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O amor tem história, e deixa marcas: o amor platônico, o amor cortês, o amor
romântico, o amor líquido. Cada época tem uma paisagem, um cenário,
formas de amar e ser amado. O amor muda no tempo, e com o tempo.
Sempre rebelde a ser aprisionado, é fluxo e intensidade. Ao percorrer
alguns momentos da história do pensamento no que tange ao tema do
amor, encontramos rastros em nosso imaginário. Platão, por exemplo,
nos deixou textos antológicos sobre o amor. Marcou a cultura ocidental
profundamente, com a divisão corpo-alma, mundos dionisíaco e apolíneo.
Somente a revolução sexual da metade do século XX conseguiu fraturar
esse modelo, produzindo mudanças que chegaram ao século XXI como um
redemoinho, absorvidas por uma contemporaneidade irremediavelmente
afetada pela velocidade e pelo dilúvio da informação, o culto da imagem,
a internet, os sites de relacionamento, que atingem o corpo, o erotismo, a
busca de prazer, as relações amorosas. Esses são alguns tópicos de que
trata esse artigo.
1
Psicóloga. Doutora em Educação/UFRGS; consultora institucional; conferencista e coordenadora
de grupos de estudos sobre Ética, Poder, Subjetividade.
Desassossegos
2
Ópera Carmen, Bizet “O amor é um pássaro rebelde/O amor é um pássaro rebelde/Que ninguém
pode prender/Não adianta chamá-lo/Pois só vem quando quer/Não adiantam ameaças ou súplicas/
Um fala bem, o outro cala-se/É o outro que prefiro/Não disse nada, mas agrada-me/Amor! Amor!
Amor! Amor!
O amor é filho da boêmia/Que nunca, nunca conheceu qualquer lei (...) O pássaro que julgavas
surpreender/Bateu asas e voou/O amor está longe, podes esperá-lo/Já não o esperas, aí está ele/À
tua volta, depressa, depressa/Ele vem, ele vai, depois volta Julgas tê-lo apanhado, ele te escapa/
Julgas que te fugiu, ele agarra-te/Amor! Amor! Amor! Amor! (...).
segunda palavra (philia) se refere ao amor por algo com o que nos associamos –
podendo ser tanto amor a uma pessoa, como na relação de amizade, como também
o amor a uma ideia ou a um valor, como na filo-sofia. Por fim, há a agapè, que se
encontra relacionada a um valor específico, talvez próximo da renúncia. Seria um
amor da ordem da ternura, sem reciprocidade, uma espécie de amor puro, como
o amor ao próximo pregado pela tradição cristã da caridade. Eros se relaciona
diretamente com o desejo, que se apresenta como falta na tradição platônica, ou
como força, produção na versão nietzscheana.
O poder do mito
e o amor representa esta particular condição: ora germina e vive, ora morre e de
novo ressuscita. Sócrates afirma que o amor deriva da falta, do desejo de ter; e,
quando não lhe falta, não o deseja mais.
Aristófanes, autor de comédias e sátiras políticas, muito conhecido na época,
toma a palavra e define o amor como um íntimo desejo de restituição de uma
plenitude perdida, de reencontro com uma totalidade previamente experimentada.
Nos tempos antigos, explica, a humanidade era dividida em três gêneros, masculino
(sol), feminino (terra), e andrógino (Andros-masculino e Gino-feminino-lua). Eram
unidos pelo abdômen. Seu formato era redondo: suas costas e seus lados formavam
um círculo, e ele possuía quatro mãos, quatro pés e uma cabeça com duas faces
exatamente iguais, cada uma olhando numa direção, pousada num pescoço redondo.
Podiam andar eretos, como os outros seres humanos faziam, para frente e para trás.
Podiam, também, rolar sobre seus quatro braços e quatro pernas, cobrindo grandes
distâncias, velozes como um raio de luz. Sua força era extraordinária, e seu poder,
imenso. E isso os tornou ambiciosos. Quiseram desafiar os deuses, e incorreram
na hybris (desmesura), o que era intolerável. Destruí-los seria abrir mão de sua
adoração e de suas homenagens, como puni-los então?
Zeus determinou que vivessem. Arquitetou um plano para deixá-los mais
humildes: cortá-los ao meio e fazê-los andar sobre duas pernas, o que diminuiria
sua força e os tornaria mais numerosos. Imediatamente, Zeus começou a partir as
criaturas em duas metades. E, na medida em que os cortava, Apolo ia virando suas
cabeças, para que pudessem contemplar eternamente sua parte amputada. Com
isso, aprendiam a ser humildes. Apolo também curou suas feridas, deu forma ao
seu tronco e moldou sua barriga, juntando a pele que sobrava no centro (umbigo),
para que eles lembrassem o que haviam sido um dia.
