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Saul e a Pitonisa de En-Dor

Os últimos dias de um monarca


(A instituição da monarquia e o monoteísmo em Israel)

1
CUNHA, Marcos Davi Duarte da.
Saul e a Pitonisa de En-Dor; os últimos dias do monarca, (A
instituição da monarquia e o monoteísmo em Israel)
Monografia de Conclusão do Curso de Bacharel em História,
Rio de Janeiro, Universidade Gama Filho, (Período de 2006-2
Conclusão).

1.História de Israel; 2.Primeiro reinado; 3.Rei Saul (1100-


1060 a.C. aprox.)

2
Ao senhor Moisés C. Tavares.

“Vir amicalis ad societatem magis amicus erit quam frater”

(Livro dos Provérbios, capítulo 18 verso 24)

3
“Nenhuma história de um povo tem mais a ensinar à humanidade do que a longa, trágica,
porém estimulante, história dos judeus”.
Paul Johnson

4
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................

CAPÍTULO 1 – As doze em nome de UM. A conquista de Canaã e a sobrevivência de


Israel..........................................................................................................................................
1.1Aspectos gerais da Palestina antes da monarquia israelita (o Livro dos
Juízes)........................................................................................................................................
1.2 Os filisteus na Costa Palestina e sua expansão para o interior ante a crescente crise entre
as tribos israelitas......................................................................................................................
1.3 O monoteísmo israelita e a religião cananita.............................................................................................

CAPÍTULO 2 – Espíritos maus e harpas. O nascimento do primeiro


reinado.................................................................................................................................................................................
2.1 O período de transição........................................................................................................
2.2 A escolha do rei.................................................................................................................
2.3 O sistema monárquico e as tradições israelitas........................................................................................
2.4 A escolha de Saul ........................................................................................................................................

CAPÍTULO 3 – Reis, profetas e necromantes. A queda...........................................................


3.1 O rompimento com Samuel................................................................................................
3.2 O contra-ataque filisteu.......................................................................................................
3.3 O arraial de combate...........................................................................................................
3.4 A necromante de En-Dor............................................................................................................................
3.5 A morte de Saul..................................................................................................................

CONCLUSÃO.........................................................................................................................
RELAÇÃO DOS MAPAS........................................................................................................
FIGURAS..................................................................................................................................
FONTES PRIMÁRIAS.............................................................................................................
BIBLIOGRAFIA......................................................................................................................

5
INTRODUÇÃO

Com a ameaça do poderio filisteu cada vez mais crescendo após o movimento de
grupos provenientes das terras dóricas e micênicas1 que derrotariam impérios como o hitita
e bateriam suas forças com as tropas do faraó em violentas batalhas, os israelitas lutariam
agora com um inimigo mais poderoso. Esse movimento de invasão dos chamados “Povos
do Mar” pelos egípcios não encontrou sucesso em suas terras localizadas próximo ao Delta
do Nilo. Sendo estes rechaçados em anos de lutas pelos egípcios, se instalariam com
presença significativa na Costa Palestina. Sua ocupação foi rápida e violenta, destruindo e
subjugando as cidades ali existentes e, muitas das vezes, exterminando suas populações
locais, compostas principalmente de cananeus.
Os israelitas, ao se estabelecerem após a vinda de sua longa peregrinação pelo
deserto e se ajuntando com semitas que já habitavam Canaã, adotariam o sistema de
magistraturas tribais de governo2, ou seja, não haveria um poder centralizado secular
contido em uma só pessoa, o que em muitos casos daquela atualidade, tais poderes eram
depositados na figura do rei. Os magistrados eram, muitas das vezes, anciãos escolhidos
entre os de sua respectiva tribo para legislar, julgar e decidir questões como guerrear, sendo
esta sob o aval dos sacerdotes. Adotado pelo próprio Moisés para descentralizar as decisões
de julgamentos de sua pessoa durante sua peregrinação, tal sistema sofreria em sua
eficiência devido a dificuldades como a própria geografia local das terras de Canaã e sua
variegada topografia com planícies e montanhas de difícil acesso, aliada às diferenças

1
A invasão dos Povos do Mar foi oriunda da cultura dórica. Os dórios eram localizados na Grécia. Invasores
de origem indo-européia ficaram conhecidos no mundo grego por volta do segundo milênio com sua
instalação ali provocando a dispersão de vários povos para o sul em busca de novas terras cultiváveis. No fim
do século XIII a.C. inúmeras vagas de invasão resultaram na destruição de importantes cidades de cultura
micênica como Micenas e Pilos dirigindo-se para o mar Egeu. Logo dominariam o Peloponeso excetuando
apenas a península que ainda se encontrava sob domínio dos aqueus. Do Peloponeso partiram para sua
expansão nas ilhas egéias (Tera e Rodes) e para a costa da Ásia Menor chegando até o Delta do Nilo.
2
As magistraturas tribais eram compostas por anciãos escolhidos em suas tribos na maioria das vezes (um
exemplo de exceção seria o caso de Sansão que era jovem quando iniciou sua magistratura). Tais juízes
deveriam exercer as decisões em suas tribos junto com seus conselhos de anciãos e promover a observância
das leis entre os componentes de sua respectiva tribo. Decidiam situações legais e a convocação para uma
guerra. Suas atribuições encontram-se nos livros de Levítico e Deuteronômio sua história está relatada no
Livro dos Juízes, todos da Bíblia Hebraica.

6
conseqüentes da divisão na qual não se verifica equidade na distribuição entre as tribos e
suas áreas cultiváveis até as regiões áridas de um deserto. Logo de inicio da ocupação das
terras viu-se também que a idéia construída no imaginário daquelas tribos de um Israel
pleno em que só os seguidores de Yahweh seriam possuidores da Terra Prometida pelo seu
deus, seria algo que não se firmaria, tendo em vista que, sem escolha, tiveram de interagir
com os cananeus. Para os israelitas comuns, isto não parecia um risco para sua existência,
mas, para o clero javeísta e sua visão de um Israel monoteísta era uma grande ameaça tendo
em vista que a interação também trazia as crenças cananéias e seus deuses que eram
combatidos violentamente pelos sacerdotes israelitas. Os magistrados ao longo do tempo se
mostraram corruptíveis a tal ponto que já se perdia o controle de unidade entre as tribos em
muitas situações como principalmente a vital arregimentação de tropas para guerras. Com a
invasão dos filisteus, as magistraturas se demonstraram totalmente despreparadas e
obsoletas ante a força deste inimigo e suas novas armas e formas de governo. Os filisteus já
possuíam uma espécie de casta militar bem definida e sua arregimentação de tropas era
mais eficiente tendo em vista que possuíam exércitos já constituídos e disciplinados com
hierarquia definida. O advento de sua tecnologia de fundições, adquiridas em suas
campanhas na Anatólia contra os hititas3, possuidores de tal segredo, os colocaria em
posição de superioridade esmagadora contra seus adversários cananeus e israelitas. Sua
forma de governo era composta de uma federação de reinos bem estruturada e coesa. Tal
estrutura permitia um estabelecimento e domínio local a que as magistraturas não
conseguiriam fazer frente. Abordada no primeiro capítulo, a chegada dos filisteus e sua
instalação na Costa revelará as necessidades de uma nova estruturação de governo para as
tribos israelitas. Veremos ali que a grande dificuldade também regia sobre a mentalidade
existente de dois lados, dos sacerdotes que procuravam manter o comando ainda no sistema
de juízes com a forte crença de que Yahweh era seu líder e conseqüentemente seu rei e as
novas aristocracias surgidas no seio das tribos em virtude da cultura de sedentarismo que
proporcionará a pecuária, símbolo de poder e status social à época, que irão exigir um
poder mais centralizado no intuito de sua sobrevivência como líderes em suas tribos tendo
em vista que o poderio filisteu avançava cada vez mais ameaçando suas terras e

3
A capacidade de monopólio de produção do ferro pelos hititas muito antes dos filisteus para alguns
pesquisadores da atualidade encontra-se em questão. (confira Mazar, Arqueologia na Terra da Bíblia
Cap.VIII pág. 352)

7
conseqüentemente seus teres e haveres. Tal exigência estava intrinsecamente ligada à figura
emblemática do rei, fortemente difundida entre os novos inimigos assim como, também,
aos cananeus. Com o seqüestro da Arca da Aliança, as pressões se tornam, praticamente,
uníssonas aos ouvidos do clero, agora sob o comando de um jovem que se tornaria um dos
mais arraigados e radicais líderes religiosos de sua época. Testemunha da humilhação
imposta pelos filisteus a seu povo e a morte de seu mestre Eli, Samuel irá promover uma
busca de unidade das tribos para reter o avanço do inimigo. Peregrinará por suas terras e
presenciará os problemas existentes buscando animar o povo, provavelmente com a fé
abalada em seu deus após a derrota que lhes impôs a grave perda da representação máxima
de seu culto. Será pela pessoa de Samuel que a idéia de um líder carismático capaz de
aflorar em seus ímpetos a necessidade de se unir e reconhecer não só como tribos irmãs,
mas, doravante, como um só povo. Ele mesmo contribuirá para que se aspire a necessidade
de um rei entre os israelitas, o que a posteriori será por ele combatido. Contemplaremos no
decorrer do segundo capítulo dessa aspiração e suas conseqüências. A resistência de
Samuel em ungir um rei, tendo em vista as atribuições destes estarem intrinsecamente
ligadas também aos ritos de cultos entre os cananeus e que certamente seria absorvido pelos
israelitas. Seu medo seria talvez da perda da influência dos sacerdotes no poder. Destarte,
ungirá Saul como um “chefe de tropas”, o que logo depois será mudado pela aclamação dos
chefes tribais a Saul como seu próprio rei.
Seu reinado será marcado pelas guerras contra os inimigos de Israel, sua separação
com os sacerdotes e, principalmente, seus acessos de ira, aliados à sua obsessão em matar
aquele que seria o próximo rei em Israel. Saul possuía as características carismáticas que se
precisava de um líder ali, porém, seu espírito taciturno e saturnino o impedia de ser também
um bom administrador com capacidade diplomática entre as tribos meridionais e
setentrionais e suas divergências complexas. Atormentado, irá se fixar cada vez mais na
idéia de eliminar seu rival Davi, que primeiramente será inserido nos corredores palacianos
e alcançará de inicio a admiração do próprio rei e também do povo o que gerará a inveja do
monarca. Saul se isolará e seu destino estará selado na última batalha a ser travada pelo
conturbado rei. Sozinho, sem o apoio do seu clero, procura uma necromante cananéia em
En-Dor que lhe desvendará um fatídico fim, o que veremos no terceiro capítulo que
também, nos demonstrará sua marcha suicida com um exército anacrônico em relação a

8
suas configurações de batalha e tecnologia empregada e descrente de sua majestade
debilitada contra a liga de reinos filisteus organizada em sua talvez maior configuração
militar naquele momento. Era o fim de um período curto de primeiro reinado4 em que se
percebe que as mentalidades ainda não tinham uma percepção de coesão entres as tribos.
Sua incapacidade de se unir em um só povo resultou na derrocada violenta e trágica de seu
rei que entrou para História como um indivíduo desobediente e rebelde para com seu deus,
que fora rejeitado por este e abandonado pelos seus pares e por fim terá sua vida às mãos
dos filisteus, demonstrará que o monoteísmo israelita se estabeleceu de forma precária e
constantemente ameaçada pelos outros cultos estrangeiros.

4
Não se tem uma data definida da duração do primeiro reinado. Marcar uma data nos encerraria em
suposições. O mais próximo e aceitável que podemos crer é que tenha tido uma duração no máximo decenal
antes do ano 1000 a.C.

9
Primeiro Capítulo:
As Doze em nome de UM.
A conquista de Canaã e a sobrevivência de Israel.

10
1.1 •Aspectos gerais da Palestina antes da monarquia israelita (o Livro dos Juízes)

A ânsia por uma monarquia centralizada entre as tribos de Israel já estava sendo
construída na mentalidade muito antes da unção que oficializaria a instituição do primeiro
reinado na pessoa de Saul. No livro dos juízes (‫םיטפש‬-shophtym) podemos observar em
uma de suas narrativas um pedido do povo para a sagração de um rei na figura de Gideão:

“Então os homens de Israel disseram a Gideão: Domina sobre nós assim tu, como teu filho
e o filho de teu filho, porque nos livraste das mãos dos midianitas”.5

Muito provavelmente esses “homens” seriam grupos mais abastados que formariam
posteriormente as novas aristocracias surgidas no seio das tribos em virtude da cultura de
sedentarismo, principalmente das meridionais localizadas próximo à costa das quais foram
arregimentadas tropas por Gideão para rechaçar o ímpeto dos midianitas6. Mas, ao rejeitar a
coroa sobre sua cabeça, Gideão demonstra ali que a mentalidade teocrática israelita ainda
estava presente e bastante arraigada em seu imaginário e que perduraria por muito tempo
ainda. Talvez sua capacidade de articulação que se percebe ao texto entre as outras tribos, o
que gera até uma querela por parte de outros líderes como os da tribo de Efraim7, aliada à
sua origem humilde, ou, um exemplo de uma convivência oprimida que não os permitia o
ofício de uma livre colheita (O texto relata que Gideão “malhava trigo no lagar escondido
dos midianitas”8, o que pode ter lhe causado revolta e por fim agir com beligerância),
fossem quesitos que provavelmente tenham sido grandes fatores para esta aclamação. A
figura de Gideão, posteriormente, irá muito contribuir para uma definição de conceito de rei
que até influenciará na escolha definitiva que será o primeiro reinado, período ao qual
estudaremos mais adiante. Outro sintoma que podemos perceber é que o sistema de

5
Livro dos Juízes, Cap. 08, verso 22;
6
Ao que parece, os midianitas impuseram um jugo muito forte aos camponeses israelitas naquela localidade
gerando assim uma revolta.
7
Livro dos Juízes, Cap. 08
8
Ibidem, Cap. 07, verso 01

11
magistraturas das tribos israelitas instaladas em Canaã vai começar a entrar em declínio.
Esse sistema descentralizado de administração iniciou-se mais propriamente visto na
liderança de Moisés com uma gerência com aspectos da práxis egípcia ou mesmo, assírio-
mesopotâmica se observarmos pelo viés das descobertas de posterioridade de edição das
Histórias do Êxodo9. Porém, a atuação mais presente dos juízes foi após a morte de seu
sucessor Josué que não deixou nenhum sucessor direto. Deve se levar em conta que até o
primeiro reinado praticamente, a região da Palestina e parte do Oriente abrangendo aos
Fenícios eram posses do Egipto e que a administração egípcia, estrategicamente, preferia
que estes reinos vassalos que lhe pagavam tributos fossem descentralizados. Ao que parece,
os israelitas adotaram esse sistema de governo das tribos cananéias já ali instaladas, mesmo
tendo em vista que o poder de influência eficaz do faraó nesta região era ínfimo e seus
representantes locais, muitas vezes, corruptos. À medida que o poder de influência egípcio
diminui devido às suas crises internas político-religiosas em Canaã vê-se também o declínio
e por fim o fracasso desses líderes, muitas vezes, anciãos escolhidos entre os seus para o
ofício, havendo exceções como a de Sansão e sua epopéia como juiz da tribo de Dã.
Como um dos últimos juízes, com uma atitude deveras muito rebelde e
inconseqüente com uma forte inclinação à luxúria, Sansão tem uma forte figura do
indivíduo que em meio à crise de um sistema os que estão inseridos neste contexto, às
vezes, optam por elementos mais executivos em suas ações, mesmo que paguem
posteriormente um alto preço por esta escolha. P. Johnson o descreve como um “Hércules
israelita”10 com ações fantásticas e revestido de uma mística de herói divino com uma
força inigualável que só poderia lhe ser tirada se cortassem seus longos cabelos intocados
pelo voto de nazireu, seu vital segredo, descoberto por Dalilah, uma filistéia. Não devemos
esquecer que o livro dos Juízes foi escrito muito posteriormente e é permeado de um

9
O Livro do Êxodo pode ter sido editado no período próximo do século VII nas ocupações Assíria e
Babilônica na região. Isso se baseia em variegada gama de evidências como nome de localidades, títulos
pessoais, fortificações etc., Tais seriam oriundas de uma época muito posterior a do texto. Numa rápida
explicação pode-se contemplar o fato de as narrativas serem de motivo encorajador ou de tradição de uma
“manutenção de origem” do povo num momento de opressão por outro. Era comum aos escribas utilizarem
contextos e localidade mais presentes ao seu tempo adaptando os contos, talvez para impactar o indivíduo
com exemplos palpáveis sobre o acontecido. Para um maior esclarecimento de tal linha de pesquisa ver:
REDFORD, D.B. – Egypt, Canaan and Israel in Ancient times pág. 408-469, TADMOR, H. – Philistia under
Assyrian rule. Biblical Archeologist, pág. 86-103, FINKELSTEIN, Israel e Neil A. S. – The Bible Unearthed:
Archeology’s. New vision of Ancient Israel and the Origin of Its Sacred Texts.Cap. II ;
10
Johnson, Paul – Historia dos judeus, Cap. I- pág 58;

12
elemento mítico diversas vezes e que muito pode ter se perdido em seus relatos que
registram uma época de cerca de quatrocentos anos de magistratura, sobrando apenas
narrativas, algumas vezes, truncadas daqueles que lideraram com maior proeminência e
influência entre os seus naquela época. Porém, sob um viés literário e histórico, por mais
ingênuo e simplório que este livro nos pareça, ele nos demonstra as dores do nascimento e a
construção de uma idéia monárquica, sua justificativa de se entronizar um rei humano que,
por fim, contribuirá até para a composição e amálgama do imaginário messiânico entre os
israelitas que praticamente os acompanhará em sua história através dos séculos. Será
através da ótica de seus escritores que veremos o surgimento de uma nova e assustadora
potência que se expandirá ao longo do vasto império egípcio ameaçando-o diretamente a
ponto de serem rechaçados e por fim empurrados para costa mediterrânea de Canaã
expulsando ou exterminando tribos costeiras cananéias e atormentando as israelitas. Sob o
comando do Faraó Meneptah (1242-1211 a.C. aprox.) as forças egípcias repeliram
violentamente a invasão de tais povos. Mas, não sem pagar um alto preço. A crise no
império egípcio já era bastante considerável eclodindo um verdadeiro colapso em suas
bases no período da Décima Nona Dinastia, durante a qual perderão todas as possessões
asiáticas e seu controle na região.
Mesmo depois com a retomada de sua autoridade tempos depois, o Egipto não
conseguiria mantê-la permanentemente. Era o começo rápido do fim de um grande império.
Estes povos serão chamados pelos egípcios de “Povos do Mar” denominação dada por
Ramsés III (1183-1152 a.C.) para várias etnias indo-européias vindas de variegadas regiões
gregas, dóricas e insulares como Chipre e Creta. Ramsés registra-os como os Danuna
(Daneus), os Washasha, os Sakarusha, os Tjikar (Tsikal) estes talvez sejam o Sikel
11
homérico que teria dado o nome à Sicília e também os Perasata (Pelasata), isto é os
filisteus bíblicos que darão o toponímico de Palestina do qual conhecemos a região até
hoje. O Faraó repeliu a invasão dos povos que intentaram se instalar próximo da Foz do
Nilo. Embora se vangloriasse de suas derrotas como se estas fossem vitórias em suas
12
narrativas de campanhas , não conseguiria a mesma façanha com os que invadiriam a

11
Ou teucros que possivelmente se estabeleceram na ilha de Chipre, Albright, CAH, II: 33 (1966), pág. 25.
12
Era comum aos escribas egípcios registrarem as derrotas do faraó como vitórias no campo de batalha para
os súditos do faraó, ou seja, diretamente aos egípcios nascidos do grande faraó, o próprio Egipto. Tendo em

13
costa Palestina (Perasatas, Tsikal e provavelmente outros em minoria) sendo forçado a
recebê-los como vassalos lançando mão até de mercenários destes povos em suas
guarnições o que demonstra claramente a debilidade do Império Egípcio que praticamente
não mais se erguerá chegando logo e rapidamente seu fim como um império de vastas
extensões marítimas e terrestres após a conspiração que resultará no assassinato do faraó
Ramsés III. Seus sucessores Ramsés IV-XI (1152-1069 aprox.) não conseguiram manter ou
sequer reconquistar suas antigas possessões. Apesar de se ter encontrado ruínas de uma
estátua na localidade de Megido com a inscrição de Ramsés VI denotando ainda de uma presença do
domínio do Faraó na Palestina vê-se que estas já não passavam de ficção pela administração egípcia
deixando logo por completo de existir para os egípcios posteriores, principalmente nestes postos
avançados.

vista de que se tratava de um deus encarnado, este, tanto poderia esmagar seus adversários como permitir que
vencessem.

