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PERFEIÇÃO!

Perfection
Regina Scott
Inglaterra, século XVIII
Brandon Pellidore tem a forte suspeita de que os
trajes simples daquela governanta são um mero
disfarce do qual Célia Rider lançou mão para não ser
reconhecida. Ele não demora muito para revelar a
identidade de Célia, e logo a envolve num ousado
plano para capturar um ladrão. No entanto, à
medida que a paixão entre ambos cresce, Brandon
percebe que terá de contar à doce e encantadora
Célia sobre o obscuro legado que resultou na sua
duvidosa reputação e sobre as terríveis
consequências que a mulher que se apaixonar por
ele terá de enfrentar. Mas Célia não vacila em seguir
a voz do seu coração, por mais difícil que seja a
jornada. Pois é a única maneira de ficar ao lado de
um homem que é nada menos que perfeito!

Projeto Revisoras
Capítulo I
— Então é ele?
O sussurro percorreu o silencioso salão de jogos.
Brandon Pellidore, marquês de Hartley, não
reconheceu o som. Isso arruinaria a imagem que
estivera cultivando desde seu retorno a Londres há
seis meses. Ele deixou o ás de copas sobre a mesa e
inclinou-se para trás.
Seus companheiros de partida tinham menos
reputação a proteger. Chas Prestwick sorriu com
frieza e inclinou a cabeça como se aguçasse os
ouvidos, mas ele não se deteve antes de jogar um
quatro de copas sobre o ás de Brandon.
— Não, não — dizia o autor do sussurro. — Não
preciso de uma apresentação. Devo falar com ele
diretamente.
O parceiro de Prestwick, Leslie Petersborough,
ergueu uma sobrancelha e balançou a cabeça. A luz
da tocha presa à parede atrás de Brandon tornou
ainda mais brilhante os botões dourados da túnica
de Petersborough.
Na frente de Brandon, o meio-irmão do seu pai,

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lorde Edmund Pellidore, jogou um sete de copas no
centro da mesa e franziu a testa. Petersborough
olhou para o descarte e suspirou com desânimo ao
ver Brandon recolher as cartas.
— Se continuar assim, vai acabar me deixando
limpo, Hart — ele previu.
— Eu não o preveni? — Prestwick comentou,
bebendo um gole do vinho Madeira na taça a seu
lado.
— Vai sobreviver — garantiu Brandon,
examinando o baralho com movimentos lentos e
atentos. Porém, enquanto fingia estudar as cartas,
ele analisava as pessoas que o cercavam.
E pensar que havia imaginado que uma sala de
jogos ofereceria mais privacidade do que o White's.
A mesa de canto no fundo do salão do seleto
estabelecimento de madame Zala havia parecido
perfeita para suas intenções. Nem mesmo Edmund
poderia reclamar, já que poderia fumar os cigarros
que tanto apreciava. E agora, graças a um
desconhecido inconveniente e grosseiro, os outros
frequentadores haviam sido alertados para sua

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presença. Duas mesas no salão principal já se
haviam esvaziado, e os cavalheiros que jogavam
noutra mesa próxima já se aproximavam curiosos.
Alguém perturbava o famoso lorde Hartley? Ah, essa
era uma raridade digna de ser vista. O marquês
podia quase ouvir as apostas sendo feitas.
Um homem alto com uma compleição
envelhecida pelo sol e obviamente afetado pela
bebida aproximou-se da mesa empurrando aqueles
que a cercavam. Outro cavalheiro baixinho e roliço o
interceptou.
— Devagar, Arlington. Não sabe quem está
enfrentando aqui.
Arlington empurrou-o. Brandon juntou as cartas
antes de examinar o desconhecido. Mãos grandes,
porém vazias. o que significava que não devia temer
nenhuma ameaça imediata. Ombros largos e braços
longos. sinal de que o sujeito devia ter um alcance
considerável num embate físico. Não havia nenhum
volume sugestivo sob seu casaco castanho nem sob
a calça justa, mas qualquer coisa podia estar
escondida dentro das suas botas antiquadas, desde

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uma adaga até uma pistola. Brandon deixou as
cartas na pilha que crescia à sua direita.
— Quero uma palavra com você, Hartley —
Arlington anunciou.
— Estou ocupado — respondeu Brandon.
Depois empurrou a cadeira para trás, como se
quisesse esticar as longas pernas. Finalmente, ele
descartou uma rainha de copas.
— Pois trate de desocupar-se — Arlington
decretou, colocando-se ao lado de Prestwick. —
Quero saber o que fez com Célia Rider.
Com os olhos verdes cintilando, Prestwick abriu a
mão e bateu com ela sobre a mesa. Antes que
pudesse se levantar, Petersborough já estava em pé
e contornava a mesa.
— Sr. Arlington — ele disse com um tom
amistoso, porém determinado. — Está se expondo
ao ridículo. Sugiro que vá embora enquanto pode.
Alguns presentes incentivavam Arlington a ficar e
lutar. Outros o aconselhavam a partir. Arlington
afastou-se de Prestwick, mas ergueu os ombros
num gesto que demonstrava resolução.

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— Com sua licença, não tenho nenhum assunto a
tratar aqui senão com lorde Hartley. Preciso saber o
que ele fez com minha noiva.
Prestwick recuperou suas cartas como se
estivesse aborrecido.
— Nunca pensei que fosse invadir o território de
outro homem, Hart.
— Ridículo — acrescentou Edmund, ignorando as
cartas diante dele para olhar para Arlington. — Deve
estar havendo algum engano, meu rapaz. Abordou o
homem errado.
— De fato, sr. Arlington. — A voz sedosa da
proprietária do estabelecimento era quase um
ronronar. Madame Zala aproximava-se com passos
elegantes e altivos. — Tivemos momentos tão
agradáveis, que seria uma decepção ter de expulsá-
lo daqui.
Arlington piscou para a beldade curvilínea. Com
seus cachos dourados e o vestido negro de tecido
fino e bordado, ela exalava sofisticação. Ele não
parecia apreciar tal fato, nem a posição estratégica
do seu truculento lacaio junto à porta.

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— Não pode me expulsar — ele disse. — Tenho
uma obrigação aqui.
A mulher ergueu a mão como se pretendesse
tocar seu braço. Ele passou pela comerciante e
desviou de Petersborough para percorrer a distância
que o separava de Brandon. Os olhos escuros de
Edmund lançaram um aviso silencioso. Tenso,
Brandon moveu a cabeça em sentido negativo uma
única vez.
Arlington o encarava com os punhos cerrados.
— Como pode continuar sentado aí tão calmo?
Espera despistar-me? Sei quem devo buscar.
Homem alto, cabelos escuros, olhos escuros, vestido
de negro como se fosse a um funeral. Uma
verdadeira lenda em Londres. Lorde Heartless, ou o
Senhor Sem Coração.
Um murmúrio percorreu a multidão. Não era o
mais agradável dos epítetos, mas Brandon não podia
discutir. Havia se esforçado muito para dar essa
impressão. Com movimentos calculados, ele deixou
cair o valete de copas que tinha na mão e
determinou quanto tempo levaria para pôr-se em