Então, as criaturas começaram a morrer, de fome e de tristeza, unindo-se
num abraço desesperado. Quando uma das partes morria, a outra ficava perdida,
à procura. Diante disso, Zeus ficou com pena das criaturas. Pediu a Apolo que
virasse suas cabeças para que suas partes reprodutoras pudessem estar frente a
frente. Antes, eles copulavam com a terra. De agora em diante, se reproduziriam
um homem com uma mulher, num abraço. Assim os humanos seguiriam vivendo.
Com o tempo, eles esqueceriam o que foram um dia, mas permaneceriam com
o desejo de reencontrar a metade da qual tinham sido separados. Desejo nunca
inteiramente satisfeito, pois mesmo no ato de amar, em que um se dissolve no
outro, permaneceria a saudade daquela unidade jamais recuperada.
Um desejo jamais inteiramente saciado no ato de amar, porque mesmo
dissolvendo-se no outro pelo espaço de um instante, a alma saberia, ainda que
não conseguisse explicar, que seu anseio jamais seria completamente satisfeito. E
a saudade da união perfeita renasceria.
Esse mito marca a influência de Platão sobre o conceito de amor no
ocidente. Conta a história de como um dia fomos fundidos num só, poderosos e
arrogantes, ao julgar que poderíamos competir com os deuses. Conta, também,
como fomos mutilados, amputados da outra parte que nos completava, e viramos
dois. Aprendemos a sentir saudade da intimidade e do amor. Daí por que seguimos
buscando, contínua e infinitamente, o abraço amoroso e a delícia de se sentir
amado e amando.
O amor em relação a algo (ou alguém) parece nascer de sua falta. O Banquete
de Platão instaurou no imaginário coletivo, há cerca de dois mil e quinhentos anos,
a ideia do desejo como falta e, portanto, do amor como algo sempre oscilante entre
a fartura e a saciedade (Poros e Penia), em uma busca constante da alma gêmea,
da cara metade (andrógino). Segundo essa lógica, da incompletude, para amar,
é necessário que algo essencialmente nos falte. Só se pode amar aquilo que não
se tem; sendo Eros filho do recurso e da pobreza, o objeto do amor será, a um só
tempo, sempre ausente e sempre desejado. Nós nos reconhecemos na nostalgia
da unidade primitiva, instaurada a partir do corte e impossível de restaurar. A
incompletude constitutiva compõe, até hoje, nosso imaginário sobre o amor. É aí
onde se fundam as bases do amor romântico, a busca pela unidade ideal.
Os dois mitos relatados, Sócrates (Poros e Penia) e Aristófanes (andrógino),
descrevem a carência, a dependência, a incompletude como marcas do amor e do
desejo, cravadas profundamente no imaginário ocidental. Como reverter isso? Uma
possibilidade seria através da conversão do amor como falta e força produtiva,
potência, devir.
Os mitos seguem ecoando em nós, como diz Lenk na epígrafe da Medeia
de Crista Wolf (1996):
Amor e verdade
Corpo e história
Assim, o corpo foi investido no contexto das lutas travadas pelos direitos
das minorias no decorrer da década de 1970; tornou-se um instrumento crucial
de libertação, uma arma revolucionária implantada no coração dos debates e
das práticas, marcando um ponto de profunda ruptura nos valores e modos de
subjetivação de nossa época.
Jamais o corpo humano conheceu tamanha reviravolta, em termos de formas
de pensar e se pensar como sujeito dotado de um corpo, como no final do século
XX, já entrando no século XXI: corpo material, orgânico, de carne e sangue, corpo
agente e instrumento de práticas sociais, corpo subjetivo, erótico, sensual, sexuado.
Muda-se o olhar sobre o corpo, para o corpo: novas tecnologias de visualização
e exame se desenvolvem, penetram e fustigam esse corpo, obsessivamente
superexposto, brutalmente massacrado nas guerras e campos de concentração.
Corpo pintado, fotografado, filmado.
Vivemos paradoxos pois, ao mesmo tempo em que se legitima o prazer,
emergem novas normas e poderes – biológicos, políticos –, uma vez que a saúde
se tornou um direito e uma preocupação, o bem-estar individual uma exigência, a
saturação do espaço público uma realidade, a frieza dos simulacros sexuais uma
constatação.