14
Mapa 1.1: Área de influência egípcia em seu apogeu máximo.

Nesse palco histórico será dado espaço para que as ocupações na Palestina pelos reinos filisteus
fossem cada vez mais ameaçadoras para as tribos israelitas que cada vez mais viam a necessidade de
um poder centralizado nas mãos de um rei. E isso viria mais cedo ou mais tarde com ou sem o
consentimento de seu deus trazido por Moisés e seu monoteísmo representado pelos seus profetas e
sacerdotes do tabernáculo. Estes, por sua vez, estavam atentos para com esta tendência de mudança
nos anseios de uma aristocracia já estabelecida e conseqüentemente entre o povo, o que veremos mais

15
adiante será a participação intrínseca das religiões presentes na Palestina e que muitas se confundem
em sua política de estado na formação do primeiro reinado.

1.2 •Os filisteus na Costa Palestina e sua expansão para o interior ante a crescente
crise entre as tribos israelitas.

Mapa 1.2: As rotas de invasão dos Povos do Mar. Através das pesquisas arqueológicas podemos hoje perceber
que não foram apenas os Filisteus que promoveram a expansão dórica e/ou micênica. Os intentos da expansão
ainda são um pouco obscuros, mas, tudo indica que seria uma tentativa de se quebrar a hegemonia marítima dos
fenícios e o monopólio de mercados como a púrpura, como também novas terras cultiváveis posteriormente.
Com o enfraquecimento da influência egípcia nas terras palestinas as tribos israelitas
tentam buscar um fortalecimento para seu estabelecimento que agora depois da saída do
Egipto passariam de uma cultura nômade para uma sociedade sedentária. Tendo eles
diversos entraves e conflitos com os cananeus que já estavam por muito estabelecidos na
localidade. Porém, os israelitas já se viam diante de maior ameaça que levaria ao fim um
dos mais poderosos impérios à época: O hitita. Com o rechaço egípcio dos povos do mar

16
13
nas proximidades da foz do Nilo, os “Plethi e Krethi” se estabelecerão praticamente na
costa palestina subjugando e por vezes exterminando as populações cananéias locais
causando uma visão por deveras preocupante para as lideranças tribais dos israelitas. Como
vimos antes, o faraó, não conseguindo expulsá-los de todas as possessões de seu império,
torná-los-á vassalos por conseqüência desta impossibilidade devido à crise interna egípcia.
Outro fator que se apresentava como uma ameaça era que os filisteus possuíam o segredo
14
das forjas do ferro, butim dos hititas . Em diversas escavações de localidades habitadas
pelos filisteus podemos observar que estes povos eram verdadeiros sorvedores das outras
culturas às quais tinham sido subjugadas por eles na maioria das vezes. Em tais sítios
foram encontradas diversas bilhas de feitio típico de olarias mesopotâmicas para o consumo
de cervejas15 como também a adoção de carros de guerra cananeus em suas fileiras16. Sua
ocupação não seria apenas de cunho militar, viriam à palestina com o intuito de se
estabelecerem com suas famílias. Seus exércitos vinham na frente enquanto a retaguarda
era composta de carros de transporte das tribos que vieram provenientes da Anatólia,
domínio dos hititas que sucumbiram após o rompimento de suas forças em Tróia no século
XII e outras localidades no interior de seu império posteriormente. Estes invasores por terra
alcançariam e dominariam cidades costeiras importantes como Tarso e Ugarit e mais ao
norte como Carquemis. Já com o auxílio dos que vieram pelo mar, provavelmente de

13
Tais termos eram usados pelos israelitas de forma pejorativa, mas, são de origem inspirada nos nomes
relatados pelo faraó. Era comum aos hebreus utilizarem conceitos e palavras de outras línguas e transliterarem
com outro significado em hebraico.
14
Antes da ocupação da costa Palestina, os filisteus invadiram a Ásia Menor no final do segundo milênio a.C.
Eles irão penetrar pelo território hitita conquistando cidades e povoações vitais para aquele império. É o caso
da conquista da fortaleza de Chattusa às margens do rio Hális. Possibilitando-os adentrar as minas de prata de
Tarso e outras jazidas de minério em que obteriam o segredo do aço. Com o segredo do aço em mãos dos
filisteus, o império hitita não resistiria à voracidade dos avanços de seus invasores tendo por fim sua total
destruição.
15
Como já se sabe através das escavações arqueológicas as primeiras cervejarias foram babilônicas e seu
processo de preparo requeria certos cuidados para o consumo. É que, ao serem servidas, as cascas de cevada
iam juntas e se ingeridas causavam desconforto à garganta. Para isso foram inventadas tais bilhas com uma
peculiaridade em possuírem espécies de filtros em sua estrutura. Certamente, essa grande quantidade de
bilhas, denota que os filisteus, em matéria de bebidas alcoólicas, eram grandes consumidores, como vemos
em concordância com algumas histórias de Sansão (Livro dos Juízes, cap. 14 verso 10; cap. 16 verso 25).
16
Sendo uma arma eficaz em campos de batalhas abertos e planos, os filisteus adotariam o uso dos carros de
guerra cananeus. Porém, ao que parece só se diferenciavam na composição de combatentes. Os filisteus
adotaram o sistema hitita de três ocupantes com arcos ao passo que os cananeus utilizavam o conceito egípcio
de configuração de dois armados de lança. É interessante que Israel, neste período, não tenha feito uso desse
sistema apesar de ter tido contato com ele no Egipto, também.

17
Chipre, conquistariam Sidom junto com Ascalom e Gaza e, por fim, se encontrariam com
aqueles que foram empurrados pelos exércitos do faraó desde o delta do Nilo até acima do
Ribeiro do Egipto, limítrofe das terras de Canaã.
Com uma considerável ocupação da costa que fazia limites com os ribeiros egípcios
ao sul, abrangendo uma imensa e vital parte das terras que seriam de posse das tribos de
Judá e Simeão e constantemente ameaçando as posições costeiras dos danitas, que já
viviam ameaçados pelos cananeus, até finalmente empurrá-los mais para o norte, os
filisteus se instalaram e conseqüentemente interagiam com os povos cananeus
remanescentes desta invasão que muitas vezes eram fadados à servidão pelos seus novos
senhores de terras tal como também para com as tribos israelitas próximas de suas
fronteiras. Os filisteus eram divididos em uma espécie de federação de reinos autônomos
bem estruturada que ante as extremas situações que ameaçavam o bem comum de um reino,
tinham capacidade de organização e apoio militar e logístico dos outros. Diversas
passagens bíblicas e históricas nos relatam que eles eram poderosos e deveras muito
belicosos. Mesmo com uma fragilizada relação, as tribos israelitas não estavam equiparadas
para enfrentar uma possível e cada vez mais iminente ação beligerante de um reino filisteu.
Um dos grandes fatores viscerais para esse temor seria, como já dissemos, o domínio das
forjas e fundições de metais com ligas mais resistentes adquiridas com as técnicas de
17
têmpera do aço que lhes permitiam um monopólio altamente vital para a época
principalmente para uma sociedade em processo de instalação e assentamento. Tal
monopólio obrigava aos israelitas a recorrerem aos ferreiros das cidades filistéias a fim de
fundirem ou mesmo amolarem suas ferramentas de trabalho18. Prática que seria onerosa
para os servos que trabalhavam nas terras de uma elite israelita em aspiração pelo poder

17
O domínio da técnica de têmpera do aço que consiste numa seqüência de calor e resfriamento direto
proporcionaria a confecção de espadas mais resistentes, longas e com melhor flexibilidade ao passo que
praticamente toda a Palestina ainda se achava na primeira fase da Idade do Bronze. Vemos isso no relato
impressionante do armamento do exército israelita sob o comando de Saul na batalha de Gilboa em que o
texto nos informa de que eram equipados “apenas com duas espadas” (Primeiro Livro de Samuel, capítulo 13;
verso 22). Certamente tal relato se referia às novas concepções de armamento adquiridas pela nova tecnologia
monopolizada pelos reinos filisteus, tendo em vista que os israelitas já possuíam armas de bronze que, por
conseqüência deste material ser muito maleável, suas espadas eram bem menores, menos resistentes e
necessitavam de manutenção à lâmina mais dos que as de aço temperado, usadas pelos exércitos filisteus.
18
Para se amolar ou reparar uma ponta de enxada era cobrado cerca de um “PIM”, o equivalente a dois terços
de um ciclo de prata. (Primeiro Livro de Samuel, cap. 13, versos 19-22).

18
cada vez mais presente nas tribos mais abastadas e melhor posicionadas quando da divisão
das terras no passado. Essas tribos mais poderosas eram justamente as limítrofes das terras
filistéias.
Com as melhores terras sob seus domínios, tais elites se estabeleceram em uma
economia de cunho fortemente agrário e também pecuário. A criação de bois e o número de
cabeças de gado do rebanho descreviam o status de alguém naquela sociedade. Comumente
eram as famílias mais ricas que as possuíam que posteriormente se firmarão como a
liderança de suas tribos formando, enfim, a aristocracia em Israel19. As tribos meridionais,
como serão conhecidas posteriormente pela História, por estarem próximas dos filisteus
tinham por conseqüência a facilidade de obter as novas tecnologias, mesmo que com uma
considerável restrição dos fornecedores. Também se deve ao fato de que os filisteus
ocuparam a costa Mediterrânea e cada vez mais adquiriam senão uma superioridade
constante do mercado marítimo, pelo menos uma concorrência com a marinha egípcia
composta praticamente pelos fenícios, grandes navegadores de então.Isso proporcionará um
crescimento destas cidades costeiras na Palestina com um mercado de especiarias que será
usufruído também por estas tribos israelitas que, com seu aumento da produção de suas
20
colheitas escoarão pelos portos filisteus, principalmente a púrpura . A busca de um
acúmulo de terras por estas tribos israelitas e os filisteus será bem visível com a migração

19
O boi foi domesticado pelo homem por volta de 2000 a.C. aproximadamente. Sua domesticação atingiu tal
forma que contribuiria até para os sistemas monetários primitivos, a própria origem de termos como
“pecuniária” e similares, origina-se de “pecus” do latim que significa rebanho de gado. Tal atribuição no
Mundo Antigo certamente denotava também a posição de status do indivíduo em seu meio. Cf. FARIA, Jacir
de Freitas - História de Israel e as pesquisas mais recentes - A domesticação do boi, pág. 18, item 2.5.1.
20
A púrpura era extraída de um molusco denominado múrice (Murex-Muricis, família dos muricídios) que
tinha por habitat a região costeira oriental do Mediterrâneo. Consistia em um pigmento obtido através da
secreção de uma glândula localizada nas imediações do estômago do molusco. Outras versões do processo de
obtenção da púrpura nos falam de exposição do casco deste molusco à luz solar alterando sua coloração
ficando com a tonalidade tão desejada pelos tintureiros. Após a devida quara, seu casco vai para a moenda e o
pó adquirido seria utilizado para a tintura. A região costeira de Canaã era rica de tal molusco. Escavações nos
sítios de Tiro e Sidon revelam enormes espécies de sambaquis dos restos destes, deduzindo de uma produção
de grande porte sistemático de extração da púrpura. Segundo Speiser o significado etimológico de Canaã seria
“Terra de púrpura” no hebraico k’na’an-‫ןענכ‬, como também o nome Fenícia seria proveniente do grego
phoiniks-φοϊνιξ que significa púrpura. A Fenícia era um forte centro de produção têxtil do mundo antigo e
possuía naquele momento a hegemonia deste mercado como de outros de cunho marítimo. Albright e Maisler
ratificam tal hipótese interpretando o termo como “mercador de púrpura”. No entanto, uma outra visão
observada por Millard em concordância a Landsberger, afirma uma impossibilidade da etimologia do termo
estar ligada com a púrpura. Porém, tal observação não apresenta uma consistência que a torne defensável.

19
21
da tribo de Dã mais para o Norte . Pouco se sabe ainda dos filisteus na Palestina, mas,
certamente suas cidades floresceram com o comércio marítimo de especiarias, púrpura,
gêneros alimentícios etc. Cidades onde o comércio internacional é expansivo começam a
crescer demograficamente em conseqüência de seus serviços. Os portos recebiam
constantemente o que havia de mais atual entre os povos envolvidos nas rotas comerciais.
As caravanas preferenciavam as cidades costeiras com seus produtos de melhor
acabamento antes de ingressarem para o interior levando junto também aquilo que tinha
adquirido nos portos para vender a preços mais caros.
Devido a este crescimento, na busca de mais terras, os reinos filisteus começariam
uma expansão mais para o interior ameaçando as tribos israelitas mais uma vez em seu
território. Além da preocupação com o avanço destes, havia também os cananitas e seus
exércitos bem equipados até com carros de guerra ao passo que os exércitos, quando bem
reunidos, o que era raro, entre as tribos israelitas não passavam de uma infantaria de
pederneiras, fundas e diminutas espadas de bronze que como estratégia mais contava com
algum opróbrio acometido a seus inimigos ou ataques de assalto do que embates em campo
aberto, como no caso da coalizão empreendida por Débora, juíza e profetisa que atendia à
sombra de uma palmeira com oráculos, para romper com a hegemonia cananita organizada
na Planície de Esdrelon que praticamente dividia as terras israelitas ao meio. Os cananeus
se organizaram ali numa federação fortemente estruturada que contava até com serviços de
mercenários egeus 22. A Bíblia relata que os carros de guerra cananeus ficaram atolados no
campo de combate em face duma chuva torrencial que alagou os campos e,
conseqüentemente, imobilizando os carros, possibilitou à infantaria israelita uma vantagem

21
A Bíblia não é tão clara quanto à migração da tribo de Dã da costa do Mediterrâneo para o norte acima do
Mar de Quinerete. Ao que parece, a tribo de Judá não tinha relações amistosas desde Sansão, ou antes, quando
estes mesmos o amarram para entregá-lo aos filisteus (Livro dos Juízes, cap. 15 versos de 09 a 13).
Provavelmente, com a costa praticamente dominada pelos reinos filisteus, sua posição estratégica fez com que
estes reinos os empurrassem mais para o norte nas terras de Naftali, o que foi assistido pelas tribos mais fortes
com uma certa omissão. Talvez, as aventuras de Sansão tenham contribuído para o aumento da animosidade
com os filisteus. Outra teoria seria da atribuição à tribo de Dã com os Danuna outra tribo dos povos do mar.
Porém, a sua comprovação é discutível, tendo em vista que o objeto é perceptivelmente sem consistência
científica; cf. F.A.Spina, JSOT, 04 , 1977, pp. 60-71.
22
Como talvez tenha sido o caso de Sísera, general dos exércitos cananeus. Bright, J. – A História de Israel -
A constituição e a religião de Israel primitivo pág. 223.

20
estratégica através do desespero e com a desorganização das linhas de ataque dos carros,
resultando aí num combate corpo-a-corpo entre os exércitos23.
Apesar desta vitória sob o comando de Débora, mantendo uma passagem entre as
tribos setentrionais e meridionais sem a necessidade de se atravessar terras sob o domínio
cananita, não conseguiriam, contudo, uma hegemonia local onde ainda haverão cidades
dominadas pelos cananeus como o caso de Beth-Sã. Porém essa linha de acesso estaria por
vezes ameaçada durante todo o período de juízes. Este conflito, mais uma vez, demonstra a
falta de unidade em que as tribos israelitas se encontravam. Há até situações em aliavam-se
com os próprios cananitas contra as outras tribos irmãs, como o caso de Héber da casa dos
queneus 24. Essa desunião chegará a situações alarmantes até mesmo em querelas entre as
próprias tribos israelitas, como no caso do embate das tribos de Israel e Benjamim. Numa
cena de dantesca barbárie em seus relatos, um levita de Efraim ao se hospedar em uma casa
da cidade de Gilbeá localidade sob domínio dos benjamitas é ameaçado de estupro por
homens da cidade, porém, é oferecida sua concubina aos homens que, narra o texto, é
25
violentada a noite inteira até desfalecer à porta da casa . Revoltado, o levita leva-a para
sua casa (o texto não nos informa se ela estava viva ou morta) e esquarteja-a em doze
pedaços mandando-os a todas as tribos de Israel como uma forma de repudio ao que se
passou ali. O texto informa que ele também teve a oportunidade de se instalar em Jebus,
cidade que posteriormente será chamada de Jerusalém que ainda estava sob domínio dos
jebuseus, mas, que preferiu a segurança duma cidade de uma tribo irmã, onde selou tão
assustador destino.
Essa história, apesar de parecer uma denúncia solta aos textos, revela que a
necessidade de um poder centralizado era mais um clamor à sobrevivência das tribos como
uma unidade tendo em vista que as magistraturas estavam sem nenhuma autoridade,
praticamente. Este “incidente” gerou uma das mais violentas batalhas quiçá a única entre as

23
O Cântico de Débora narra de forma poética os acontecimentos da batalha. Há trechos que relatam do
transbordamento de um ribeiro chamado Quisom-‫ ןושיק‬que arrastou os carros de guerra cananeus, Livro dos
Juízes Cap. 05.
24
Os queneus eram descendentes de Hobhabh-‫בבח‬, sogro de Moisés. Livro dos Juízes, cap. 04, verso 11. É
um texto que aparece de forma solta ao capítulo. Tudo indica que foi inserido muito posteriormente a fim de
se justificar o auxílio de um indivíduo israelita para com um general dos cananeus.
25
Livro de Juízes, cap. 19.