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pé. A posição da mesa oferecia proteção para suas
costas, pelo menos.
Embora não os conhecesse bem, estava certo de
que podia contar com seus companheiros de jogo
para conter todos os outros ali presentes. E claro,
madame Zala não permitiria que a situação
escapasse ao controle. Ela também tinha uma
reputação a proteger.
Prestwick olhou para Brandon.
— Vai deixá-lo continuar com isso, Hart?
— Eu não deixaria — interferiu Petersborough,
colocando-se atrás de Arlington.
O jovem empalideceu, mas continuou onde
estava como se os desafiasse a atacá-lo. Madame
Zala fez um sinal para o lacaio.
— Não posso matar todos os insetos que me
perturbam — Brandon respondeu para Prestwick. —
Sua carta, senhor?
Prestwick descartou e balançou a cabeça com
evidente admiração. Edmund o imitou, porém mais
devagar. Brandon assentiu para Petersborough, que
retornou ao seu assento com relutância óbvia e

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jogou uma carta. Brandon estendeu a mão para
recolher todas que estavam sobre a mesa.
— Maldição! — Arlington bateu com a mão aberta
sobre as cartas. — Olhe para mim!
Brandon ergueu o olhar lentamente. Arlington
removeu a mão de sobre as cartas e recuou
trôpego. Brandon ajeitou o baralho, deixou-o de
lado e descartou um dez de copas. O lacaio
aproximava-se por entre a multidão sem nenhuma
dificuldade. Ele pôs uma das mãos sobre um ombro
de Arlington, que se inclinou sob o peso.
— Não vai se safar dessa! — Arlington exclamou
enquanto tentava se livrar dos dedos do lacaio. —
Primeiro se apodera da sua fortuna, e quando ela o
procura para confrontá-lo, desaparece também com
ela!
— Cuidado, amigo — Edmund o preveniu. — Meu
sobrinho é conhecido por ser um cavalheiro.
— Então, agora seduz virgens e tira o alimento
de viúvas e órfãos, também — Prestwick brincou,
descartando um três de espadas.
Brandon viu Edmund descartar um nove de paus.

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— Se fosse verdade, a sociedade só me admiraria
mais por isso.
— Particularmente pela parte das virgens —
Petersborough concordou prontamente, descartando
um dez de ouros.
— Encontrarei alguém que acredite em mim —
insistiu Arlington.
O lacaio o segurava pelo braço e arrastava para a
porta.
— Você pode ser até o príncipe! Não vai escapar
impune desse assassinato!
— Assassinato, é? — Edmund balançou a cabeça
grisalha enquanto Brandon recolhia mais uma vez as
cartas da mesa.
— Creio que um assassinato vai ocorrer se esse
filhote de cachorro continuar ladrando.
— Diga-me! O que fez com ela? — Arlington
gritou chorando, cravando os calcanhares no tapete
para não se deixar arrastar. — Fale, ou v-v-vou
matá-lo c-c-com minhas p-p-ppró-prias m-m-m-
mãos!
A multidão gargalhou. Arlington soluçou

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desesperado. Brandon levantou-se.
A sala mergulhou num silêncio tenso.
Ele jogou as cartas restantes sobre a mesa.
— Já terminei aqui. Soltem o rapaz.
Prestwick e Petersborough trocaram um olhar
preocupado. Edmund também se levantou. Brandon
balançou a cabeça novamente. O lacaio soltou o
insolente e, obediente, recuou um passo, sorrindo
animado diante da perspectiva de uma cena de
violência. A multidão murmurava apostas sobre
quantos socos suportaria o pobre sr. Arlington.
Arlington cerrou os punhos e os posicionou diante do
rosto. Eles tremiam.
Brandon o encarava sério.
— Sr. Arlington, parece ter muito a me dizer.
Estou inclinado a ser indulgente.
Madame Zala apareceu a seu lado.
— Deseja um cômodo privado, milorde? Por aqui.
Arlington permaneceu onde estava, mas baixou
os punhos.
— Não vou a lugar nenhum com você — disse. —
Como posso saber que não me dará um fim como

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fez com a pobre Célia?
Brandon parou na porta para o salão principal.
— Desejava um momento do meu tempo.
Pretendo dá-lo. Pode vir comigo ou ir para o inferno,
como preferir.
— Quanto cavalheirismo, milorde — elogiou a
anfitriã com tom meloso, sorrindo enquanto o
conduzia por um corredor acarpetado. — Devia ter
me deixado expulsá-lo daqui.
Brandon não respondeu. Ela estava certa, sem
dúvida, mas não conseguia explicar como a gagueira
patética de Arlington o afetara.
Madame Zala parou diante de uma porta de
madeira polida e tocou a maçaneta. Seus olhos
encontraram os dele com grande curiosidade.
— Ou talvez tenha outras utilidades para o
rapaz?
O silêncio do marquês indicava que ele não tinha
nenhuma intenção de gratificar sua curiosidade, e
ela abriu a porta. Brandon olhou para as cadeiras de
encosto alto em volta de uma pesada mesa de
carvalho e assentiu.

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— Vinho? — a comerciante ofereceu a Brandon.
Arlington entrou cambaleando e olhou em volta
desconfiado.
— Ele não precisa de mais bebida — respondeu o
marquês.
A mulher não perguntou se ele desejava um
cálice da bebida, porque o fidalgo já havia deixado
claro que não pretendia beber coisa alguma no seu
estabelecimento.
Brandon caminhou até a cadeira mais próxima e
sentou-se, enquanto Arlington desmoronava no
assento diretamente à frente dele. Um pequeno
candelabro suspenso espalhava um brilho dourado
pela sala, mas o rapaz nem parecia notá-lo. Agora
que o via de perto, Brandon calculava sua idade em
volta dos vinte anos. Ele tinha cabelos louros e
encaracolados, agora desalinhados, olhos verdes e
um nariz longo que terminava numa extremidade
arredondada e chata, como se Deus houvesse
pressionado o polegar na argila que utilizara para
moldá-lo.
— Quem é Célia Rider? — Brandon perguntou.

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— Como se você não soubesse — Arlington
grunhiu. Depois cruzou os braços sobre o peito, um
gesto cuja intenção era de parecer intimidador, mas
que, naquelas circunstâncias, mal servia para
esconder o tremor das suas mãos.
— Se eu soubesse, não estaria perguntando. Não
tenho tempo para jogos tolos.
O jovem o encarou sério, mas algo na expressão
de Brandon o deixou confuso. Devagar, o ar sombrio
desapareceu.
— Não sabe mesmo onde ela está, não é? Meu
Deus, o que vou fazer?
— Acalme-se. Pense. Presumo que a sita. Rider
tenha partido para Londres recentemente?
— Há quase uma quinzena.
— E acredita que ela veio para me procurar.
— Deve ter vindo. É a única possibilidade.
— A única possibilidade de quê?
— De encontrar sua fortuna. Você a roubou e.
— Sim, já ouvi isso antes. Vamos tentar nos
apegar aos fatos reais, está bem?
— Esse é um fato real. Célia disse que a

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madrasta dela pegou o dinheiro, mas sei que uma
mulher jamais poderia ser tão diabólica. Seria
necessário alguém habituado a lidar com o dinheiro
para roubar uma herança desse porte.
Brandon inclinou a cabeça.
— Ah, essa Rider.
Os olhos de Arlington ganharam uma nova luz.
Brandon levantou a mão.
— Lembro-me do nome. Isso não me torna um
assassino. Deixe-me entendê-lo. Está falando da
srta. Célia Rider, filha de David Rider?
— Exatamente! Não pode alegar ignorância. Ela é
enteada da sua prima!
— Prima em segundo grau. E só a vi duas vezes,
uma no casamento da minha prima com o pai da
srta. Rider e outra no funeral do pai dela. —
Lembrava-se apenas de um rosto magro e infantil
com os olhos expressivos do pai. Mas, se estava
noiva desse homem, a srta. Rider já havia crescido.
— Não precisa conhecê-la para saber da sua
fortuna — insistiu o rapaz. — Tudo foi publicado
pelos jornais.

