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CAMALEÃO E A LIBERDADE

Uma dramaturgia de JOSÉ MAPURUNGA com os seguintes


Personagens:

CANTOR DE RAP – O menestrel da peça.

CAMALEÃO BONAPARTE – O herói da história.

AVIÃOZINHO – O leva e traz do crack.

A MÃE – ... de Camaleão Bonaparte

BOA PRAÇA – Uma amizade positiva.

ANJA CORUJA – O lado sábio de Camaleão Bonaparte.

BELA FERA – Mensageira de um convite.

EX- ESCRAVA E EX-ESCRAVO – Sobreviventes do crack que contam suas histórias.


CANTOR DE RAP (Canta o rap) – Nas ruas e avenidas entre
edificações/ as pessoas transitam carregando suas emoções/ algumas
dessas pessoas são livres e outras não /porque entre nós ainda existe a
mais cruel escravidão/ Nas praças ao pé de frias estátuas de maiorais/
esses escravos dormem e têm pesadelos infernais/ Como a flor que
nasce na pedra e contra tudo prolifera/haveremos de criar e festejar
uma nova era/ um tempo em que cada sonho se tornará verdadeiro/e
vai libertar os que vivem no cativeiro/ Que esta mensagem chegue a
todos os recantos da cidade/ porque Fortaleza haverá de ser o reino da
liberdade.

Boa Praça pára de cantar e dirige-se para publico,


falando em tom circense.

CANTOR DE RAP (Fala com o corpo na ginga do rap) - Respeitável


galera aqui presente! Apresentaremos agora uma peça teatral que fala
de escravidão. Daquele tipo de escravidão em que a criatura
voluntariamente, por vontade própria, dá um ponta-pé na bunda da
liberdade e resolve ser escravo. Mas, como gostamos de coisas boas,
vamos falar mais ainda de liberdade. Daquela liberdade que sempre
atende aos que decidem ser livres. Com vocês a peça teatral Camaleão
e a Liberdade

Sai Cantor de Rap e entra Camaleão Bonaparte com


uma cara de dar dó de tanta tristeza.

CAMALEÃO BONAPARTE – Não vejo cores, o mundo é preto e


branco e os dias são sempre iguais. Não sinto os sabores dos mais
saborosos alimentos. Nem mesmo o rebolar de uma gostosa me
desperta a alegria de viver.

Entra Aviãozinho

AVIÃOZINHO – (Ao público) Ah! Com esse baixo astral este aí será
mais um escravo para a senzala do crack. (Para Camaleão Bonaparte)
E aí chegado, anda dando uma de brogoió?
CAMALEÃO BONAPARTE – É tristeza, Aviãozinho, tristeza no
meu coração.

AVIÃOZINHO – Papo de elefante, colado. Anda grilado? .

CAMALEÃO BONAPARTE – Tenho um inferno dentro de mim.

AVIÃOZINHO – Quer o céu, mermão? Eu tenho.

CAMALEÃO BONAPARTE – Que céu?

AVIÃOZINHO - Uma pedra de que dá a maior lombra. Material


cabuloso...

CAMALEÃO BONAPARTE – Crapuloso?

AVIÃOZINHO – Cabuloso, meu, que quer dizer de primeira na


língua careta. Produto do barão Fio Descascado, que é o dono da boca,
quase um colarinho branco, empreendedor. Pedra de qualidade, mano,
a maior brisa.

CAMALEÃO BONAPARTE – Mas eu não tenho dinheiro?

AVIÃOZINHO – Não precisa que da primeira vez é a isca, digo,


amostra grátis. É só fumar na lata (Ao público) Depois de morder a
isca descabela e é capaz de assaltar até a mãe.

Uma voz feminina grita fora de cena: “Camaleão


Bonaparte!”

CAMALEÃO BONAPARTE (Para fora) – Oi mamãe!

AVIÃOZINHO (Saindo apressado e apavorado) – Vou cantar pra


subir porque aí vem vela preta!

Entra a mãe de Camaleão Bonaparte trazendo na mão,


ameaçadoramente, um cipó.

MÃE – Cadê o maldito Aviãozinho? Decolou? Que pena porque eu ia


alisar o espinhaço dele com este cipó. Isso só pra começar, porque se
eu pego um miserável daquele eu...eu...eu...

CAMALEÃO BONAPARTE – Mãezinha se acalme.