21
tribos. A situação é tão impressionante e reveladora ao mesmo tempo. Ao que parece a
carnificina dos combates não se restringiu apenas à população de guerreiros benjamitas.
Com uma ação violenta, atacam a cidade de Jabes-Gileade a qual não participou do
juramento de ceder mulheres para a tribo vencida, exterminando assim, toda a população
exceto as virgens para lhes oferecer aos benjamitas. Percebemos que existia uma grande
preocupação dos líderes em se perder uma tribo. Certamente os combates exterminaram a
população feminina e infantil da tribo beligerante de forma considerável, mas, não a
masculina. Isso resultaria em um enfraquecimento considerável dessa tribo e o risco de
extinção da mesma com uma perigosa absorção por intermédio de miscigenação com os
povos que não eram israelitas e considerados pagãos para, principalmente, os seguidores do
culto de Yahweh. Para os israelitas o conceito das doze tribos era como uma máxima para
sua sobrevivência como povo. A extinção ou sequer o enfraquecimento de uma resultava
num caos de toda a harmonia criada no imaginário de sua idéia de conquista de Terra
Prometida. Salvar a existência da tribo de Benjamim denotava salvar o elo harmônico da
existência dos filhos de Abraão. Mesmo que esta tenha se desviado de suas regras comuns a
todas as outras, o que às outras, também, não se deu exceção. Havia também o risco de se
perder as terras desta tribo para os filisteus que cada vez mais pressionavam em busca de
terras interioranas em face de seu crescimento e de suas cidades. A migração de Dã para o
norte em virtude desta pressão era um dos exemplos como também a situação de Judá e
Simeão com perdas de terras para os reinos filisteus.
O livro de Juízes em seus últimos capítulos denuncia a necessidade de uma
monarquia centralizada num discurso em que se percebe uma idéia de justificar este regime
monárquico, tendo em vista a sua compilação posterior aos fatos contidos, como antes dito:

“Naqueles dias não havia rei em Israel...”26

26
Livro dos Juízes, cap. 18, verso 01; cap. 19, verso 01. Tais versos nos remetem a idéia de uma necessidade
de se vindicar a monarquia entre as tribos. Sabemos que nenhum rei conseguiu uma unidade total de todas as
tribos mesmo depois do reinado de Saul. Revoltas se tornariam comuns como o caso de Absalão, filho de
Davi e reclamante da herdade do trono da qual era sucessor direto. Em contrapartida será seu irmão, por parte
paterna, Salomão filho de Betsabá quem assumirá o trono. Talvez por ser de linhagem direta de Saul do qual
era neto e deste ter sido desafeto de Davi, vemos que haverá uma tentativa de Davi em vindicar uma linhagem
“pura” vinda a partir dele e de sua tribo, eximindo qualquer atribuição de seu reinado ao de Saul que
posteriormente será considerado infiel e despreparado ao passo que Davi será aclamado rei “segundo o
coração de Deus”.

22
E o livro fecha com um último verso que nos mostra como era mister aos olhos dos
escribas uma unidade não mais em tribos com conselhos de anciãos, mas, neste reino que
poria fim à dispersão das tribos numa tentativa de unificação das mesmas, o Reino de
Israel:

“Naqueles dias não havia rei em Israel; cada um fazia o que lhe parecia bem.”27

Porém, mesmo com situações como essa de violência exacerbada, as tribos ainda levariam
cerca de trezentos anos até alicerçar uma mentalidade monárquica e de unidade para se
imporem no quadro político de sua atualidade. O livro se encerra no período aproximado de
1406 a.C. dando um salto de narrativa até 1171 a.C. aproximadamente em que se começam
os livros que seriam atribuídos ao profeta Samuel (1171-1060 a.C.aprox). Como
praticamente o que sabemos dos filisteus é contado através da ótica dos israelitas, ao que
parece, neste meão da História os filisteus começaram sua expansão lentamente e muitas das
vezes continuavam com a absorção ou uma interação com as tribos de outras etnias presentes
ali. O caso de Sansão com Dalilah certamente não fora o único em que os israelitas se
enamoravam com as mulheres filistéias. A superioridade dos reinos filisteus era um fato ao
qual os israelitas não tinham nenhuma capacidade de sobrepujar com seu sistema tribal. O
segredo das forjas do aço ainda era guardado entre seus príncipes de maneira que ainda
constituía uma grande vantagem estratégica. Eram uma potência sem rivais ao presente
momento. Esta troca entre culturas poderia ser benéfica por um lado, visto que os filisteus se
mantiveram gerenciando seu poder na região pacificamente em contraste com sua égide
belicosa como no início com suas conquistas. Porém, isso não seria visto com bons olhos
pelos seguidores de uma religião que era resquício dos peregrinos do deserto. Os seguidores
de Yahweh.

1.3 •O monoteísmo israelita e a religião cananita.

27
Livro dos Juízes, cap. 17, verso 06; cap. 21, verso 25. Confira nota acima.

23
A constituição da religião monoteísta, sob a ótica da tradição, adotada pelas tribos
israelitas está intimamente ligada com a própria formação destas e sua divisão em doze
tribos ligadas a históricos de ancestrais irmãos por parte de Jacó que por sua vez era
descendente do patriarca Abraão que aceitou adorar a Yahweh tendo como recompensa
28
posses de terras e conseqüentemente ser a semeadura de uma nação . Deve se levar em
conta que a religião de Israel, de maneira nenhuma, pode ser discutida sem contemplar este
universo abstrato de um conjunto de crenças sobre um deus monoteísta anicônico que
abrange todos os poderes em si e não os divide com mais ninguém e é interagido com seu
povo de uma forma inédita naquele momento histórico e de culturas fortemente baseadas
nas práticas politeístas para explicação de suas existências e suas cosmovisões. Para o
israelita, Yahweh tem um intenso relacionamento com seu povo ao qual designou como
proclamador entre as nações da terra e por tal existia a troca de comprometimento em
29
adorá-lo tendo em vista que a conquista da Terra Prometida só seriam alcançadas se o
povo se prostrasse e não observasse a idolatria dos cananeus, principalmente. Porém
existem muitas controvérsias sobre a formação do culto monoteísta ao passo que novas
pesquisas surgem. Crê-se, pela tradição, que ele tenha se estruturado com Moisés em seu
verdadeiro cerne, o que as pesquisas confirmam30 O que antes era apenas uma crença
primitiva de cunho fortemente tribal, agora se vê em construção direcionada a égide de uma
religião instituída e em nível de um povo em si, com um corpus estruturado abrangente e
inerente ao que podemos dizer estrutura de uma sociedade. Ter um deus não era apenas
uma forma de mera crença de gratidão por uma colheita ou pela fertilidade feminina,

28
A divisão das doze tribos se dá através dos filhos de Jacó que são respectivamente: Rúben, o primogênito,
Simeão, Levi (tribo atribuída a Moisés como descendente desta), Judá, Issacar e Zebulom. Sendo estes filhos
com Lia; José e Benjamim, filhos com Raquel; Dã e Naftali, filhos com Bila, serva de Raquel e Gade e Asser,
filhos com Zilpa, serva de Lia. Livro do Gênesis, cap. 35 versos 23-29.
29
A criação deste imaginário remonta a promessa feita por Yahweh a Abraão quando este se prostra a adorá-
lo. Para seus seguidores das doze tribos tais terras estariam situadas em Canaã e os povos que lá já se
achavam assentados eram invasores idólatras que deveriam ser expulsos para o que posteriormente se
configuraria na idéia de um “Israel pleno”, onde só teria espaço a religião javeísta dos seguidores comandados
pelos seus profetas mais radicais, dentre esses estaria Samuel.
30
Ainda não existem relatos e nem tão pouco evidências provenientes das escavações de uma prática de culto
a Yahweh antes do período de conquista e assentamento nas regiões da Palestina, o que indica que,
certamente, viera com os saídos do Egipto. Porém a grande dificuldade é justamente encontrar provas de culto
devido à ausência de imagens de Yahweh. O que em contrapartida prova da veracidade de seu culto
monoteísta anicônico ter-se mantido incólume, em relação a representações físicas de seu deus.

24
31
principalmente dos nascidos de sexos masculino para os quais a mortalidade era maior
mas, uma raiz de sua origem como povo, ou seja, um status quo para uma identidade de
existência. Este deus está intimamente ligado com seus ancestrais e suas conquistas no
passado. Sua ligação é por parentesco, é o gerador de vida, enfim o próprio criador de tudo
e do homem. Alguns estudos afirmam que as práticas mosaicas tenham sido influenciadas
32
por um culto monoteísta anterior no próprio Egipto instituído pelo faraó Akhenathon .

31
Cultos de fertilidade aparecem em praticamente todas as sociedades humanas, embora em certos casos
estejam mais aflorados, estes cultos eram muito comuns entre os cananeus e foram absorvidos pelos israelitas,
pois esta prática esta intimamente ligada também à colheita e seu sucesso. No período das magistraturas e até
mesmo antes no período de cativeiro no Egipto, entre os israelitas foi praticamente inevitável à adoção de tais
práticas de culto, tendo em vista que os israelitas eram fortemente estruturados em uma cultura de regime
agrário e certamente todos os seus ritos giravam em torno disso. Tão logo vemos essa absorção até nos
escritos. Como é o caso da epopéia da criação do gênesis em seus primeiros capítulos em que existem mais
aspectos matriarcais na cena da criação do homem do que patriarcais. A idéia de moldar do barro remonta às
primeiras sociedades paleolíticas que eram fortemente regidas pelo sistema matriarcal em que uma das
principais funções era a prática de olaria; era a mulher que manejava o bastão e o cajado e ao homem restava
o provimento de caça sob a administração da mulher que também era a educadora e sacerdotisa dos cultos
daquele grupo. Esta narrativa tem influência das narrativas mesopotâmicas e seus contos de origem do
homem. Temos exemplos até na etimologia de variegada gama de línguas em que a palavra que designa
“mãe” é da mesma origem, quiçá a mesma palavra, que designa “lar”. No egípcio o hieróglifo que designa
mãe pode ser uma conjunção dos hieróglifos de casa e/ou cidade. Munford, Lewis-A cidade na História-a
domesticação e a aldeia, pág. 19 1998.
32
Amenófis IV (XVIII dinastia – 1372 – 1354 a. C) no quarto ano de seu governo, instaurou uma profunda
reforma religiosa no Egipto adotando o culto único ao deus Athon mudando seu próprio nome para
Akhenathon que significa, “O que agrada a Athon”. Com o forte crescimento do poder dos sacerdotes do
clero tebano de Amon, sua ação de reforma vem na tentativa de centralizar o poder em suas mãos desviando
da linha de influência que o clero amoniano conquistara e o exercia sobre a figura do faraó. Sob pressão
destes mesmos, Akhenathon decide então transferir sua capital, abandonando Tebas e seguindo para onde
construiria sua nova capital e a chamaria de Akhethathon (“Horizonte de Athon”), atual Amarna. Sua prática
monoteísta como culto de estado durou o tempo de seu governo. Após sua morte foi restaurado o culto
anterior, porém, é bem provável que os sacerdotes remanescentes de seu culto tenham se espalhado e
secretamente passado seus ensinos. É bem provável que Moisés tenha tido contato com algo deste culto.
Existe também a possibilidade muito difundida de que Moisés tenha sido egípcio e não hebreu face ao seu
nome ter uma origem mais provável do egípcio (seu nome deriva de MoSu que signa “a criança, o servo,
nascido de” é uma parte de um nome completo, como Ramsés que significa “Nascido de Rá”, ou com as
outras conotações acima. A tradição hebraica o atribui ao verbo Masha - ‫ ךשמ‬que significa “tirar” numa
alusão à fala da filha do faraó que “das águas o tirou”. Livro do Êxodo, cap. 02 verso 10). Freud em sua obra
“Moisés e o monoteísmo”, afirma desta origem egípcia, porém suas afirmações podem estar baseadas nos
escritos de Manoto (250 a.C. aprox.) que afirmava que ele tinha sido um sacerdote renegado do culto a Athon.
Porém deve-se levar em consideração o momento histórico em que ele estava inserido e a tendência de
helenização entre os judeus. Moisés era uma figura que causava fascínio aos gregos e legar nascimento ao
profeta principal de cultura hebraica a um povo como o egípcio era de praxe dos judeus helenistas (os
egípcios causavam fascínio aos gregos com sua cultura exótica a seus olhos, influenciando obras como as de
Heródoto). Isto será violentamente combatido depois em Israel eclodindo revoltas como as dos Macabeus em
167 a.C. quando a helenização sob o domínio de Antíoco IV Epifânio (175-164 a.C.) chega a extremos em
Israel, impondo práticas de cultos gregos e saqueando o Templo (Josefo, Flávio, História dos Hebreus,
Antiguidades Judaicas, Livro XII cap. 07) . Não se sabe, portanto, se Moisés realmente absorveu o culto a
Athon; para Y. Kaufmann, as tendências monoteístas do culto israelita eram distantes da visão do culto
egípcio ou mesmo do culto a Marduc na Mesopotâmia, pois mesmo sendo cultos a uma entidade como
exclusiva, não deixaram de ser menos pagãos. A exemplo do grande hino a Athon onde o Sol é considerado

25
Com as pesquisas mais recentes temos comprovação de que nas terras de Canaã antes e durante o
êxodo bíblico, já havia comunidades de hebreus entres os cananeus, pois estes não comiam carne
de porco ao passo que os cananeus sim33. Porém, é praticamente certo que o culto de Yahweh
tenha sido gerado pelos que saíram do Egipto sob a liderança de Moisés que peregrinou com este
povo pelo deserto por volta de uma geração34 em que se constrói uma identidade deste povo
através de um culto monolátrico com aspectos faraônicos em sua pessoa35 tendo em vista a
mentalidade destes, ainda estar habituada a uma idéia de um representante de caráter quase divino
de um deus como provedor de uma ordem social e de uma identidade como um povo e para isso
tinha-se toda uma construção em torno dessa entidade materializada em alguma imagem
principalmente. Algo palpável e visível, como um íntimo a casa, um portador das vontades e
histórias de seus ancestrais que com ele se firmam em um elo. Ter um deus representava ter
ordem e estar livre do caos em uma sociedade ou passível da selvageria, enfim, era inerente à
existência ordeira para aqueles homens. Deus, neste pensamento, está mais ligado ao elo com os
antigos a fim de se ter uma proximidade e identidade com sua origem do que uma entidade em si
que apenas seria adorada. Podemos ver que esse processo de peregrinação pelo deserto é
considerado pela tradição como um preparo e reforço deste amálgama em tal idéia, o que pode
ser verdade.

fisicamente uma divindade ou mesmo sua representação corpórea. Sua força é constituída principalmente de
elementos do paganismo. O rei, por sua vez, é filho do Sol, nascido de suas víceras, seu disco é sempre
representado por uma serpente. O rei se intitula como o “deus bom” criador de tudo que a terra precisa e seus
viventes. Essa deificação da pessoa do rei já é o bastante para vermos que este culto ainda sofreria com
práticas pagãs em seu meio apesar de tentar diminuir ou mesmo trazer a adoração a um deus.
33
Em alguns sítios arqueológicos foram encontradas ossadas de diversos animais que eram servidos como
alimentos. Em algumas localidades era curioso que não havia ossadas de porcos, o que se supunha que
certamente não havia cultura destes animais ali, ao contrário de outras localidades próximas que se achavam
diversas ossadas suínas. Os Habirus (um termo para hebreus) eram conhecidos pela prática de abstenção de
carne suína, o que se tornaria um costume de um povo inteiro.
34
Uma geração era computada em quarenta anos. Esta prática de cálculo era comum entres povos fenícios
quanto, também, aos cartagineses que não possuíam uma tradição de uma forma fixa de escrita eficiente. Com
a adoção do alfabeto fenício e sua adaptação para o hebraico, os hebreus certamente teriam absorvido esta
prática; cf. Albhight, CAH, II: 33 pág. 39, (1996).
35
Os hebreus que saíram para o êxodo não estavam habituados com a idéia de culto mosaica ao passo que no
decorrer dos textos vemos aspectos e atitudes que compunham a pessoa de Moisés com o faraó, aliada ainda a
uma não percepção de Yahweh como um deus sem forma o que era inadmissível à mentalidade de então. Um
exemplo nos textos se vê ali quando Moisés sobe o monte Sinai e sua demora à descida causa angústia e surge
a necessidade de se criar um novo deus tendo em vista que aquele povo mais seguia a Moisés e
conseqüentemente seu deus do que o contrário (Livro do Êxodo cap.32).

26
Mapa 1.3: Quando da divisão das terras pelas tribos israelitas, algumas mais proeminentes
adquiriram mais territórios que outras. Embora devamos considerar que a divisão clássica
acima não tenha sido colocada a pleno pelos conquistadores devemos entender que esta
era a visão do imaginário israelita da época. Na verdade, israelitas e cananeus conviveram
juntos com suas cidades e vilas próximas umas das outras e as terras consideradas de Judá
eram constantemente ameaçadas e por vezes dominadas próximo à costa pelos filisteus.