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— Sim, concordo. David Rider foi um homem
muito conhecido no seu tempo. No entanto, o fato
de você saber sobre a existência dessa fortuna
também o condena. Pode ter sido informado pela
jovem e ter vindo aqui sob falsos pretextos,
tentando me fazer concordar com você.
— Duvida de mim, senhor? Sou um cavalheiro!
Brandon limitou-se a erguer uma sobrancelha.
Arlington respirou fundo e baixou a cabeça, como se
de repente se resignasse.
— Oh, está bem. Sou filho de um escudeiro, um
homem simples do campo. Mas Célia é minha noiva.
Vamos nos casar assim que ela receber o dote.
E aí estava mais uma razão por trás da urgência
do jovem na sua busca.
— A srta. Rider não pode se casar sem a
herança?
Ele assentiu e corou.
— Meu pai insiste nisso. Eu me casaria com ela
de qualquer maneira, mas Célia diz que um acordo é
um acordo. Ela está determinada.
— E veio a Londres sozinha?

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— Não sei ao certo. Ela não me contou todos os
seus planos. É um pouco voluntariosa, milorde, mas
afirmo que isso mudará quando nos casarmos.
Brandon duvidava disso, mas decidiu que o sr.
Arlington já tinha problemas demais para considerar
naquele momento.
— Ela já cometeu algumas excentricidades antes,
mas nunca desapareceu.
— Talvez tenha mudado de ideia, não? —
Brandon sugeriu. — Uma fortuna desse porte pode
dar a qualquer jovem dama ideias que excluem o
retorno ao campo.
— Se a fortuna for realmente tão grande. Ela foi
informada do contrário. Célia devia ter recebido o
dinheiro no seu vigésimo primeiro aniversário, mas
o dia passou sem que ela tivesse nenhuma notícia.
Ela tentou informar-se sobre o dinheiro, mas foi
informada de que o pai a deixara sem nenhum
tostão. Meu pai nunca acreditou nisso. David Rider
era rico. É razoável que ele tenha deixado alguma
coisa para a filha.
— Imagino que sim. O que fê-lo decidir que eu

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peguei o dinheiro?
— É o chefe da família Pellidore. Isso o torna o
guardião.
Interessante. Nunca se dera conta desse dever.
Seria esse mais um exemplo das liberdades tomadas
por sua tia Honória? Ela era uma das razões pelas
quais Edmund insistira em criá-lo na sua
propriedade escocesa, com algumas visitas
ocasionais às outras propriedades em Londres. Ela
gostava de colocar-se como chefe da família, e sua
prima em segundo grau, Patrice, não parecia se
opôr a esse posicionamento, mesmo quando a
questão envolvia a criação do seu filho e da sua
enteada. Brandon o encarou.
— Vamos imaginar durante um momento que
você está correto. Digamos que posso mesmo
controlar o que minha família decide fazer. Vamos
presumir também que eu seria capaz de fazer
desaparecer milagrosamente a considerável fortuna
de David Rider. Porque eu faria tal coisa?
Arlington lambeu os lábios.
— Ah, vamos lá! Há pouco me acusou de roubo e

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assassinato, sr. Arlington. Não vai recuar agora, vai?
— Muito bem. Sei de fonte segura que não tem
acesso a seu próprio dinheiro. Imaginei que
precisaria de uma quantia razoável de vez em
quando. Levando em conta o tipo de diversão a que
se dedica.
Brandon não explicou que estivera ganhando no
jogo, como de costume.
— E sou desequilibrado o bastante para roubar,
embora só tenha retornado ao país há seis meses?
Arlington suspirou.
— Foi o que pensei. Pelo que todos dizem, você é
esse tipo de bastardo sem coração.
— Elogios não vão levá-lo a lugar algum, meu
caro senhor. — Ele se levantou.
Arlington também se pôs em pé. Ele cerrou os
punhos e os colocou diante do rosto. Brandon
ergueu uma sobrancelha.
Arlington baixou os braços devagar.
— Não vai me expulsar? — O tremor na voz do
rapaz sugeria que ele não apreciava muito a ideia de
um embate físico.

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— Eu não perderia meu tempo com isso, sr.
Arlington. Prefiro resolver nossas dificuldades de
outra maneira.
— Então. vai me ajudar? É isso? Como?
— Vou analisar sua história. Se quiser tomar
conhecimento das minhas descobertas, visite meus
advogados, Carstairs & Filho, na próxima sexta-
feira. O escritório fica no distrito financeiro.
— Sexta? Mas hoje é terça!
— Algum problema, sr. Arlington?
— Bem, eu. Três dias representam muito tempo.
Até lá, muitas coisas podem acontecer. Porque devo
confiar em você?
— Por acaso tem escolha? Eu o receberei às três
da tarde. Até lá, assegure-se de que não haverá
mais nenhum incidente entre nós. Pense em como a
srta. Rider ficaria triste se eu fosse forçado a matá-
lo.

— Depressa! — Martin gritou. — Alguém se


aproxima.

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Célia Rider escondeu os cabelos cor-de-mel sob a
touca e sentou-se rapidamente na cadeira de
encosto alto. Com o coração disparado, ela colocou
o pesado livro de latim diante do rosto, parando
apenas para certificar-se de que o irmão caçula,
Martin, havia tomado seu lugar à mesa ao lado dela.
— Vox audita perit — ela começou, imitando a
voz acadêmica da verdadeira governanta de Martin,
uma mulher que haviam deixado em Somerset. —
Litera scripta manet. Tradução, sr. Rider?
— A voz elevada perece, mas a literatura
permanece?
Célia olhou por cima do livro e viu John, o criado
robusto que cuidava da sala escolar, parado na
porta nas suas roupas de trabalho. A julgar por sua
expressão, ele estava bastante impressionado,
embora certamente não entendesse uma só palavra
de latim. Melhor não corrigir seu irmão. Sua
tradução estava bem próxima do significado da
citação, A palavra, quando falada, perece, enquanto
a palavra escrita permanece. Ela levantou a cabeça.
— Precisa de alguma coisa, John?