Enorme importância ganhou o corpo na atualidade: adquiriu a conotação de
uma mudança de mentalidade, como marca de individualidade, busca de recursos
para melhorar a imagem; desenvolveu campos como a estética, a cosmética, a
moda utilizando recursos como o esporte, a ginástica, as massagens modeladoras,
cremes emagrecedores, cirurgia plástica. Está em andamento a produção de novos
modos de subjetivação, uma nova ética/estética da existência. O corpo materializa
a tensão entre desejos, impulsos sexuais e normas de controle social.
que nos acompanham, da infância à velhice. Somos matéria, nada mais que poeira
e cinzas, que logo se dissolverão na água, transformando-se em cristal, como
predisse Schopenhauer. Nosso corpo é uma tela do tempo, e em face da morte
sabemos que o tempo continua, nós é que o deixamos. Há o tempo que passa, ou
que passou, e o tempo que dura; o que foge e o que promete; o tempo perdido, o
tempo reencontrado. Tememos a morte, angústia de quem vive, mas é esse medo,
e essa fragilidade, que nos faz aprender (ou querer aprender) a viver, a ser feliz,
a desejar e perseverar na busca da realização do desejo, na obtenção do prazer.
O amor não foi o mesmo ao longo do tempo. Construído dentro de um cenário
histórico, político, social, configura-se o amor de diversas maneiras: platônico (já
comentado), cortês, romântico, líquido, cada um com uma erótica associada a um
tipo de agenciamento amoroso (Rougemont, 2003; Duby, 1989).
Amor cortês
O amor cortês se forma a partir de uma nova política do desejo, nos séculos
X, XI e XII, atrelada aos objetivos do reino. O que estava em jogo era o patrimônio
familiar, e eram privilegiadas a masculinidade e a primogenitura. Para evitar a
fragmentação da herança, na partilha, as filhas recebiam apenas um dote, podendo
ser dinheiro ou bens o que lhes permitiria arranjar um marido; já os filhos mais
jovens eram expulsos das casas paternas, correndo atrás de prostitutas, sonhando
com uma boa herdeira, uma casa que os acolhesse. Os acordos de casamento não
levavam em conta os sentimentos dos noivos – que geralmente só se conheciam
na noite de núpcias. Entre os cônjuges, não se estabelecia uma relação calorosa,
mas uma ligação fria de desigualdade. Amar, no século XII, era estar em ardente
desejo. Tratava-se de um sentimento voltado para fora do casamento, pois amor e
casamento não estavam unidos.
Os códigos estabelecidos para o amor cortês o situavam como um jogo, um
entretenimento, capaz de distrair e conduzir o desejo naquela sociedade. Como um
jogo educativo, o amor cortês envolvia um homem efetivamente jovem, porque
solteiro e ainda em formação, que assediava uma dama (uma mulher casada) que
deveria conduzir-se de forma a não ser tomada por esse rapaz. De algum modo,
o desejo estava ligado ao perigo, já que tal sociedade considerava o adultério da
esposa como a pior das subversões e ameaçava com castigos severos seu cúmplice.
Quanto mais perigosa a relação, maior seria o desejo e a luta contra suas investidas.
Durante o amor cortês, teríamos a erótica do desejo. Nessa erótica, a atenção
está na intensidade do desejo e seu controle. Há uma crescente incorporação do
Amor romântico
Todo o Sentimento
Preciso não dormir/Até se consumar/O tempo da gente.
Preciso conduzir/Um tempo de te amar, Te amando devagar e
urgentemente.
Pretendo descobrir/No último momento/Um tempo que refaz o que desfez,
Que recolhe todo sentimento/E bota no corpo uma outra vez.
Prometo te querer/Até o amor cair/Doente, doente...
Prefiro, então, partir/A tempo de poder/A gente se desvencilhar da gente.
Depois de te perder,/Te encontro, com certeza, Talvez num tempo da
delicadeza.
Onde não diremos nada, nada aconteceu/Apenas seguirei, como
encantado/ Ao lado teu (Chico Buarque, 1987).
ou seja, o poder da anulação das relações causais, das consequências dos atos
precedentes, do passado limitante.
Os imperativos amorosos atuais estabelecem que um relacionamento
amoroso precisaria estar baseado no presente e principalmente durar, mas sem
perder a intensidade; precisaria conjugar desejo com estabilidade, paixão com
intimidade, segurança com vertigens de liberdade. Ou seja, deveria proteger da
palidez do cotidiano, da solidão, da indiferença, e ao mesmo tempo não aprisionar,
não cobrar, não sufocar.
O amor, porém, é um pássaro rebelde que não pode ser aprisionado, como
bem sabemos, mas como é difícil resistir à ideia da posse, do desejo de eternidade?
Como não se extasiar com as intensas emoções que se produzem quando se ama, da
alegria extrema quando se anuncia e se instala à tristeza profunda quando termina?
Platão nos ajuda a compreender o sentimento de perda irreparável, e a ânsia por
recuperar o elo perdido, não só a pessoa amada, mas a vivência de estar amando
e ser amada. Queremos que dure para sempre. Por que dói o amor? pergunto,
inspirada em Eva Illouz (2012), porque implica em encontro e união, e também
em desencontro e desunião. É de sua natureza ser fluxo, estar sempre pronto a se
desfazer e refazer. O amor só é eterno enquanto dura, diz Vinicius de Moraes.
