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HARALD SCHULTZ VINTE E TRES INDIOS RESISTEM A CIVILIZAGAO EDIGOES MELHORAMENTOS Fo Jauguara, aflvente equerdo do alto tio Paragua "Por qué?” pergunto rindo, “os Umutina slo braboo” f'imuther€fhas f yerade que ot civifizados também matavam mu tos déles. Eos Umutina nfo perdosvam! Mas depois velo o pauls tang. Heinano dos Santor Mascarenhas, at por 1913, me parece, @ hundo do Servigo de Proto aos Indiore do General Rondon. Emo 7 umn posto. conseguis vitarov indios na maloca. Desde entdo acabaranbee as guerrat com de. tos da epidemia af por 1920 ou Tf. Antigamente eram muitos. Era gente ono formigal Fer poucos ancs, ainda vinham grupos les até dvamnos ido. que pediam, de médo. dé Sto terrivesl senor les bichos do mato.” : : i Riowne do seh, qualificaivo e seguimos marcha com 0 camino. Atravewamos o tio Pataguai num baixo e aleangimor 0, posto "Fra termdade Indigens", a uns dois quildmetton dx margem peqeninas casts de tijlos, construldas pelo proprio S. D. L, onde Mnotam os indiot; na extremidade superior, ash de adminitrato, Chieriati, escola ea residéncia da familia do encarregado do posto Aos nosis tres de sinalizagto vem muitos Indios. Os homens com on cabelor cortados 4 moda sertanejayusam calga e-camisa. As mule res, de sain e blu, tm on cabelos sites pinto com sua familia, e alguns outor Indios PatecVieram de. Uta Fit junto com alguns indies Nambiquara, Nas a maior sf Un tin. talver algumas dezenat, Eater ltimos vivem no. posto desde sia Inline ‘Logo spéx 2 pacifiegto Srrompen ‘wma epidemia entre ot UUmutina da selva Muitos moran! Os orfos foram recobidos pelo pessoal do psa indigena e por és educados. Hoje sfo casados tu tor de sets hor nfo alam mais © idioma de seut pais freqentam ‘escola do posto, " dos desis, : : a ® Kupodoneps, ou simplesmente "Kupo”. Rap: Gasado ‘com na india da maloca, Atiaki. " Kupo fala bem o portugués eo idioma uinutina. Diz que foi criado no podia se casar, segunto a Tels dt tribo. Por isto fugiu,coméela Os indios Umutina na aldeis, assim afirma Kupo, éstes teriam pumido ‘Auiaks com a morte Apes dist, Kupo mostrase disposto a me acompanhar até a ma loca gail A tarde do dia seguinte observo colunas de fomaga, que se Jevan tam ao Tonge, na mata. Eo sinal de chegada dos indios Estamos reunidos em frente da casa de administrago do piso in figuras da mata proxima, que mais se assemelham a diabos solion do na altura dos alos ¢ da boc, ‘ges, pulam para os lados, para tris e outra ver para a frente, apr: @ com a fecha dirjgida ameacadoramente contra nds, pronta’ a. ser arremessads. Ouvese © estalar da cords, mas. flecha iho aga. voo, ficando présa entre o indicador ¢ o polegar do agresor © ‘espeticulo, repetese, enquanto os indios se aproximnam. Estacam bem perto,e todos apontam a flecha contra nosso‘ peto,fazend esta. lar alcorda cos arco (0 busto dos indios movimentase em vaivém lateral, com tremor in tensa, sia faganha € tio estranha © amedrontadora rmaneira mito peculiar e difundida tom que tendas sangrentas ente indies € neobrasigres: ne. pasado, respondiam com suas armas de fogo, susctando. 0 lio. dos selvieolas que vinham pacificamente © com as melhores intengoes de amirade a0 tados, balanceando o busto ¢ proferindo em cochicho a pergunta repe tid mitas vézest “Mistckame? Mistekamé? = Como te! chamas?™ de uns trinta anos. quatro filhos, dos jue qualquer um de wacko. agressiva” Igumas tribos indigenas AA exquerda: Yarepi ¢ 0 mais velho da aldeia, veterano de guerras sangrentas contra ° inousor de suas terras. # de indole Bondosa, ¢ se orguiha por sabes confeccionar farmas com perfeicho sem igual entre or Umutina. A direlta’ Nas visitas e durante ‘2s rituais, of homens wsam coures de once, lontra e jaguatirica is costes, Ne guerra, savannas também sébre 0 pet, stina protesdo contra flechadas, Aereditam que ‘asalmas dos parentes se Yeendarnam estes couros € eM alguns enimais stlestes fue ‘A cada pergunta respondo 0 meu nome, que fica gravado entre éles como “Arodo” e que repetem até memorizé-lo, Estio vestidos de calgas, que usam sdmente quando fazem visitas aos civilizados. De volta & mata despem-se imediatamente. Presenteio cada um com um facio de mato, um machado e um pu- nhal. Com a limina déste preparam pontas de flecha para caga de ani mais grandes, assim conta Kupo. Antigamente, usavam para o mesmo fim uma lasca de taquara vene nosa. Afirmaran-me, mais de uma vez, vangloriandose, terem usado cessas flechas também nas guerras contra os brancos. Um homem ferido com tal ponta venenosa vertia sangue pelas nari nas, pelos olhos, ouvidos ea prdpria pele. Chamam a esta ponta de flecha “yuparé"® 13 bela flee muito comprida t ormada com penmgem de toi, tendo farpelos de osso de ong. Awim mands especialmente explicar pelo in terprete Jukuepa, que or neobratileiror consideram hele. dos Indios. Umma tina. Na relidade & apenas um dos indiog de mais personalidade® monial £ um homem tmoco, de membros tinos mas musculosos, © de ‘Como nio disponto mais de machados e faces, entregothe sbmente um punbal mendo ¢ bem em minha frente, a mio dizeita ‘com 0. punhal afiado ‘Mas, confesio, tenho vontade de fugir de horror ¢ espanto! Mas querem que eu parta logo com les. Explico que iso € impor sivel, visto que quero subir o'rio Paraguai pata poder Tevar todos 0s mata distante, ay donado da velha roga do. posto indigena, Passamos a corredeia gram de, *zingando”™® o. pesado" batelfo, Depots de um dit e meio, estamos proximos do porto dos indios Aind de longe anunciamos nossa chegada com longas. Durinadas em thifre de b Nio pete a tradicional saudagio. Mudos, ajudam a descan ntrada'do Tancho, que na escutidao mais se assemelha. a um de-palha, vejo"duas imensas aves peraltay, cujo vulto se © com figuras humanas. Estio se aquecendo 0 fogo, fugindo da ns nasa chegade com longas businadas em chifre de boi Da penumbra da com sorgem homens e mulheres, aproximamse esquivos, curiows. Querem ver o héxpede rato, Crianeas, choram, Dar iecaisn ogy pols degen) prio feapaerpetorelpecea| Peixe! Pex! De ato, n0s ji ande quantidade de pescado a secar sObre segs manent foe Come at Teepe canara taf etiratdienty etepuadonnefeceee ere seine de boarvindas um lindo tacape em forma de giadio. de dois Ta. capeiciosumente| Wate (da raadetrs presale} area rateion caguia, legante, cajo tronco é intiramente coberto de espinios com pridos © duos, O palmito tem o gésto de améndoas doces. Na regio P Conhecida como palmelra jeriv Etmbaixo do teto, montados sObre o vigamento da casa mal ilumé nada pelas fogueiras, decubro tun grande nimero de aves ile domesticadas. Refugiaramse também da chuva, Hi um lindo gavido quase bran- co, Exitem falcSes pardos, mutuns pretoe de bict vermelho, outros de bico amarelo e uma crista de peninhas pretas onduladas, jacus jacutingas, varias araras vermelhas e'arara canindé, um papagaco gran te, todo verde ¢ petiquitiahos novos ‘Nio patecem ter médo de mim, pois continuam pousados calms reales ancien Coane peed Das vigns pendem céstos, bolss trangadas hi feixes de fechas ¢ eae a lad 'No momento em que observo tudo isso ~ os animais, a ordem den- tzo da casa, que de Tonge parecia um caos — o ambiente me parece mais acolhedor. akuepa ofereceme peixe cozido e indicame 0 lugar onde powo vauie we : Tali araiis gra (da\ Comey eee A cobertura da casa esté varando justamente no lugar onde vou dorms As gotas eaei ex 'mcut oat Paneer tan Go Oo (any atreressnda]a [tin gee (aul ee eee Nao comsigo pegar no sono, Tudo que me rodeia & novo, fascinante. Sinrome préso de estranha sensacio, ‘Alta noite, ougo um grito de pissaro cortando 0 silencio da selva adormecida, Parece que vem da shata, Aproximase da cabana ¢ a $0. brevoa sempre gritando, Afastase © ‘Uma crianga chora no sono Jukuepa agarra o chocalho dependurado dum poste e marca act dneia firme: de uma cangfo sonora ¢ gutural, Melodia © ritmo sao to estranhos! Sons e palavras parccem fugubres © indio canta por mais de uma hora Cosa o chtro da ctianya, uae 0 velko Jukuepa continua cantando isainina ag (elses June 16 Explicam-me no dia seguinte que 0 pissaro que sobrevoow a casa, gritando: “Fa saracura do céu'?, que seduz as almas de criangas € adultos adormecidos, levando-as para 0 céu ‘a alma se afasta do corpo por muito tempo, a pessoa morre; mas se volta logo, apenas adoece.” Por isso, Jukuepa procurou com sua cangio convencer a alma de sua filhinha que chorava no sono, a voltar para a terra, e na cangio Ihe conta, que: “Aq o melhor do que no eéu. Na terra esto © pai e a mie, Na nossa aldeia fem beijus de milho e peixes assa dos; no céu nfo tem nada disto, li ¢ frio, A gente do céu nfo tem fogo para se aquecer™, Verifico que téxa a aldeia dos indios Barbados consiste de apenas trés casas, situadas em estreita faixa de mata na margem do alto Paraguai ‘As casas esto separadas umas das outras por distincias entre cem € trezentos metros, aproximadamente. 4s casas dos Umutina so cobertas de palla. Embora sejam construidas pelos homens, Sto de propriedede das mulheres. Em cada case vivem vévias familias Os hhoment folteirot moram com seus pais, e quando se caram, passa viver na casa das expésas 2 22 inion A esquerda: Ricos colarer de denter de macaco, quati © porcode-mato sto 0 rest tado ide mumeresns eagada. Nos braro, indior de ambos os sexes: wan 0. Xuite fenfeite de penas de 'mutun, colades numa place de resina. Tieraimente, Xue fuer dizer: “f de todos nbs!" Tratave do distntivo tribal A direta: Entre os Umu 6s homens o wsam comprido e amarrado no alto da cabera por una fia de algo. Os lobuios aurculares de homens ¢ mulheres s0o perfurades ao mater, Introducer nos onficios wm anel de cdeo de tucum, do qual pendem enfetes de penas mali. ores: Quando adultos. sam muitor andis-nat Ubalon dos quas pendom valatos feixes de enfeites de penar” dr contas de Huarepata obirvamos amulets de bieos ae pasiaras, casas de ‘weado, de ana ¢ porcodomato. Acreditam que os, protegem dn perigon tobrenatura Moro na cabana maior, onde vivem cinco familias, que represen. tam quatro geraies so a. 10 todo s6 existem vinte e tés indios na aldeia, dos quais qua. tore habitam o rancho grande. ee Em companhia de Kupodonepé visito a casa de suas irmas Matare- pata e Huarepati, casadas com os indios Yarepd e Mitoponepa, que vivem a pouca distincia da casa grande. Yarepi esti sentado sObre as pernas dobradas, num jirau formado com uma esteira de palha. Langame um palavreado chiado © agres- 8 sivo, sacudindo ameacadoramente uma clava muito grande e pesada, com o busto a gingar Estupefato, fico mudo diante do espeticulo, Deixo passar a tempes tade, Nada entendo. A mulher do indio, sentada a seu Indo, move a cabeca em ripido vaivém, reforgando a zanga do marido. Nao se trata da saudacio tradicional, mas de rancor legitimo. Kupodonepi informa que o casal esta aborrecido por ‘mos visitado ontem noite, logo nossa chegada, Peco a Kupo que Ihes explique térmos chegado cansados, debaixo de chuva, ¢ thes fago presente de um facko. Yarepa aceita-o visivelmente mais satisleito ¢ se acalma. Em seguida, presenteiame com seu belo tacape, com o qual me havia ameacado, ‘Também sua esposa se torna mais gentil, oferecendo feijiotava co vido numa panela de barro. ‘Ao voltarmos 4 maloca grande, Atukaré convidame a visitar sua plantagio. Conduz-me através da mata por caminhos estreitos c sinuo Sos, quase imperceptiveis a0 novato, £ uma vasta plantagio, de uns 200 por 800 metros, com g trechos cobertos de ramas'de mandioca mansa e brava, que dai ano passado. Este ano plantou milho, que ja esti brotando, Algumas qualidades amadurecem muito antes do milho cultivado pelos sertanejos da regio. Ha batatadoce, inhame e cari, cujas ramas trepam nas pirimides de galhos secos e troncos que sobraram da derrubada e queimada do mato. ‘Outras pirimides estio cobertas de folh: indo. ‘Vemos abéboras ¢ melancias em grande quantidade, pimenta, algo do e um pouco de arroz Nas margens da plantacio ha extensos bananas. Numa roca abandonada, Atukaré mostra-me os atbustos de urucu, de cuja semente preparam a to cobigada tinta vermelha com que se pintam em dias de festa, Se as chuvas se intensificarem, teremos milho verde dentro de pouco tempo. Haverd fartura em lugar da habitual escasser de viveres do fim da o séca, chamada “verio sertanejo” , 0 grosso das chuvas esti tardando. Faz calor intenso ¢ 0 rio Paraguai com seus numerosos lagos esti ficando cada vez mais baixo. # a ocasizo indicada para a pesca com timbé", cipé cuja seiva mata os peixes da igua parada. £ como sabio fino que penetra nos vasos capilares das guelras dos peixes, asfixiando os, s lagos sto. propriedade das familias indigenas. Os Umutina des conhecem 0 conceito de propriedade exclusiva dos recursos oferecidos pela propria natureza, em de feijfio-fava e feijio. » Observando que os peixes em algum lago so numerosos © gordos, Quando a teibo ainda era numerost, hd muito tempor eda a aldeia partia para pesca, Construiam palhocas nas margens dos lagos grandes © piscosos, pas sando dias a pescar € moquear. "Mas isto jf faz muito tempol” asim afirmam os “Barbados “Hoje somos poueos. Todos of outtos ji morreram!