MÃE (respira e conta até 10 para se acalmar) - Eu já havia avisado
àquele safado que nem sonhasse em se aproximar de filho meu. Ele e
o patrão dele são iguais a merda de gato, que não serve nem pra
estrume. E você, o que é que ganha em ter amizade com um traste
daquele? Aquilo é um traz desgraça, menino! E Deus me defenda ser
mais uma das muitas mães que perderam seus filhos para a maldita
pedra que o maldito vende.

CAMALEÃO BONAPARTE – Mamãe não me trate como eu fosse


uma eterna criança. Sei fazer minhas escolhas.

MÃE – Sabe mesmo, meu tesouro?

CAMALEÃO BONAPARTE – Sei.

MÃE – Está bom, meu bebê, dou-lhe um voto de confiança e espero


que você jamais me decepcione. Bom, vou até o centro da cidade e só
lhe peço uma coisa pra quando eu voltar: que você não esteja com
essa cara triste de bezerro desmamado. Está certo, bebê?

CAMALEÃO BONAPARTE – Até logo, mãe!

Sai a Mãe e entra Boa Praça. Camaleão está tão


mergulhado em sua “dor” que não nota a presença do
amigo que o está observando.

CAMALEÃO BONAPARTE (Melodramático) – Ah, minha mãe,


como é impossível mostrar-lhe outra cara, senão esta, marcada pela
melancolia. Ai, coração em pandarecos que bate uma e outra falha!
Ui, angústia que me aperta o peito! Ai mundo terrível! Só me resta
dizer: Bom dia tristeza! Bom dia triste passarinho! Bom dia triste
árvore! Boa tarde triste sol! Boa noite triste lua!

BOA PRAÇA – Arre égua macho!

CAMALEÃO BONAPARTE - (Tomando um susto) Boa Praça!

BOA PRAÇA - Que baixo astral é este? É dor de barriga?

CAMALEÃO BONAPARTE – É tristeza, Boa Praça, só tristeza no


meu pobre coração.
BOA PRAÇA – Tristeza, meu chapa? Que frescura é essa?

CAMALEÃO BONAPARTE – Não é frescura não. De repente a


tristeza chegou e escravizou minha alma, que agora vive em
frangalhos.

BOA PRAÇA – Foi chifre?

CAMALEÃO BONAPARTE – Nem namorada eu tenho.

BOA PRAÇA – Então é gala seca na cabeça.

CAMALEÃO BONAPARTE – O quê?

BOA PRAÇA – Nada não. Esquece.

CAMALEÃO BONAPARTE – Sei que preciso sair da tristeza. Disso


sou consciente. Mas não sei como.

BOA PRAÇA – Você tem conversado com a anja coruja?

CAMALEÃO BONAPARTE – Tentei, mas a diaba da anja sumiu.


Mas aí andei trocando idéias com um cara muito legal, que sacou o
que acontece comigo me disse que tem um negócio que espanta a
tristeza.

BOA PRAÇA – Papo estranho. Que negócio é esse?

CAMALEÃO – Uma pedra que a gente fuma e que leva a gente do


inferno ao céu em um instante.

BOA PRAÇA – Caracas! E você fumou essa pedra?

CAMALEÃO BONAPARTE – Não porque na hora mamãe chegou e


o cara arribou tão depressa que nem o vento pegava.

BOA PRAÇA (Irônico) – Esse cara e o Aviãozinho?

CAMALEÃO BONAPARTE – É.

BOA PRAÇA – O Aviãozinho é o leva-e-traz do Fio-Descascado, o


barão da boca... Dia desses, eu estava numa balada, na maior alegria,
quando esse tal de Aviãozinho chegou, todo simpático, puxando
conversa e me oferecendo essa tal pedra pra incrementar o embalo que
eu estava.
CAMALEÃO BONAPARTE – E você fumou a pedra?

BOA PRAÇA – Tá me achando com cara de que? Eu disse foi para o


tal de Aviãozinho: “Qualé a tua, hein fulerage, tá pensando que sou
otário? Pega tua pedra de merda e soca no...”

CAMALEÃO BONAPARTE – Você disse isso?

BOA PRAÇA – Pra falar a verdade, tive vontade de dizer, mas só


disse assim: “Tô fora!” Aí ele foi embora e me deixou sossegado.

CAMALEÃO BONAPARTE – Mas por que tanto medo dessa pedra?

BOA PRAÇA – Ô Camaleão, ou você é idiota ou se faz de. Sabe por


que a Naninha de dona Maroca morreu seca que nem um caniço? Sabe
não? Por causa da pedra de crack.