O amor, sabemos, não é imune ao tempo e, nas flutuações da história e das
revoluções que marcam a existência humana no Ocidente, vemos mutações nos
modos de amar, com múltiplas práticas eróticas e formas amorosas se desenhando,
a partir do exercício do amor como produção, energia, força, sempre em conflito,
pois essa é a característica básica do amor enquanto fluxo, abundância e carência.
Na experiência contemporânea, vivemos a velocidade como um valor em si
mesma, com sutis e profundas repercussões no plano das relações e das práticas
amorosas. Órfãos de nossas certezas, seguimos em busca de um chão menos
escorregadio, de vínculos, se não estáveis pelo menos intensos em seu significado
afetivo. E não importa a dor: amar e se apaixonar é tudo porque a vida vale a pena.
Segundo Luc Ferry (2012), é o amor que estimula nossa vida psíquica e
cultural e, até mesmo, intelectual e política. Sem ele, nada teria significado para
nós. Seria, nesse caso, o desencanto do mundo. Quando ele nos escapa, quando por
uma razão ou por outra ele nos vem a faltar – morte de um ente querido, separação,
rompimento ou simples período de seca amorosa –, o universo inteiro se torna
opaco e sombrio. Segundo Galeano (2005):
No nos da risa el amor cuando llega a lo más hondo de su viaje, a lo más alto
de su vuelo: en lo más hondo, en lo más alto, nos arranca gemidos y quejidos,
Intimidade e internet
Não temos mais o terreno das certezas, das cadeias que prendem e fixam
os laços, ao reconhecermos o amor como um pássaro rebelde, que não se deixa
aprisionar. Mas, mesmo assim, não permanece a quimera, buscada com paixão,
mesmo que fadada a durar um instante, alguns momentos, meses ou poucos anos
(quem se importa?) de encontrar uma outreidade que nos complete? Não estará
presente no coração de nosso tempo, de todos os tempos, ainda e mais uma vez,
o espírito da utopia amorosa?
Abandonamos o conceito platônico de amor como falta, desejo de completude
no encontro com a outra metade perdida, fundamento de toda forma romântica do
amor? Ou estaremos usando novas roupagens, ferramentas, artifícios, estratégias
e, até mesmo, tecnologias, para seguir buscando o encontro, alguém com quem
dividir nossos sonhos, solidões e anseios incansáveis?
Estaremos em luta contra o idealismo romântico e o ceticismo estoico?
Teremos medo do encontro, da intimidade, da solidão, da morte?
Queremos respostas para um fenômeno tão complexo como o amor, que
se desdobra em muitas nuances, bem descritas por Riso (2010), como o amor
torturante, o amor desconfiado, o amor subversivo, o amor egoísta, o amor
perfeccionista, o amor violento, o amor desvinculado ou indiferente, o amor caótico,
o amor saudável (ou a sabedoria do não).
Vivemos a orfandade dos estereótipos, do status congelado das evidências,
o coma anestesiado do excesso (fluxo, velocidade e intensidade da informação),
sob o efeito dos discursos vazios, da tirania da mídia, do peso econômico do lucro.
Temos uma sensação de perda do próprio mundo, frente à volatilidade e à
imprevisibilidade com que as mudanças acontecem, radicais e repentinas. Estamos
em processo de invenção de novos comportamentos e mentalidades, que certamente
atingem o amor e as formas de amar.
Estamos caminhando em direção a uma nova ética, uma dimensão ética
desconhecida, ainda sem registro. Os conceitos e os princípios organizadores de
nossos pensamentos e práticas, se descolorem, debilitam e desmoronam. Não temos
hipóteses plausíveis, ferramentas explicativas eficientes, que aliviem o mal-estar
gerado pela incerteza, a fugacidade, a inconstância dos valores.
O regime de verdade em que estamos inscritos define uma arte de viver, um
conjunto de regras de conduta, um modo de se comportar, de falar, de sentir, de amar.
Diante da problematização de nosso modo de existência, muitas perguntas
emergem: quais os nexos que temos hoje com o erotismo, o prazer, o sexo, o amor,
com a inexistência de códigos, obrigações, proibições? Como Apolo e Dionísio
se relacionam hoje? Como convivem as lógicas de diversos tempos: da carência,
da incompletude, da dependência, lógica das intensidades ou eco-lógicas, com a
produção de eróticas: do prazer, do sentimento, do corpo?
De que forma nos constituímos como sujeitos, com a falta de espessura, a
tirania do breve, do descartável, da total transparência (ou será opacidade?), da
ausência do pudor, do encantamento, do mistério? Estamos em mutação, ou seja,
Abstract
Resumen
Referências
Recebido em 25/01/2018
Aceito em 31/01/2018