™ ‘Uma tarde Atukaré volta da caga e comunica ter encontrado um lag cheio. de peixes gordos “Todos ficam alegres. Os homens saem em busca de cipé-timbé. Vlo A mata alts, proxima, onde éle ees © timbé ‘nfo vings nos trechos de mata atingidos pelas ches. Cortam pedagos de mais ou menos um metro de comprimento. que atam com entrecasca,formandoTeixes grossos pesados. Escondem 40s a0 lado do caminho, cobrindo-os com falhas dé bananeias slvestres ‘Anoitece. As aves domesticadas comecam a procar seus Teliigion, preferindo dormir em cima das cabanas, : 0s indios também se recolhem cedo. Os castis deitamse na esteira cstendida sobre um catre de varas ou no proprio solo da casa. Os pe 4ueninos dormem no meio dos pais, Adolescents e soltciros ji posuem seu lugar proprio, f uma cama dura a dos Umatina! Por algum tempo xinda se ouve o palrar alegre dos indios. Cagoam Sem diivida, discutem 0s acontecimentos mais importantes do dia ow da planejada pescaria, 2 Dentto em pot sb se ouvem cochichos, Os Barbados sio educa: Reina silencio no lar indigena, Em busca de cécos de tucum maduros, brotos ¢ f0lhas, caminha pesada uma anta. Ruidosa, mas sempre alerta, Mantém o longo foe ho em constante movimento, farjando ci'¢ li pelo solo. Descon para alcangéla com bote certero. Prefere por isto um porquinho do 0s poreos-queinada que saem em varay fazem baruiho ao Tonge, ¢& talando o» dents Os quatis descem de suas drvores predictas para fosar o cho {fo com seu focinho sensivel, catando veri, inseton © fron ‘As pacas pastam nas margens dos ios, Com vo silencioso as aves nais silvestres comegam, 2 dexpercsbida, Para tse reina silencio absolut, interrompido apenas pelos violinos de legis de grilos,o-grito de um animal moribund Guo baque surdo duma drvore que ex, apodreci (0 novato nada percebe das Iutas ¢ derrotas que se desenrolam 1a selva durante a note india, que se levanta do lito, ajeitando as achas cle Jenha, ‘Agora crepitam e projetam’a sombra da mulher sObre a parede de pa Riteetrartie/ prircie’ inas' venue parece (eater wetiaeds Tope tie tande! a ancit da casa, Minikamé Mixina, cega Gum lho. (Os cies munca sowegam, atormentados pelss pilgas, Ladram, aten tando os ruidos que vém da mata, perfeamente audivels para Cles TH fora, ob o disco da Iva chela, tudo se torna to claro que de Avnaturera parece morts, imdvel, periicada O bater riumado do chocalho quebra a monotonia da noite, Nova mente x otvem os sons higubres da canto de. Jakepa (O elo canta x invocagao da pesca de timbd! Pede a JURIMA © expiritoprocetor da pesca, uma colhcita fara de peines gordos, Sio veron aricos, que nfo sabem mais tradurins Conecem somen te 0 contend, Jurima fol um feticeiro muito poderoso, experimentado chefe de paca. Contam milagres seus nos mitos da. tibo, ‘Antes da madrugada oy indios se levantam, As mulheres asm um bei de milho em pancla de barro semi-estrica, (Ox homens agarram seus arcos ¢ feixes de flechas especialmente pre Pips Indias retitam os olstos dos jraus embaixo da cobertura de palha da casa c colocam néles as rédes de pesca Criangas choram, despertadas bruscamente. Mesmo_os pequerruchos ls, mitand os movimentos dos adultos escuridio que se exfuma celeremente. Caminfiamos em fila nem talho tagio 20s meus companhelros, que seguem 9 cantnho sehr dficudade Nas copas altas das drvores bandos de jocitingas se deliciam com Escutamos seus assobios agudos, satisfetos, ¢ 0 tatalar peculiar de Sertam fie présa, mas hoje nfo pensamos em caga, Avante! Avante! Caminhamos dias horas sem parar,aleangando finalmente Iago antigos bragos do ro, Alguns estio perto do atual leito, Outros distam a A esquerda: Barukolot, expéea do walente ¢ bondoso Atukané, Prepara espigas de mitho para o fabrico de pes, Atukaré pediu & espésa que deiwase creser o abeo, para déle fazer 05 colares de festa. A diteta: Desde cedo, 0 indioxinho se familiarisa com o uso de arco ¢ flechas. Quando nasce, 0 pai faz arco e fleches pequenas, que quarde orgulhoso para a primeira cagada em que. 0 fhe 0 acompanhar No verio, a maioria déles nio tém I reecbem Agua pelos sangradouros ou si Desta maneira aco com 0 rio. No inverno Atingidos elas inundagdes. es so repovoados anualmente com peixes. As mulheres atam suas rédes de fio de tucum sobre varas flexiveis dando-thes forma circular ‘Os homens trazem da mata vultosos feixes de félhas de palmeira acuti, cujas hastes resistentes as mulheres fincam no fundo lodeso do Jago, de maneira que, colocadas bem juntas, formam uma parede gros- sa dividindo o lago em duas partes, quase iguais. Em. algumas aber: turas, colocam as rédes de pesca, ‘Os homens vio agora para uma das extremidades do lago. La cons troem tripés pequenos de paus dentro da gua rasa e colocam néles os amarrados de cipé-timbé. Um som estridente e longo ressoa por sobre 0 lago. & a buzina de Jukuepa, chefe da pescaria. Af mulheres dividivam 0 logo com uma parede de félhas de palmeira, espetando 4! hates no fundo lodoso, Nes aberturas colocaram rédes de. pesca. Os homen ‘envenenain a dgua com 1 seta do timbd, omeca a cantar a invocagio dos peixes: “TALATURIXE, TALA. TURIXE! — ces! Fugi todos! Nosso veneno esti vos esperan- do. Mesmo que fujais, nada vos poder salvar. O timbé vai vos ful: minar a todos. Vai encontrar-vos no fundo do lago ou escondido de: baixo dos troncos putrefatos..” E em seguida chama todos 0s peixes com seus nomes p jioma umutina, tantos nomes que a cangio parece ndo ter mais fim, Com rijos cacétes comegam a triturar os feixes de cipétimbé dis. postos sObre os jiraus. Num bater ritmado as lianas se esfacelam ripida e facilmente. Em- purram-nos, agora, para o meio do Iago e os sacodem violentamente debaixo d’igua, Sciva espumosa e leve, brancoazulada se desprende cobrindo a su: perficie como flocos de sabio. 2 Com argas bragadas os indios a exspalham cuidadosamente, Ievando-a as enseadas até que penetre por baixo da vegetacio dos barrancos e di raizes langadas por arbustos, que formam esconderijos para os peixes. Jukuepa observa o trabalho incansivel dos homens, fle mesmo ma. nipula o feixe mais pesado, As batidas enchem a natureza de ritmo. Lentamente os pescadores se aproximam da parede de fOlhas onde as mulheres esperam ao lado de suas rédles © wabalho é drduo. Os peixes parecem jé conhecer 0 ruido caracteristico da_pesca de timbé, Desde 0 inicio da operacio procuram fugir para a extrem dade oposta do lago. Nadam ao longo da parede de folhas, procuran do pular por sobre 0 obsticulo desconhecido, ¢ assim vio entrando nas rédes. As mulheres, sentindo a trepidacio, jogam-nos para 0 barranco, onde crianas os agarram com grande algararra, para assi-los na brasa Depois de duas horas ¢ meia os homens cobriram téda a superficie com a seiva de timbé. Alcangaram a parede diviséria. Agora descansam um pouco, Logo comeca a colheita, © Jago comeca a criar vida. Vida que cessaré logo! Peixes © mais peixes sobem a tona, respiram com dificuldade abrindo e fechando a bdca convulsivamente, Viram a barriga branca para cima, mortos Centenas, talvez milhares de peixes salpicam 0 Iago de pontos bran. 0s. So peixes moribundos € mortos, Alguns saltam para fora «agua, nnas margens, procurando fugir da seiva asfixiante do timbé. Outros se escondem debaixo das raizes nos barrancos. Na agua bem rasa, de um dedo de profundidade, na beiradinha do lago, os peixinhos mitidos de céres vivas, parecem nao ser ating dos pelo veneno. Agora, as indias abandonam as rédes. Fecham as aberturas da parede diviséria com fothas e invadem o lago, cujas éguas hes vio até a cin tuura. Com suas rédes recolhem os peixes mortos da superficie, jogan- dows por sobre os ombros, nos céstos que Ievam as costa, Munidos de arcos e flechas menores do que as usidas nas cacadas, Aproximam se wutelosamente dos peixes grandes, somente atordoa dos, que procuram escapar para a profundidade das dguas, turvadas pelo movimento de muitos pés no Iédo. Os atiradores esperam imdveis que peixe volte & tona ¢ a flecha da é certeira. Raras vézes erram 0 alvo, Desta maneira atiram varias Com rijas cacctadas trituram os feixer de cipé-timbé, que se exfacelam rapidam © sei de cpt wituadg ¢ weuido na digas. Desprendese ume sca perfeitamente comestiveis : 2% fechas, uma atris da outra nos peixes alvejados, que se debatem lou camente, fisgados, levantando espuma Logo os recolhem, enfiando um cordio de cipé flexivel nas gueltas, arrastam-nos atris de si como grossa cadeia prateada a relucir aos raios do sol, No barranco, os peixes io empilhados separadamente para cada fa milia. Nunca hi desentendimentos, nem inveja. Hii em abundancia para todos. Basta ir buscar. Amanha haverii ‘outros Iagos cheios de peixes gordas ¢ saborosos, Quando chegar novamente o tempo das chuvas ¢ das matas inunda. das, as guas do rio se turvaro € os Umutina, entio, no poderio flechar os peixes que no vero tomam banho de sol bem perto a super ficie (© imenso volume <"igua dos lagos, cheios nessa época, nfo poder ser envenenado pelo timbé. Havera escassez de peixe, entio, compen sada em parte pelas colheitas da roca, pela caca e pelas frutas do mato. ‘As mulheres acondicionam os peixes nos. céstos. Enchem-nos até ia das bordas e cobrem-nos com ramas, que amarram com tiras de entrecasca. Os homens enrolam o restante dos peixes numa grossa camada de ramagens de arbustos, que estendem sdbre 0 solo da mata, formando ‘curiosos pacotes, que carregam nas costas, suspensos por uma alga na testa (0 sol ja esti alto € 0 calor € intenso. Todos se apressam para voltar: Na aldeia 6 ficou a velha Minikamd-Mixina, meio cega, cuidando do bisneto, o filhinho de Atukaré ‘Antes de partir para voltar, os homens colocam cuidadosamente os feixes gastos de timbé sobre as fogueiras. Assim rezam as velhas leis, rassam de geragio a geracio. ‘Nada pode sobreviver 20 indio! Ninguém sabe se voltard a pescar no mesmo lago. Por isto, os feixes utilizados devem ser destruidos!™” o meio do caminho para a aldeia, em plena mata virgem, surgem duas figuras estranhas, esguias, braneas, de cabeca € pescoga escuro © bico grande, Batem as grandes asas e choram com vor fina, quase como a do chdro de criangas pequenas, ‘Sio 05 dois tuiuitis mansos. Sempre famintos, perceberam que seus donos haviam saido para pescar e resolveram vir ao seu encontro. Estalam os longos bicos agressivamente e avancam em direcio aos indios, sem ferilos, porém. Parecem fazer a saudacio agressiva usada pelos préprios indios Umutina. 