Durante os quarenta anos, aquele povo é ensinado a adorar esse deus e percebe-se o
quão difícil o fora e que não seria totalmente alicerçado na mente do povo e suas tribos. Os

27
desvios idolátricos são vários e aumentam quando estas tribos adentram o território
palestino em busca de assentamento. O processo, portanto não foi fácil para se constituir o
deus com aspectos de onipotência e outros atributos. O âmago de sua construção é
principalmente o decálogo mosaico apesar de muito de seu texto ter sido compilado na
forma final em período muito posterior como o caso dos primeiros capítulos do Livro do
Gênesis36. Este problema para com a materialização divina deixava lacunas profundas no
pensamento geral e de certo, posteriormente, propulsionou uma crescente intelectualidade
ou pelo menos uma alfabetização em massa do povo em Israel a fim de justamente entender
aspectos intrínsecos como a da imagem e semelhança do homem para com Deus. De certo,
era difícil entender tal pensamento devido ao próprio Yahweh ser um deus amorfo e que
não podia ser representado de forma alguma, o que era veementemente proibido com penas
violentas se alguém intentasse manufaturar quaisquer representações dele. Esta difícil
intelectualidade e a impossibilidade de visualização divina não evitarão, porém, de que a
Bíblia seja permeada por diversas manifestações antropomórficas da divindade e de seus
comandados (anjos, serafins etc). Porém, Paul Johnson afirma que essa idéia de concepção
do homem semelhante a seu deus, mesmo este sendo abstrato é um cerne da religiosidade
hebraica. Está intrínseca à sua moralidade. Era vital que se mantivesse a unidade e isso
seria conseguido com mais afinco através da força provedora de um ser divino que já vinha
sendo estruturado bem antes do deserto. Quando os israelitas se estabeleceram, após uma
seqüência de conquistas contra primeiramente os cananeus, muitas destas comunidades não
foram por completo exterminadas ou banidas, ficando em uma espécie de convivência não
muito pacífica.
Não demoraria muito para que os sacerdotes do culto monoteísta se manifestassem
contra essa interação perigosa. Era sentido que o culto a Yahweh tinha fraquezas dentro do
povo que ainda não estava habituado a cultuar algo abstrato. O risco de inserção e
sincretismo rondava o sagrado tabernáculo de Siló com sua Arca da Aliança, uma relíquia
divina que era carregada até nas batalhas como um amuleto e símbolo da presença de seu
deus ali no meio do exército37 e seus ensinamentos. Nela estavam contidas relíquias de

36
Ver nota 29 capítulo 01
37
Era comum que os exércitos levassem seus deuses para a batalha a fim de serem abençoados e protegidos
por estes ali no combate. Certamente, os israelitas absorveram essa prática após a morte de Moisés tendo em
vista que ele estava presente às batalhas como símbolo de presença divina para com o exército. A arca era

28
grande valor emblemático38. A cultura religiosa dos cananeus era rica nos ritos de sacrifício
até de infantes39, praticavam a necromancia e sua religião era de cunho material, ou seja,
possuíam representações de suas entidades que permeavam o imaginário de seus
seguidores. Logo os israelitas se sentiriam seduzidos com as histórias e feitos de Baal40 e
demais deuses do panteão cananeu como também as práticas de necromancia como
veremos mais adiante que isso não só abrangerá até aos membros realengos. Como vemos
no mapa da divisão das terras41 as terras foram divididas em uma situação estratégica
desfavorável em relação de comunicação entre as tribos israelitas. A exemplo da situação
de Débora que vimos antes42 esse seria um dos diversos empecilhos que dificultavam a
ligação. Havia cidades que eram separadas entre si por localidades habitadas pelos
cananeus e conseqüentemente os israelitas interagiam ali com eles, quando não se batiam.
A figura dos juízes, em época nenhuma foi respeitada em sua totalidade em comum por
todas as tribos. As setentrionais não se relacionavam com as meridionais consideradas
inferiores ou infiéis por ambos. A proximidade com os cultos cananeus será maior quando

representação dessa presença. Um pouco contraditório se observarmos por um prisma de que havia certos
aspectos pagãos ali. E isso era vindicado pelos próprios sacerdotes. Porém, devemos levar em conta que a
arca era apenas um referencial desta presença, ao que parece, e não a pessoa divina em si. Os hebreus ainda
estavam na necessidade intrínseca ao ser humano de ver algo material para crer, ou seja, não tinham absorvido
a idéia de um deus abstrato pregado pelo seu monoteísmo.
38
Na Arca da Aliança estavam contidas as tábuas do decálogo em pedra, uma porção de maná do deserto e a
vara de Arão.
39
Muitos israelitas praticavam cultos cananeus. Dentre tais cultos estava o de Moloque. Numa descrição
sobre a imagem de Moloque, D. Kimchi, em seu comentário sobre o verso dez do capítulo vinte e três do
segundo Livro dos Reis nos fala que ela era feita de bronze e oca dentro da qual acendia-se fogo para as
cerimônias. A imagem estava com os braços estendidos e quando estas ficavam quentes, o sacerdote de
Moloque apanhava a criança de poucos meses de vida das mãos do pai e a colocava nas mãos da imagem, ao
som de tambores evitando assim que o pai ouvisse os gritos do filho sacrificado.
40
O termo Baal (‫ )לעב‬é utilizado para várias entidades da região e até fora da Palestina. Sua origem
etimológica remonta do ugarítico com o sentido de “senhor” mais voltado para divindade. Tal raiz
permaneceu em outras línguas semíticas posteriormente com seu significado preservado ou quando seguida de
um genitivo que denota o sentido de “dono”. Para os cananeus, Baal representava o deus da fecundidade e da
tempestade. Era representado comumente na figura de um touro. Seu culto é originário do hicsos que
posteriormente o trouxeram para o Egipto quando de sua dominação por estes. Entre os hicsos sua
representação era provida de um chapéu cônico com uma longa fita e chifres de touro, sendo rapidamente
identificado com Seth, o deus sombrio do antigo panteão egípcio. Aos textos bíblicos, o termo aparece
também para conotação de “cidadãos, homens da cidade” (Livro dos Juízes, cap. 24, verso 11), em nomes de
cidade como o caso da cidade de Jerubaal (Livro dos Juízes, cap. 09, verso 16). Há presença em textos
egípcios como as tábuas de Alalakh (século XV a.C.) como também nas cartas de Tell-Amarna e nos textos
ugaríticos (século XVI a.C.). Lurker, Manfred – Dicionário de deuses e demônios – 1993; Albright, W. F. –
The north-cananite poems of Al’eyan Ba’al and the “Gracious Gods”, JPOS, 14:101-40. Harris, R. Laird,
et.al. – Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento – 1998.
41
Confira o mapa à página 16.
42
Página 24, cap. 01.

29
os filisteus começam a ocupar em peso a costa e tomando terras à força dos israelitas,
principalmente da tribo de Judá, e dos cananeus costeiros que não se sujeitaram irão se
refugiar as cidades cananéias mais ao norte.
A invasão dos filisteus também se fez sentir para os cananeus como para os israelitas
bem como sua expansão para o interior. A Bíblia não é clara com relação a alianças antes
do período monárquico entre estes povos para uma espécie de coalizão contra os reinos
filisteus, mas, que uma proximidade com a religião cananéia entre os israelitas é, por
deveras, bastante presente nos textos. Uma teoria seria a de afirmar que estes grupos foram
absorvidos ao passo que perdiam suas posses principais, enfraquecendo-se enquanto as
tribos israelitas das montanhas se organizavam contra a crescente ameaça que em breve
acamparia ao sopé de suas terras. Para os religiosos javeístas era por muito preocupante
essa interação, a ponto de até os escribas tentarem ocultar situações como a origem do
levita que erigiu altar a um ídolo para um senhor chamado Mica43. Com tamanha falta de
controle que atingia até os membros de uma classe dedicada apenas para os ofícios e
observância do culto israelita, não seria difícil que as tribos começassem a enfraquecer e
sua unidade já cambaleante e precária constituir num risco que seus inimigos não deixariam
de perceber. Em todo o momento desde antes mesmo do estabelecimento das tribos na
Palestina os israelitas apresentavam a idéia de uma monarquia ou de um comandante que
possuísse a liderança de um rei, mas, que também fosse sacerdote ou profeta de seu culto.
Não se sabe ao certo o porquê das magistraturas assumirem depois da morte de
Josué44. Ao que parece, a influência dos povos cananeus, como já dissemos, tenha
contribuído para uma visão de administração sem um rei. Os reis destes costumavam ser
também sacerdotes de seus cultos. Isso era combatido pelos seguidores de Yahweh que
acreditavam que Deus era o governante e seus profetas e sacerdotes, portadores de seus

43
Os levitas eram oriundos da tribo de Levi da qual também era Moisés. Tinham atribuições de zelo para com
o tabernáculo e observância do culto em Siló. Mas, pelo que vemos alguns já se tinha corrompido em
pequenas situações até enfim a de idolatria. No texto original de Juízes, cap. 18, verso 30 o escriba se utiliza
de uma inserção perceptível ao inserir na estrutura do nome de Moisés (‫ )השמ‬a letra “N” transformando a
palavra em “Manassés” (‫ ;)מ”נ”הש‬uma outra tribo, que curiosamente, sua etimologia vem do termo
“esquecer”. Mas, como não poderia modificar o texto totalmente, vemos que a linhagem de descendência
vinha de Moisés. (Livro do Êxodo, cap. 02 verso 22). Seria inadmissível para os religiosos que estas práticas
tenham vindo de alguém da mesma linhagem de Moisés. O texto é apresentado de forma alarmante para com
que acontecia entre as tribos; vê-se a crescente perda de força dos magistrados que nesta situação não
aparecem com eficácia, como também da moral questionada dos levitas, em face de tal atitude deste
indivíduo.
44
1427 a.C. aprox.

30
decretos e vontades. Para a mentalidade da época o rei estava ligado muito intimamente
com a pessoa divina a qual ele prestava culto. Os reinados mesopotâmicos, por exemplo,
eram constituídos por reis-sacerdotes. Porém, a ameaça dos reinos filisteus e seu sistema
federativo bem organizado irão pesar nos anseios das tribos que começavam a sentir a força
de um inimigo violento e letal. Pelas datas, a ocupação da costa foi rápida e eficaz, o que
lhe gerava temor. Sua tecnologia mais avançada da arte de fundição os colocava em
superioridade bastante elevada, ante as farândolas desorganizadas e mal equipadas dos
israelitas. Nem os carros de combate dos reinos cananeus os conseguiram rechaçar sendo
aniquilados sem piedade. Seu estabelecimento foi de tal forma que até o toponímico
originou-se desse povo do mar45. Depois de estabelecidos e organizados ao longo desta costa,
os filisteus começariam a avançar para o interior onde se encontravam as tribos setentrionais que
habitavam a parte alta da região. Essa nova expansão pode ser explicada também por outro metal
mais valioso: o ouro. Os israelitas tinham adquirido uma boa quantidade de ouro proveniente de
butins das cidades que eles tinha subjugado quando do período chamado de Conquista de Canaã46.

Figura 1.1: Cena de batalha de Ramsés contra os Povos do Mar. Existem muitas representações em
templos e palácios egípcios sobre as lutas contra tais invasores. Certamente suas refregas foram muito
violentas. Numa dessas representações vemos que os filisteus eram dotados de maior estatura do que os
egípcios. Podem-se ver também os carros puxados por bois, alguns com integrantes representados por
uma estatura menor que a dos guerreiros. Possivelmente, seja a presença de crianças e mulheres.
Quando as tropas comandadas por Moisés contra os midianitas venceram há relatos de que se
apossaram de mais de dezesseis mil setecentos e cinqüenta ciclos47 em variegadas formas de jóias,
brincos, braceletes braçadeiras, tornozeleiras e até anéis de sinete48. Para reter o avanço e por fim as

45
O toponímico Palestina origina-se de “ph’lishthym” - ‫ לפּתׁשםי‬que significa “País dos filisteus”, um dos
povos do mar que se expandiram pelo Mediterrâneo. Provavelmente não só os filisteus foram os que
ocuparam a costa Palestina, mas, certamente foram os de maior proeminência na região. Conseqüentemente,
os outros povos que ali se estabeleceram receberam por atribuição tal alcunha.
46
1250 – 1200 a.C. aprox.
47
Aproximadamente três mil libras de ouro. Sutherland, C. H. V., Gold: Its Beauty power, and allhure. 1959,
pág. 57

31
Mapa 1.4: Rota de percurso da Arca da Aliança ao campo de batalha e sua perda. A recuperação seria
posteriormente no reinado de Davi.

incursões dos filisteus em território israelita reúnem-se tropas que marcham às proximidades de Afec
naquilo que seria o golpe fatal na liga tribal. Com o intuito de se demonstrar que Yahweh estava com
os exércitos reunidos das tribos, tendo em vista a derrota inicial relatada nestes combates, os
sacerdotes levaram a Arca da Aliança para o campo de batalha à frente da tropa. Como sempre, as
tropas filistéias estavam mais bem preparadas e organizadas. O resultado foi um verdadeiro massacre
das tropas israelitas e a captura de sua relíquia mais preciosa: A Arca da Aliança. Com a morte dos
sacerdotes Hofni e Finéias, que estavam ao lado da Arca, é percebido tamanho desespero nos relatos
da casa de Eli que, quando ciente da captura e, por conseguinte a derrocada total dos exércitos de seu
povo, cai de sua cadeira quebrando-se-lhe o pescoço49. Sua nora ao saber da notícia do malogro junto

48
O butim dividido dessa cidade é impressionante, não só de ouro, mas, o número de alimárias e pessoas é
considerável. Os anéis de sinete denotam de que a cidade era um grande entreposto de comércio. Tais sinetes
eram utilizados para selar mercadorias que eram transportadas em sacos de tecido em que suas bocas eram
seladas com uma espécie de lacre em argila que recebia o sinete do responsável e/ou o sinete do oficial
aduaneiro. Eram utilizados também para negociações e autenticação de contratos, bem como para cartas que
eram transportadas em envelopes de argila, cf. acervo das escavações de Ur, British Museum itens 82199 e
131449. Era uma prática antiga, remonta do I milênio a.C. na Mesopotâmia e os envelopes, do período Ur III
(2112-2004 a.C. aprox.). Os anéis de ouro, certamente, seriam dos mercadores mais abastados ou mesmo de
oficiais de alta patente. Livro dos Números, cap. 31, versos 25 a 54.
49
Primeiro livro de Samuel, cap. 04

32
com a da morte de seu marido deu à luz prematuramente dando um nome à criança relativo aos
acontecimentos50. Esses relatos, apesar de singulares, representam uma idéia do medo que seria
levantado agora que os filisteus possuíam seu bem mais precioso e do qual cria-se que a presença de
Yahweh estava ali. Perder o deus ou alguma relíquia deste denotava em fracasso e até a destruição
deste povo. O clamor por uma monarquia então chegava ao ápice; da necessidade de um monarca era
mister para a sobrevivência das tribos. Porém, encontrar um indivíduo seria o grande desafio. Vemos
que, mesmo devido às circunstâncias, ainda havia relutância, apesar das situações presentes, por parte
dos sacerdotes. Mas, cedo ou tarde estes saberiam que tinham de ceder. Tudo isso era visto por um
jovem sacerdote que se tornaria um dos mais polêmicos e importantes líderes religiosos do culto
javeísta e que seria o organizador de uma monarquia israelita: Samuel.

50
A criança recebeu o nome de Icabod ‫דובכ‬-‫ יא‬que significa “o sem glória”, numa alusão de que esta tenha
deixado Israel com a captura da Arca pelos filisteus.

33
Segundo Capítulo:
Espíritos maus e harpas.
O nascimento do primeiro reinado.

34
2.1
O período de transição.

Após a humilhante derrocada das forças militares israelitas nas proximidades de Afec
(1045 a.C. aprox.) ante o poderio filisteu e conseqüentemente a perda da Arca da Aliança
para seus inimigos o sistema de magistraturas, praticamente, teria se extinguido se não
fosse a persistência de Samuel na liderança precoce entre o colegiado dos profetas e a
administração das doze tribos que se encontravam numa grave crise depois do embate.
Samuel é um personagem de interessantes aspectos. É dedicado cedo aos ofícios religiosos
por sua mãe, quando logo após o desmame ela o entrega aos cuidados de Eli, um profeta
que ainda tentava manter a força do culto a Yahweh promovendo os rituais em Siló onde se
encontrava a Arca. A Bíblia relata que Samuel já cumpria com os ofícios desde criança e
que sua mãe todo ano lhe fazia uma nova estola de linho51. Certamente, Eli ao receber o
menino, ele pessoalmente, deva tê-lo treinado para o sacerdócio e a profecia moldando seu
caráter a fim de que o substituísse após sua morte. Samuel cresceu num contexto de
recrudescimento da ameaça dos inimigos filisteus e sua ofensiva para o interior, bem como
da queda vertiginosa do prestígio dos juízes e também dos sacerdotes, principalmente da
casa de seu mestre, em que seus filhos eram conhecidos por suas injustiças e deliberações.
A personalidade de Samuel já era conhecida antes mesmo de assumir a liderança
com a morte de Eli, quando ele assume então o comando da casa dos profetas após a
desastrosa campanha. Em sua juventude ele começa a peregrinar pelas terras e ver um
povo descrente de seu deus e prono à adoração de outros ídolos o que ele após a
recuperação da Arca irá violentamente tentar extirpar do meio israelita. Samuel pertencia à
mesma seita de que Sansão foi adepto. Os nazireus tinham por características aspectos
selvagens, não cortavam seus cabelos e costumavam vestir poucas roupas, eram fortemente
iconoclastas beirando às vezes aos extremos da violência e intolerância. Seu monoteísmo
extremado era proveniente de suas vagâncias pelo deserto e sua aridez inóspita. Samuel
certamente assistiu a todos aqueles momentos que marcaram a vida e o cotidiano das tribos,
inclusive a dele mesmo. Após a queda do templo de Siló e sua possível destruição pelos

51
Primeiro Livro de Samuel, cap.02, verso 19.

35
invasores52, volta para Ramá onde ganha fama de profeta e oráculo divino. Vai atuar como
juiz sendo o último deste sistema antes da monarquia que ele mesmo a pedido do povo irá
vindicar. Numa sociedade teocrática como a das tribos de Israel em que o profeta era o
vínculo com o deus, Samuel tinha por certo um papel intrínseco e que cada vez mais iria se
despontar nesta liderança.
Os profetas eram chamados de roeh (‫ האר‬- vidente) sendo, posteriormente,
denominados curiosamente de nabhi (‫ )איבנ‬53. Estes profetas promoviam oráculos a práticas
deveras curiosas de adivinhação como o Urim e Tumim54 e administravam os sacrifícios de
culto, suas práticas, como também eram exímios analistas em matéria de política. Era deles
que se esperava a notícia de que a colheita ou se uma guerra teria sucesso ou não. Para isso,
estavam sempre informados de tudo o que ocorria ao seu redor e nos outros povos, seus
cultos e demais estruturas administrativas e militares. A crença do povo em seu deus era
movida, principalmente, por estas revelações partidas por estes homens. O que também
ocorria nas outras religiões. De certo, o poder dos profetas era considerável e suas
opiniões eram, na maioria das vezes acatadas pelos líderes e seus subalternos. Eram
verdadeiros arautos de Yahweh numa teocracia de um deus-rei invisível, enfim, estavam no
centro das decisões de governo para as doze tribos. Mas, as conseqüências decorrentes ao

52
Não existem evidências arqueológicas de que o santuário de Siló foi destruído, apesar de citado em alguns
livros como do profeta Jeremias (Livro de Jeremias, cap. 07, verso 12) e num salmo (Livros dos Salmos, cap.
78, verso 60). Apesar destas passagens, Siló não desempenharia nenhuma importância posterior.
53
O termo é de étimo obscuro e bastante controverso. O antigo Léxicon de Genesius editado por Tregelles o
traduz através do verbo “borbulhar”, “ferver e derramar” (nabha’- ‫ )עבנ‬o que, por conseguinte se entende por
“extravasar as palavras”, “profetizar”. Essa origem, defende o léxico, só teria a mudança da letra ayn “‫ “ע‬por
aleph “‫”א‬. Ewald, Haevernick e Bleek também concordam com a tradução acima, cf. Samuel, Davidson,
intruduction to the Old Testament, v.2, pág. 230. Como também atesta Oehler, cf. Old Testament Theology,
pág. 363. Ao que parece, o termo serviria para diferenciar o profeta javeísta de demais videntes. Samuel em
suas pregações deixava clara sua aversão às outras práticas de cultos e adivinhações.
54
O termo Urim (‫ )םירוא‬deriva da palavra “luz” em hebraico (or – ‫)רוא‬. Esta palavra ocorre cerca de sete
vezes na Bíblia Hebraica aparecendo apenas na forma plural. Urim também tem significado de Oriente.
Embora seja comum aceitar que sua origem etimológica seja proveniente de luz em hebraico que foi
absorvido do ugarítico “’r” que signa “ser luz”, há outras possibilidades como uma proximidade com os
termos “amaldiçoar ou arrancar”, tendo em vista se considerarmos que somente em tempos pós-exílio
babilônico as palavras aparecem sem o artigo que definia o seu sentido respectivo para “luzes” conforme
também da tradução da LXX (photismos – φωτισµός) O termo sempre em companhia de Tumim (‫ )םימת‬que
provavelmente tenha um significado próximo de “perfeição”. Na verdade, Urim e Tumim não possuem na
Bíblia explicação consistente ou, sequer, satisfatória, com exceção de que eram ostentadas no peitoral sobre o
coração de Arão (Livro do Êxodo, cap. 28, verso 30). Alguns estudiosos presumem de que eram uma espécie
de dados mágicos ou discos de adivinhação próximo de uma prática de “cara ou coroa”. Josefo nos prescreve
suas características como um oráculo de doze pedras que deveria brilhar quando Israel estivesse vencendo
uma batalha (Antigüidades Judaicas, cap. 03, versos 08 e 09); a tradição talmúdica sugere-nos que a Shekinah
iluminaria certas letras dos nomes das doze tribos para soletrar o oráculo (Yoma cap. 73, ainda que cinco das
vinte e duas consoantes não apareçam nestes doze nomes).