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— Sim, srta. Prim. Com sua licença, a srta.
Lawton afirma que a senhora precisa da sua ajuda.
Vim para cuidar do menino.
Martin olhou para Célia com ar esperançoso.
Era essa sua prova de gratidão? Ali estava ela,
incógnita, arriscando sua reputação e seu futuro
para encontrar a fortuna que pertencia aos dois, e
ele preferia jogar dardos com o criado. Mas, se a
srta. Lawton, criada de lady Honória, afirmava que
sua senhora solicitava sua presença, era melhor
atender.
Deixando o livro sobre a mesa, Célia torceu o
nariz. Não podia culpar Martin. Havia dias em que
ela também preferia brincar. Infelizmente, os
homens que seu pai incumbira de administrar sua
fortuna não haviam sido confiáveis, sua madrasta os
subornara de maneira a formar um conluio com
eles, e seu noivo era simplório demais para ser de
alguma ajuda. O que uma jovem dama podia fazer?
Felizmente John havia sido enviado para chamá-
la. Como jamais vira a enteada de Patrice Rider, ele
não podia desmascarar sua farsa. Sentia-se menos

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confortável com a madrasta.
Patrice não a via há quase quatro anos, e assim
mesmo só durante algumas horas, o necessário para
acertar assuntos importantes depois do funeral do
seu pai. Devia imaginá-la mais alta, curvilínea e
confiante, como cabia a uma mulher de vinte e dois
anos, não magra e acanhada como era. Mesmo
assim, não podia correr riscos. Sua missão era
importante demais.
— Sabe que horas são? — ela perguntou ao
lacaio, que já se movia pela ensolarada sala de
estudos. — Devo levar um livro e ler para a
senhora? — A pergunta soava bastante submissa.
Com sorte, acabaria aborrecendo a mulher a ponto
de fazê-la dormir, e assim teria uma chance de
examinar os papéis que vira nos seus aposentos.
Aquele era um dos poucos lugares que ainda não
pudera revistar.
O lacaio balançou a cabeça.
— Deve apresentar-se lá embaixo. Lorde
Pellidore visita a casa, e parece que a sra. Rider
precisa de uma companhia que possa assegurar sua

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reputação.
Desde quando?
Célia não formulou a pergunta em voz alta. Sua
madrasta recebia muitos cavalheiros. Como mulher
viúva e morando com a avó, ela nunca manifestara
a necessidade de uma companhia, como outras
mulheres faziam pelo bem da propriedade. O que
havia de diferente naquele visitante para que lady
Honória exigisse companhia para a neta?
— Não há mais ninguém disponível? — ela
tentou.
— Talvez haja, mas lady Honória quer que você
se apresente na sala.
E o que lady Honória queria, lady Honória
conseguia. Até Patrice parecia ter medo dela,
embora Célia não soubesse por quê. Com quase
setenta anos de idade a senhora raramente deixava
seus aposentos, embora também recebesse alguns
visitantes, homens e mulheres. Lorde Edmund
Pellidore, seu meio-irmão, estava sempre entre
essas visitas.
Até então, a suposta srta. Prim só havia sido

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solicitada para uma ocasional sessão de leitura ou
um relatório sobre os progressos da educação do
bisneto de lady Honória. Nenhuma dessas conversas
havia sido particularmente agradável, mas talvez
não se sentisse tão nervosa nessas ocasiões se não
temesse ser descoberta. O fato de ter sido
convocada para essa última missão era um indicador
de que havia conseguido penetrar nas boas graças
de lady Honória.
Ela chamou o irmão. Martin levantou-se e
aproximou-se dela. Célia sabia que John podia ver a
relutância na postura dos seus ombros estreitos e
caídos. Com sorte, o lacaio pensaria que o rapaz
estava apenas receoso diante da possibilidade de
mais um sermão da séria srta. Prim. Não queria que
o homem soubesse que o verdadeiro temor de
Martin dizia respeito à irmã e como ela poderia
travar seu entusiasmo.
Ela se baixou para sussurrar:
— Porque essa cara? Só queria dizer que deve
tomar cuidado. Não se pode saber em que devemos
confiar.

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— Devia se preocupar mais com você — Martin
respondeu no mesmo tom. — Dessa vez ela a
pegará, com certeza.
— Não se eu me comportar perfeitamente. Só
preciso me sentar e ser tão notável quanto o papel
de parede.
Martin apertou os lábios, e ela sentiu o coração
igualmente oprimido. Ele sempre havia sido um
menino cheio de vida, era como se a alegria se
esvaísse gota a gota desde sua chegada a Londres.
— Não gosto disso — confessou o rapaz. — Minha
mãe vai ficar zangada quando perceber que
tentamos enganá-la. E se ela me mandar de volta
para o campo?
— Logo ela terá pouco poder sobre nós — Célia
prometeu. — Já completei minha maioridade, caso
alguém tenha esquecido. Assim que tiver minha
herança, poderei me estabelecer por conta própria.
E você vai poder ficar comigo.
A expressão no rosto do irmão a impediu de
levantar-se.
— Duvida de mim, Martin?

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— Não. Sei que vai cuidar de mim, mesmo que a
fortuna do nosso pai tenha minguado.
— Ela não minguou. Está desaparecida. Só
preciso de mais alguns dias para descobrir o que
está acontecendo.
— Minha mãe não pegou o dinheiro.
— Espero que não — ela disse, admirando a
lealdade do irmão. — Agora tenho de ir.
Deixando Martin aos cuidados de John, ela correu
ao segundo andar e logo encontrou a madrasta.
Patrice a esperava do lado de fora do salão principal,
e sua postura denotava impaciência. Ela a examinou
da cabeça aos pés, mas só para certificar-se de que
seus trajes causariam uma boa impressão ao
visitante, não por ela, mas pela casa para a qual
trabalhava.
Patrice, da sua parte, parecia sempre muito
confiante com relação à própria aparência. Usava
vestidos com fitas e babados em excesso, e seus
cabelos claros formavam um complexo conjunto de
trancas e rolos no alto da cabeça. O desenho dos
seus olhos lembrava um felino, apesar do tom

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violeta das íris. Os lábios rosados eram carnudos e
húmidos. Ela possuía curvas exuberantes nos
lugares certos, mãos macias que flutuavam
enquanto ela falava, e pés pequenos. No geral, Célia
sabia exatamente o que seu pai, um mercador
consumado, pretendera ao trocar sua riqueza pelo
casamento com a bela e jovem segunda esposa.
Há muito ele mesmo ensinara à filha o valor de
uma boa ## trocar/negociar<< barganha e o risco
de desrespeitá-la. Pena que sua madrasta não
houvesse aprendido essa mesma lição, ou Célia não
estaria agora em posição tão incômoda. Martin podia
insistir na inocência da mãe com relação ao
desaparecimento do dinheiro, mas Célia tinha
certeza de que Patrice sabia exatamente o que havia
acontecido com a fortuna deixada por seu pai.
Esperava que a mulher ainda não houvesse gastado
até o último centavo!
Patrice estendia um bordado inacabado na sua
direção.
— Deve manter-se ocupada e em silêncio — ela
instruiu, indicando que o lacaio devia abrir as portas