0s peixes procuram fugir, asustados pelo ruido que fazem os pesendares a2 trturar tot fixes de cipd-timbé-e acabam sendo apanhades nay rede. Com certera mortifera HaxipA flecha os peixes atordoados pela agdo da seiva do ipb-timbs, 0 tuivid manso sabe que seus donos foram pescer, Faminto e sé, recolvew irthes tc encontro, marchends alguns quilémetios atviocs da mata, seguindo as sends ‘gue percorreram ox pescadores Os indies nio podem atendélos de pronto, Todos os peixes estio sguardados nos eéstos amarrados e nos pacotes de félhas. Barukolot, a espésa amivel ¢ dedicada de Atukaré, abre 0 seu césto ¢ atita peixes as aves, que os apanham habilmente no ar. Com um ri pido movimento elas os fazem desaparecer no papo grande e dilatavel Demonstrando ainda sua insatislagio, as aves acompanham nosso grupo, sempre estalando os bicos. Na maloca, sem que haja paredes divisorias, cada familia possui sew lugar de trabalho, sua fogueira e seu dormitério, rigorosamente res peitados por todos. Para i se dirigem agora os grupos familiares. As fogueiras esto quase apagadas. Sobram apenas brasas cobertas de cinza. Os que nJo dispoem nem de brasas, pedem um tigio ao vizinho. Logo as hams crepitam algres em tay a drs pariculares de cada 28 Mulheres € criangas comegam a esviscerar € a escamar os peixes Abrem-nos com um ferro da barbatana dorsal dum bagre. Enrolam os peixes limpos em folhas de sororoca para assiclos na cinza quente. Grande quantidade ferve nas panelas de barro cozido. Mas a maior quantidade de peixes é posta a secar nos jiraus, como provisio para tempos de escassez. Hii jiraus especialmente construidos para secar peixes ou “moquear""? ‘carne de caga. Cada mulher possui seu jirau proprio. Debaixo déle, que € inteira. miente coberto de peixes, mantém 0 fogo aceso, com chamas baixas du: rante um a dois dias, Os peixes secos so guardados em esteiras de palha, dobradas, ¢ colo: cadas nos jiraus altos Quando ha falta de carne ou peixe fresco, cozinham peixes secos ou trituram-nos, misturando sua farinha com’ massa de milho condi: mentada com pimenta vermelha. © mingau resultamte chamam "HARE-ZOTU”, ¢ € mui por todos mas para o meu paladar é pouco agradivel. Kokoloté prepara uma panela rece a seu marido Jukuepa, Bste 0 prova. Logo depois ouco palavras aborrecidas pronunciadas apreciado ide cheia de Harézotu, que oft: com 0 chiado tipico dos Umutina, quando zangados. Com gesto vio Tento Jukuepa joga a panela de mingau ao pitio, onde o vasilhame se quebra, espalhando seu contetido, que os cies magros devoram com sofreguidao, Estava muito mal preparada, diz Jukuepa. Um gesto incomum, alias, moan © delcados indios Barbados Os dois wins rondam a casa de palha de lados descobertos. Mata Mas op glutocs nunca ficam satisfetos, Um déles aproximase cau pago The furta maior Assustada, a mulher dé wm grito agudo, mas logo dlago de Tenha aris da atrevida fugitiva path eaia eae . : : Matarepatd persegues com uma flecha na mio, Ela foge répid pasos cimbaleantes como os de um ébrio. Os dois tufaiis fecebem te futebol : os: : ompe em gos ia, langa um pe- Hodoté, filha de Huarepati e do valente Mitoponeps, tem especial prazer em me contrariar. Aproveita qualquer momento em que me ausento para bulir em todo canto do meu acampamento. Por mais A esquerda: O tuiuid comeu tentor peixes que nem pode mais ficar de pe. A diveta Depots de excamadot ¢ enisceradat, of peixes, jure. secar, so colacados sdbre. 0 imugquém, debaixo do qual mantemse Jogo lento, Tambem a velha Mitikamé-Mixina prepara’ os seus peiner para diar de escases, que @ repreenda, sempre repete suas sorrateiras pesquizas. Nada furta, mas remexe tudo 0 que me pertence. Tem vocagio para etndlogo, sem diivida, Para terminar com 0 aborrecimento continuo, lembro de pedir-Ihe que cuide para que ninguém atrapalhe a ordem dos meus utensilios, explico-Ihe que alguns so muito delicados e frageis ¢ ela, desde entio, nfo s6 montou guarda 4 porta do meu rancho, como nunca mais tocow nas minhas coisas. Hodoté é sempre quem pede a Matarepa conte histérias para a criang ao pé da velha, a melhor co Da casa vizinha velo de visita seu primo Ikodo, que brincou a tarde imteira com 0 pequeno Kupodoneps ou Joaquim, exercitandose os dois no esporte de tiro ao alvo com arco e flecha, sua tia, para que sentada numa esteira, Ideia, Py A exquerda: Hodotd é a menine mais graciosae vivax da aldea. A diveta: Huarepata fia aigoddo fara uma nova Amets, « sain tubular das indias Umutina Matarepati, entdo, comeca a contar uma das muitas lendas da tribo. Certamente pela centésima vez “Donde vieram os primeiros indios Umutina?" “De primeito nao havia povo. HAIPUKU2 andava muito triste, s+ zinho. Ble ficou pensativo e logo inventou alguma coisa pra. fazer. Experimentou juntar frutas de bacaba do campo*. Juntou frutas machos ¢ frutas fémeas. Emendou-as até atingirem dois pés de com primento. Depois colocou tudo de lado. Esquecewas.” “Ao cair da tarde assustouse com a conv. crificar 0 que havia e viu que as frutas nnte. Ficou muito satisfeito, pois entio tinha companheiros.” frutas ficou com Haipuku e logo formou uma fami- m era melhor! Mas Haipuku achava que esa gente sa de gente. Haipuku nham se transformado a “Por iso fer outra experiéncia, Tentow emendar frutas de figueirs®, sus também viraram gente, quando chegou a noite.” “Depo cmendon ainda frutas de bacaba do mato#, que viaram indioe de cabelo comprido, dois homens e duas mulheres.” thes apertencta com mel de abelhas sivestres, que se transformou também tam casa, com a cabega im pouco mais pelada ude ji havi muita gente na terns. Um dia Haipuku sentiu que as bartigal das suas pernas estavam inchando. Ficaram bem gross Quandetperceben que estava chegando a hor, foi para © mato, Encos Guru nana iguelta brava © barvgas das pers racharam® Seam quo erlang, duas meninase dols meninos. Haipuktt vol tecido.” Catalogo The perguntous “Por que nfo touxeste as crianga “Hapa respondeu aborecido: "As criancas no querem vi!” “Ele edu a mua espésa que fizesse dus ssias pequenas de algodio pan aia Ble me fio dan eqns Hh Meda, Haipuu voltou ao Iugat onde tinha deisado as erianga a umm cas de brasileiros® umn casal de Umutina, A menina br Tarbadosinho ficou logo multo satiseito : case aiggundo que teve muito trabalho em carregat "as bratas das bar Gee Geral! Man as riangas nfo. quiseram ir com éle. Os bras- Uimutina ficaram do lado diteito.” ene Yas" frutas ficou morando com Hiaipuku, #les sio os an fos dos Umutina de hoje! ree se ddicam ao preparo de arcos ¢ flechas. Sempre se perdem ae echas, que renova conforme as vai perdento Oda intro at mulheres se ocupam'com 0 preparo de ali eebele don homens "Trangam esteiras de pilha ¢ bol, enodam Saquinhos ov fabricam panelas de barvo, ‘\herar de sa iad avangada,o velho YarepS costuma sar em busca de thet de abet slvesties Constr andaimes nos troncos que deseja os. 2 © tear & primitivo, mas 0 tecido de grande durabilidade dicior 4 na hora num cartucho de félhas. : Pee aaa) ani fee atiapds ea ad exceraaden (Ogu 4 muita qualidades de abethas slvestes, Os. Umutina tém um nome para cata espécie. Conforme a qualidede do mel ea esiago im gu 0 colds varia se goo, HB mel ao, dour € de, cia tere een aca ese ems aoa a geirs, quando ingerdas em grande quantidade Atukaré é considerado o melhor cacador do grupo. Quase dria dos Tagore do vio Paraguai com macaco, quatipurus ov algum outro 223 ino ae Hoje anuncia satisfeito ter encontrado um grande bando de maca. cox-prego do outro lado do rio, Como prova traz um que flechou. A noticia provoca vivo interésse na maloca ¢ corre ripida de boca em bdca. As armas sio revistas e preparadas. Macaco-prego é um petisco para os indios “Barbados”. Por isso resol: vem darthes uma batida no dia seguinte.. ‘Atukaré sacode a minha réde, Acordo, Esti acompanhado de ues indlios. Cada um traz pesado feixe de flechas ¢ 0 sew arco, Do pescoco Ihes pende sébre o dorso o facio, afiado, sem bainha, Falta ainda uma hora para a madrugada, A lua ilumina 0 chlo da mata entre as drvores. Seguimos em fila até o porto préximo, Uma canoa torta ¢ frigil esti amarrada, £ uma ubd, escavada em um tronco, presente de um indio Barbado, civilizado, parente dos indios da mata, que vive no posto indigena (Os Umutina selvicolas nfo sabem construir embarcagées. $6 agora aprenderam a maneji-las, Julapare entra na canoa. Seu nome significa “homem valente”, E 0 mais mogo do grupo. Sentase calmo na pOpa, mantendo com 0 remo © equilibrio do bareo instivel Seu irmio Katuli acocorase na proa. Com um empurrio, Julapare movimenta a ubi, que corta incerta as dguas ripidas do rio. Duzentos metros rio acima desembarea o passageiro na _marg posta. Julapare volta ¢ conduz os demais passageiros um apés outro, Entramos na mata. O cho esti forrado de folhas sécas. Milhares, de espinhos agugados e duros cobrem f6lhas ¢ hastes das baixas pal meiras de tucum, que formam espéssa vegetacio, s indlios pisam sem fazer ruido; atravessam os espinhais sem se ferir Meus pés, protegidos somente por sandilias ficam cheios de espi nnhos, que penetram dolorosamente Desde pequeno o indio aprende a colocar os pés de maneira ade. ada para evitar ferimentos. Andam quase sem olhar onde pis, A mata é silenciosa antes da madrugada. Nada se ouve. Nenhum animal aparece. O novato pode perambular durante muitos dias mata virgem do alto Paraguai sem conseguir ver um animal de porte Mas para o indio a selva esti cheia de vida e movimento. Ao raiar do sol, durante alguns minutos, a mata enchese do canto de pissaros de tda espécie, que parecem gorjear de jtibilo pela che gada do novo dia. Depois a selva silencia de novo. Antes do por do sol repetese o mesmo concérto. Os raros mamiferos esto agora escondidos, digerindo, Dormem em suas locas ou em esconderijos improvisados, hem escolhidos ¢ de difi il acesso, Na senda que seguimos encontramos rastos que se cruzam em mui tas diregdes ou formam trilhas, Conduzem geralmente a aguada. Os indios contam que antigamente a mata estava cheia de caga de toda espécie. Um dia, surgiram levas de cagadores com matilhas de cies, 1 Atukaré ¢ comsiderado 0 methor eagador do. grup Os Umutine no saber fazer embarcardes. Esta canoa instdvel torta de um tronco oi presente de um Indio civilizado do pdsto “Praternidade Indigena”. Antes disso devassando as florestas do alto rio Paraguai e de muitas outras regises. Tiravam somente 0 couro da caga abatida e deixavam sua carne apo drecendo na mata. Dentro de poucos anos conseguiram destruir gran de parte da fauna, Depois da carnificina irromperam epidemias entre fs animais silvestres que restaram. Os indios Ireqlientemente encon- travam antas moribundas, porcos de mato e veados doentes, deitados. Atribuiram a epidemia aos cadiveres que os cagadores deixaram na mata. Depois disso os Umutina quase ficaram sem o seu alimento in: dispensivel, a caga, Por ésse motivo aumentaram sua lavoura e comeca: ram a explorar mais ¢ mais a pesca nos lagos. © rio Paraguai e 05 seus lagos so ricos em peixes e no hi perigo ‘65 indios passem fome, ‘Apés mais ou menos uma hora de marcha, paramos. & dia claro! Os cagadores escutam atentamente numa certa dizegio. Falam muito a 6 baixo, quase imperceptivelmente. Discutem um plano de agio € acer- tam entio a direcio a tomar. Nada consigo discernir. Para mim reina siléncio absoluto, como dantes. ‘Nos galhos duma fruteira alta observo aracaris* saltando, trepan- do de galho em galho, beliscando frutas. A julgar pelos seus gritos, devem ter achado um ninho de pissaros, ¢ ihe estario roubando os ovos ou filhotes. Sao inescrupulosos ésses pequenos tucanos de pluma- gem linda, de cores vistosas, verde, vermelho, amarelo e pardo. Per cebem os cacadores ¢ fogem com alarido, os bicos imensos parecendo querer se antecipar 4 chegada do corpo. ‘Os indios cochicham, perscrutam todos os ruidos que vém da mata. Atukaré afila os labios e deixa escapar um assobio fino e agudo. Imita 0 lamento dum filhote de macaco em perigo. Os cacadores de- monstram ter percebido algo na imensa extensio verde da floresta ‘Atukaré repete o assobio, dando ao som a expressio de solidio, tris. teza imensa, pedido de socorro. Os indios escutam atentamente. Agora também eu distingo ruidos. Gritos assustados, dum bando de macacosprego procura do compa: nheiro perdido. Novamente reina calma. Novamente Atukaré provoca, assobiando baixinho, traduzindo desespéro, ultima esperanga... e silencia longa: mente, Os cagadores ja esto escondidos atris de arvores grossas a0 Tado uma pequena clareira, o arco com as flechas prontas para partir. Ain da a musculatura dos bragos esti frouxa... Atukaré continua asso- biando. Os macacos respondem. Repentinamente, galhos sio sacudidos como que impelidos por s6pro de vento forte. Nada se vé ainda. Sio (65 macacos!... Um macho forte ¢ audacioso, provivelmente 0 chefe do bando, desce de cabega para baixo pelo tronco de uma drvore. Seus olhos pequenos ¢ vivos expressam desconfianga e curiosidade. Nervo: so, olha em todas as direcdes antes de atravessar ripidamente um an: gulo da clareira. Nada trai a presenga dos indios. Atris do macho vém os outros macacos, fémeas com os filhotes agarrados is costas, machos m: cos, menores ¢, por tiltimo, filhotes quase adultos. Todos correm quietos, trepam, pulam. Nao param, assobiando baixinko como se esti vessem conversando, sempre descontiados. ‘A musculatura dos bragos enrijece por um segundo. Flechas com: pridas, munidas de pontas farpadas, agudas, partem como raios, S6 se ‘ouvem os estalos das cordas dos arcos. Dois macacos, o macho grande um menor, so atingidos na goela, caindo com gritos lancinantes de dor e desespéro. Os outros desaparecem como por encanto. Rindo sa- tisleitos, os atiradores levantam 05 dois macacos quase mortos, acaban: do de mati-los. Onde estio os outros macacos?! Nao podem estar Jonge! Comeca a perseguicio. Em célere ritmo, os indios batem os fixes de flechas contra os arcos. Um ruido surdo ¢ forte ressoa pela mata. Sacodem troncos finos contra os gigantes da floresta, para assus- a tar e afugentar os macacos. Nao se vé nenhum déles, de tio bem escon- didos. No t6po de uma arvore muito alta descobrem um, agachado atris dum galho grosso. Parte flecha apés flecha! Nenhuma consegue atingi-lo. Sabendose descoberto, 0 macaco procura fugir. E a sua des- graca! Decidido, salta, gil, para outra drvore € procura esconder-se jovamente, mas os indios nao the dio mais um instante de trégua Uma flecha certeira abate o fugitivo. Cai éle, agarra-se convulsivamen te num galho, com mdos, pés ¢ ‘cauda. Iniil! Uma segunda flecha © atinge em cheio. Bate no solo pesadamente, Os outros macacos agora conseguem fugit. Os cacadores estio cansados da correria. Preparam, 4 présa para o transporte. Amarram-Ihe mios e pernas com cipd. Atam Ihe 0 rabo 4 cabeca, formando uma alga, pela qual o cacador carrega sua présa a tiracolo. Continuamos nossa marcha. Penetramos ainda mais na floresta gem onde nenhum madeireiro ou lenhador trabalhou. ‘olotd, 0 que quer dizer “mulher-estréla", pediu a seu marido que Ihe trouxesse jabuti®® para comer. O marido duma india Umutina nao discute quando sua espsa Ihe pede alguma coisa, mas procura agradé-la, satistazendo seus desejos™. © jabuti prefere os Iugares vimidos da mata, Alimentase de téda qualidade de frutas ¢ até de matéria em putrefagio, Chegamos a um pantano quase completamente recoberto de arbustos espinhosos. Es: lueitos caminhos, debaixo dos galhos pendidos © baixos, conduzem para o interior. So as “trilhas” dos jabutis. Os indios forcam a pas- sagem através do espinhal. Depois de tentativa frustrada, desisto. de acompanhé-los. Prefiro aguardar sua volta, apesar da curiosidade em conhecer os esconderijos daqueles queldnios. Mas os espinhos deixa- riam minha roupa em farrapos, se nilo a minha pele, sol arde. As mutueas me atormentam, Elas pousam sempre nos lugares do corpo nio atingiveis pela vista ‘Atukaré ¢ 0 primeiro a voltar. Perto de meus pés coloca um jabuti grande. Ri satisfeito. Depois déle vém os outros. Falta de sorte! Os jabutis estio ausentes, saboreando as frutas maduras de jenipapo no interior da mata. Atukaré amarra 0 jabuti. Passando uma lasca de embira ao redor do casco, acaba fazenio um lago que coloca na testa com o animal a pender sdbre suas costas Para chegar mais depressa 4 aldeia os indios resolvem cortar cami- nho pela mata, abandonando as sendas, Eram 0 caminhol Passamos por espinhais de tucum tio densos que até os cacadores acostumados se lastimam dos espinhos, que se Ihes cravam nos pés. Finalmente al- cangamos o rio, que margeamos. Sempre tive simpatia pelo jabuti. Possui u rante cinco anos, quando era m tro da sacola de livr que 0 espera. Os jal jabuti da Grécia du: ino. Levava-o ‘mesmo escola den- Penalizado, resolvo tentar salvar éste da morte is sio animais indelesos, lerdos ¢ nio muito 8 Thodo aproveita a oportunidede para um banko gortoso, Desatow seu eabeld com ‘ride, mas conseroa ot Brincos de enat nar orethas inteligentes. & de se admirar que ainda nfo tenham sido extintos das matas do Brasil. Com muito tato dirijo-me a Atukaré: “Atukaré! Jirikiki_pituqué imi? — Atukaré, éste belo jabuti é para mim?” O indio responde com sua maneira amavel mas firme, em vor suave e amiga: "Noké, Haro: do, jirikiki Barukoloté ihd! Urixa amatare! — Nao, Haroldo, Ja uti’ Barukolot vai comer. Assim mulher falou!” E acrescenta logo: “Kokine ipia jirikiki amé! — Mais tarde vou buscar um jabuti para vocé!” — Nada adianta oferecer em troca minha camisa que Atukaré tanto cobiga. Indtil mesmo querer obter o animal em troca do uniforme ciqui completo. “Barukoloté pediu um jabutil”.. Voltamos cedo aldeia. Hi visita na casa de Atukaré, na_grande waloca. Barukoloté conversa animadamente com sua vizinha Matare- até. Tem no colo o pequeno Jukuepa-Kuriki, seu filho, neto do velho Jukuepa, “Kuriki” significa “pequeno” e é usado também como dimi- hnutivo para nomes. Assim distinguem a crianca do velho “Jukuepa”. 2 # um menino de grandes olhos pretos. Nio consigo fazé-lo rir com m has brineadeiras de civilizado, i para uma erianga ‘umutina, Seus pais o divertem & Ruidosamente Atukaré derruba 0 jabuti no chao. Barukoloté aceita-o satisfeita, Desamarra os atilhos e coloca-o vivo sobre as brasas. Depois continua em sua conver nportar com o quelénio de men bros encolhidos, Segura-o com uma vara contra o fogo. As chamas cres cem. Enyolvem 0 casco do animal. Assustado, éle estende as pernas, rastejando furiosamente, para sair do calor infernal. Conversando sem pre com a vizinha, a india, comprime o animal com a vara mais for ente contra a fogueira, © jabuti ainda se debate alguns poucos ins s. Logo 0s membros caem frouxos. Acabou de sofrer. Impressiono-me com a calma da india, sempre bondosa. Parece-me, entretanto, que a morte na fogueira é mais ripida do que jema usual de degolar éstes animais ou de abrir seu casco enquan- vos, como costumam fazer em quase todo 0 norte do Brasil Atukaré, que tinha tomado assento s6bre uma esteira esten catre de varas, permanece silencioso, imével. Descansa da excursio esta fante. Barukoloté entregw-lhe uma penquena esteira dobrada, da qual 0 marido retira um pedago de pio de milho, “Matariki”. O indio come amente. Quando finda, sua esposa servelhe uma cabaga com gua Timpida ¢ fresca. Atukaré Ievantase e retira 0 jabuti do fogo. Deita-o. sobre o dorso ¢ quebra o casco inferior torrado, Entrega-o & in Ihe tira as visceras. O figado, imensam € colocado no borralho, Figado de jabuti é um pitéul As visceras sio limpas e aproveitadas. Os misculos, a carne das pernas, dorso e cabei sko cozidos sem condimento algum. Nem ao figado juntaram sal. P dem-me sal constantemente, mas depois se esquecein de usiclo, Dei: xamvno guardado debaixo da cobertura de palha da casa. nacacos sio colocados inteiros sébre a fogueira. O pélo fica py nandose c s. Abrem-no as tripas. Depois moqueiam-nos inteiros nos jiraus. Moque: pode ser usada depois de muitas semanas. Recozida, amolece, tornan: Uose gostosa, principalmente para 0 paladar dos indios. Enquanto Barukolot6 prepara os alimentos, Atukaré brinca com 0 filhinho nos bracos. £ pai extremoso como todos os indios. Os Umu tina nunca batem nos lilhos. No maximo, repreendem-nos com bran: io alegres € jidade de métodos mais severos. Cedo sio incluidos nas atividades gua, acompanhar os pais nas cagadas e pesc tho de caca e produtos da I nos trabalhos easeizos. Socam milho nos pildes, fiam algodio ¢ carinho: samente tomam conta dos irmios menores... Reina harmonia num ver jar indigena. Se ac gum pimpolho quebre as regras de boa conduta, seus pais aplicam uma penalidade simples, mas bas tante efic 0 conhecem mais © pequerrucho! Jukuepa brine Jukuepa-Kuriks, Kuriks significe pequeno. O: io hévdados de propriedade exclusina das Jamilas, Seu uso. por 0 ‘motivo de srias disputes entre as Umuting fe nem o escutam. Ele morreu por algum tempo e ninguém se importa com suas lamentagdes. Pede, chora, quer aproximarse, tudo em vio. E isto, até que volte ao comportamento normal. Ento aceitam-no 0s indios Barbados nfo conhecem o uso de bebidas fermentadas. Fabricam uma chicha de mandioca ralada ou milho verde cozido, mas consomem esta bebida refrescante an adoce por uma ligeira p consumi-la a tempo, jogam-na fora Nio fumam, nem mastigam 0 tabaco, que desconheciam. Chegam a detestar o cigarro e o fumante. Quando descobriram que eu tam- bém nfo fumo, exclamaram surpresos ¢ com alegria: “Ento voc’ & um Umutinal” Isso contribuiu considerivelmente para que eu con- quistasse ainda mais sua confianga e amizade, Qs Lindos mutuns que habitam as casas indigenas vdo livren para a mata e voltam A tardinha ou quando sentem fome. Os tina tratam-nos, como aos outros animais, com muito carinho, quase como a séres humanos. Seus olhos grandes € pretos tém a suavidade do veludo, Eu nunca vira aves tio lindas e mansas. Por intermédio do meu in. terprete Kupo, indago se estio dispostos a me ceder um casal. A res posta é um decidide “nao!” Insisto, O velho Jukuepa quer em paga. mento meu facio de mato de limina muito comprida e afiada, com a bainha bordada em virias cOres. Fecho 0 negécio. Jukuepa e Kupo. donep conversam longamente. $6 entendo as palavras corresponden- tes a “mutum” € “posto indigena”, Preparamos um caixote com gra des para as aves. Na manhi seguinte no me querem entregi-las. Ale gam que chorariam durante trés dias © trés noites como pela morte de um parente, se eu as levasse para longe. Mas Jukuepa tampouco mostra desejo de devolver-me o facto de mato. Qué fazer? Ji sei, vou buscar o facio que guardou na palha do teto de sua casa. Jukuepa no se opde, mas demonstra descontentamento. Procuro explicar a Jukuepa: “Vocé no quer me dar as aves que me vendeu, mas eu Ihe fago presente déste fucdo, que vocé tanto quer, entregando-lho novamente". Alegre, talver envergonhado 20 mesmo tempo, Jukuepa aceita-o, Com movimentos ripides, decididos, quase agitados, agarra o casal de mutuns, ajudado por sua fami € 0s coloca na grade: “Leve-os, so seus!" As belas aves chegaram bem ao Rio de Janeiro! es de azedar. Permitem que se Mas, quando ndo conseguem 2 SEG UNDA PARTE PAs calisia vier ovens pare mae conte oars Fe RG pen nee Oise ine ene aces cuctieidsin fae Ooms = eer ac rane are Taree on aries Secon con sa al are ceo ars ett are Bea Nar a ah Seg eae asses asia A Patra ctcaatea esas Gases Come mass ce Pd eacniaas eer ar eestapnar cinta apreahce Eero at aa oes ora se ei Sea ee ee ee eeu ue ae eee tamtera carn pee eae ete npeccfon cet over psrcalba deg ee cee ere gee eal arcleleinne ue huss ay seater 6 piar o§ cabelos ao ouvir a resposta de Katuké, em tom soturno, sit tro: “E eu te finco esta faea na barriga, ¢ voce cai no chio morto! Eis 0 motivo do rancor de Katuld!... Kupo, meu intérprete, ndo me explicara que era condigfo essencial ngio transportar_o casal de-mu: tuns para além do posto indigena. Eu no sabia que infringira as leis religiosas mais sagradas da tribo dos Umutina. As aves que vive nas ‘casas dos indios so portadoras das almas de parentes mortos. O casal de mutuns que Jukuepa me vendera, incarnava 0s espiritos dos avés de Katuli. Os Umutina nunca vendem éstes animais. Bles realmente fazem parte da familia. Pelo menos emocionalmente, preenchem as Iacunas que os mortos deixam. Incorri numa falta gravel & necessirio, agora, muita prudéncia e tato para reconquistar a simpatia © amizade de Katuli, Ofendi-o grave mente por desconhecerIhe os pensamentos religiosos, O “Uasel” — Estranho! que freqientemente emprega contra mim, expressa todo seu desprézo, todo o édio do indio contra o “civilizado’ Ja entio os Umutina quando doentes recorriam ao meu tratamen: to, preferindowo ao déles préprios. Tinham muita confianga nos remé dios que eu Ihes ministrava. Katuli sofre de dor de dentes, coisa, rarissima, aliis, entre indios ‘em estado primitive. Tinha comido rapadura! Hi virios dias no se alimental Nao pede remédio! Aproximome déle: “Katuld! Voce quer que eu ponha remédio no dente que diz” fle olha-me desconfiado, inerédulo € diz: “Aqui na maloca?” — “Nao! Li no meu rancho!’ Evidentemente tem méco de me acompanhar, apesar de meu aloja mento ser bem perto de sua casa. Pela tarde, aparece. Fago um cura tivo. “Entio, Katuli! Vamos ser bons amigos como dantes? Eu sow teu amigo! Nao quis te ofender Desde ento conversa de novo comigo, rise ¢ é 0 bom camarada de sempre, Desde a minha volta 4 maloca Iuto contra a epidemia. A comida escasseial Comer o qué? As rocas queimadas, a caga afugentada, os Iagos secos ¢ a maioria dos indios doentes! Barro?!... como nas fomes dos chineses? Urge providenciar mantimentos! Vou pedir mandioca da roca imensa do posto “Fraternidade Indigena”, e comprar rapadura € milho séco em Barra do Rio dos Bugres. Preparo meu grande batelo, munido de motor de pépa, para des- cer 0 rio. Em Barra do Rio dos Bugres consigo adquiir, além do pre visto, alguns sacos de farinha de mandioca, Na volta, meu intérprete da primeira viagem, 0 indio civilizado Kupodonepi ¢ sua familia juntam-se ao nosso grupo. Pretendem mu: arse para_a mata, viver em companhia de seus irmios das selvas A coqucluche, que também grassa entre a populacio indigena do pésto, amancou-thes dois filhinhos. Restam-lhes uma menina € 0 indiozinko que esti na aldeia em casa das irmas de Kupo. Carregamos 0 batelZo com os trastes da familia de Kupo — um bait com algumas roupas, uma cama de madeira, mesa © uma capoeira com trés ou quatro galinhas. Na roga do pésto indigena, duas horas rio acima, Katulé ¢ Julapare arrancaram imensa quantidade de raizes de mandioca mansa, O batelio esti sobrecarregado. $6 restam trés de- dos de borda acima d’igua. Os Umutina nJo sfo peritos em navega- io fluvial. Mas Kupodonepd, que viveu em companhia dos civiliza- dios no posto indigena, tem alguma experiéncia. chegamos & corredeira grande, perigosa. Tenho de desligar © motor, as dguas agitadas so rasas ¢ a helice bateria nas pedras do fundo fo leito. Com longas varas os indios tentam empurtar a carregadis- sima e pesada embarcacdo, mas a correnteza & muito forte. O barco comesa a descer ao invés de subir. “Forga, rapazes!” Ligo o motor para ajudar, mas a chavéta da hélice se quebra. Levado pela avalancha de gua, o batelio recua ainda mais, A popa é imprensada debaixo dum tronco caido, que emerge da 4gua. Em menos de um minuto fas dguas o enchem, afundando-o. Na turbuléncia da correnteza tudo € arrastado: raizes de mandioca, capoeira com galinhas, latas, caixa de ferramentas do motor, roupa, combustivel. Tudo danga © saraco: teia nas ondas, rio abaixo, Agarramos parte do que flutua. A espésa de Kupo, Atiaki, com sua filha Judite, refugiase na margem. Li vio os mantimentos que pretendia levar em socorro aos indios. Todos entramos n’gua procurando salvar, agarrar, carregar 0 que {6r possi vel para a margem. A caixa com as ferramentas aparece numa ilhota de pedras em plena corredeira. Arrastome até i. Pegoa em meus bra 0s € tento voltar com o péso através da correnteza. Meus pés nfo se firmam no cascalho. Cambaleio. Nao. qui Com imensa dificuldade caminho uns dez metros através tadas que me cobrem os joelhos. E quase impossivel ficar de pé, levan: tar uma perna depois da outra, sem ser Ievado pelas aguas. Tenho médo de perder as forgas, antes de alcancar a margem. Nesse momen: to vejo que estou s6! Nao hd mais ninguem nas aguas. Os objetos fl tuam rio abaixo. Grito por socorro. Nenhuma resposta, Abandono? Li esti a embarcagio submersa, 0 motor totalmente afundado, a proa Ievantada, Presos pelos galhos do tronco, causaclor do desastre, tinham ficado alguns sacos com viveres, que seguram outros objetos © uma parte das raizes de mandioca. Vejo tudo muito claro — mas vejo tan bém que estou espantosamente s6. Nao ha vivalma que me possa aju- dar, As ondas comecam a me arrastar. Nio largo a caixa. Grito, grito ‘mais alto. Depois de longos minutos aparece Julapare. “Onde estio vocés todos? Nao tenho mais fOrgal Venha me ajudar!” Julapare in vade as aguas, ajudame e diz: “Arikixi ebaki koxiporé! — Fomos atris duma cobra grande que estava nos espreitando nas siguas. Era to comprida que nfo conseguimos ver sua cabeca para maticla. A cobra estava aqui na comedeira, Cobra grande pega indio!" Min forcas voltam de repente. Sinto-me tomado de terror. Tremo desde as pernas até a espinha dorsal. Saio ripido dessas dguas que seguram, ” cae tenho: medo de algum bicho que esteja debaixo gua feche reno, daqucles que o» Corrcios e Telegrafos usar. A roupa cee oe prepietibiloo que tenho entre todos ~ cobertores, canisss, calees me aon jumtam Tena, gravetose fGihas séas. Des- vm a0 trode pélvora seca 0 fogo cre PNA espésa de Kupo chora. Morrer ram tédas as galinhas da sua ca Mando que as desenterrem. mos comer “ga quer Preocupo-n fe me adorno quando os remédios. x MO iho de Haxipa esti muito fraco, Recusa alimento. Seu estado 4 ppingarda de vareta para oar, irrompendo aos gritos: “Pacal Paca! Pacal Paca ¢ capivara estio matando todas as nossas criancas!” E nova- mente dispara a fim de afugentar os espiritos daqueles roedores, que atacaram 45 criangas adoecidas As mios fechadas, torcidas, cos dentes cerrados do menino mori undo lembram uma paca ou uma eapivara morta Evitam 0 consumo da carne désses roedores, pois acreditam que pro- voca enfermidades. Mataram uma eapivara hi pouess semanal, Como Iravia escassez de carne, comeram dela apesar da proibigio, tradicio. 1. Destamaneira tornaramse culpados da doenta do’ menino de Haxipi. Na casa de Haxipd reuniramse quase todos os indios, doentes ¢ sos. Tomam 0 menino nos bragos 0 sacodem como se agita, um reldgio que parou. Parece que querem evitar a paralizagio da mort. Deitam-no sobre o catre numa esteira de palha, Seu pai retira de uma bolsa de fios enodados um chocalho, formado de cascos de anta amarrados a cordas. Comega a sacudir o instrumento por cima do en férmo, provocando um ruido de ritmo quebrado, incessante, assur tador. Remexe novamente numa sacola ¢ traz uma buzina de rabo dle tatu canastra. “Harodo, toca esta buzinal” Entrega-me 0 instr ‘mento, “Imi nanixi. — Eu nfo sei!” respondo, horrorizado pelo. pen samento de atordoar a pobre erianca. O indio toca o instrument bem préximo a cabeca do moribundo, desce até aos pes e volta, sempre tocando em continuo vaivém, Durante horas a fio procede assim, ora bbuzinando, ora sacudindo o chocalho de cascos de anta, Finalmente silencia. A erianga dorme. Ji € alta noite. Os parentes se retiraram ja hd algum tempo. Deitome num catre de varas, durisima cama, pperto do doente. Aproximase a madrugada. Reina calma impresio. ante na cabana. Tenho um pressentimento estranho. Aconteceu a gua coisi?... Sim! O indiorinho falecew, Silenciosamente entrou a morte no rancho. Nenhum suspiro de ansia traiu a sua presenga, Os pais, de rosto sério, nfo se lamentam, Ambos estio ocupadon em tins gir de vermelho 0 corpo e rosto do morto com urueu, como se fOsse para uma festa’ de batismo ou cisamento, Deitam o corpinho. sobre a esteira sagrada, adomandothe a testa com um diadeina, novo. de penas de arara vermelha. Sua mie colocathe nos ldbulos auriculares brincos de_penas, novos e multicores. Dobram-Ihe os bracos sObre 0 peito, nas mios um pequeno arco e fechas e ao seu lado uma mi ula ‘lava, ‘Chegam os parentes do rancho vizinho. Iluminam 0 caminko com fachos de lenha cobertos de resina de jatobé. As mulheres atramse sobre 0 motto, vertendo ligrimas. Exclamam nomes carinhosos. Acs. riciam 0 pequeno. Aproximase a avd. materna. Em vor alta revela fs nomes de seu neto, que ainda nfo fora baticado nas tradigées trie bais. Anuncia que era filho de Haxipi e Minikama, neto de Jukuepa € Kokoloté € bisneto de Kaimaneps, falecido ¢ Minikamé-Minina, © 0 4-23 Indien avd prostrase sObre a crianga, Acariciandoa, Jamenta a sua morte ‘em altos brados. Comega a preparar uma sepultura dentro do rancho de Haxip, Com sua clava marca os contornos de um retingulo. Um apés outro todos (os homens retiram a terra, até que a cova atinge uns sessenta centi metros de profundidade. Todos festivamente se adornam, sérios uns, outros chorando, O av6 ‘canta a0 ritmo do chocalho, As mulheres interrompem o canto com suas Jamentagées. Falam em céro, dando nomes carinhosos ao menino. A madrugada € feia. O ar, impregnado de fumaga das queimadas, encobre 0 céu. Os pais do morto continuam mudos, impassiveis, numa dor sem demonstracio. O cadaver é enrolado nas esteira de palha colocado perto da sepultura, Os choros e cinticos fiinebres aumen- tam, frenéticos. Neste instante 0 sol rompe as nuvens de fumaga, dei tando um raio luminoso no interior do rancho’ enlutado. © fundo da cova é forrado com uma esteira velha, Depositam nela © cadayer. Os funerais continuam 0 dia inteiro € durante téda a noite até a madrugada, Ao clarear, todos o$ parentes esto novamente reu nidos. Homens e mulheres cantam e choram alternativamente. Sacri ficaram uma arara vermelha que pertencia 4 crianga, Juntam-na sepultura, O morto ¢ retirado, Abrem a esteita na qual est enrolado, Novamente acariciam o pequeno, que logo recolocam na cova. Fecham a sepultura com a terra escavada e cobremna com fdlhas de pal mira e esteiras de dormir... De ora em diante os pais dormirdo em cima da sepultura do filho. s rituais perduram ainda todo um dia ¢ uma noite. Atukaré, ar: mado de arco e flecha, posta-se a0 lado do rancho, no caminho da mata, como uma sentinela, cantando. Mantém a flecha sobre a corda do arco pronta para arremessar. Na madrugada do terceiro dia, a mie comeca a despedacar tudo 0 que pertencia ao filho. Destréi pés de algodo que forneceram fios para tecer a fita de enrolar seu cabelo™. Derruba 0s mamoeiros cujos frutos éle comia e quebra todos os uten- silios que éle usava, Para os Umutina os mortos ouvem o3 cinticos fiinebres as lamen: tagdes de seus parentes! Haxipa agarra seu arco e flecha e vai 4 mata. Cacar? Pescar? Nao, mas um indio munca sai sem as suas armas. Haxip procura os lugares que freqiientou em companhia de seu filho. Fala € canta em vor alta, dirigindose & alma do recém-falecido. Nao con. sigo compreender tudo. $6 sei que esti procurando seu. tinico filho homem, todo seu orgulho. Seu filho nfo morreu! Apenas comecou ‘outra vida. Depois de muito