CAMALEÃO BONAPARTE – Que Deus a tenha!

BOA PRAÇA – Sabe por que o Zelin levou tiro no coração quando
assaltava uma padaria? Porque precisava desesperadamente de
dinheiro pra pagar o crack que havia comprado ao Fio-Descascado.

CAMALEÃO BONAPARTE – Que Deus proteja a alma dele!

BOA PRAÇA - Sabe por que o Kazin do seu Miguel levou três tiros
na cabeça e agora descansa no mundo dos pés juntos? Porque não
pagou a pedra que comprou fiado ao Fio-Descascado?

CAMALEÃO BONAPARTE – Que Deus o guarde!

BOA PRAÇA – Podia passar o dia inteiro aqui contando tragédias de


pessoas que ficaram dependentes da pedra maldita, mas não vou fazer
isso não. Vou é te perguntar por que pensaste em fumar esse troço.

CAMALEÃO BONAPARTE – Pensei em usar só uma vez e pronto.


Só para ver como é.

BOA PRAÇA – Pois é, muitos dos que hoje são escravos da pedra e
dos fios descascados da vida tiveram a intenção de usar só uma vez e
pronto. Foram ver como é que é e se ferraram. Duvida? Mas minha
pergunta não foi respondida: o que passou na tua cabeça quando
pensou em fumar a pedra de crack?
CAMALEÃO BONAPARTE – Você sabe, né, a tristeza fragiliza a
gente.

BOA PRAÇA -. Tristeza do tipo da tua é tristeza besta, que a gente sai
dela numa boa, vivendo bem a vida.

CAMALEÃO BONAPARTE (Irônico) – Vivendo bem a vida?

BOA PRAÇA – Sim. Batendo papo com os amigos, trabalhando e


estudando, indo às festas, apreciando a beleza do mundo e namorando.
Ou você acha que tem lugar pra tristeza perto de uma gata bonita e
maravilhosa como esta que está na platéia? Ô coisa linda!

CAMALEÃO BONAPARTE – É, mas a tristeza...

BOA PRAÇA – Que tristeza coisa nenhuma. Teu mal é muita falta de
coragem para enfrentar a vida. Passa o dia todo dando nó em peido e
quer que as coisas boas caiam do céu.

CAMALEÃO BONAPARTE – Respeito é bom e eu gosto.

BOA PRAÇA – Respeito! Você é mesmo é escravo da preguiça. E se


não tomar cuidado vai acabar virando escravo do crack.

CAMALEÃO BONAPARTE – Vai pru fogo do inferno, vai!

BOA PRAÇA (Saindo) – Vou nada. Agora vou é namorar, pois me


espera uma gata bonita e carinhosa que faz a gente gemer sem sentir
dor. Que você dê bons nós em peidos, Camaleão Bonaparte!

Com a saída de Boa Praça Camaleão Bonaparte fica


dizendo injúrias e furiosamente mexendo o braço na
direção em que Boa Praça saiu.

CAMALEÃO BONAPARTE – Quem dá nó em peido é tua mãe,


cachorro! Quem é preguiçoso é teu pai! Cretino, safado, abelhudo!
(Irado, ao público) Estou com tanta raiva que minha tristeza passou.
(Alegre e eufórico) Oba! Minha tristeza passou, minha tristeza passou!
Alegria! Alegria! (Reflexivo) Passou, mas preciso dar um norte na
minha vida, porque senão ela volta. (Olhando para os lados, para
cima e para baixo) Mas cadê minha Anja Coruja?
Entra Aviãozinho, de mansinho, tateando com os olhos
e com cuidado para não ser visto.

AVIÃOZINHO - E aí, colado, cadê ela?

CAMALEÃO BONAPARTE – Estou esperando que ela apareça a


qualquer momento.

AVIÃOZINHO – (Apressadíssimo) Te liga, mano, pega a pedra


depressa que vou capar o gato!

Camaleão Bonaparte não recebe a pedra e entra em


transe, sentindo uma presença, enquanto Aviãozinho
permanece aflito, de mão estendida para que Camaleão
receba a pedra

CAMALEÃO BONAPARTE – (Grita em transe) É ela! É ela!

AVIÃOZINHO – (Fugindo) Tua mãe!?

Aviãozinho sai de cena às carreiras e entra a Anja


Coruja, fazendo Camaleão sair do transe.

ANJA CORUJA – Quem é aquele que daqui saiu em disparada?