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do salão.
Célia entrou atrás dela e olhou em volta,
realizando um inventário rápido. Onde uma
acompanhante discreta se sentaria?
Ela escolheu uma cadeira ao lado da porta, perto
de uma pequena mesa adornada por um busto de
um cavalheiro grego.
Um homem vestido de negro levantou-se de uma
poltrona ao ver Patrice entrar na sala.
— Milorde — Patrice cumprimentou-o com tom
meloso e as mãos estendidas. — Que encantador é
revê-lo!
Célia temia perder o fôlego diante daquela
impressionante visão.
Sua madrasta havia subido rapidamente na
sociedade! Esse cavalheiro não era um mercador. Os
amigos do seu pai eram expansivos e abertos nos
seus gestos, donos de vozes generosas e atitudes
calorosas. Esse homem se movia com uma
economia que falava de poder controlado. Seu rosto
era um conjunto de contrastes: pele clara e olhos
escuros, cabelos negros e encaracolados nas pontas

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e uma boca generosa mantida sempre fechada,
tensa. Ele ainda conseguia transmitir uma certa
animação, como um rio calmo cujas correntes mais
potentes se arrastavam violentas sob a superfície.
Parecia adequado para sua altura impressionante e
seu imponente porte físico que ele se vestisse
inteiramente de preto, embora fosse meio do dia.
Até a voz combinava com o conjunto. Era lenta,
quente e rica como melado.
— Minha querida — ele respondeu, tomando as
mãos de Patrice e levando uma delas aos lábios.
A mulher sorriu.
Se fosse eu, Célia pensou, desmaiaria
imediatamente com um simples olhar desse homem.
O que ele podia querer com Patrice Rider?
Mantendo a cabeça baixa, ela os observava de
soslaio e ouvia atentamente a tudo que diziam.
Estavam próximos, mas não o suficiente para
sugerir uma corte. Patrice, no entanto, não escondia
seu interesse em seguir naquela direção. Seu olhar
era de total absorção, enquanto o dele era frio,
cortês. A conversa consistia em banalidades. Em

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resumo, sua madrasta estava caçando, e esse
cavalheiro era a presa.
Patrice não tinha a menor chance.
— Como vai seu adorável filho? — ele perguntou.
Célia assustou-se. O homem conhecia Martin?
Por isso sua madrasta decidira trazer o menino tão
repentinamente da sua casa em Somerset? Havia
sido uma imensa surpresa, mas a decisão dera a
Célia a oportunidade perfeita para ir a Londres e
encontrar os advogados que cuidavam da questão
da sua herança. Infelizmente, Carstairs & Filho só
haviam podido informar que seu pai a deixara na
miséria. E tal informação fazia tanto sentido quanto
a decisão de Patrice de usar um filho de outro
homem para impressionar esse cavalheiro. Porque
mudar Martin, então, se ela nunca o levara a
Londres desde que trocara o campo pela cidade?
— Meu filho é a alegria do meu coração, é claro.
Tenho sorte por ter alguém que me conforte, depois
de ter ficado viúva tão cedo.
Célia conteve um resmungo. Conforto?
Francamente! Patrice ia à sala de estudos uma vez

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por dia para falar com o filho, e esse era o único
contato que mantinha com ele. Nenhum dos dois se
mostrava particularmente feliz com esses encontros.
Se sua madrasta podia esquecer a existência de um
filho de maneira tão conveniente, certamente não se
lembraria de uma enteada, o que era excelente.
Para localizar a fortuna, Célia tinha de ser
considerada apenas uma criada, uma sombra, uma
teia de aranha no canto. A última coisa de que
precisava era ser reconhecida por Patrice.
— E como vai sua filha, sra. Rider? — o visitante
indagou.
Célia furou um dedo com a agulha e teve de
resistir ao impulso de levar o ferimento à boca.
Como ele sabia sobre sua existência? Porque
perguntava? O homem tinha a testa franzida. Podia
estar concentrado, mas Célia tinha a estranha
impressão de que ele suspeitava de Patrice por
alguma razão. Não podia ver o rosto da madrasta,
mas a resposta a obrigou a respirar fundo para
conter a revolta.
— Bem. Ela é brilhante nos estudos. Mal posso

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esperar por sua emancipação.
Emancipação? A mulher era uma piada!
O que ele chamava de emancipação havia
ocorrido quatro anos atrás, uma ocasião discreta
comemorada ainda no campo. A doença do seu pai a
impedira de ir a Londres para viver sua Temporada,
e sua morte a
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a uma existência sombria na Propriedade Pellidore
onde viviam então. Sua idade era algo que Patrice
também preferia ignorar.
— Ouvi dizer que ela está em Londres — persistiu
o cavalheiro.
Célia o encarou. Ele se havia inclinado para
frente e estudava o rosto de Patrice como se
quisesse desvendar seus segredos. Mas era o
segredo de Célia que estava em perigo. Como ele
sabia? Devia ser um bruxo, alguém capaz de ler
mentes e penetrar nos corações.
Sua madrasta não se mostrava impressionada.
Patrice não podia ver o rosto de Célia de onde
estava, e nem se interessaria por uma simples

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criada num momento de tensão como aquele. Agora
ela mordia o lábio e piscava bastante nervosa.
Estava apenas confusa, ou se esforçava para criar
uma mentira plausível? Por alguma razão, aquele
homem parecia capaz de enxergar através de todas
as tramas que sua madrasta pudesse urdir.
— Em Londres? — Patrice repetiu enquanto
balançava a cabeça. — É certo que não! Eu a teria
hospedado aqui, e ela não se encontra na minha
casa. — Tomando as mãos dele, ela o levou para o
sofá. — Venha, sente-se aqui. Temos muito o que
conversar.
O visitante olhou na direção de Célia, que baixou
a cabeça e voltou a bordar, errando alguns pontos
por falta de atenção. Porque ele perguntava por ela?
Não o conhecia! Nunca o encontrara, ou se
lembraria dele. Talvez ele houvesse conhecido seu
pai. Mesmo assim, isso não explicava porque ele
suspeitava da sua presença em Londres. Teriam os
advogados seguido seus passos depois que saíra do
escritório? Alguém sabia que não voltara a
Somerset?

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Ela arriscou mais um olhar na direção do
cavalheiro, depois balançou a cabeça. Devia lembrar
qual era seu papel ali. Uma acompanhante devia ser
discreta e silenciosa, imperceptível como o teto ou o
chão. Não tinha o direito de cobiçar o visitante da
sua madrasta.
Os dois se sentaram no sofá, e Patrice fez alguns
comentários cuja intenção era única: seduzir. O
visitante olhava para sua anfitriã, mas não parecia
muito interessado nas suas palavras.
Patrice agora brincava com um dos botões do
casaco do cavalheiro, assumindo uma atitude íntima
que não condizia com uma dama na sua posição.
Sua voz era rouca, provocante. Ela era muito boa
nesse tipo de flerte. Na Barnsley School, as pessoas
a teriam chamado de sofisticada. As mulheres de
Somerset empregavam palavras menos bondosas
para descrever tal comportamento.
O cavalheiro não parecia apreciar suas tentativas
ou, se as apreciava, não se dava conta do perigo
que corria. Sua cabeça estava inclinada como se ele
ouvisse o que se derramava da boca da sua