tempo Haxip4 chora ao passarmos por Iugares onde havia estado com seu filhinho. Canta ¢ fala para o espirito déle. “Vocé ji viu alma de morto?” pergunto ao velho Jukuepa. Para ‘meu espanto, responde: “Eu nfo, mas voce jé viul” — “Eu? Por que 12 Mutunccarijé fémea, um dos wirios exemplares domesticados da aldeia Umutine, ‘que tém um papel religioso na tribo eu?!!” Calmamente dis: “Vocé anda li encima das nuvens com aquéle passaro grande, gaviiio! Li estio os espiritos! Voce nio os viui Mitoponeps afirma que a gente pode ver os espititos fechando os ‘olhos. So cdres € formas esquisitas. Outros indios os véem de dia, onversam oom éles durante os rtuais de invocagio ou a qualquer Atukaré presenteia a familia de seu irmio Haxipa com um mutum, Esta ave incarna o espirito do menino morto. De ora em diante ‘ocupari o lugar do falecido no lar indigena. A respeito da idéia que os indios fazem do céu, Matarepaté me conta: “Zapalo deitouse 2 noite em sua esteira no pitio em frente da ca- bana, Zapalo olhaya para o céu. Li longe viu uma estréla linda, de britho invulgar. Desejou que a estréla viesse ter com éle em forma 8 de muher bonita. Cansido, Zapalo adormeceu, Despertaran sustado viu na sta frente duas mulheres muito bonitas” "Quem sfo vocés” pergunton, Eas estrlas responderam: “Nos so- ea earel cos oe aaa SPAR Guan chine a eae a palo. Eram motto Tindast Zapato foi cagar ¢ trouxe anita carne. Mas fs mulhereserrélas ndo.quiseram comer. Diveram que. comiam $6 “No outro dia Zapalo estava fabticando enfetes do. brago™, En flava penas de mutum em almécege, que as mulheres comeram guas mata” iu com as,duas mulheres, Mas nfo podia achar naa, Na vin uma bacabeira cheia de frutas, As mulheres fizeramno subi palmeira ¢ foram atris déle, A bacabeira comeou a crescer tpi Imente. Quando Zapato queria descr, suas expdeas diam: se voce des cer, nds te fincamos o arco. Entfo éle subia, subiu mais. Eas. duas anvieresseguiremno até 0 céu, Lio indio passtva muito mal. Nao Todos ficaram com muita pena do homem, Resolveram mandé-lo de volta & terra. Fizeram uma pancla de barro corido, bem grande e-uma corda de fibra de tucim*. Ataram a corda na panela e deixa ram Zapato entrar. Entio comecaram a descélo, A coda aeabou. De Cima gritaram: "Voce ja chegout” ~ “Ainda nfo!” disse 0, homem, Emendaram mais sim pesdago de comda, Novamente perguntaram, se jf havin chegudo, “Ainda nfo!” Jé estava meio. perto da terra, EntZo toltaram a corda A panels quebrouse em muitos pedagos, Os castes “Zapalo tinha emagrecido tanto que quase morreu, Volton terra € contou que as extrélas no ct 96 comianalméceya” (Os Umutina preocupavamse muito com as doengas. A respeito da sua origem Matarepata conta emt sega. Diem que antigamente no havia doenas, Mas isto jf faz muito tempo! A gente ficava velha, tio velha que’ ji no ensergava mals © povo aumentava e aumentava e‘ninguém morta, nem yelhos, nem cxiangas ‘Os tes ficaram pemsando como podiam acabar com a vida dos ve- thos, Pensaram no Hari a fuse, Quem sabe nfo sabia le dar algum jeitoo! — Foram para o cu, Hii, a lua, eta um homem que jv ho eéu naquele tempo, Quando chegaram 4 casa de Hlth erg ram se éle podia Ihes dar alguma coisa, um veneno ot una! molestia para acabar com a vida dos velhos. Or velhos comam tanto como os Imogos! Mas a Tua dise: “Naot Nao tenho nada. Vao procurar, Mini ovsol. Talver éle tena alguma coisa ‘Ai, les foram 3 casa do sol. Naquele tempo o sol era um homem que vivia no céu. Era o companheiro da lua. Li repetiram a mesma pergunta. O sol respondeu: “Para que vocés querem isso?” — “Nos que remos matar os velhos!” disseram os trés homens. Mini, 0 sol, nio ficou satisfeito com a idéia dos trés e disse: “Mas vocés nio devem Tazer uma coisa dessas!” — Os indios insistiram até que o sol acabou cedendo. Entregouthes as moléstias, explicando: “Esta é para dor no figado e para vomitar até morrer! Esta outra € para dor de cabeca, dor no peito e nas pernas até morrer!” Quando Mini entregou a tiltima, hesitou um pouco e disse entio: “Esta iltima é€ para matar bichosi* Era uma flecha do sol e logo explicou: “Quando vocés ati arem esta flecha, deverao ficar escondidos atris de uma drvore. Ela sempre acerta ma caga, mas depois volta ao lugar donde foi arcmes: sada®*, Se vocés estiverem escondidos, a flecha fica fincada no tonco, Mas se nJo estiverem, ela mata.” “Os homens voltaram satisfeitos para a terra. Logo comecaram a ‘espalhar doengas em t6da parte. 0 povo comecou a morrer sem ces sar. Nao s6 morriam velhos, como também homens fortes, mulheres ‘© muitas criancas. Alguns se curaram, Desde aquéle tempo existem doencas no mundo!” “Na aldeia havia um indio que nao era bom cacador. Nao acer tava nos bichos que queria matar. Um dia foi pedir a “flecha do sol emprestada. Nao tha quiseram dar. Mas o indio disse que nfo comia ‘carne ha muitos dias. Os homens ficaram com pena déle ¢ The entre garam a arma. Explicaramthe como devia usi-la, Recomendaram muito que se escondesse. Nio devia atiré-la em lugar descampado, sem. esconderijo, sendo, morreria ferido pela prépria flecha, “O indio saiu para a cagada. Logo achou um veado campeito. Ras- tejando, aproximouse do animal ¢ atirou a flecha. Mas nao se escon- deu, como the haviam recomendado. A flecha acertou ¢ mato 0 veado, ‘mas voltou € matou o homem também." “Na aldeia, os indios esperaram muito pela volta do cagador. Fo ram procuri-lo € 0 encontraram estirado no chio, ja enrijecido. Perto déle estava 0 veado. Carregaram 0 morto para o rancho de seus pa- rentes, que o sepultaram dentro de stia casa.” “Os trés indios emterraram a “flecha do sol” © nunca mais a em: prestaram a ninguém. Desde entio cacam s6 com seus arcos € flechas.” “O indio que recebeu a “flecha do sol” mais tarde virou gaviao préto © vou para o sol” Durante trés meses luto contra doenga e morte na aldeia Novembro! Comegam as chuvas de inverno. Temporais violentos de. sabam sobre o vale do rio Paraguai. Com as chuvas volta a fartura. Como por milagre, a mata queimada, preta e melancélica reveste-se de folhagem tenra, verde-lara. As frutas amadurecem e 0s bandos de Jacutingas, macacos € outros animais novamente povoam as matas ribei rinhas. Com freqiiéncia encontramos rastos de caititu, queixada, quati € anta nos extensos tucunzais. Nas rogas amadurecem grandes quantidades de milho e deliciosas melancias Com a fartura, volta a savide! Restam agora quinze indios Umutinal E inverno. O ‘rio Paraguai esti cheio. Nao € mais possivel pescar nos lagos. Os dois tuiuitis mansos subsistem comendo gafanhotos, que cagam no capim alto perto da aldeia. Mas o alimento é insuficiente. Um déles enfraquece © morre. A velha Minikamé enterrao em sua casa. Incarnava 6 espirito de seu. marido falecido no ano passado, A ave no € substituida por outra. Sua alma migra para o céu indi gena, onde encontra todos os outros mortos e 0 velho criador Hai- puku. Mas se o indio foi mau, sua alma era por sobre as matas, sem lar, sem comida, sem sosségo. © indio sonha com um animal no qual sua alma reincarnaré quan- do morrer! Comuniea o sonho aos parentes e, quando morre, 0 ani mal do sonho seri 0 portador da alma do falecido, Passamsse semanas entre cagadas, trabalho nos rogados ¢ a confeccio de artefatos de penas para a proxima festa, ‘No pequeno estio que costuma haver em dezembro ou janeiro nesta regio, os indios tém pouco trabalho com a lavoura. Aproveitam éste tempo para a realizagio da tnica festa grande da ribo. Os rituais de culto aos antepassados consistem de dezoito dangas, rituais e ceri nias religiosas Nunca tinham sido visitados durante éstes festejos. Os neobrasilei- ros da regiio pensam ser a festa da colheita do milho. Na realidade € um ritual fiinebre de invocagio das almas dos mortos. Os indios tor- name irritadigos ao se aproximar aquela data anual. Nao querem que estranhos assistam a ela, Durante virios dias os homens saem, cedo pela manhs, voltando apenas 2 tarde, Estranho que no me convidem, 86 as mulheres estio fem suas casas ocupadas em despalhar espigas de milho verde, que jazem em grandes montes, ¢ em assi-las e cozinhi-las. Indagadas, respondem, que 0s homens foram cagar. Nao acredito na versio das indias. Insisto numa resposta razodvel Confessam, afinal, que os indios estio abrindo uma clareira na mata, para preparar o “Bododé"*? — terreiro de dangas. Kupo também nao foi convidado! Somos intrusos. Seguimos os rastos dos homens. Acha- moos, depois de meia hora de marcha, em plena mata. Todos estio atarefados com a limpeza de um pitio de cérca de 25 por Amontoam troncos e galhos em volta ¢ depois Ihes ateia 16 A eaquerda: Atuhavé convida os expiritor dos antepassados para a festa. De pe no meio do tereiro de dancas ore toca'a busing, ora conta, desde o anoiiecer até a me drugada. X direita: Em frente de sua casa, Kokolote, com adornos didrios, canta. em resposta aos indios reunidos na casa dos tspirios, na extremidade oposta do patio de’ dangas Recebem-nos esquivos. Converso com Jukuepa e Yarepa ¢ prometo uma rapadura a cada familia, por danga, se me deixatem assistir & festa. A diplomacia surte efeito. Cobigam 0 agiicar com que adocam a bebida de milho verde. Concordam, te comega a festa. A introdugdo consta de Iongas can- 10s. dos antepassados. Depois i No dia segui torias dirigidas como convite aos espit todos os indios vio para longe, cortar brotos de palmeira buriti de cuja palha fazem as indumentirias de danga. As mulheres preparam imensas quantidades de alimentos. Dia e noite ouvese o bater dos pildes. Cozinham, assam ¢ vo 4 mata colhér frutas maduras. Os ho- mens saem a caga, trazendo came e peixes. Finalmente comeca a pri meira danga: o ritual da esteira sagrada. Entre cada dois rituais ha tum intervalo de um a dois dias. Repetemse sempre os mesmos pre parativos, que culminam com a danga. ido das observagdes de dia e noite, deitome na minha réde esticada num rancho de palha, que os indios construfram para mim, Para os fesejos, Auikaré enrola ao redor do cabelo uma fita de uns cinco metros, trancada de fibra de tucum, que cobre com uma faiva de algodao, large ¢ vermelha bem perto do teeiro de fetax. Adormego. Alguém sacode violets mente 4 mina réde. “arodo, a esa de Baku este voct dormin do! Levantese, venhat” Era Bavukoloo, esposa de meu fel amigo Atu tare, que sncin cup x galevrs, @upeatads pelos tndlon perm Uindose assist A sua festa eigios Cerimonias, rituals e dancasseguemse uns aps outros. Nunca se oferece, obtendo slugs sempre nova prc tema de matncen pa-cun don cpitin,agie: ,b tin elas They ievam aliments que euiregun fatima por a enuada isteral 6 veda também aos etrahos, Aceitoo convite comprare. Ad avo tecer reothome num canto do "Zi, Logo vem Atakaré sew inmao Cy Empunhando o¢ simbolos de peixes, os “espiritos” dangam a Jurima, ° protetor da pesca Haxipi, pintados com urucu, na testa 0 diadema de penas de arara, na mo esquerda um arco ¢ feixe de flechas e na diteita 0 chocalheo. Comegam a cantar. Digo “cantar”, mas para os meus ouvidos parece uum gargarejar profundo num ritmo crescente que causa arrepios. Os Umutina nao cantam em sons altos. $6 conhecem os baixos. O ritmo se acelera com 0 correr da noite. O dueto dos dois irmios soa como um concérto de saposgigantes. Em vio procuro dormir. Ora canta rante téda a noite, E um esforgo escutar durante semanas ¢ semanas as cangBes estra- nnhas, que parecem ndo ter fim. Das dancas da festa mortudria s6 participam os indios que tiveram parte ativa nos funerais. Durante 0s rituais, 0 dangarino é a incar- ago da alma de um parente falecido. Troveja! Jukuepa diz que os espiritos que nfo foram convidados es Go reclamando. Costumam convidar as almas de todos os antepassa- em dueto, ora em solo, du: a dos. fste ano deixaram de convidar as almas encarnadas