CAMALEÃO BONAPARTE – É o Aviãozinho. Acho que ele pensou


que fosse mamãe que estava chegando.

ANJA CORUJA – Entendi.

CAMALEÃO BONAPARTE – Minha bendita Anja Coruja! Precisei


tanto de você! Por que você me abandonou?

ANJA CORUJA – Que grude é esse? Não sabe se virar sozinho?

CAMALEÃO BONAPARTE – Mas você faz parte de mim, é meu


lado que sabe das coisas, é meu lado inteligente, é meu lado bom.

ANJA CORUJA – O azar é meu. E aí, anda mesmo a fim de


experimentar a pedra de crack?

CAMALEÃO BONAPARTE – Não quero conversar sobre esse


assunto. Quero agora é conversar sobre um norte que pretendo dar na
minha vida. Sabe, minha Anja Coruja, não ando satisfeito comigo
mesmo. Vivo sem fazer nada. Fiquei até com muita raiva do meu
amigo, Boa Praça, só porque ele falou a verdade quando disse que eu
vivo dando nó em peido.

ANJA CORUJA - Dar nó em peido é o que mais se faz na oficina do


capeta. Quando a gente fica sem fazer nada, quando a gente não se
ocupa com coisa nenhuma, a cabeça da gente fica inventando besteira.
E besteirinhas do tamanho de uma formiga de repente ficam do
tamanho de uma baleia. É a maior roubada, meu! Se o cara não tem
um plano para o futuro, se ele amanhece sem ter o que fazer, ele fica
desorientado. Fica em nenhum lugar e em toda parte ao mesmo tempo.

CAMALEÃO BONAPARTE - O que devo fazer, então?

ANJA CORUJA – Diga você o que pretende fazer. Ou só tem cabeça


para separar as orelhas?

CAMALEÃO BONAPARTE – Bom, pra começar vou voltar a


estudar.

ANJA CORUJA (Falsamente surpreso) – Não acredito!

CAMALEÃO BONAPARTE – Também vou arranjar um trabalho pra


garantir a merreca no bolso.

ANJA CORUJA (Se belisca) – Estou acordado ou estou sonhando?

CAMALEÃO BONAPARTE – Vou dar uma mãozinha à mamãe. A


pobre só falta se lascar de trabalhar na rua e em casa. Vou aguar as
plantas, encher as garrafas da geladeira, arrumar meu quarto.

ANJA CORUJA – Milagre! O sertão vai virar mar e o mar vai virar
sertão!

CAMALEÃO BONAPARTE – E ainda vou dar um dinheirinho para


as despesas de casa, porque o salário da mamãe é fraco.

ANJA CORUJA – Prodígio! Prodígio! Um boi vai voar e uma galinha


vai criar dente!

CAMALEÃO BONAPARTE – Vou...


ANJA CORUJA – Homem pare por aí! Prometa mais nada não. E a
diversão? E o bate-papo com os amigos que puxam pra cima? E as
baladas, os piqueniques, as viagens de excursão? E as partidas de
futebol de poeira? Não vai ter isso não?

CAMALEÃO BONAPARTE – Claro que sim!

ANJA CORUJA – E o namoro? Já tem namorada?

CAMALEÃO BONAPARTE – E tem quem me queira?

ANJA CORUJA - Por incrível que pareça parece que tem.

CAMALEÃO BONAPARTE – E quem é?

ANJA CORUJA (olhando para a platéia) – Aquela doidinha linda


que vem agora na nossa direção. Enquanto a gente conversava, ela não
tirava o olho de você.

CAMALEÃO BONAPARTE (Olhando para a platéia) – Santo Deus!


Não pode ser! Ela é demais pra mim. (Para a Anja Coruja) Não
invente de me abandonar agora, viu.

ANJA CORUJA (Saindo) – Tô fora, meu!.

Sai Anja Coruja e entra Bela Fera.

BELA FERA – Oi!

CAMALEÃO BONAPARTE – Oi

BELA FERA - Meu nome é Bela Fera, mais fera que bela.

CAMALEÃO BONAPARTE – O meu é Camaleão Bonaparte.

BELA FERA – Que lindo nome, tão lindo quanto o dono.

CAMALEÃO BONAPARTE - (Ao público) Lindo? Eu? Só pode ser


doida!

BELA FERA – Não me estranhe, mas sou direta e positiva quando


simpatizo por alguém.

CAMALEÃO BONAPARTE (Ao público) – Será que é cantada.

BELA FERA – E minha simpatia por você foi à primeira vista.


