ser atrapado, es flujo e intensidad. Al recorrer algunos momentos de la historia
del pensamiento en lo que se refiere al tema del amor, encontramos rastros en
nuestro imaginario. Platón, por ejemplo, nos dejó textos antológicos sobre el
amor. Marcó la cultura occidental profundamente, con la división cuerpo-alma,
mundos dionisíaco y apolíneo. Sólo la revolución sexual de la mitad del siglo XX
consiguió fracturar ese modelo, produciendo cambios que llegaron al siglo XXI
como un remolino, absorbidos por una contemporaneidad irremediablemente
afectada por la velocidad y el diluvio de la información, el culto de la imagen,
la internet, los sitios de relacionamiento via internet, que alcanzan el cuerpo, el
erotismo, la búsqueda de placer, las relaciones amorosas. Estos son algunos de los
temas que trata este artículo.

Palavras clave: amor, cuerpo, tiempo, intimidad, contemporaneidad.

Referências

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Recebido em 25/01/2018
Aceito em 31/01/2018

Revisão gramatical de Ellen Garber


Revisão técnica de Paulo Oscar Teitelbaum

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O amor, um pássaro rebelde

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