em animais ferozes, como onca e porco-domato. No ano anterior estas chegaram antes das almas que vivem no céu, as quais ficaram com médo de se No fim de cada ritual a palha de buriti com que slo feitas as in dumentirias de danga é dada de presente a0 chele dos festejos. fste a estende 2 sombra para secar. Suas parentas trangam esteiras, “Popo- rina’, com a palha, que nJo trocam ou vendem. Sio objetos sagrados, que tsam como astento, cama ¢ mortalha. Segundo suas leis religiosas, s6 podem fabricar esteiras com a palha usada durante 0s rituais de invocagio aos espiritos. Peco-lhes uma esteira para cobrir 0 cho arenoso ¢ ffo da minha casa de palha. Kokoloté afirma categbricamente que eu ficaria com dor de cabeca, se a usasse”. Mas, finalmente, resolve cederme uma um pouco furada. Guardam as esteiras novas numa choca escondida em plena mata virgen ‘Meados de janeiro & o auge das festividades. Dias antes previnem- me que a danca “Hatéri” seria muito perigosa para mim, As misca ras de Hatéri sio muito “brabas”. Preparam um terreiro pequeno, re- tangular, perto da casa dos espiritos. Sdbre barrotes colocam as gigantescas mascaras de palha. Ouvemse os sons estridentes de flautins de taquara. As mulheres aproximam-se e as mdscaras. saem dangando para o terreiro. A. procissio segue ao redor da grande praca de dangas. Cada mascara é acompanhada por uma mulher. Quando param, estas acariciam a palha das mdscaras eos pés dos dancarinos, Falam com a mascara “Hat6ri”, choram e cantam, A procissio conti: nua até que o sol alto a toma insuportivel aos dancarinos, que car- regam 0 péso das miscaras, enfiados debaixo da palha sufocante. A tarde as miscaras saem novamente. O festeiro esti sentado numa es- teira em frente a sua casa, As mascaras se aproximam, armadas de arco ¢ flecha. Param na frente do festeiro, vergam 0 arco, aproximan- do ameagadoramente a ponta da flecha dos olhos do indio. Este con- tinua imével, sem pestanejar. As miscaras, dangando no mesmo lugar, estalam repetidas vézes as cordas dos arcos. O dangarino se afasta, volta para o “ a das miscaras se aproxima de mim e repete a mesma faganha de ameacar com a flecha. Retira-se para 0 rancho de palha, Sigo-a. No rancho Atukaré rise gostosamente da brineadeira que fe comigo... ‘As indias Huarepati e Matarepaté relatam em presenga de seu irmao Kupodonepa a morte de seu pai seu tio, assassinados traigociramen: Executando sltos graciosos pal efilho dangams pela primeira vee juntos mo tereivo te Yeas, 7 oe e Depois das dancas 0 festeiro carrega pura sua casa a patha de buriti das mascara ‘opirto, que serd 0 material das esters sogrades a tribo ce 6 te pelos brancos durante uma excursio de cagada. Kupo era crianca, entio. Nascido na maloca dos Barbados, quando mocinho foi viver com 0s civilizados do pésto indigena. Trabalhou como poaieiro com sertanejos aventureiros. Aprendeu 0 portugués sem esquecer seu prd: prio idioma, Considero Kupo meu bom e leal amigo. Creio que esta amizade é reforgada pelo fato de eu Ihe ter salvo dois filhos, enquanto dois ou: twos tinham morrido de coqueluche antes de minha chegada. & de tato amavel, disposto ao trabalho, mas de temperamento colérico. ‘Apés a narracio da morte de seu pai ¢ seu tio, repete com freqii cia: “Tenho muita raiva dos civilizados", com voz soturna e 0 édio estampado no rosto. Em conseqiiéncia da morte de seus {ilhos resolveu voltar a viver como indio de verdade entre os Umutina da mata. Mas Kupo nio € mais Umutinal Constrdi sua casa A uma certa distincia da aldeia, usa armas de fogo ¢ ndo despe mais suas roupas de civilizado. Kupo gosta de zombar das festas de seus parentes da mata, que se ressen- tem com sua atitude, E um individuo sem patria. Nao se integrou na cultura dos brancos ¢ deixou de praticar as tradigbes de sua tribo. Como indio educado no pésto, Kupo é um renegado! Pela manha vou ao rancho de Kupo, onde costumo tomar as refei ses preparadas por Atiaki, Kupo esti ausente. Sua espdsa se queixa de uma briga sua com o marido, Ougo-a compreensivamente. Néo hi alméco. A chuva dos dltimos dias dificultou a caga. O rio ja esti cheio e turvo demais para pescar. “Onde esti Kupo?” Atiaki respon: de: "Kupo foi emboral Nao vai voltar. Ele me deixou aqui e mandou que eu fOsse viver no rancho do meu tio Yarepi com minha filha Judite. E manda dizer para o senhor levar seu fitho Joaquim para ‘educar entre 0s civilizados' Acho curiosa e estranha a informagio da mulher. Sinto-me inse guro. Por pressentimento inexplicivel, temo alguma emboseada. Otho em redor. Nio encontro minha excelente arma de caca de trés canos. ‘Onde estd minha espingarda?” — “Kupo a levou ¢ também o seu em bornal de caga com todos os cartuchos!” Acredito nas palavras de Atiaké. “Se Kupo féz isso € te abandonou, entio ¢ um bandido sem- vergonha. Ele vai me pagar caro por ter roubado minha espingarda Com 0 que é que vou cagar para comer? Ele nfo é mais meu amigo!” Faminto, volto aos trabalhos de observacio e filmagem na aldeia em festa, A tarde ouco tiros. $6 pode ser Kupo! Vou para seu rancho. Os in- dios me informam que matou um macaco € um yeadomateiro. O macaco j4 esté sendo cozinhado nas fogueiras dos indios Kupo esti trinchando a caca diante da pequena cozinha ao lado de sua morada. Entro primeiro em sua casa, encostando como de cos- tume a minha carabina Mauser cal. 22 na parede, ao lado da pesada arma de caga que o indio levara consigo. os Pra wm ritual Atukaré confecciona, com a patha de busit, ‘imbotor de arraia.e outros peives Admiro-me do tamanho da caca. “Entio, Kupo, isto é veado ou cervo que voc? matou?” Kupo ndo responde. Finge nfo ouvir minha per- gunta, Passo por perto déle e sento-me num pedaco de lenha no cho da cozinha. Visto apenas meu calgio curto, 0 dorso nu, nos pés al percatas leves. Vejo que meu prestimoso amigo Kupo esti’ deveras mal- humorado, Nao responde a nenhuma de minhas perguntas. Também me aborrego ¢ digo: “Ora, Kupo, deixe de birra comigo. Basta de fazer cara feia o tempo todo!” Num salto Kupo arranca o facio afiadissimo do cho onde est fincado ¢ vibrame violento € profundo golpe no ‘ombro esquerdo, bem perto do pescoco. O sangue escorre. Levanto: ‘me, estupefato, aterrorizado pela inesperada agressio ¢ grito: “Kupo, no faa isto comigo!” Em firia éle investe contra mim. Fujo, grave mente ferido. . ‘Atris do rancho estendese roga nova. Restam muitos troncos da der rubada recente. Correndo, pulo por sobre os obsticulos; mas num salto tropego e caio de costas, expondo 0 peito € vente nus a0 agressor, que vejo logo sobre mim, procurando me golpear. Seu rosto esti con- tuaido. Estou perdido! Momento de extrema angustia. Encolho as per nas para amparar o golpe da arma que cintila no ar. Assento os pés no peito de Kupo. fle cambaleia. O facto me fere ligeiramente na regifo do estomago. Escapa das mios do indio, ensangiientadas do trabalho de abrir a caca. Desliza no cho € pira a trés ou quatro me ros ce mim, Com movimentos de rastejo consigo me aproximar da arma e agarri-la antes de Kupo. Levanto-mne agressivamente. Kupo foge. Corre para o rancho onde as armas esto encostadas na parede. Logo aparece com minha carabina Mauser de preciso, carregada com seis, balas Ao ver isso, exclamo alto: “Que Deus me ajude! Kupo, eu sou seu amigo!” Como resposta destrava a arma e faz pontaria, Procuro escon. derme atrés dum tco de arvore, que mal cobre meu corpo. Espreito, ansioso, as atitudes do meu agressor. Parte 0 primeiro tiro. Sinto um baque na regiio inferior do lado esquerdo do peito, que, contudo niio me causa dores. Logo se forma uma bélha aumentando a massa de sangue que j4 cobre 0 meu corpo, encharcando completamente as calgas ¢ escorrendo sem cessar. Um segundo tiro me atinge em cheio no antebrago esquerdo, que pende quebrado, inerte. Aproveitando-me do interval de movimento mal executado na descarga e carga de un nova bala, levanto-me e corro desesperado para um milharal préximo. Atravesso a plantagio ¢ entro num sapezal em direcio da maloca dos indios. Abro meu camino com o facko. O braco baleado é um es térvo no denso emaranhado. Os ferimentos continuam a jorrar san- gue. O sol arde ciustico no céu de janeiro. F alto vero. Procuro um Fehigio. Sentome debaixo de um arbusto espinhoso. A sombra escas- sa no protege do calor. Grandes formigas pretas me atormentam, das de sangue. Angustiome, sem poder me decidir entre ir 4 maloca umutina pedir auxilio e hospedagem, ou arrastarme até um oérrego 70 a0 cair da noite, para lavar as feridas ¢ refrescarme. Prosseguiria de- pois até 0 pésto “Fraternidade Indigena” que, na melhor das hipd- teses, poderia alcangar em trés dias no meu’ estado atual. Minhas forgas ‘diminuem com o sangue que no estanca. O esconderijo niu podera me proteger contra novas investidas de Kupo. Tudo esti em silencio. Estamos entre 0 meiodia e a tarde, quando os animais se escondem dos quentes raios solares. $6 as Iagartixas correm pelo ca: pim, cagando insetos. Zangées voam, zunindo, Algumas borboletas pou- sam em flores. Quietude, descanso, Mas nfo para mim... Perto escuto © chilrear assustado de passarinhos, E alguém que se aproxima. Pas: 05 indecisos no capim séco, procurando. Meu coragio bate mais forte. Mas a fraqueza ainda me impede de agir, A vinte metros de distancia surge um vulto vermelho: Yarepi, velho inteligente ¢ respeitivel i dio Umutina, Para e profere um profundo “uif” de espanto ¢ des ‘g6sto, ao ver-me todo banhado em sangue, tio vermelho como sua pin- tura de urucu, Olhamo-nos em siléncio por alguns instantes. Rapido como veio, desaparece, Desconfio de suas intengoes. E se os indios da maloca também estiverem zangados comigo?! Teria eu incorrido em outra falta grave, sem saber? “Yarepi vai contar a Kupo onde estout” digo em vor baixa, “Corre, Schultz! Agora chegou a hora de salvar a tua vida..." Novamente me ponho a marchar através do sapézal, cada vyex mais intrincado, Por entre troncos caidos e agressivos espinhais, pros sigo lentamente, Nos titimos metros antes de alcancar a mata perco 0 facio. Deixal.. Também 0 chapéu cai... No o levanto! Entro na mata. Procuro um esconderijo melhor... Descansar... dormir... criar novas for ‘cas! O ar quente, séco, ajuda a coagular o sangue. Diminuiu a hem Tagia. As feridas esto quentes. Estranho que ndo doam. £ a emogio dos acontecimentos! Tenho séde... caminho com tda a energia. Estou exausto! Escolho alguns troncos caidos, formando um quandringulo. ‘Agacho-me no centro, meio sentado, meio deitado, Estou consciente de que 0 “esconderijo” nao oferece nenhuma prote¢io contra um novo ataque, Continua minha indecisio, Que vou fazer? Irei ao posto indigena & noite? Nao! Nio posso, é muito Ionge. No caminho morreria de fra ‘queza, de fome... a0 atravessar 0 descampado, a mata fechada ¢ os pi tanos... Novamente 0 siléncio imterrompido por gritos de periqui: tos que esvoagam, “Ai vem Kupo para me matar!” Meu destino nao me preocupa mais, & initil resistir. Entregome a vontade de Deus! Preparo-me para receber 0 tiro de misericordia, Quebramse galhos. Passos remexem as folhas que cobrem o solo. Marcham para ei, procuram para 14... Aproximam-se. Aparece uma figura alta, £ Mitoponep4, de rosto sério, homem valente e diteito. Nao sei o que tenciona ¢ digo rapidamente: “Mitoponepa, amé ajenu: ‘cua imi! — Mitoponepa, vocé esté zangado comigo?” — Em resposta aproximase, rodeando-me. Em seu rosto, salpicado de cicatrizes de va riola, leio infinito carinho, Debrugase sébre mim, chorando em vor a, convulsivamente, Com muito cuidado ¢ pericia, digna de um en tos, Coloca meu brago iret sbre_seuombro.e-me sistenta, Dow A Claridade fereme o» olhox. Vejo algo sem contomos. “Estou mor Ine voltar a realidade com téda sua angistia, Novamente estou 86 Distingo o fartalhar de f0lhas, vores, Mitoponepd