CAMALEÃO BONAPARTE - (Ao público) Tá no papo!

BELA FERA – Desde que pela primeira vez olhei pra você fui logo
dizendo: com este eu vou conversar.

CAMALEÃO BONAPARTE – Pois diga logo o que pretende.


Garanto que minha resposta será positiva.

BELA FERA – Pois bem, pretendo que você participe da luta contra o
crack.

CAMALEÃO BONAPARTE – Ah! É isso? Pensei que fosse outra


coisa.

BELA FERA – Pensou que fosse o quê?

CAMALEÃO BONAPARTE – Nada. (Ao público). Aquela minha


maldita Anja Coruja me meteu em fria! (Para Bela Fera) Diga o que
quer, diga, diga, diga, diga...

BELA FERA – É que aqui no bairro estamos fazendo um trabalho


contra o crack. Aliás, em toda Fortaleza outras pessoas estão
trabalhando contra o crack, que é a pior miséria que ataca nossa
juventude. O crack tem tirado a liberdade e destruído a esperança de
muita gente. Digo isso porque fui dependente, fui escrava da pedra
maldita e fui ao fundo do poço.

CAMALEÃO BONAPARTE – Mas você parece tão bem.

BELA FERA – Pareço agora, mas quando era escrava da pedra eu


parecia um lixo. Tive sorte de sair daquela e foi preciso muita força de
espírito para conseguir me libertar. E aí, podemos contar com você no
comitê do bairro contra o crack?

CAMALEÃO BONAPARTE – (Fingindo ser muito ocupado) - Bom,


eu vou verificar minha agenda e ver se tem um espaço para mais essa
atividade.

BELA FERA – (Entrega um cartão) Está aí o número do meu


telefone. Decidindo, bata o fio. Até mais!

Quando está saindo, Bela Fera pára diante da platéia.


BELA FERA – (Ao público) Este aí está vacilando, precisando de
reforço. (Para fora) Reforço!

Sai Bela Fera e entra Cantor de Rap.

CANTOR DE RAP (Cantando rap) - Cada pessoa é um livro aberto


que conta uma história/ viver é conhecer a dor, a alegria, a derrota e a
vitória/ Disse um poeta que aquele que em plácido repouso
adormeceu/ apenas passou pela vida, mas, viver que é bom, jamais
viveu/ Superar dificuldades é parte do sublime aprendizado/ que a
escola do mundo tem a cada ente ensinado/ e quem por decisão
alguma vez escolheu a escravatura/ pode se libertar se para tanto tiver
desejo e bravura/ Cada pessoa é um livro que nos conta onde o calo
dói/ é um livro que revela a trajetória de um herói.

Sai Cantor de Rap e entra Ex-Escrava com uma


máscara no rosto. Ela fala ao público e dá atenção a
Camaleão.

EX-ESCRAVA - Eu trabalhava como vendedora em uma loja e


estudava de noite. Eu não conhecia a pedra ao vivo. Vi uma
reportagem na TV que dizia que a pedra dava uma loucura muito boa.
Fiquei com vontade de experimentar. Foi aí que começou minha
escravidão.

Entra Ex-Escravo com uma máscara no rosto. Fala ao


público e a Camaleão Bonaparte.

EX-ESCRAVO – Comecei a beber com 14 anos. Daí veio a maconha


e depois o crack. Aí perdi completamente minha liberdade.

Segue um pequeno jogral entre os dois personagens,


que falam de suas experiências para a platéia e para
Camaleão Bonaparte.

EX-ESCRAVA – O crack é triste: quanto mais você usa mais você


quer. Passei a fumar mais de vinte pedras por dia. Dormia e acordava
com a lata na mão.
EX-ESCRAVO – As coisas começaram a sumir dentro de casa e
demorou pouco tempo para que meus pais descobrissem que o ladrão
era eu.

EX-ESCRAVA – Enquanto eu ia vendendo o que tinha em casa, eu ia


fumando. Até que um dia minha mãe, aos prantos, com o coração na
mão, me pediu que eu fosse embora.

EX-ESCRAVO – Passei a morar na rua. Só passava em casa quando


meu pai não estava. Minha mãe me dava comida e roupa limpa. E eu
tomava banho. Depois de um tempo, quando eu ia lá, eu não queria
comida e nem banho. Eu queria mesmo era arrancar algum
dinheirinho de mamãe.