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madrasta, mas Célia tinha a impressão de que ele
estava mais aborrecido do que interessado.
De repente, o olhar do visitante encontrou o dela,
provocando uma explosão de calor tão intensa
quanto um tiro de pistola.
Célia piscou chocada, e o momento passou. Os
olhos dela voltaram aos de Patrice, e ele a ouvia
com tanta intensidade que era quase como se a
mulher estivesse revelando o segredo para a
eternidade.
Célia balançou a cabeça. Devia ter sido apenas
uma impressão. Um homem como esse olhando-a
com um sentimento próximo de. paixão? Não. Não
fizera nem dissera nada que pudesse despertar sua
admiração. O vestido preto de tecido grosseiro
escondia suas curvas delicadas. Com a touca sobre
sua cabeça inclinada, ninguém poderia adivinhar que
os cabelos cor-de-mel emolduravam um rosto
harmonioso iluminado por olhos de uma tonalidade
rara, algo entre o verde e o azul.
Não. Tomara todas as providências para não ser
notada, pelo menos até recuperar sua fortuna. Célia

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suspirou e retomou o bordado. Concentrando-se no
desenho pela primeira vez, ela viu que as linhas
formariam um provérbio: A paciência é uma virtude.
A peça devia integrar o enxoval do próximo
casamento da sua madrasta. Uma ideia tentadora
passou por sua cabeça, e ela não conseguiu resistir.
Puxar alguns pontos ocupou seu tempo e a divertiu
por uns momentos.
Estava tão concentrada no novo desenho que
criava com os pontos que, por um breve intervalo,
não prestou atenção ao que ocorria na sala. Pouco
depois o tom estridente e alterado da voz de Patrice
penetrou nos seus ouvidos.
— Mas eu não quero falar sobre Célia — ela
protestava. — Porque insiste em me interrogar?
Célia mordeu o lábio e levantou a cabeça. Patrice
tinha os ombros eretos e a cabeça erguida, a
imagem da mulher insultada. O cavalheiro, no
entanto, mantinha seus braços cruzados sobre o
peito e o queixo altivo, mostrando-se igualmente
determinado.
— Devo persistir nesse assunto, minha cara

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dama — ele disse num tom controlado. — Fui
informado de que sou o guardião dessa jovem e fui
acusado de assassinato. Diga-me tudo que sabe
sobre ela.

Capítulo II

Brandon viu a criada levantar a cabeça. Seu rosto


estava vermelho. Patrice podia alegar ignorância
sobre o desaparecimento da enteada, mas seria
capaz de apostar que aquela jovem sabia de alguma
coisa. Por duas vezes ela se sobressaltara ao ouvir o
nome de Célia Rider, o que significava que Patrice
mentia, ou alguém na criadagem estava envolvido
no sumiço da jovem dama.
O simples fato de manter uma acompanhante já
despertava suas suspeitas. Sua prima nunca se
preocupara com isso durante as visitas anteriores. E
a mulher do outro lado da sala não tinha o ar

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entediado de uma acompanhante comum. Pelo
contrário. Ela era bem. interessante.
Notara os fios dourados escapando da touca que
cobria sua cabeça, os lábios rosados e cheios e a
pele suave, translúcida. Na única vez em que seus
olhos encontraram os dela, tivera de controlar-se
para não revelar a reação provocada por aqueles
olhos grandes e profundos. A jovem era linda, e não
podia acreditar que Patrice havia contratado uma
competidora tão forte.
O grito ofendido da sua prima fê-lo voltar à
realidade.
— Assassinato? — ela disse com ar confuso. —
Porque você mataria Célia? Por acaso se conhecem?
A criada tossiu como se quisesse encobrir uma
exclamação de espanto. Patrice olhou-a, depois
encarou novamente o visitante.
— Francamente, milorde, não pode estar falando
sério.
— Estou. Sabia que sou o guardião dessa jovem?
— Não. Deixo esses assuntos para minha avó.
— E também deixou o noivado da sua enteada a

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cargo de lady Honória?
— Ela ficou noiva? Como sabe?
— Um cavalheiro do campo informou-me. Ele
afirma ser o noivo da sua enteada.
A criada parecia a um passo de um ataque.
Patrice se esforçava para ignorar os sons abafados
provenientes do outro lado da sala.
— Que absurdo! Minha enteada é uma criança!
Como pode estar noiva?
Brandon inclinou a cabeça para não perder de
vista a criada.
— Reconheço que é estranho — ele disse. — No
entanto, o cavalheiro garante que ela tem idade
para se casar. É maior de idade.
Patrice virou os olhos.
— Então esse cavalheiro é insano. Tenho apenas
nove anos mais do que aquela menina e me casei
ainda jovem, quase uma criança. Se ela tem vinte e
um anos, sendo maior de idade, isso faz de mim.
— Uma mulher de trinta anos — Brandon
completou por ela, divertindo-se com seu ar
chocado.

Projeto Revisoras
— Trinta! Não pode ser! Compreende que
absurdo é tudo isso, primo?
— Talvez seja, mas aceitei investigar o assunto.
E vou precisar da sua ajuda. Poderia enviar uma
nota a Hollyoake Lodge para saber se a menina está
lá? Certamente, você gostaria de ser informada
sobre um eventual desaparecimento.
A criada balançou a cabeça e puxou a linha de
bordar. Era evidente que ela não desejava saber se
a srta. Rider estava desaparecida. Que segredo
escondia? Precisava encontrar uma maneira de
interrogá-la sem alertar Patrice. Sabia que a criada
se manteria calada diante de uma possibilidade de
retaliação da sua senhora.
— Mas Célia está na escola — sua prima dizia
com ar sério. — Martin chegou recentemente do
campo, e ele me teria contado se a irmã houvesse
voltado para casa.
— Seu filho está na cidade em plena temporada?
Porque não o mandou para a escola também?
Lágrimas cintilaram nos olhos de Patrice.
— Poderia me privar da minha única alegria na

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vida? Logo ele será adulto. Quero mantê-lo a meu
lado tanto quanto puder.
A criada ameaçava um novo ataque, e dessa vez
Brandon julgava compreender seus motivos. Pelo
que ouvira, Patrice havia abandonado o filho pouco
depois do parto, deixando-o na propriedade do
campo enquanto retornava para a cidade e suas
atrações. durante algum tempo ela se havia
recolhido novamente ao campo, pouco antes da
morte de David Rider, mas logo após o funeral ela
se mudara novamente para a capital. Pelo que
sabia, ela não via o filho há quatro anos, o que
significava que não devia encontrar a enteada por
esse mesmo período.
— Talvez possamos conversar com seu filho —
ele sugeriu. — O menino pode lançar alguma luz
sobre essa história.
Ela assentiu, depois se virou para a criada:
— Srta. Prim, vá buscar Martin, sim?
Srta. Prim? Então ela era mais que uma criada,
ou Patrice a teria chamado apenas pelo nome.
Talvez uma governanta convocada a agir como

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acompanhante? A jovem levantou-se e saiu
apressada antes que ele pudesse avaliar sua
silhueta sob o vestido preto.
Patrice aproximou-se dele.
— Ah, primo, de repente estamos sozinhos — ela
murmurou. — Era esse seu desejo?
— Se fosse, teria de reconhecer minha astúcia.
Mas tal pensamento nunca passou por minha
cabeça. Quer chamar um lacaio para guardar a
porta, caso eu perca o controle?
— Oh, não! Confio em você, primo.
— Quanta generosidade. — Brandon levantou-se
para colocar uma certa distância entre eles.
Confiava inteiramente nas suas intenções quanto à
prima. Na verdade, pretendia relacionar-se com ela
o mínimo possível.
— Não é muito próxima da srta. Rider? — ele
perguntou.
— Infelizmente, nunca nos ligamos realmente.
Ela estava sempre longe, na escola, e eu me sentia
pressionada pelos deveres. — Ela também se
levantou e, aproximando-se, tocou seu braço. — E