e seu cunhado Yarep do, Colocam me sobre a'esteira que — perddemme meus bondosos ami {0s Indios ~ estd- muito velha © horfivelmente suja, Enrolamme a amarrado, Ex ecuro dentro. da exteis, Oar est pocirento. ¢ Fescende a mofo, Colocamme cuidadosamente no cho. Abrem 1 cx teita e vejo as indias Huarepata e Matarepatd. que me olham com Chegam os indios das outras casas, Homens, mulheres, rapazes ¢ rogas paradosolham sérios para mim, Todos sio. meus amigos. Estio ahorredidos com 0 ato traigeeito de. Kupo, “Kupo piquinal — Kupo é maul” Atukaré propae vingarme, agredindo Kupo. Persuadoo a nfo favelo, Também Atieki, @ mulher de Kupo, vem. raz uma. panel Palavras que eu ise sbbre le, em virtude da mentira de Avakd dentro em breve “para acabar de me maar “Julapare traz meu revélver € minha réde de dormir. Atamna a0 Indo da estes em que estou deltado, Minka boca esti séea. Quero bber! Huarepati'e Matarepati estfo comendo as dltimas melancias de sua roga. Brindam-me com os melhores. pedagos sem earogos. cho nas suas atitudes ue estdo indecisos, Explico em sew idioma: * Ji € tarde, breve vird a noite. Os indios Umutina tém médo das Imordeduras, Temem os espirtos da mats. Jukwepa afirma que seu filho Julapare iri na manba seguinte, Nao mie contento, Mew estado, me Dreacupa, Cuspo sangue ¢ estou muito fraco, Apelo para Atwkare! “Ko Fine! Mais tarde! responde.» “Depots ‘Tenho! de me. conformar A meu pedido Mitoponepd traz minha mala de euratives. Seguro uma ampola de soro anttetinic, $6 poso usar a mio. dreita, Pro- Cro retiar a seringa de injegBes, Cai € quebra o bico, 86 com muita diiculdade os indios conseguem retrar 0: pedago de vidro partido do intermedi de metal, dificil explicar que’ devem coloeat 0 vast Ps © autor em companhia de seus amigos Umutina Thame da seringa com agua sébre a tampa com dlcool. Sempre fazem © contririo. Fervida a seringa, tenciono retiri-la. Novamente cai ¢ se suja de terra, Enfio a aguiha no biceps apesar de téda a sujeira. Encosto a seringa com 0 bico quebrado na agulha e consigo injetat uma parte do s6ro, que logo provoca desagradivel rea A esteira sobre 0 chio € muito dura, incémoda. Quero deitarme na réde, Com dificuldade consigo sentarme. Ao tentar levantar-me desmaio novamente de fraqueza. E noitet As fogueiras esto baixas. Varepi ¢ Matarepati dormem em. sua esteira sobre o catre de varas. Gemo um pouco. Mitoponepa Ie vantase imediatamente. Assopra o fogo e trazme um vasilhame, Ofe rece-ine dgua fresca, e volta a deitarse. Rumores na noite. Serio passos? Nao! Deve ser o vento que sus. surra entre as arvores. Agora ouco passos humanos. “E Kupo com a carabina!” Agarro meu revélver. Sem divida vem matarme. “Morrer se preciso fOr; matar nunca!” é © lema de meu venerando chefe, 0 8 General Rondon, Nio quero morrer esti . Foi sé uma gartixa noturna que caga na palha da casa. Persegue 0s grilos! Ha mi- hares déles. Nao consigo dormir até a madrugada, Kupo nao veio! ‘Toro a pedir aos indios para irem ao pésto indigena, comunicar © ocorrido. Fico aliviado sabendo que Auikaré e Julapare j4 parti ram ontem tarde, Pelas onze horas chega socorro! £ 0 senhor José Ferdelis de Barros, intrépido sertanejo, encarregado do pésto iniigena com oito indios ados. Todas estio armados, : Tendo me visto estendido sem sentidos, Atukaré contou que seu ami: g0 Harodo morreu. Os Umutina no distinguem bem entre desmaios profundos e demorados € a prépria morte. Os bons amigos amarram os punhos de minha réde numa vara forte Colocam-me na réde e caregam-me pelas sendas da mata, por cima de paus escortegadios deitados sObre piintanos ¢ através dos descan pados ensolarados. Os homens se revezam. Mitoponepi e Yarepi acom: panham-me por um longo trecho, Da aldeia ressoam os cinticos ¢ lamentagies das mulheres que cho. ram a partida de seu amigo Harodo, como é costume entre 0s indios Umutina. NOTA: As fotografias foram tiradas pelo autor, quando “chefe da equipe etno srifica do Servigo de Protegio aot Indios”, Exceto uma, batida por Kupodoneps. ‘© material fotogritic pertence a0 Servigo de Protegdo aos Indios, que gentl ‘mente cedeu as cOpias para publicacto, A. méquina fotogratica usada foi LEICA, cujas qualidades tdenicas sfo especial mente favoriveis as condigtes diflels de uma Viagem pela elva Malo de 1958. Harald Schultz " ‘apna CONE 0s “Barbados” vivem em pleno coragéo do Brasil, no extremo norte de Mato Grosso, tna margem diveita do alto rio Paragual NOTAS DO TEXTO 1 —Tratase de nome inventado em substituigio do nome verdadciro do ree Fido megociante 2 — Poaia — 0 mesmo que ipececuanhe, ave mas matas do alto Paragual, © da planta da familia das rubidceas, fre se extrai a emetina 3 — Os proprios Um ina, depois de thes ter angariado a confiangs, © confir: 4 — De acérdo com os informes de antigos moradores, parece justo caleular seu nimero entre 400 © 600. 5 — Unueu (Bixa Orellana), arbusto cultivado pelos indios, de cujas sementes prepara tinta vermelha para’ adornar seu corpo, 6 — Coloragio obtida do barto amare, 7 = Céx obtida com o sumo da fruta verde do jenipapo 8 — 0 dirctor do Hérto Floreual de Tremembé, S40 Paulo, confirmou que se trata de waquara venenosa. Seus eletos téxices sto conhecidos 9-8 ‘onstituem & aldela, so orientados_pelas mulheres mais velbas. Nab quert Alecems 30 mais valente e experimentado guerriro 10 — Zingar — denominagSo dada erréneamente na regifo a0 trabalho de pulsionar embareacSes pelo tare. 1 = Taint tempos de paz os Umutina nfo tém chefe. Os grupos de familias, que obe- x1 mycteria), ave da familia dos ciconideos 12 — Seracura do céu — nfo foi posivel descobrir o nome verdadciro da mis 13 — Em varios mitoy os Umutina contam 2 respeito da vida no eéu, que, para es, € menos confortavel que a da terra = 14 = Timbé — nfo se trata do timbd conhecido no preparo de insetiidas, 15 — Os Umutina tém “donos" da pesca, dos porcordo-mato e outros animais, So conslderados os seus ancestais e figuram como. personagens importantes em 16 — Em caso de morte destroem tudo o que pertencia 20 indio em vida. Expl: ‘aram, espontineamente, que por isso preventivamente qucimam os fexes de. Gp Timbo usados 17 = Moguear — assar 20 calor de fogo baixo. 18 — Pacooa — nome regional dado a uma planta, cujas folhas se asemelham ts da banancira, & provivel tratarae de ta Miusicea da epéce Ravenala ou Hel cBnia, Os Indios comem at sementes assadas 19 — 0 autor recolhen perto de vinte lendas dos Umutina, inéditas 20 — Haipuku € uma das divindades na religifo umutina. Sendo, considerado criador dos homens”, ¢ facil compari-lo e confundilo cam 0 "Deus dos Cristaos". Gr Umutina no gostam que se The reps com frequéncia 0 nome. Exlafcem set "ancestral dn tribe — 21 — acaba do campo, palmeira de feutor comestveis (Oenocarpus spes). 22 — Figueira do mato (Ficus spes). 23 — Bacabe do mato, semelhante 30 n° 21 24 — A india umutina da a lux acoorada © aguerada_a_um tronco de figura a mata, astila por pesos do sexo feminine. de sua faa. “As mulheres umutina usam uma sala de algodio de prdpria confesi. 25 — A vero que inclui um casa de “brailiros” no mito sobre a eriagho dos 27 — Grande parte do.teritério entre os rios Paragual ¢ Sepotuba era consi erat propriate da tribo. Hoje vivem or inios numa, pequera reserva federal Sima do sow Dugres 28 — drarars — qualidade de tucanos pequencs o — Jabuti — especie de queldnio das matas (texudo tabulata. 30 — Hi cert, predomininda da muther na. vida social entre 0s indios Umue 31 — Buriti, palma de frutos comestves, muito freqiente no norte do Bras (os indiow aprovetam sat Isbrat e pala 92 — Poquenae 4 a de Jo4hteio vars Os moradoves brasileiros culpa ot indies, e étes acusam os ile. 33 — Doengas relativamente benignas para. és, como influenza, coqueluche, s rampo slo muitas vex mortals pata os indion, B provével que fbssem. desconhe 3H — £ uma fit etrita de aldo, tngida de vermetho, que os homens enro tam 20 redor do coque em cima da cabesa 35 — Tratase do enfete da parte superior do brago, denominado “Xuare", que ov Indios raduacn com! "E de fodos nde” Deve ser coniderado 0 distintivo tba 86 — Tucum — palmera freqiente na regio, de cujo talos preparam cordas rmulto vesstentes. Dos frutos matures av indias farm ‘um mingau Talo 37 Hiri — a Ina € Mini ~ os) ram anigamete gente, gue isa na tera. Sto amigos! Hoje exo no cu” Eta thas figuras so 0s: personage prin Spat dem Siclo de miton, Mini o sol, € desert. como inteligente, © Hr, 2 ‘bobo. A lua perece quando eta’ smitar at perpeciat do sol) © sol faz fesiusctar a ia. Cont isto explicam as fases e eclipses lunar 38 — A dewrigio do manejo da “flecha do soI” que sempre volta 20 lugar done fol arvemesads, lembra, vivamente 0 “boomerang’, arma usida entre ti 39 — Durante wma cagada or Umutina mostraram um gaviéo pret, afirmando sero guvino da lena que contaram. 40 ~ Bododd, terreiro de danas. Afirmam antigos viajantes que 0 nome da tribo dow Moron, Sinha. dos Uimutina, provém déste nome. Os Bororo indagados Como se chamava a sua tbo, terlamfespondido, scompanhando om tm. esto {Que inicavaao_neor do. pation “Bododde terra! “Os, Umutina, pronune Ete nome também “bobls PUBLICAGOES DO AUTOR Lendas dos Indios Krahd. — Revista do Museu paulita, Nova Série. Vol. 1V, 1950 Notas Sobre Magia Krahd. — Revista “Sociologia”. Sio Paulo, dezembro de 1950, Eine AYfenjagd bei den Umutina-Indionern, ~ Serra-Poxt Kalender, Ti, Rio Gran ‘do Sul, 1950, Lendas Indigenas, ~ Boletim n° 2, da Sociedade “Amigos do Indio", in Revista do Arquivo Municipal, Departamento de Cultura, $0 Paulo, 1950 Vocabulirio dos Indios Umutina, — Journal des Américanistes, Paris, 1952 IndianerSagen. — Revista “Intercimbio", fo Pavlo, ano 1, no 1/2 Conceitor Sdbre Doengas, Cura e Morte Entre as Indios Umutina, — Revista “O Com ppanheito Informagées Sobre os Indios Umutine. — Roletim do Ministério da Agricultura. Rio de Janeiro, 1946, 0s Umutina. — Filme documentirio, 35mm, sonore, editado pelo Servigo de Pro tego 20s fndios, Ministério da Agsiculana, Rio de Janeiro EXPEDIGOES REALIZADAS PELO AUTOR ATE MAIO DE 1953 Como chefe da “Equipe Etnogritiea" do Servigo de Protegio aos Indios, Minis tério da Agricultura, Rio de Janeiro, sob a sibia orientacio de S. Ex 0 Sr. General Cindido Mariano da Silva Rondon, DD, Presidente do Conselho Nacional de Pro: tego 208 fad: 1912 — Sul de Mato Grosio, tibos: Terena, Kadiuéu, Guarani ¢ Keingang, 1913 — Norte de Mato Groso, trios: Hokeiri, do rio Paranatinga, e Umutine do alto rio Paraguai 1014/45 — Norte de Mato Grose, wibo: Umutina, do alto rio Paragual Como asintente de pexquisas do Prof, Dr. Herbert Baldus, atual diretor substi tuto do Museu Paulista, Sto. Paulo: 1046 — Estado de Sio Paulo € Norte do Parané, indios Kaingong Como astistente de etnologia do Museu Paulista, S40 Paulo, sob a orientagto do Ex.*" Sr. Prof. Dr. Herbert Baldus, awal diretor subsituto daquele estabele fdimento cientifico 1947 — Goits, wibos: Karajé, do rio Araguaia, © Krahé, do rio Tocantins 1918 — Goids, wibos: Karajé, do. rio Araguaia, © Tapirapeé, do rio. Tapir 1949 — Goids, trio: Krahé, margem diteta do. rio Tocantins. rar — escavagées arqueoiggicar na iha do. Margi 1950 — Territério do Acre, wibos: Apurind, do alto Purus, duas Kguas acima do No Acre! Kurina e Tukurina, do alto rio Purus, acima do rio Chandies. 1951 — Peru, tvibos: Xarandua © Marindua, do alto Purus, perto da bbea do rio ‘Curanje: Kexindua, no alto rio Caranja, afluente do alto Pars 52 — Tersitério do Guaporé: tribo: Moré, na margem Boliviana Golds, tibos! ‘Karajé, no rio Araguaia, Tapirape, do. rio Tapirape 1953 — Ralxo Amazonas, escavagées arqueol6gicas em Santarém, Oriximing, vio Ere ‘pecurty, Pasani-parintne varios lagos e parands do io Amazonas, lenny) | BP

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