EX-ESCRAVA – Passei a fazer programas. Qualquer programa


baratinho eu fazia pra poder comprar o crack. Se aparecesse um cara
me oferecendo dez reais ou cinco, ou até menos, eu ia.

EX-ESCRAVO – Assaltei em semáforo, puxei bolsa de velhinha,


tomei celulares de mocinhas. Um dia, quando na sugesta quis assaltar
um motorista de taxi, levei um tiro. Quando saí do hospital voltei a
fumar a pedra.

EX-ESCRAVA - Fiquei morando na rua, sem escovar os dentes, sem


tomar banho, minha cabeça se encheu de piolhos e cheguei a pesar 35
quilos. Cheguei ao fundo do poço que não tem fundo. Foi quando tive
o entendimento de que havia me tornado uma escrava do crack. Foi
quando decidi lutar para recuperar minha liberdade.

EX-ESCRAVO – Um dia peguei um ônibus para ir tomar mais uma


vez o dinheirinho de mamãe. Meu triste estado chamava a atenção das
pessoas que estavam no veículo. Todos me olhavam com
desconfiança, pena e nojo. Embora o ônibus não estivesse lotado,
ninguém teve coragem de sentar a meu lado. Eu fedia, fedia muito,
por dentro e por fora. Foi quando tomei uma decisão.

EX-ESCRAVA – Ser escrava ou ser livre dependia de mim. Hoje


estou livre. Se livrar do crack é possível, sim, porque o sofrimento que
pagamos para ganhar a liberdade é menor que o sofrimento sem
esperança de quando somos escravos do crack.

EX-ESCRAVO – Ao chegar em casa, ao invés de tomar o dinheirinho


de mamãe, pedi que ela me ajudasse a me libertar do crack. Ela
telefonou para o papai. Foi o primeiro passo rumo à minha libertação.

EX-ESCRAVA – Quando a gente luta pela nossa liberdade a gente


fica mais forte.

EX-ESCRAVO – Passei um ano numa clínica, trabalhando duro e


seguindo um regulamento rigoroso. Parecia uma prisão, mas confesso
que lá eu me sentia bem mais livre que quando era escravo do crack.

EX-ESCRAVA - Voltei a trabalhar, a estudar e ganhei novamente a


confiança e o carinho da minha família. Hoje faço tudo que uma moça
normal faz. E sou voluntária em uma instituição que recupera pessoas
que se deixaram escravizar pelo crack.

EX- ESCRAVO – Hoje trabalho e faço tudo que um rapaz normal faz.
E sou voluntário na luta contra o crack. Conto as histórias do inferno
que vivi, pra que moças e rapazes evitem sofrer o que eu e ela
sofremos. Pra que vocês continuem a gozar a liberdade e jamais
assinem a própria sentença de escravidão.

Saem os escravos e Camaleão Bonaparte retira do


bolso um telefone celular de fantasia.

CAMALEÃO BONAPARTE – Vou bater um fio para a Bela Fera,


mais fera que bela e mais bela que fera.

Quando começa a telefonar, entra Aviãozinho, olhando


de lado, temendo a presença da mãe de Camaleão.

AVIÃOZINHO – E aí, colado, a mamãezinha está por perto?

CAMALEÃO BONAPARTE – A mamãezinha está longe.

AVIÃOZINHO – Então pipa na lata e pega a brisa, meu. Entra na


lombra, curte a o furacão.

CAMALEÃO BONAPARTE – Tô fora!


AVIÃOZINHO – Que crocodilagem é essa, colado?

CAMALEÃO BONAPARTE – Já disse que tô fora e papo encerrado.

AVIÃOZINHO – Mas...

CAMALEÃO BONAPARTE – Preciso fazer uma ligação. Pega o


beco, pega!

AVIÃOZINHO - (Saindo) Sujou!

Sai Aviãozinho e Camaleão Bonaparte pega o número


do telefone que Bela Fera lhe entregou, liga número no
seu celular de fantasia, enquanto o Cantor de Rap
entra em cena. Faz a gesticulação de quem está
telefonando, enquanto o Cantor de Rap fala.

CANTOR DE RAP – (Ao público) “Quantas histórias nós temos


ouvido contar sobre a valentia que a liberdade põe no coração dos que
a defendem! Que mais é preciso para possuir a liberdade do que
simplesmente desejá-la?” Quem disse isso foi um filósofo francês das
antas que entendeu que, em alguns casos, as pessoas podem escolher
entre a liberdade e a escravidão.

CAMALEÃO BONAPARTE – Eu escolhi a liberdade. E você?

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