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ainda tenho muitos deveres. Com minha avó
praticamente acamada, devo arcar com as
responsabilidades da casa dela e da sua.
— Que bom para você que eu receba tão pouco,
então — Brandon respondeu, mudando de posição
para interromper o contato físico.
— Mas ainda represento a família quando saio.
Meus rendimentos são parcos, e não posso cumprir
minhas obrigações sociais a contento. É certo que
pode encontrar meios para prover-me com algum
fundo adicional.
— Querida prima, sabe que eu atenderia seu
pedido, se pudesse. Infelizmente, você, lady Honória
e seus filhos recebem atualmente metade dos
rendimentos que me cabem do fundo de pensão.
Não poderia administrar o restante das propriedades
se lhe desse mais dinheiro.
— As propriedades se sustentam, certamente —
ela insistiu. — Temos produtos agrícolas, não? E
gado, também?
— É claro. No entanto, todo o rendimento das
propriedades vai para o fundo. E tudo que pode sair

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dele é a pensão. — Uma porção mais do que
generosa, na sua opinião, se fosse o único a
depender dela.
— Até você atingir sua maioridade — Patrice
acrescentou.
Legalmente, Brandon atingira a maioridade quase
cinco anos antes. Seu pai havia estabelecido outra
data para o saque integral da fortuna.
— Quando eu completar trinta anos — ele a
corrigiu.
Patrice acenou como se a informação fosse pouco
importante. Era fácil para ela, não havia passado
toda a vida sob escrutínio constante. Era como se
estivesse prendendo o fôlego desde sempre. Mas
Patrice tinha o dom especial de esquecer todas as
coisas que a aborreciam, como o filho e a enteada.
Infelizmente, ela era igualmente boa para
lembrar aquilo que queria.
— Deve haver algum meio de aumentar o valor
dos fundos — a mulher insistiu. — Estou certa de
que algum estratagema econômico pode ser
aplicado à situação.

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— Duvido. Além do mais, com duas casas para
sustentar, isso não faria nenhuma diferença.
Ela sorriu.
— Então, podemos nos mudar todos para a
mansão Pellidore, onde você mora.
Brandon esperava ter disfarçado o choque
causado por tal sugestão.
— O que diriam seus amigos da sociedade? Um
cavalheiro e uma dama vivendo juntos, sem se
casarem?
— Ah! — Ela desprezou o argumento com um
gesto de mão. — somos parentes. E você tem
muitos quartos. Nem notaria nossa presença na sua
casa. E poderíamos nos tornar mais. próximos.
O sorriso insinuava que tipo de proximidade ela
gostaria de construir. Brandon engoliu um suspiro
irritado. Sabia que a prima estava caçando. Ela
estivera em todos os bailes a que ele comparecera
no último mês, e sempre o fitara com ar sedutora
por trás do leque, sorrindo e piscando ao
cumprimentá-lo. Imaginara que as demonstrações
tinham o objetivo de atrair outros pretendentes pela

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exibição das suas boas ligações, mas agora
compreendia que a prima estava mesmo atrás dele.
Pena não ter nenhum interesse por ela. Nenhuma
mulher seria capaz de distraí-lo enquanto não
tivesse sua fortuna.
— Confesso que apreciaria ter minha família mais
perto, mas devemos considerar sua avó. Duvido que
lady Honória aceite abrir mão da sua casa, ou
mudar-se para fora de Londres.
Patrice fez uma careta.
— Se você conversar com ela, talvez a convença.
Ou talvez a faça compreender a necessidade de
aumentar o valor que nos é pago pelo fundo.
Lady Honória era uma poupadora prudente, e
não deixaria escapar do seu controle um único
vintém. Edmund costumava dizer que ela nunca
abriria mão do controle. Mais uma razão para
Brandon comportar-se de maneira perfeita. Não
deixaria dúvida de que a maldição da família se
encerrara com seu pai.
— O testamento do meu pai foi bastante
detalhado — ele explicou para Patrice. — Temo que

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não possamos mudá-lo.
— Então, não pode mesmo me ajudar? Vai me
deixar só e destituída?
Os olhos dela nadavam em lágrimas. Como era
bom poder mudar de emoção de acordo com a
própria vontade! Ele nem podia expressar suas
emoções. Um pequeno sinal de fraqueza, e Honória
o declararia incapaz de herdar.
— Sua coragem não a deixará desamparada —
ele disse, segurando a mão dela numa
demonstração de solidariedade. Sabia que Patrice
veria mais no gesto do que ele via nas suas
lágrimas, mas não se incomodava com isso. —
Faltam menos de três meses para nossa sorte
mudar.
— Três meses podem ser uma eternidade.
Alguém pigarreou. Patrice virou-se, e os dois
viram que a governanta retornara. Ela mantinha a
cabeça baixa, mas a tensão nos seus ombros
indicava que não aprovava o flerte. Ao lado dela
havia um menino magro de cabelos escuros.
— Martin! — Patrice exclamou, correndo para o

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garoto. Ela o segurou pelas mãos e levou-o para
perto do visitante. — Venha ver quem está aqui,
meu querido! Lembra-se do seu primo, lorde
Hartley?
A governanta ergueu a cabeça, permitindo que
Brandon visse realmente seu rosto pela primeira
vez. A testa alta falava de inteligência, o queixo
erguido de vontade férrea. Não podia ver a cor dos
seus olhos de onde estava, mas pareciam ser
escuros contra a pele pálida. E também eram
atraentes, penetrantes, como se ultrapassassem o
verniz social para enxergar sua alma. O quê? De
repente se tornava um poeta? Censurando-se
mentalmente, ele olhou para o menino diante dele.
Martin inclinou-se.
— Lorde Hartley — disse.
— Sr. Rider — Brandon respondeu com idêntica
formalidade. — É bom vê-lo novamente.
Os olhos de Patrice se encheram de lágrimas
mais uma vez.
— Ele não é lindo? Tem a coloração dos Pellidore,
mas os olhos são os do meu David.

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O menino corou, mas Brandon notou que a mãe
estava certa. David Rider havia sido um belo
homem, e com exceção dos cabelos escuros, o filho
de Patrice era muito parecido com ele. Poucas
pessoas tinham olhos daquela cor, uma mistura de
cinza, azul e verde que mudava de acordo com o
ambiente.
— Você é muito parecido com seu pai, sr. Rider
— Brandon comentou.
— Vê como ele cresceu? — Patrice prosseguiu
com tom orgulhoso. — Logo estará me deixando.
Não sei se poderei suportar.
Martin encarou-a.
— Sente minha falta, mãe?
— Se sinto? Ora, certamente que sim! Penso em
você noite e dia. Só gostaria de ter mandado buscá-
lo antes.
O olhar do rapaz era de incredulidade, mas
Brandon estava surpreso com a sinceridade na voz
da sua prima. Patrice realmente pensava ser uma
mãe dedicada? Por que, então, mantivera o menino
longe dela por tantos anos?