36
longo do tempo faziam cada vez mais com que as vontades e anseios de uma monarquia
humana e centralizadora viessem sobre as tribos. Os profetas o sabiam muito bem. Porém, a
princípio, a visão de Samuel era de que ainda se mantivesse o poder das magistraturas,
opinião cada vez mais repudiada pelos líderes tribais que aspiravam por uma monarquia
centralizada para, principalmente, rechaçar as forças invasoras dos reinos filisteus. A
corrupção da casa dos profetas também não ajudava a manutenção por parte de Samuel
desta continuidade. Seus filhos, posteriormente, serão corruptos e isso não será
despercebido pelos notáveis e líderes. Ficava difícil manter o discurso e é algo bastante
interessante que se tenha demorado um tempo considerável entre a captura da Arca e a
unção de Saul, o primeiro rei dos hebreus55. Porém, podemos perceber a extrema cautela
em se escolher um líder tendo em vista que a desunião das tribos era muito presente. Outra
grande dificuldade também seria a da escolha desse líder e donde seria este oriundo. Se sua
crença era firmada nas práticas javeístas e se este estaria disposto a promover a limpeza que
os profetas, principalmente, na gestão de Samuel tanto almejavam para a construção de seu
Israel pleno imaginário.
Com uma casa profética estremecida e, com isso, enfraquecida pelos seus próprios
membros, Samuel sabia dessa mudança e que ela seria inevitável. Restava apenas, então,
promover tal escolha e que essa escolha partisse dos oráculos e revelações de Yahweh.
Pelas suas ações e até mesmo pelo histórico de sua chegada ao templo ainda menino,
percebe-se que sua vontade era de se preparar um líder desde sua infância moldando o
caráter deste indivíduo para que este não se tornasse um risco até para o próprio deus
hebreu56. Mas, ao que se vê, as Escrituras não relatam sobre uma seleção de candidatos ao
longo de todo esse tempo, chegando ao ponto duma pressão por parte dos líderes tribais a
Samuel, agora não mais um mero reclame da necessidade, mas, sim da vindicação em si de
um rei. Os debates sobre as atribuições e os riscos de se ter um rei eram aquiescidos e
angustiantes. Era mister que a escolha fosse comedida e segura para a existência da
identidade israelita.

55
Cerca de quinze a vinte anos, aproximadamente.
56
Na visão de Samuel essa escolha deveria ser de um líder de tropas e não de um rei em si. Certamente
pensava em treinar o escolhido como lhe foi feito por Eli, seu mestre. Podemos perceber esse anseio quando
unge Davi ainda menino (Primeiro Livro de Samuel, cap.16).

37
2.2 • A escolha do rei.

Samuel em suas palavras era veementemente contra a monarquia57 e pelo que se vê


em suas atitudes, a tentativa de se manter a antiga organização era perceptível. Seus filhos
foram nomeados juízes58. Porém, as atitudes destes não eram muito condizentes e
reforçavam cada vez mais a opinião monárquica entre os israelitas. Nem a vitória sobre os
filisteus em Mitzpah (‫ )הפצמ‬conseguiria manter os juízes59 Numa discussão que certamente
foi de ânimo altercado, os líderes tribais reclamam por um rei a Samuel com uma frase
direta:

“Disseram-lhe: Estás velho e teus filhos não andam nos teus caminhos; constitui-nos,
agora, um rei sobre nós, para que nos governe...”60

Samuel, portanto, os repreende de sua decisão anunciando-lhes os direitos de um rei.


E, às vezes, seu discurso até demonstra que se fosse inevitável, como o fora, a instituição da
monarquia em Israel, e que fosse entronizado então um rei-sacerdote, ou líder religioso
carismático que remontasse aspectos que se via em Moisés. Quando assistimos a cena em
que depois da discussão com os líderes de Israel Samuel se retira para falar com seu deus é
intrigante a palavra de Yahweh para com Samuel:

“... pois não rejeitaram a ti, mas, a mim...”61

É perceptível que, no decorrer de sua trajetória no primeiro reinado, Samuel aspirava


ao comando de seu povo. Talvez inspirado ante a liderança espiritual adquirida após a
queda do santuário de Siló em que um grande vácuo de crenças no seio das tribos ameaça
assim a unidade tribal e até a religião javeísta. Neste vácuo, sua pessoa carismática e com

57
Primeiro Livro de Samuel, cap. 08.
58
Ibdem, cap. 08, verso 01.
59
Ibdem, cap. 07.
60
Ibdem, cap. 08, verso 05.
61
Ibdem, cap. 08, verso 07.

38
um espírito arraigado na necessidade de se manter o Israel vivo, percorrendo as cidades,
uma por uma, com sua pregação encorajadora animando e exortando-os para a guerra santa
de Yahweh contra os invasores foi de grande importância para as tribos e posteriormente
para a definitiva escolha de um rei. Certamente, se não fosse o problema de seus filhos a
História seria outra. Não sendo, portanto, o predileto para o trono, seu grande temor era
absorção de costumes de seus vizinhos pagãos que aos poucos eram aceitos pelos israelitas
tendo em vista que o rei seria secular. Um rei deveria governar para todos, porém, a visão
de todos para os profetas do culto javeísta eram apenas os membros das doze tribos. Isso
significava que o rei deveria comandar em nome de Yahweh a construção do Israel pleno
conquistando toda a Terra Prometida e expulsando aos que não seguiam o deus invisível
dos israelitas. A grande aporia seria “quem ocuparia tal cargo?” O medo iminente de que
um líder militar aparecesse com expoentes pagãos ou passível de desvio das crenças
israelitas nos mostra que a influência dos cultos era cada vez mais presente no seio do Israel
das tribos de Yahweh. Sabia ele que um governante fora do controle dos profetas e
sacerdotes, poderia enfraquecer o culto ou até mesmo exterminar seus seguidores se estes
obstruíssem seus objetivos. Quando Samuel expõe os direitos realengos para o povo ele
está usando de base os sistemas de governo dos cananeus ou mesmo dos próprios inimigos
mais acirrados, os filisteus62.
Com a idade avançada de Samuel e sua impossibilidade de uma dinastia por parte de
consangüinidade tendo em vista que seus filhos eram conhecidos pelos seus atos corruptos,
ele percebeu que a escolha deveria ser de algum membro de uma das tribos. Alguém que,
na medida do possível, fosse aclamado e seguido por todas como seu líder temporal e
secular. Seria certamente um esforço por deveras hercúleo inserir conceitos de realeza
tendo por base os próprios inimigos, considerando também o fato de que a monarquia era
algo totalmente diferente como instituição para as tradições israelitas.

2.3 • O sistema monárquico e as tradições israelitas.

62
O capítulo 08 do Primeiro Livro de Samuel nos demonstra um perfeito quadro de como eram constituídas
as monarquias cananéias, um sistema baseado em aspectos feudais que também muito se assemelha aos reinos
filisteus, o que pode ter causado medo entre os líderes religiosos tendo em vista que os reis tinham autoridade
religiosa nestes povos.

39
A religião monoteísta de Israel foi construída no cerne de um deus amorfo e que de
nenhuma maneira era materializado pessoalmente. É um deus criador que, sozinho63, vem a
promover essa construção do Mundo e, por fim, o nascimento do homem através do barro.
Diferente das outras religiões e suas crenças de origem de povo e mundo, esse deus não
deixaria uma dinastia como as outras religiões demonstravam de seus reis primevos sendo
coroados ou mesmo sendo representados como homens vindicados por uma linhagem
divina. Outras culturas mesopotâmicas acreditavam na origem divina de seu rei e de seu
povo como uma máxima existencial, ou seja, sem essa origem não teriam sua identidade de
povo. Isso será absorvido pelos hebreus, porém muito posteriormente à constituição da
primeira monarquia. Os hebreus tiveram um grande exemplo quando habitantes egípcios de
um faraó que era considerado pelos seus súditos como um deus encarnado e elo com seu
respectivo panteão. Devemos considerar que os livros bíblicos ainda não chegaram a uma
compilação completa de cânone e que o Gênesis ainda não tinha seu formato final àquela
época64. A mentalidade está ainda intimamente ligada ao conceito de um representante do
deus, porém eximido de poderes miraculosos ou mesmo, sequer, ser um deus de ligação.
Certamente as tribos sentiam que não estavam, há muito, à altura de enfrentar de forma
ofensiva os exércitos filisteus apesar de terem obtido algum sucesso em algumas
campanhas65, era claro que tais embates se davam mais por uma manifestação coletiva de
cunho emocional, algo como um clamor patriótico conclamado pelos profetas ao povo de
uma questão de sobrevivência do que uma estrutura bélica preparada e constituída de uma
estratégia permanente.
63
É objeto de diversos estudos por deveras polêmicos a narrativa da criação do Livro de Gênesis. Alguns
autores defendem a tese de que foram compilados com influência fenício-cananéia em seu bojo dos primeiros
capítulos. Porém, uma das mais fortes visões é a de que a criação foi baseada em conceitos babilônicos, como
o caso da molda do homem no barro. Sabemos que as regiões mesopotâmicas são ricas em argila e o âmago
de suas civilizações está intrinsecamente ligado à cultura do adobe. A narrativa também gera conflitos
quando falamos de um deus uno. No primeiro verso de Gênesis encontra-se escrito que “no princípio criaram
os deuses os céus e terra” (o termo para deus “EL”- ‫לא‬, acha-se no plural “ELOHIM”- ‫)םיהלא‬. Para alguns
autores, o plural significaria uma idéia majestática de Yahweh, ao invés de uma narrativa de um panteão
criador, ou seja, outros deuses estavam juntos ali. Porém esta afirmação não encontra muita consistência
científica, pois se fosse uma forma de tratamento da época, o que não se acha paralelo, o texto que se encontra
no verso 26 do primeiro capítulo não seguiria de forma pluralizada quando, da criação do homem, Deus
dialogaria com outros participantes deste momento (... façamos “Na’aSeH”- ‫ השענ‬o homem a nossa
imagem...). Posteriormente, a teologia cristã irá considerar, muito forçosamente, que o diálogo seria a
Trindade Divina, o que volta a reforçar a idéia de panteão apesar de conceitos defendidos de um deus
monoteísta ali.
64
O cânone da Bíblia Hebraica só irá efetivamente se compilar após o exílio babilônico (587 a.C.).
65
Primeiro Livro de Samuel, cap. 07, versos 03 a 14.

40
Não se sabe o porquê dessas vitórias contra as forças bem equipadas dos filisteus
naquele momento, uma suposição seria de que os invasores avançaram demais para dentro
do território e com tal expansão sua logística possa ter sido afetada de início. Isso
proporcionou uma pequena e temporária vantagem para as tribos israelitas. Porém, sabiam
que não demoraria muito até que as forças filistéias se organizassem e voltassem com toda
a força contra eles e por fim os derrotassem definitivamente. Não restavam mais
alternativas ou sequer argumentos que convencessem os líderes para Samuel do que
escolher então o regente para conduzir as tribos e suas respectivas tropas. Tal escolha
também foi rápida, talvez em virtude da reorganização considerável dos filisteus e da
impossibilidade das tribos manterem o território reconquistado há pouco tempo. Mas, um
nome já percorria pelos arredores, alguém que conseguiria uma vitória sobre os amonitas
cujo feito o lançaria ao centro das escolhas da liderança das tribos. Um homem que ao
procurar as alimárias de seu pai acabará encontrando uma pesada coroa sobre sua cabeça.
Seu nome era Saul dos benjaminitas.

2.4 • A escolha de Saul.

Como vimos, os relatos da escolha e coroação chegaram até nós em duas versões. A
primeira demonstra uma unção reservada de Saul por Samuel. Esta versão provavelmente
tenha sido compilada em Ramá numa demonstração da tentativa de se manter o poder
religioso na região. O curioso desta narrativa é o discurso que se segue. Pelo texto, Saul
parece não conhecer ao profeta Samuel e o mais intrigante é que ele é crente nas práticas de
adivinhações, o que nos é demonstrado em seu diálogo com seu companheiro ali no
momento66. Como vimos, isso era algo repudiado pelos profetas do culto de Yahweh. Mas,
que em contrapartida, também o utilizavam em seus rituais. Numa forma lúdica, o capítulo
relata o encontro de Saul com Samuel e de sua unção reservada. Algo a que devemos

66
A narrativa do capítulo 9 nos demonstra que eles estavam habituados com os serviços de vidência
(discutem o que ofereceriam ao vidente em troca do oráculo). O texto, de forma cuidadosa, possui uma
inserção no verso 09, provavelmente, posterior à sua compilação final. A forma de tratamento também é
bastante interessante (confira nota 50, capítulo 02).

41
atentar é que Samuel não o unge como um rei, mas, como um “chefe de exércitos”67. Após
tal unção, os líderes são chamados para uma reunião na cidade de Mizpah por Samuel,
aonde Saul seria apresentado para eles como o escolhido por Deus para guiar os exércitos e
não como um rei com todas as atribuições de que muito temia Samuel. Mas, o que se vê é
que os líderes o clamam como seu rei. O texto não demonstra uma ação de repudio a essa
atitude, mas, certamente Samuel percebera que sua manobra não surtiu efeito. Destarte,
repetiu os direitos de um rei e o pôs num livro para os líderes e se retirou dali.
Com uma versão em que surge Samuel vindicando a monarquia como algo
proveniente da vontade divina e outra versão em que aparece como um profeta contrariado
e relutante em anunciar um rei, vê-se que tal situação foi por deveras complexa para a
mentalidade israelita que não estava acostumada com as noções de monarquia e ao passo
que reivindicam por uma tendo por base as cananéias, o que preocupava e muito os
profetas, vê-se que a tradição das tribos estava em completa transformação. Não se deve,
portanto, desconsiderar uma ou outra versão ou sequer tentar invalidar uma em detrimento
de outra. É por elas que podemos contemplar o quão difícil fora e, às vezes, amarga a
escolha de um sistema monárquico em Israel. Todavia, a monarquia em Israel, apesar de ter
sido baseada nos conceitos cananeus tornou-se impressionantemente diferente das demais,
tendo em vista que parte da ausência de forma de seu deus e que o rei estava eximido dos
atributos sacerdóticos, diferentemente das demais situações. Porém, mesmo com este zelo
dos profetas e sacerdotes é vista, por vezes, que esta forma se mostrou oscilante e com o
risco de paganismo ou desobediência para com as leis dispostas pelos profetas monoteístas.
Com uma ambigüidade intrigante em Samuel, podemos perceber que sua decisão final foi

67
O capítulo 10 é uma continuação dos fatos ocorridos do encontro de Saul e Samuel. Samuel o unge como
um “nagyd” (‫ )דיגנ‬que significa “chefe de tropas” e não como um “melekh” (‫)ךלמ‬, termo que significa “rei”.
Ao que parece, existe ainda uma resistência da parte de Samuel à unção de um rei propriamente dito. O que
logo seria mudado com a aclamação dos líderes em Mizpah (Primeiro Livro de Samuel, cap. 10, versos 17 a
27). Alguns autores colocam melekh e nagyd como designação de rei israelita e pagão, porém é muito
precária a hipótese tendo em vista o relato que citamos, contudo, uma tese considerável seria da atribuição do
rei nos povos vizinhos com Moloque, um deus pagão para o qual israelitas apostatas sacrificavam crianças, cf.
nota 34, cap.01. A adição dos sinais representativos de vogais em Moloque que possui a mesma construção
consonantal do termo “rei” foi colocada, posteriormente, pelos massoretas que se utilizaram, como de
costume, das vogais do termo “bosheth” que significa “vergonha”. Provavelmente, devido à proximidade de
pronuncia com o termo que designa rei, para que não houvesse atribuição entre os dois, utilizaram-se da
prática de se mudar a constituição das vogais, o que era muito comum aos israelitas e outros povos. Talvez, a
partir daí possamos reforçar o entendimento do porquê de Samuel ter sido tão relutante para com esse título e
sua base de reinado inspirada em conceitos cananeus. O culto a Moloque era muito difundido entre os povos
cananeus, principalmente os amonitas e estava presente por praticamente, toda costa Mediterrânea cf.
Frankfort, H. Kingship and the Gods, University of Chicago, 1948. pág. 317.

42
por pressão do povo representado, totalmente, pelos seus respectivos líderes tribais. Vemos
que sua posição para com a monarquia logo irá torná-lo um inimigo ferrenho do próprio rei,
rompendo definitivamente com Saul. Estava claro seu descontentamento. Sua tentativa,
portanto, de optar por um membro da menor tribo demonstrava que o equilíbrio era
iminente entre todas as tribos e principalmente a promoção de uma nova unidade melhor
alicerçada entre as tribos meridionais e setentrionais o que era algo muito difícil e por vezes
passível de quebra de pactos entre as duas linhas tribais, o que posteriormente será visto
mais claramente quando da divisão dos reinos de Israel e Judá68. Mais do que os problemas
de uma unidade política entre as tribos, seria também a personalidade do novo rei, o que
talvez tenha contribuído e muito para a resistência da escolha de Samuel para com Saul.
A personalidade de Saul, certamente foi um quesito que muito preocupou Samuel
após a unção dele e sua aclamação como rei pelos anciãos. Não sabemos ao certo se ele já o
conhecia antes. O caráter de Saul é retratado na Bíblia com um teor saturnino. Embora
supervisionado pelo próprio Samuel e seus pupilos, sua rejeição e conseqüentemente, sua
inércia em relação ao auxílio da nova realeza aliada à sua inimizade considerável para com
Saul e não tendo, portanto, em outra versão dos acontecimentos ali sucedidos, podemos
perceber que o rei tinha às vezes um comportamento por deveras imprevisível e em outros
casos passível de uma manifestação de loucura que ao longo de seu reinado vai se
agravando.

68
Logo após a morte de Salomão (922 a.C. Aprox.), o reino se dividiria em dois, sendo ao sul o reino de Judá
e ao norte o de Israel que irá sucumbir com a invasão assíria dois séculos depois. Os antagonismos estiveram
presentes entre os dois lados ao longo de sua história como reino livre, apesar de algumas vezes se unirem
contra um inimigo comum. Com a separação, o reino de Judá sairia mais forte em virtude de ter ficado com a
respectiva capital em seu território (Jerusalém).

43
Mapa 2.1: O resgate de Jabes-Gileade foi de tamanha importância para seus habitantes
que os mesmos foram os únicos a buscarem o corpo de Saul após a batalha que o vitimou
nas proximidades de Gilboa.

No começo, Saul era um homem de aspectos carismáticos, guerreiro impetuoso e de


boa aparência e com uma estatura maior dos que seus pares israelitas69 o que seria uma boa
propaganda tendo em vista que os filisteus eram de estatura bem maior70. Mas, a falta de

69
Livro de Primeiro Samuel, cap. 10, verso 23.
70
Os filisteus eram de estatura bem maior do que os habitantes cananeus inclusive os israelitas. As
representações egípcias das batalhas que os expulsou das terras do Egipto nos demonstram que a estatura dos
soldados feitos prisioneiros pelos egípcios era maior do que seus vencedores. Acredita-se que a média de
estatura de um filisteu variava de 1,90m a 2,05m ao passo que a estatura de um israelita variava de 1,60m a
1,75m. Não seria de se espantar quando os reinos filisteus utilizando-se de um campeão como Golias, que era
bem mais alto do que seus pares.A Bíblia hebraica relata que sua estatura era de “seis côvados e um palmo”
ou seja, quase três metros. A LXX traduz como quatro côvados o que seria cerca de dois metros, o que não
deixaria de ser espantoso para época. Alguns pesquisadores consideram que Golias sofria de gigantismo e que
ele era mais uma arma psicológica, de maneira que seus movimentos seriam mais lentos do que um guerreiro

44
habilidade para uma conciliação entre os meridionais dos quais também o era, e os
setentrionais foram de muito peso na balança de seu governo desde o início. Logo em sua
aclamação vemos que nem todos os líderes ali presentes estavam satisfeitos com a escolha
como foi o caso dos filhos de Belial71. Sua forma impetuosa de se portar diante situações
como o a resgate de Jabes-Guileade que fora sitiada pelos amonitas enquanto Israel se batia
com sua administração em decadência nos demonstra os aspectos carismáticos em Saul.
Então, como chamado de batalha, esquarteja dois bois e envia os pedaços para as tribos. Ao
reunir um considerável exército, derrota os amonitas e resgata a cidade. Os relatos deste
combate são parcos e confusos e o que se destaca são os termos impostos pelos amonitas
aos habitantes dali por deveras humilhantes, mas, podemos perceber o antagonismo entre
Samuel e Saul em suas divergência de opiniões começarem a aflorar.
Após a vitória, com os ânimos elevados pela conquista, Samuel ordena que o
entreguem aqueles que não aceitavam a aclamação do rei. Intentava matá-los diante de
todos como um exemplo de poder e da presença ali de Yahweh. Porém Saul o repreende e
anuncia que não haveria ali nenhuma morte72. Podemos perceber que entre os dois havia
uma espécie de competição de carismas manifestada principalmente por Samuel após a
coroação. O texto não demonstra a atitude de Samuel após isso, mas, logo posteriormente,
quando chegam a Gilgal vemos claramente sua irritação quando de seu discurso para os
presentes73. Em seus atos, vemos que Samuel tinha um lado arraigado religioso que beirava
o fanatismo exacerbado e violento que certamente assustava. Como no caso de Agague, rei
dos amalequitas, aos quais, Samuel tinha um grande rancor74. O fato de não ter sido
atendido pelo rei com quem agora dividia poder, certamente, o denotou de atitudes mais
acirradas para com o regente, ao passo que sua visão era de um Israel pleno exclusivamente
voltado para a adoração de seu deus. Isso batia de frente com a administração de âmbito

menor e mais ágil, numa percepção de estratégia. Certamente Davi ao derrotá-lo, considerou isso quando o
atingiu com uma pedra lançada de uma funda uma arma simples, mas, de mortal eficácia com capacidade de
arremesso de uma pedra de cerca de 150g a uma velocidade aproximada de 300km/h.
71
Primeiro Livro de Samuel, cap. 10, verso 27.
72
Ibdem, cap. 11.
73
Ibdem, cap. 12.
74
Mesmo com as vitórias de Saul, Samuel ainda mantivera sua posição radical como no caso em que o rei
destrói os amalequitas, porém, mantém vivo seu rei Agague. A ordem vinda de Samuel como divina seria o
extermínio total de tudo que ali estivesse. O texto relata que houve butim de batalha que foi dividido entre as
tropas o que era uma regra vital de guerra para os soldados. Como Saul não obedecera tal comando de Samuel
vemos uma acalorada discussão entre os dois que finaliza com o rompimento de Samuel com o monarca. Não
antes de Samuel despedaçar Agague na frente de todos ali presentes. Primeiro Livro de Samuel, cap.15.

45
secular nas mãos de Saul em busca de soluções diplomáticas naquele momento e não em
situações que mais contribuiria com a dissensão do que concórdia. Pelo que pode ver, Saul
não conseguira fazer nenhuma mudança considerável no sistema em âmbito administrativo,
nem tão pouco possuiria um projeto para estruturação de um reino propriamente dito. Na
verdade, estava mais para um simples juiz do sistema antigo do que para um rei em si. Não
se vê uma espécie de casa real nos ditames da época com suntuosas cortes. Sua residência
era uma fortaleza em Gabaá ao invés de um palácio; sequer vemos um corpo de oficiais
para suas tropas que estas ainda não possuíam sua regularidade constituída como um
exército real. O único oficial que vemos era Abner que comandava as tropas tribais75.
Todavia, em alguns relatos vemos que Saul cercava-se de jovens guerreiros para serviços
constantes. Pode-se supor que havia uma tentativa de instaurar uma aristocracia militar, o
que era vital para a sobrevivência de seu reinado. Tendo isso em vista, não poderia
doravante se basear em tropas arregimentadas das tribos o que era difícil de organizar e
obter um exato cálculo de fileiras dispostas e também da utilização de uma disciplina
regular que, se não fosse melhor, pelo menos se equiparasse com as das tropas filistéias.
Para isso, certamente não poderia infligir das observações proféticas de Samuel. Não havia
uma coesão nem sequer do próprio monoteísmo como já vimos e Saul, certamente será
obrigado a fazer uso de tropas de outras etnias e de mercenários, o que era comum, para
que pudesse manter a linha de defesa e posteriormente avançar contra as tropas inimigas.
Estes elementos tinham suas próprias crenças e às vezes se debandavam para o culto
dos israelitas ou o absorviam e sincretizavam com a religião de Yahweh. Talvez a visão de
Samuel estivesse se cumprindo quando vira que, novamente, seu deus estava ameaçado por
causa do sistema secular do qual fora ele mesmo que o vindicara. Com a vitória em Micmás
empreendida por seu filho Jônatas que possibilitou a uma grande vantagem logística, a
popularidade do rei estava em seu auge, outorga favores aos seus pares tribais, Saul era
considerado até em Judá76 após suas campanhas vitoriosas. Talvez, em face da rechaçada
das tropas inimigas trazendo um tempo de calmaria para o momento.

75
Primeiro Livro de Samuel, cap. 14, verso 50.
76
Existem controvérsias sobre essa consideração em Judá de sua majestade, embora através de um acordo
privado ele a tenha governado. Os jovens daquela tribo estavam do seu lado e ficaram o apoiando mesmo
contra o próprio Davi. Cf. Bright, John – A natureza do reinado de Saul, pág. 237.

46
Mapa 2.2: O reinado de Saul foi marcado por muitos conflitos contra os cananeus e filisteus. Sua
incapacidade de conciliar as tribos meridionais e setentrionais não permitiu que formasse um exército
profissional e coeso a fim de se equiparar com seus inimigos filisteus, principalmente.

47
Apesar de sua figura heróica ante as situações e seu ímpeto corajoso e sem hesitação
quando dos combates, Saul também tinha o seu lado obscuro. Possuía uma personalidade
taciturna e que às vezes beirava uma insanidade. No começo de seu reinado isso não tinha
sido manifestado claramente, todavia, é provável que devido às diversas pressões no
decorrer de seu reino tanto no campo administrativo e principalmente religioso tenha
somente iniciado ou, mesmo piorado seu quadro mental. O seu rompimento com Samuel e
toda a casa que o seguia, definitivamente foi um golpe fatal na sua coroa. É bem verdade
que nem todos os israelitas eram convictos em sua religião promovida pelos sacerdotes e
profetas. Porém, a figura e toda sua força representativa de Samuel abandonando o rei seria
algo marcante e que definiria os rumos de uma nova monarquia que surgiria às escuras.
Reservadamente, Samuel unge um rapaz chamado Davi, pastor de ovelhas que logo estaria
no meio palaciano. Numa cena bastante interessante, em que Saul em um de seus, cada vez
mais, constantes acessos é aconselhado por seus serviçais a procurar os serviços de um
músico77. A unção de Davi e sua vitória de forma impressionante e carregada de um
simbolismo forte em sua diminuta pessoa contra o gigante Golias, campeão78 das forças
filistéias, projetam sua figura no meio dos líderes tribais que já sentiam os devaneios de
Saul e sua administração ainda confusa. Desta forma foi que Davi se inseriu no contexto
realengo certamente adquirindo conhecimento que posteriormente será utilizado em sua
gestão.
A rejeição e separação de Samuel serão sentidas aos poucos, pelo rei. Principalmente
após a aparição de Davi na corte. Após a morte de Golias certamente seu nome percorreria
as fileiras e as lideranças tribais o que Saul começava a ver como uma ameaça tendo em
vista que as ações de Davi denotavam claramente uma projeção ao trono aliada com o
apoio dos religiosos sob o comando de Samuel. A forma como a narrativa é construída é
clássica e o diálogo entre ele e o gigante inimigo demonstra o surgimento de um novo
herói. 79

77
Era comum a utilização de músicos para fins terapêuticos na Antigüidade. A região de Canaã, por sua vez
também era conhecida pelos seus músicos como nos relatam algumas estelas egípcias.
78
Antes dos exércitos se baterem no campo de batalha era comum a utilização de um duelo entre seus
melhores guerreiros conhecidos como “campeão do rei” a fim de se resolver a querela entre os beligerantes
sem se utilizar das tropas. Prática muito presente nas histórias gregas. Certamente usual entres os filisteus.
79
Primeiro Livro de Samuel, cap. 17.

48
Mapa 2.3 A batalha de Micmás e sua vitória proporcionaram uma vantagem para os
israelitas. É provável que tenha sido nesta batalha que os israelitas obtiveram o segredo
das fundições do aço. Segredo este, vitalmente guardado pelos filisteus com seus ferreiros,
porém sua utilização ainda seria muito posteriormente ao reinado de Saul tendo em vista,
talvez, a inexperiência no manejo de tal técnica avançada para a época.

Devemos atentar que os livros foram escritos por aqueles que aspiravam Davi ao
poder e que a visão para com Saul já se tornara negativa e este era visto como um infiel
para com o deus pregado por Samuel e seus profetas. Ao que parece essa fama de Davi
após aquele duelo, será considerável a ponto de se registrar uma cantiga proferida por um
grupo de mulheres:

49
“As mulheres, dançando, cantando umas para as outras, dizendo: Saul feriu os seus
milhares, porém, Davi os seus dez milhares”.80

É notável que tais atitudes fossem perceptíveis e o temor de Saul crescia ante a figura
de Davi. Os textos bíblicos não são muito claros em relação à formação de Davi, em um
momento descreve-o como um singelo pastor de ovelhas que é ungido e vence o gigante
filisteu com uma simples funda, uma arma muito utilizada pelos pastores a fim de afugentar
predadores ao rebanho, sendo que também era arma de infantaria primitiva e certamente
utilizada pelos israelitas em suas campanhas. Um Davi franzino que não suportava o peso
de uma armadura e nem era exímio na espada é descrito no texto abaixo:

“Então Saul vestiu a Davi com sua armadura, e lhe pôs sobre a cabeça um elmo
de bronze, e o fez envergar uma couraça. Davi cingiu a espada sobre a armadura
e tentou andar, porque não estava acostumado a usar estas cousas. Disse Davi a
Saul: Não posso andar com tudo isso, pois, não estou acostumado...”81

O que versos antes apresentavam ele como um valente guerreiro:

“Respondeu um dos moços: Vi um filho de Jessé, o belemita, que sabe tocar bem
e é forte e valente, homem de guerra, sisudo em palavras e de boa aparência. E o
Senhor é com ele.”82

Uma versão exata de como Davi apareceu em cena é obscura e como podemos notar
confusa e cercada de uma estrutura lúdica dos acontecimentos. Mas, é certo de que Saul o
lançou entre seus jovens guerreiros e que posteriormente, ante a proeminente pessoa de
Davi, intentaria matá-lo. Em meio dessas tentativas, casa-o com sua filha Milca o que pode
ter sido uma forma de tê-lo como seu aliado sem o risco de que ele usurpasse o trono.

80
Cânticos como este, certamente eram de forma anedótica e que provavelmente ecoavam pelos corredores
reais. Formas de expressão assim costumam delatar também que já aparecia uma oposição para com a gestão
atual. Certamente, denota a crescente fama de Davi e a popularidade em decadência de Saul. Primeiro Livro
de Samuel, cap. 18, verso 07.
81
Primeiro Livro de Samuel, cap. 17, versos 38 e 39.
82
Ibdem, cap. 16, verso 18.

50
Porém, cada vez mais isolado e com alguns de seus familiares conspirando contra
suas investidas e acessos, principalmente, para com Davi, Saul demonstrava um aumento
de sua debilidade cada vez mais paranóica83. Em virtude desta perseguição, Davi se refugia
em um reino filisteu84. Ali provavelmente ele adquiriu as técnicas de batalhas e sua
organização e principalmente o segredo das forjas tão bem guardadas pelos líderes filisteus.
Será neste exílio que Davi irá conseguir o auxílio de renegados das montanhas e ele mesmo
se tornará uma espécie de fora-da-lei que cada vez mais ganharia fama até nas cidades e nos
próprios reinos inimigos, afirmando assim sua pessoa carismática. Agora sozinho e sem o
apoio dos sacerdotes mais proeminentes da religião israelita, Saul se via na pior crise de seu
conturbado reinado. Seu reinado foi permeado por diversas guerras e conflitos internos. Sua
incapacidade e falta de manejo político impossibilitava cada vez mais uma unidade entre
setentrionais e meridionais, o que faria grande diferença quando das reuniões de tropas para
a guerra. A arregimentação dependia de um comum acordo entre os líderes que também
decidiam de seu quinhão, ou seja, de seu butim de guerra para suas respectivas tropas e
tribo, conseqüentemente. Como vimos anteriormente, Saul dispunha não só de soldados
seguidores do culto a Yahweh, mas, certamente existiam muitos nas fileiras que eram
adeptos das crenças cananéias de culto e adivinhações. Enquanto isto Davi se exilava pelos
montes e em alguns momentos portava-se como um zombeteiro quando das investidas de
Saul para matá-lo, chegando a ponto dos relatos serem verdadeiras paródias sobre estes
encontros85, que contribuíam cada vez mais para uma visão negativa do rei Saul.

83
Os relatos de sua debilidade são mais freqüentes chegando ao extremo de querer matar a Davi a todo custo,
o que é impedido pelos próprios filhos dele. A Bíblia relata estes acessos com o termo “espírito maligno da
parte do Senhor”. Pelas suas atitudes, podemos perceber que Saul, provavelmente sofria de um tipo de
esquizofrenia que se agravou face às pressões sofridas em seu reino no decorrer de sua gestão. Acessos
epiléticos e demais manifestações desse gênero eram interpretadas como manifestação de espíritos pelos
povos da Antigüidade, como até hoje em certas crenças.
84
Num relato interessante, Davi vai a Gate um dos reinos filisteus. Seu rei, Áquis poderia ao saber que ele
seria o próximo rei de Israel, intentar matá-lo. Davi então se porta como louco ante ao rei. Ao que parece a
loucura afugentou a idéia de algum atentado para com a vida de Davi. Primeiro Livro de Samuel, cap. 21.
85
As situações demonstram a imprudência e Saul em certos momentos como no capítulo 24 do Primeiro
Livro de Samuel em que Saul vai “aliviar o ventre”; neste ensejo, Davi irá arrancar um pedaço de sua veste.
Tal cena tem uma forte representação quando anunciada para os súditos. Colocava o rei, uma pessoa
carismática e fortemente carregada de um elemento de coragem, como vimos no início de seu reinado, numa
pessoa constrangedora para ser um líder. Numa visão simbólica, a posição de defecação já denota de uma
situação em que o indivíduo está desprovido de suas capacidade de defesa, ou seja, seria vergonhoso ser
surpreendido por alguém, principalmente sendo o próprio Davi, ao qual se caçava ali, nesta posição.
Enquanto o rei estava agachado fazendo suas necessidades fisiológicas, indefeso, um Davi astuto aparece em
posição privilegiada. Ao invés de matar o rei, Davi apenas lhe demonstra um aviso. Este antagonismo forte
entre os dois era cada vez mais alimentado com tais atitudes. Certamente, Davi sabia que matar Saul seria

51
Mapa 2.4: Com a fuga, Davi se refugia entre os filisteus e se torna vassalo de Áquis, rei de Gate. Em seu exílio
certamente absorve as práticas de combate e sistemas de administração que o ajudará quando rei de Israel a
derrotar os próprios filisteus.

Doravante o governo de Saul será marcado por essa separação entres os poderes do
religioso e da coroa, com isso, as alianças serão cada vez mais enfraquecidas e duvidosas.
Sabia ele que os inimigos estavam a par da situação alarmante de seu reino e
conseqüentemente já estavam se movimentando para um novo embate. Enquanto Davi

prejudicial à sua imagem para com os sacerdotes da escola de Samuel, a mais proeminente ali. Como em
outras vezes que são relatadas em outros capítulos dessa possibilidade de atentar contra a vida de Saul.

52
estava adido a Áquis, rei de Gate, e promovia sua estruturação e se firmava ao sul perto da
fronteira do Egipto e nos arredores de Judá. A Bíblia relata que Davi já possuía um
pequeno exército, provavelmente já era possuidor de um feudo e vassalo dos filisteus. Saul
vendo que cada vez mais sua situação era periclitante e não tendo muitas opções a não ser
em lançar-se numa batalha suicida, convoca as tropas para as proximidades do monte
Gilboa. Em momentos angustiantes e bastantes complexos da história de seu reinado e da
religião israelita, veremos um líder solitário em seu trono diante daquilo que será o
desfecho trágico de seu reinado. Veremos destarte, que a religião de Yahweh ainda não
estava totalmente firmada na mentalidade dos israelitas como antes na época das
magistraturas. A partir desta batalha decisiva para a sobrevivência do primeiro reinado é
que surgiram as novas formas de combate adquiridas por Davi em seu exílio com os
filisteus. Mas, neste momento, Saul estava cercado por uma farândola assustada tanto com
seu rei e sua situação de risco sem o apoio de um deus, como para com a grande e
assustadora massa filistéia agora novamente organizada pelas suas federações contra um
exército que possuía apenas duas espadas.

53
Terceiro Capítulo:
Reis, profetas e necromantes.
A queda.

54
3.1
O rompimento com Samuel.

Quando Samuel anuncia que a batalha contra os amalequitas era para ser na verdade
um extermínio daquele povo e sua localidade totalmente destruída, já se percebia que a
nova forma de governo tomara força e que a possibilidade de atribuições do rei para com as
funções do sacerdócio era clara e provavelmente uma questão de tempo. Saul, prontamente
convoca suas tropas e as reúne na localidade de Telaim86, o texto relata de uma
arregimentação considerável de cerca de duzentos mil infantes e também nos mostra uma
contagem do número de homens vindos de Judá87. Saul invade a cidade e os extermina
deixando apenas como prisioneiro seu rei Agague. Numa seqüência de atos, um pouco
obscura, que nos fala sobre o rompimento dos dois, vemos que a pessoa de Samuel não
estava isenta de manifestar ciúmes. Saul, após a vitória dos filisteus esperara sete dias para
que Samuel aparecesse e cumprisse com os ritos do sacerdócio em virtude desta vitória.
Porém, ao não aparecer, as tropas começam a praticar atos abomináveis que chegam à
desordem e insubordinação.
Devemos entender que a relação de um deus para com seus adoradores era mais a de
um “provedor de regramento social”, concepção essa, difícil para o entendimento sob uma
ótica atual88, Saul então promove, ele mesmo o sacrifício e os demais ritos que eram da
alçada sacerdotal que Samuel mantinha com mão-de-ferro sob seu controle. Entretanto,
quando exatamente no sétimo dia já acontecendo os ritos, Samuel aparece. Certamente
buscava algum subterfúgio ou sequer um pequeno motivo para que se conseguisse uma
celeuma contra o próprio rei que colocara no trono. Talvez ali, vemos também a tentativa

86
Primeiro Livro de Samuel, cap. 15, verso 04.
87
O texto relata da presença de dez mil homens de Judá. É interessante notar que tal relação denota de que a
tribo de Judá e seu relacionamento com as demais, principalmente com as tribos meridionais, era bastante
precário e que a liberação de tropas para o combate foi algo notável a ponto de ser relatado no texto.
88
A adoração de um deus para o indivíduo da época estava mais intrinsecamente ligada com a necessidade de
ordem social em torno deste deus do que um ser místico com quem se interage. Podemos perceber essa
situação quando da peregrinação pelo deserto e a demora de Moisés de seu retorno da montanha em que os
membros do povo atentavam para o surgimento de desordem no acampamento. Por isso erige-se um deus em
forma de bezerro. O pensamento ali não estava ligado a elementos de paganismo ou sequer de um desvio de
religiosidade, propriamente dito, mas de um objeto que promovesse a centralização do pensamento geral e
com isso mantivesse a ordem que antes estava claramente nas mãos de Moisés que revelava Yahweh. Enfim,
o povo não estava seguindo a Yahweh e sim a Moisés que era profeta deste deus. Suposto de sua morte, os
lideres intimam Arão, irmão de Moisés a trazer-lhes um outro provedor de regras para que não houvesse
dispersão (Livro do Êxodo, cap. 32).

55
de se impedir que o rei possuísse poderes religiosos como no caso dos povos vizinhos89.
Tais atitudes de Saul contribuíram com sua animosidade para com Samuel, que, a cada dia
vinha crescendo ao fim chegando à desobediência de uma ordem que foi o ápice resultando
no rompimento dos dois90. A partir daquele momento, os dois não mais se veriam até a
morte de Samuel, anos depois. Porém, Samuel não iria ficar em silêncio, articulava um
novo rei na posição de Saul ou pelo menos que competisse até o momento que se colocasse
totalmente no trono esse novo líder.
A projeção de Davi no seio palaciano e toda sua carga que envolvia sua pessoa com
aspectos que beiram a realidade e a mítica vão se construir aos poucos e com expoentes que
certamente preocuparão a Saul como vimos no capítulo anterior. Com a morte de Samuel,
as posições dos religiosos, ao que parece, se agravam e a debilidade e obsessão de matar
seu possível sucessor alimentavam os anseios de Saul e o distanciava das crises que cada
vez mais cresciam e junto com elas com as novas movimentações das tropas dos filisteus.
De início estes mesmo se mostraram resistentes em relação para com uma nova investida.
Provavelmente ainda estavam com a lembrança da batalha de Micmás em que seus
exércitos foram rechaçados pelos israelitas. E a fama de Jônatas ainda percorria as fileiras
tal como a de seu pai. Isso demonstra que mesmo com sua debilidade aflorada ali naquele
momento, Saul ainda tinha a personalidade forte de um líder carismático, o que não era
fácil manter, pois a cada dia mais tinha de se provar aos seus. Não só uma vez promover
esse carisma, mas, constantemente e isso, deveras, já devia estar por muito desgastante.

89
O termo para rei em hebraico era de origem pagã (confira nota 65 do capítulo 02). Certamente essa
atribuição era inserida também ao indivíduo da época. Samuel temia que os poderes sacerdotais fossem parar
nas mãos de um rei, tendo em vista que ele anteriormente não conseguira unir tais poderes em suas pessoa. Ao
que parece, Samuel procurava uma forma de se destituir Saul do trono mas, ao ver que não conseguia rompeu
definitivamente com ele. O curioso é que seu próximo escolhido, Davi, ao resgatar a arca dos filisteus depois
da morte de Saul, irá se vestir de sacerdote e dançar á frente da arca, ou seja, unindo assim os poderes que
Samuel tanto tentou manter separado (Segundo Livro de Samuel, cap. 06, verso14).
90
O texto relata que Samuel ordena a Saul que destrua tudo e todos os que habitavam em Amaleque. Porém
Saul permite que sejam feitos despojos de guerra, o que era comum e praticamente uma prática dos soldados
que, cumpre notar também, era vital para a ordem e harmonia das tropas assim, evitando um motim ou
rebelião. Quando percebe que não fora obedecido pelo rei, Samuel demonstra sua ira assassinando Agague, o
rei dos amalequitas na frente de todos. Havia um elemento de fanatismo muito forte em Samuel e
principalmente para com os desta cidade da qual ele exigia o extermínio (Primeiro Livro de Samuel, cap. 14 e
15).

56
3.2
O contra-ataque filisteu.

Não demoraria muito para que as notícias de que Saul estava combalido de suas
faculdades mentais e que conseqüentemente suas lideranças tribais estavam dispersas
novamente em virtude de seu rei não ser mais aquele líder impetuoso e impávido, agora um
líder solitário e depressivo que buscava a todo custo matar a Davi, chegassem aos ouvidos
dos líderes filisteus à espreita de um deslize qualquer para se reiniciar sua expansão contra
as terras em poder dos israelitas. Essa obsessão certamente foi vista por seus servos; suas
atitudes já denotavam desespero, acessos de raiva deviam ser constantes e a todo o
momento Saul, via-se cercado de conspiração. Enquanto isso também, Davi estava como
um adido num reino filisteu tornara-se vassalo de Áquis, rei de Gate. Davi alimentava certa
harmonia de convivência com Áquis que também o mantinha, por certo, face ao que
conhecia sobre as façanhas de Davi que eram famosas. Pelo que se vê aos textos, Davi
certamente falava de Saul pela sua ótica para os lideres filisteus e em seu bojo de idéias
ficaria claro seu interesse no trono de Israel.
Enfim, os filisteus põem marcha aos carros e suas tropas começam a serem
organizadas para a derrocada do reino israelita dentre os seus está Davi, marchando para ir
de encontro com Saul, mas, não como um aliado dele e sim na intenção de usurpar-lhe o
trono. Porém, nem mesmo os próprios filisteus tinham muita confiança em Davi,
certamente sua fama também atingia uma dubiedade que, hora estava entre os seus, ou seja,
os israelitas; hora estava com os inimigos destes, os filisteus. Esse oportunismo
posteriormente irá lhe trazer problemas quando alcançará o trono após a morte de Saul, o
que provavelmente será atenuado quando ele traz de volta a arca que estava em posse dos
filisteus. Como vemos em suas façanhas Davi era muito articulado e aproveitava de
momentos em que se poderia tirar tal proveito. Para os lideres filisteus existia o risco dele
ao invés de ser um aliado ali, no calor da batalha, seria mais um a quem destruir, isso
demonstra que os lideres não confiavam nele. A decisão foi praticamente unânime. Davi
marchou para distante da localidade de batalha de volta para Zicagle91, terra que lhe foi
dada por Áquis com localização um pouco incerta, provavelmente ao norte de Negueb pelas
proximidades de Judá. Certamente como mostram os relatos, Áquis demonstrava admiração

91
Primeiro Livro de Samuel, cap.29.

57
por Davi e sua capacidade de articulação com os membros mais abastados da sociedade
filistéia. Casara-se mais de uma vez, o que demonstra que tinha proeminência entre eles.
Tais casamentos eram, contudo, prática de alianças e talvez uma forma de manter-se vivo
entre os filisteus tendo em vista que entre os seus também era caçado pelos pares de Saul.
Atacava vez ou outra os próprios filisteus quando do comando de seus homens. Sua posição
estava cada vez mais insustentável, todavia com seus anfitriões, talvez uma investida contra
o próprio Saul junto com os exércitos filisteus que estavam se reunindo para marchar para
as proximidades de Gilboa seria uma forma de manter as relações enquanto não alcançava
seu trono em Israel. Sem dúvida, o homem que posteriormente seria intitulado como um
“homem segundo o coração de Deus” foi um personagem com atitudes que traze-nos o
questionamento de tal título92 e sua respectiva veracidade para com o que se aspirava de
um rei já na concepção israelita de monarquia.
Com a animosidade com a religião e seus sacerdotes no auge de suas relações, Saul
então num de seus acessos, irá promover um massacre que definitivamente romperia com
clero javeísta levando estes a bandear para o lado de Davi e reforçando sua ascensão ao
trono. O texto relata de forma impressionante que ao chegar à casa de Aimeleque,
provavelmente o chefe dos sacerdotes, Saul, já ciente da passagem de Davi pelo local o
repreende e ordena aos seus homens que matassem a todos os sacerdotes daquela casa
(provavelmente uma escola sacerdotal). Há uma recusa dos homens de matá-los o que faz
com que Saul se utilize então de um de seus oficiais de nome Doegue que era edomeu e
certamente não nutria nenhum temor por este ato, ao contrário dos demais que
provavelmente eram de origem israelita93. A visão era deveras aterradora a se ver: oitenta e
cinco corpos inertes de sacerdotes do culto de Yahweh. Porém, um destes fugiu e se
encontrou com Davi e anunciou o malogro que se sucedeu aos seus companheiros. Não
demoraria muito também para que a notícia deste massacre feito pelo obcecado Saul
percorresse pelas outras tribos.
92
Com a ascensão de Davi ao trono, é perceptível que os lideres e o segmento religioso, tentam buscar
construir sua imagem como um novo rei com aprovação divina. Certamente, face às demonstrações de
debilidade de Saul que muito devem ter provocado a desconfiança dos líderes e do povo. Havia também o
problema de que Davi era vassalo de um rei filisteu o que certamente não devia soar muito bem. Talvez até
sua marcha contra os israelitas estivesse percorrendo pelos corredores do poder. Além de sua unção por
Samuel, vindicada pelos sacerdotes seguidores desta escola, Davi faria uma nova façanha que seria sua
primordial propaganda de força de governo. Traz de volta Arca da Aliança para os hebreus. Isso certamente o
posicionava contra seus antigos aliados e o colocava como um líder para os israelitas.
93
Primeiro Livro de Samuel, cap. 22.

58
Tal atitude colocava Saul em uma posição muito delicada em relação às já complexas e
conturbadas alianças com as outras tribos. Sua postura, certamente, assustou os demais que
entenderam que realmente o deus deles tinha abandonado seu rei definitivamente, muito
embora saibamos como vimos antes, que os israelitas não eram tão convictos na adoração
manutenida pelos sacerdotes javeístas e, ocasionalmente, prestavam cultos a outras
divindades de seus vizinhos, um ato de barbárie para com indivíduos que eram
praticamente indefesos como os sacerdotes que apenas cumpriam com as observâncias
religiosas, não seria passado em branco e muito preocupava, tendo em vista que o rei já não
mais fazia guerras aos inimigos e nem sequer se atentava para o que estava acontecendo nas
suas precárias fronteiras. Ficara apenas regido de uma única missão, Davi. Enquanto isso,
os filisteus já tinham organizado seus exércitos e estacionado em Afec. Para J.Brigth, tal
manobra remontava a vitória uma geração antes, quando se capturara a Arca94. Porém,
desta vez os filisteus estavam prudentes e não queriam arriscar uma investida pelas
montanhas, pelo que se percebe estavam com muito esmero para um golpe decisivo e sem
arestas a serem consertadas. Se subissem pelas montanhas, as campanhas seriam difíceis e
isso privilegiava a estratégia israelita.

Figura 3.1 Representação egípcia de um guerreiro filisteu. Nota-se a proeminente espada sob o braço
direito, suas adagas e seu escudo.

94
J.Brigth, A monarquia de Israel, da confederação tribal ao estado dinástico, pág. 241.

59
A forma de combate e sua formação no campo de batalha utilizada pelos filisteus
eram constituídas de um aparato que se arrumava numa espécie de “massa humana” 95 que
provavelmente seriam as primeiras utilizações daquilo que ficaria conhecida como
formações em falanges séculos depois. Tais formações eram eficazes em campo aberto e se
utilizavam não só de quantidade e força, mas, principalmente, de uma estratégia que
empurrava as tropas inimigas com a infantaria enquanto fustigava-as com a artilharia de
flechas com pontas de bronze que eram capazes de penetrar suas carapaças de couro
causando desorganização e pânico ao passo que a cavalaria destroçava o restante pelos
flancos. A utilização de carros de guerra também era um fator visceral do sucesso de suas
campanhas. Com sua manobrabilidade e velocidade em combate permitia uma intervenção
no campo dentro das fileiras inimigas depois da saraiva de flechas. Tal manobra consistia
de que as tropas ainda estavam se reorganizando para o avanço da infantaria. Num exército
coeso isso seria de maneira rápida e eficaz, o que não era o caso de Saul e
seus comandados. Para que houvesse sucesso desta manobra ,os filisteus
sabiam que não podiam ficar em lugares íngremes e de difícil acesso para os
carros de guerra e também precisavam de uma boa colocação de suas tropas
de infantaria. Para Israel que adotava uma prática belígera de táticas de
emboscadas em desfiladeiros e montanhas era melhor trazê-los para as
elevações dali. Destarte, os filisteus deslocam suas tropas pela costa em
direção à planície de Esdrelon ao Norte, localidade perfeita para o sucesso
de seus intentos estratégi cos. Saul, por sua vez, que marcha também para o
Norte e acampa ao pé do monte Gilboa, certamente fazendo uso de sua
tradicional manobra ficou a espera dos inimigos 96. Porém, a tática dos
filisteus era outra desta vez. Havia também a vanta gem da planície ser um
local de rápido acesso de aliados, no caso de os filisteus precisarem
recorrer de ajuda, aliada à possibilidade de interceptação de Saul e suas
tropas que vinham do Sul da Galiléi a sendo possível também uma
interrupção de auxílio ou de logística se porventura Saul o precisasse. A
batalha estava ganha antes mesmo de começar.

95
Confira figura 1.1.
96
Primeiro Livro de Samuel, cap. 28, verso 04.

60
É-nos obscuro o motivo que fez Saul ir de encontro com a sua própria
morte, tendo em vista que era um suicídio aquela empresa. É de se supor
que sua debilidade já atingira um grau de desespero que o fez i gnorar até
sua segurança e as possibilidades deste combate. Sua loucura estava
aflorando, mas, ainda estava são mentalmente para perceber a sua manobra
fora infeliz, porém agora não havia mais retorno. Estava selado o destino
que o aguardara.

3.3
O arraial de combate.

Num dos mais intrigantes momentos do primeiro reinado, quiçá de toda a História
dos hebreus, veremos um rei representante de um culto monoteísta que abominava a prática
de necromancia, muito difundida entre os cananeus, utilizar-se da mesma e de seus
serviços. Mesmo sabendo de sua irreversível derrota Saul não se acovardaria diante o
cenário edaz. Porém, sua maior preocupação não estava somente com as tropas inimigas,
mas, principalmente, com os que estavam sob seu comando. A difícil arregimentação das
tropas ainda era um dos grandes problemas e ali se transformaria num dilema para Saul e
seus comandados. Seu exercito era uma mescla de israelitas camponeses e grupos de
mercenários, muitos deles, seguidores de outros deuses e passíveis de deserção a qualquer
momento. Talvez, apenas no momento em que Saul observa o acampamento de seu inimigo
é que ele terá uma idéia do que o esperava. Assustado, Saul volta ao arraial de seu exército
preocupado, pois via que sozinho não poderia desta vez derrotar ou sequer reter o avanço
de tais forças reunidas. A própria composição de seu exército era mais do que alarmante,
era composto por apenas duas espadas e lanças de mão97. Certamente o texto relata das que
eram fundidas em aço como as dos filisteus. Mesmo com a vitória em Micmás promovida
por Saul e seu filho Jônatas as técnicas de fundição, se considerarmos que ele a tenham
obtido ali, eram ainda muito complexas e necessitavam de um sistema eficaz de siderurgia.

97
Face ao monopólio das fundições do aço pelos filisteus, os israelitas possuíam poucas espadas deste metal.
O livro relata sobre apenas três sobre posse dos israelitas. A de Saul; a de Jônatas, seu filho e a terceira de
Golias, o filisteu (cap. 17) que aparece no capítulo 21, verso 06 escondida numa estola sacerdotal em Nobe.
Pelo texto não se sabe quem a reclamou após a morte do guerreiro. Uma possibilidade seria de ela ter sido
espólio de Davi após derrotar o campeão filisteu, algo comum em tais embates. Porém, em contrapartida, o
texto denota também de ele não ter ciência da mesma estar em posse dos sacerdotes ali. Em relação às lanças
citadas, certamente a referência estava ligada à ponta de aço, em detrimento às de sílex ou mesmo as
esculpidas e apontadas na própria vara. Confira Figura 1.1. Primeiro Livro de Samuel cap. 13, verso 22.

61
Mas, para que isso fosse cumprido era mister que se tivesse um sistema voltado para esse
serviço em nível militar e não somente para fins agrícolas. Cumpria também, que a
desunião das tribos e seu conseqüente desentendimento na primeira monarquia não
possibilitariam uma estruturação de um exército profissional com uma hierarquia
institucionalizada e um corpo de oficiais formado e voltado apenas para a vida militar.
Havia também o problema de matéria-prima para a fundição do metal. Provavelmente os
itens de composição do aço, ou seja, seus componentes estavam em poder dos filisteus e
quando não, eram adquiridos a preços elevados por mercadores. Isso impossibilitava uma
atualização em relação a armamento e reduzia em muito suas estratégias e práticas de
manobras que há muito estavam obsoletas, principalmente para um reino que buscava se
firmar entre os demais.
Desesperado, Saul busca obter uma revelação através de sonhos, contudo, sua
ansiedade devia impedi-lo de perceber algum sinal, deveria ser até difícil dormir ante as
circunstâncias. Apelará então ao Urim e Tumim na esperança de ver nos oráculos se
haveria chances de alguma vitória, nada é revelado, Saul vira-se para seus poucos profetas,
certamente os últimos remanescentes confiáveis ou não dos que ainda criam na autoridade
de Saul como rei. Também estes se demonstram sem nenhuma revelação. Cumpre notar,
como vimos anteriormente, que os profetas eram exímios analistas políticos e que ao verem
a situação, claramente percebiam que a derrota era inquestionável, pelo lado dos israelitas.
Os rumores desta situação chegariam e rápido nos ouvidos dos subalternos que claramente
percebiam a inquietude e preocupação na face do rei e de seus oficiais. Em combates
anteriores, os israelitas tiveram mais sorte do que organização em si, aproveitando, ao que
parece de um breve momento de reorganização dos reinos filisteus que possivelmente em
face de alguma celeuma entre eles mesmos não tinham organizado um exército tão coeso e
considerável até ali, o que adiou e muito sua expansão mais para o centro e pelas
montanhas onde habitavam seus inimigos israelitas. Agora sem revelações quaisquer, e o
tempo cada vez mais escasso, se aproximando o embate, Saul então recorre a um último
ato: A revelação por uma necromante cananéia da cidade de En-Dor.

3.4
A necromante de En-dor.

62
Uma situação delicada para um chefe de tropas, seria que seus comandados
percebessem que os deuses ou pelo menos um único deus não estivessem apoiando seu rei
na batalha. A presença de um deus, artefatos que o represente como o caso da Arca da
Aliança que representava Yahweh e que fora utilizada como sua representação ou de seus
sacerdotes, eram importantes e estavam ligados intimamente com a vitória ou pelo menos
com uma morte digna para os céus contemplarem. A ausência divina denotava uma morte
sem glória e que talvez seu corpo e sua alma estariam deixadas aos inimigos ou aos cães do
deserto. A presença divina era um verdadeiro amuleto para a vitória. Um rei sem deus é um
rei sem vitória. Saul sabia muito bem disso e toma providências drásticas. Como vimos, nas
fileiras de seu exército existiam homens que eram de origem cananéia e israelitas que
praticavam junto com suas crenças monoteístas, cultos e ritos cananeus. Dentre estes ritos
estava a necromancia que foi combatida por Saul a mando de Samuel quando vivo. Ao
perguntar a alguns de seus homens, provavelmente membros de sua guarda pessoal, sobre
onde encontrar alguém que invoca espíritos, prontamente eles lhe anunciam da existência
de uma “senhora de espíritos” (‫ – בוא־תלעב‬baalath-obh)98 na localidade de En-Dor. Tal
cidade ficava do outro lado das linhas inimigas, mas, isso não intimidou a Saul e sua ânsia
por alguma revelação ou sinal divino, que junto com alguns homens rodeou o acampamento
filisteu e foi de encontro à mulher. En-Dor era uma cidade onde a prática da necromancia, e
a cultura cananéia estavam muito presentes e fortes, mesmo quando sob o jugo israelita. Na
cultura cananéia, esta pratica estava relacionada às mulheres como comprovam as pesquisas
arqueológicas em Bogazqeui desde 190699. Disfarçados, adentram a cidade e encontram a
necromante. Ao pedir a mulher uma sessão, Saul é repreendido pela mesma quanto à
prática, certamente aquela mulher já tinha alguma desconfiança de quem seria ali, ou
precavera-se de uma represália vinda dos sacerdotes israelitas. Uma cousa era certa, já tinha
conhecimento de ali se tratavam de soldados israelitas, o quer era fácil de identificar pelas
roupas e armamentos, e principalmente o sotaque que os diferia dos filisteus

98
Primeiro Livro de Samuel, cap. 28, verso 07.
99
Bogazqeui está localizada na grande curva do rio Hális, a 144 km leste de Angorá. É a localização de
capital hitita. Tais descobertas têm ajudado e muito sobre este episódio bíblico. H.Winckler decifrou e
interpretou diversos textos hititas cuneiformes que nos contam sobre as práticas ocultas e rituais mágicos na
antiga Ásia Menor do segundo milênio a.C. e posteriores. Como dissemos, tais ofícios eram prerrogativas
especiais de mulheres de senil idade. Vários séculos mais tarde, a presença de mulheres será relatada entre os
assírios e cananeus de Ugarit, ao norte da Síria, no século XIV a.C. Numa tradução mais próxima podemos
interpretar o termo “OBH” como “espírito familiar” que por sua vez denotava espírito dos mortos.

63
provavelmente100. Saul ao perceber que a mulher está resistente quanto à prática dize-a que
nada irá lhe acontecer, então ela o pergunta qual espírito seria invocado. Samuel, ele
responde.
É bastante curioso que Saul tenha pedido para falar justamente com o sacerdote que o
boicotara a todo tempo de seu reinado até sua morte, que ungiu seu arqui-rival e o
abandonou à sorte. Talvez os problemas de divergências mais estivessem em Samuel do
que em Saul propriamente dito. O texto relata que a mulher ao ver o espírito emite um grito
que pode ter sido interpretado como de Samuel. Devemos considerar que este relato foi
descrito por uma testemunha ocular devido aos detalhes e que esta testemunha cria naquela
revelação. Os médiuns e até mesmo os próprios profetas hebreus utilizavam narcóticos e
álcoois em suas cerimônias. Isaías nos relata até da utilização abusiva destes veículos de
revelação101. Em estado de transe chegando até às vezes ao frenesi, entoavam cânticos
melancólicos e até gritos. Estas sessões de necromancia eram sombrias e regadas de
incensos nauseantes; não é a toa que Saul ao final da revelação desmaia. Eram também
recheadas de alguma pirotecnia. O grito, normalmente informava da chegada do espírito ou
o começo da revelação e seu ápice. Saul provavelmente assustado com tudo aquilo comete
um deslize e permite que a mulher veja seu rosto escondido sob o capuz da capa.
Novamente diz à mulher que não era preciso pânico mesmo sendo ele o próprio que a
proibira de exercer sua prática. Então o que se sucede será uma revelação mais aterradora
do que apaziguante para o coração daquele conturbado rei. A fala do suposto espírito de
Samuel era clara:

“Amanhã, tu e teus filhos, estareis comigo.”102

Saul saiu dali arrasado e crente de seu inevitável fim. Estava sozinho e nenhum deus
o acompanharia naquela que seria uma batalha fatal. Aquela mulher, certamente ao
100
Não sabemos ao certo como era o idioma dos filisteus, provavelmente, em virtude de sua origem egéia sua
língua possuía aspectos próximos as dos idiomas egeus e depois do grego primitivo. O sotaque e a forma de
construção de fala pode ter sido um fator que os denunciava ali no momento. Havia diferenças entre os
idiomas, hebreu e cananeus como relata o Livro dos Juízes no capítulo doze em que os prisioneiros fugitivos
eframitas quando apanhados no Jordão eram forçados a dizerem a palavra “Shibolete” o que para eles era
difícil pois eles não possuíam uma glosso prática de uma pronuncia de um SH sibilante, com isso os gileaditas
os identificavam entre os demais pois eles pronunciavam “Sibolete”.
101
Livro de Isaías cap. 28, verso 07.
102
Primeiro Livro de Samuel cap. 28, verso 19.

64
perceber que quem estava ali era o próprio homem que ameaçava sua crença não hesitou
em revelar-lhe algo que mais contribuiria para enfraquecer-lhe a confiança por muito
atacada e combalida do que apaziguar os ânimos e fornecer conforto. E se este a procurara
era que seu deus o abandonara e ele se achava em grande desespero e sua liderança estava
sendo questionada violentamente entre seus comandados. Como aos profetas, as
necromantes também procuravam estar bem informadas de tudo o que ocorria
politicamente, algo parecido com as sibilas e as Pitonisas do oráculo de Delfos103.

3.5
 A morte de Saul.

Mapa 3.1: A visita à necromante do outro lado das linhas inimigas em En-Dor demonstra o desespero de Saul
naquele momento. Certamente havia filisteus naquela cidade ou até informantes destes. Talvez até a mulher
consultada tenha posteriormente informado sobre a situação de comando de Saul e seu exército.

103
O oráculo de Delfos era conhecido na Grécia por suas revelações ambíguas, com isso as pitonisas (servas
de Píton, a serpente) se preservavam eximindo-se de qualquer culpa sobre o teor de interpretação do individuo
para com a revelação. As sibilas eram profetisas do Templo de Apolo. Seus oráculos eram conhecidos pelo
caráter enigmático. As sibilas mais conhecidas eram as da Eritréia e de Cumas.

65
C e r c a d e d e z o i t o d i a s d e s d e s u a v i s i t a à n e c r o m a n t e 104,
enfim che gara o dia que tanto o atormentou. As fileiras filistéias
então começavam sua marcha de seu acampamento em Suném que
situavasse do outro lado do Vale de Jezreel 105. Seu objetivo era o
acampamento dos israelitas próximo da cidade de mesmo nome. Ao que
parece, os primeiros embates de tropas já definem o que seria o desfecho.
Lo go que as tropas filistéias adentram o território sob comando dos
israelitas estes se dispersão sem muita resistência, já estavam pronos à
deserção e descrentes da vitória há muito. Restaram apenas alguns dos mais
fiéis escudeiros e membros de sua gu arda que corajosamente lutaram e
morreram rapidamente. O primeiro de seus filhos a morrer também seria
Jônatas, o ami go de Davi sendo seguido de seus irmãos Abinadabe e
106
Malquisua. Ferido seriamente , Saul tenta se afastar da peleja, mas, os
filisteus são implacáveis e o seguem vorazmente. Ele então se vira para seu
escudeiro e o pede que dê cabo de sua vida. Não seria bom ser prisioneiro
dos filisteus, pois certamente histórias, como a de Sansão cativo 107, ainda
permeavam a mentalidade dos israelitas. Havi a também a possibilidade de
crença de que seu espírito ficasse preso com os inimigos pra sempre e sem
um funeral digno e com seus respectivos ritos estaria eternamente

104
Se fizermos um cálculo baseando-se nas seguintes passagens do Primeiro livro de Samuel capítulo trinta e
Segundo Livro de Samuel capítulo um, descontando os três dias gastos pelo mensageiro de Gilboa a Ziclague
podemos perceber que Saul morreu dezoito dias após o oráculo que revelava que ele morreria no dia seguinte.
Alguns estudiosos da Igreja na Idade Média e da atualidade interpretam a passagem considerando que o termo
hebraico “amanhã” (MAHAR- ‫ )רחמ‬encontra-se no indefinido, o que pode estar errado, tendo em vista que a
exegese do hebraico não oferece uma sustentação plausível para tal interpretação.
105
Cf. Mapa 3.1.
106
A tradução portuguesa é infeliz nesta observação do texto. Traduze-o como “Saul muito os temeu”
(Primeiro Livro de Samuel, cap. 31, verso 03). O verbo temer em hebraico (HUL) é de étimo obscuro e o
sentido ali está mais para o verbo ferir (HALAL). Na LXX, acha-se “... e o feriram no abdômen” e na Vulgata
aparece: “... e o feriram gravemente”. Ferido pelos arqueiros Saul nada mais podia fazer.
107
Capturado pelos filisteus após uma conspiração arquitetada por Dalilah, Sansão tem sua cabeça rapada,
seus olhos são arrancados e posto a mover uma mó, ofício dado a alimárias. Ante, esta aterradora história do
triste fim de um dos heróis de seu povo, certamente, Saul sabia que se fosse apanhado vivo e levado, sofreria
tal martírio ou pior. Dar cabo à própria vida pode ser visto como uma negação à humilhação do que um ato de
covardia. Livro dos Juízes, cap.16.

66
condenado. Porém, seu escudeiro se recusa a cumprir a ordem, tocar em um
ungido era um risco não apenas, como cria, de maldição divina mas,
principalmente da morte pelas mãos humanas, apesar de que quando se
encontra com Davi este individuo assume a autoria de seu ato, o que pode
caracterizar que o escudeiro não era israelita. O que irá custar-lhe a vida,
pois Davi não deixaria vivo o assassino do rei. Não porque tinha alguma
afeição a Saul, mas, porque, deixar um individuo assim, livre e vivo era
risco para ele também, t endo em vista que a crença de unção deveria ser
mantida inexpugnável pois representava sua segurança de vida 108.
Provavelmente este texto foi inserido com a intenção de se evitar que se
corresse a História. Saul é morto, sua cabeça é separada do corpo que será
exposto em um muro de Beth-Seã. Suas armas são colocadas e oferecidas no
templo de Astarote. Anuncia-se por todos os reinos filisteus e vassalos da
morte do rei dos hebreus. Num gesto de honra e em virtude da gratidão por
ter libertado sua cidade, os habitantes de Jabes-Gileade recuperam os restos
mortais de Saul e o levam para Jabes onde o cremam. Seus ossos então são
sepultados debaixo de um arvoredo por ali próximo. Jejuaram estes por sete
dias pelo luto da perda de seu rei. Enquanto isso Davi ficara em Ziclague;
ao receber a notícia de que Saul estava morto se demonstrando devidamente
consternado com o trá gico fim de seu rival. Porém, é de se estranhar sua
tristeza tendo em vista que poderia ter feito al go. Ao invés disso, enquanto
Saul se movimentava naquela que seria sua última batalha, Davi fazia peleja
contra os amalequitas o que reforçaria sua posição facilitando sua subida a
Hebrom que o fizera após a morte de Saul e conseqüentemente o trono
achava-se vago, por enquanto, pois ainda havia filhos de Saul vivos que

108
A crença da unção era o âmago da pessoa do rei. Ao passo que este era ungido, não só a pessoa física se
manifestaria como um monarca sagrado mas, principalmente sua personalidade mística adquirida após tal ato.
Cf. MAUSS, Marcel e Henri Hubert- Essai sur nature et la fonction du sacrifice.

67
posteriormente reclamariam o direito dinástico da sucessão como foi o caso
de Ish-Boseth que não duraria muito no poder 109.
Na História, Saul ficou conhecido como um rei rebelde para com
seu deus e sua crença e desobediência o condenaram ao triste fim nas mãos
dos inimi gos. Com a ascensão de Davi sua figura aos poucos será construída
mais fortemente neste viés de pensamento. Contudo sua pessoa nos
demonst ra quão fora conturbada a criação da monarquia no âmago israelita.
Sua dificuldade de relacionamento com o profeta Samuel é bastante
presente em sua regê ncia. Porém, mesmo com a inimizade Saul o procurara
através de uma necromante, o que podemos ver que o problema para com a
monarquia estava mais em Samuel do que em Saul. Sua vida como rei foi
marcada pela solidão nos últimos momentos de seu reinado, abandonado e
revestido de um medo a conspirações quaisquer, muitas vezes ima ginárias,
provenientes de sua debilitada faculdade mental. Mas, por outra ótica,
podemos compreender que lhe foi imposta uma grande responsabilidade
para a qual ainda não estava preparado ele e principalmente o seu povo.
Contudo, mesmo assim enfrentou suas adversidades até onde pôde e seguiu
para sua morte certa. Talvez já estivesse cansado de ostentar a pesada coroa
sozinho em sua preocupada cabeça. Enfim, ante a tudo que ocorrera, Saul é
um personagem intrigante e por deveras fascinante da História de um povo
permeado de figuras que influenci arão não só os rumos de sua existência e
sobrevivência até os nossos dias, mas, à História da Humanidade com seu
grande legado no papel que conquistara como o Povo do Livro.

109
Ish-Boseth reinou em Israel por dois anos enquanto Davi buscava ainda reunir forças em Judá da qual era o
rei. Foi assassinado em seu leito quando dormia. Sua cabeça decepada e levada para Davi (Segundo Livro de
Samuel, cap. 04)

68
Conclusão

Numa re gião permeada de outros povos com diferentes práticas de


culto o monoteísmo israelita não conseguiu uma uni dade conforme seu
imaginário religioso. A idéia de um “Israel Pleno” em que toda a Palestina
fosse de posse dos hebreus por direito de uma promessa de seu deus
Yahweh, não se concretizaria no decorrer das magistraturas e, nem
posteriormente no primei ro reinado. A Terra Prometida pregada por Moisés
no deserto e seus sucessores permaneceriam mais na abstração dos líderes
israelitas e no senso comum até nossos dias. O anseio de uma teocracia
defendida pelos sacerdotes, principal mente por Samuel, foi pouco a pouco
se desconst ruindo entre os líderes das tribos que buscavam maior influência
nas decisões concernentes ao governo. Com o surgimento de uma
aristocracia baseada fortemente na cultura agro-pecuária com interesses de
se manter ante o avanço dos fil isteus em suas terras as vozes de uma
centralização eficiente de governo numa pessoa irão ecoar mais fortemente,
tendo em vista que seus adversários obtinham sucessos em suas conquistas e
expandiam seus domínios. A primeira tentativa de um poder centralizado
por muito reclamado pelos anciãos tribais vai resultar numa monarquia
conturbada, tanto pelas complicações do conceito e das atribuições do rei e
até o significado de sua pessoa no pensamento daquela época aliado à
resistência do clero em se aclamar um rei, tanto por causa do próprio
entronizado, Saul com seu temperamento e humores inst áveis e peri gosos.
Enfim, o monoteísmo hebreu não conseguiu a hegemonia em Canaã, e nem
em seu próprio reino. Ao que parece, o Israel Pleno tornou-se mais um
paradigma de uma perfeição inalcançável do que uma realidade em si.

69
Mapas:

• Os mapas contidos nesta monografia foram produzidos pela Hardlines para a


Trhee’s Company & Angus Hudson Ltd, respectivos detentores de copyrigh, exceto
o mapa 1.1 de autoria de David Greenspan para Ancient Egypt, 1969.

Figuras:

1.1 BASOR, n°128, fig. 04, new haven, Connecticut.


3.1 Description de l’Egipte, ou Recueil des observations et des recherches, vol.2, pl.8,
fig.07, Thébes, Medynet-Abou. Paris 1809.

Fontes Primárias:

• Bíblia Hebraica Stuttgartensia - Stuttgart - 1969- Deutsche Bibelgesellschaft.


• Bíblia Sacra Vulgata – Stuttgart - 1969- Deutsche Bibelgesellschaft.
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Ut Habere Sapientia Pro Omnes

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