Projeto Revisoras
— Bem, meu querido, nós o chamamos aqui
porque lorde Hartley ouviu um rumor tolo sobre
Célia estar desaparecida. Por favor, diga a ele que
sua irmã está segura em Somerset.
O jovem empalideceu.
— Célia estava muito bem na última vez em que
a vi — disse cauteloso.
— Eu sabia! — Patrice declamou satisfeita.
— E quando foi isso? — Brandon o pressionou.
O menino engoliu em seco.
— Não sei precisar a data.
Patrice olhou para Brandon.
— Há algo errado?
Sim, algo estava muito errado, mas ele
começava a suspeitar de que a prima não sabia
nada sobre o assunto. Ela alegava ignorância sobre
o noivado da enteada. Talvez fosse apenas a
conveniente memória fraca, ou sua enteada estava
metida em problemas muito mais sérios do que ele
pensara em princípio. Arlington a obrigava a casar?
Teria ela fugido para Londres em busca de ajuda, e
agora ele a perseguia? Talvez não confiasse na

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madrasta, o que não era estranho, levando em
conta a distância que as separava. Mas não havia
dúvida de que o garoto e sua governanta estavam
mancomunados para protegê-la.
Brandon baixou-se um pouco para encarar
Martin. O menino sobressaltou-se, depois ergueu os
ombros e apertou os lábios.
— Sua irmã está passando por dificuldades, não
está?
Ele respirou fundo.
— Talvez — reconheceu em voz baixa.
Patrice também se baixou.
— Dificuldades, querido. Há algo de errado com
Célia?
A governanta deu um passo à frente e tocou o
ombro do seu pupilo. Seus dedos eram longos e
finos, pálidos em contraste com a jaqueta escura do
menino.
— A srta. Célia está bem, senhora. Meu senhor
Martin sente falta dela, mas é só isso. Não é
verdade, Martin?
Ele a encarou por um instante e desviou os olhos.

Projeto Revisoras
— Não me lembro de ter estado longe de Célia
antes.
— Oh, pobre querido! Não imaginava que fossem
tão próximos. E como poderia? Ela estava na escola,
longe de casa. Não, espere! Pouco antes de David
morrer, oferecemos um baile para Célia. Não é isso?
— Eu tinha quatro anos, mãe. Não lembro.
Patrice riu.
— Nem eu!
Brandon assistia ao intercâmbio com interesse.
Intrigado, olhou para a governanta e reconheceu
uma forte admiração por ela. A maneira altiva como
mantinha os ombros eretos e a cabeça erguida, seus
olhos. Sentindo que ele se aproximava, ela baixou a
cabeça rapidamente.
— O que sabe sobre a srta. Rider? — ele
perguntou.
A governanta ficou tensa. Patrice não notou, mas
franziu a testa diante da sua insistência no
questionamento.
— Nunca tive o privilégio de ser tutora da srta.
Rider. No entanto, acredito que ela tenha se sentido

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infeliz naquela propriedade. Com exceção do
menino, ela vivia sozinha.
— Ela está na propriedade? — Patrice indagou
ainda mais intrigada. — Céus, porque não consigo
lembrar?
Brandon tocou-a no braço tentando acalmá-la.
— Acha que ela estava descontente o bastante
para fugir?
— Talvez, milorde. Embora preenchesse seus
dias de forma satisfatória, sempre ocupada com os
cuidados e a educação de Martin e a atenção aos
colonos e criados, duvido que estivesse realmente
feliz. Ela precisava de algum contentamento.
— Sabe alguma coisa sobre o noivado da srta.
Rider com um certo sr. Arlington?
— Stanley Arlington, filho do vizinho mais
próximo da propriedade. Considera-se o enlace
muito adequado.
Sua voz continha uma nota de orgulho. Teria ela
colaborado para a formação desse enlace? Estava
escondendo a jovem, ou cooperando com Arlington
para obrigá-la a desposá-lo?

Projeto Revisoras
Antes que ele pudesse continuar refletindo,
Patrice o interrompeu.
— Porque não sei nada disso? Célia está noiva?
Quem permitiu?
A voz da governanta era quase sarcástica.
— Ela completou a maioridade em novembro,
senhora. Deve saber disso. Ela escreveu para
lembrá-la.
— Escreveu? — Patrice tocou a testa. —
Normalmente me lembro de tudo que vejo escrito.
Tem certeza?
— Certeza absoluta, senhora. A srta. Rider vai se
casar quando receber sua herança.
— Preciso conversar com minha avó. Leve Martin
de volta à ala infantil, srta. Prim.
— Vamos para a sala de estudos — ela a corrigiu
séria, virando-se para sair acompanhado pelo
garoto.
Brandon decidiu que não a deixaria escapar. Ela
estava escondendo alguma coisa, dele e de Patrice.
— Um momento — chamou-a.
Ela se virou obediente, mas o olhar denotava

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grande aborrecimento. Brandon olhou para Patrice.
—Pode ir, minha querida. Vejo que esse assunto
a preocupa. Só quero me despedir do seu filho.
Patrice assentiu distraída e saiu da sala
apressada. A governanta ergueu os ombros.
Brandon deu um passo à frente.
— Sr. Rider, obrigado por seu tempo. Espero ter
a honra de revê-lo em breve. — Ele estendeu a
mão. — Martin aceitou o cumprimento com a
solenidade que o momento exigia.
— Obrigado, milorde.
Brandon olhava para aquela criatura tão pequena
e lembrava outra pequenina figura que havia sido
obrigada a suportar existência tão solene e formal.
Ao erguer os olhos, surpreendeu-se com o olhar
atento da governanta e com o sorriso que
amenizava a dor da lembrança. Ela corou e virou-se
como se pretendesse fugir. O movimento brusco
derrubou a cadeira onde ela estivera sentada, e o
bordado caiu no chão. A srta. Prim até tentou
resgatá-lo rapidamente, mas Brandon teve tempo
de ler o que havia sido bordado no tecido.

Projeto Revisoras
— "Patrice não tem virtude"?
— Por favor — ela gemeu assustada, tentando
resgatar o bordado das mãos do lorde. — Eu posso
explicar.
Brandon devolveu o trabalho e cruzou os braços.
Ela engoliu em seco. Martin colocou-se entre os
dois.
— Ela não fez por mal, milorde — o menino
declarou com firmeza.
A jovem tocou seu ombro.
— Acalme-se, Martin. O senhor não me fará mal
algum.
Era uma afirmação de suprema confiança.
— Não me conhece bem, lady Governanta.
— Não, milorde, não o conheço. No entanto, não
podemos continuar falando aqui. Sempre levo Martin
ao parque no começo da tarde. Talvez possa ir ao
nosso encontro amanhã.

Patrice correu para os aposentos da avó. Se


continuasse arfando e correndo daquela maneira,

Projeto Revisoras
acabaria desmaiando, algo que a avó odiava. Por
isso obrigou-se a contar até cinco a cada inspiração.
Os passos se tornaram mais deliberados e cuidados.
Era uma dama. Podia controlar-se. Tinha de estar
confiante quando batesse na porta. Qualquer outra
coisa a levaria ao inferno.
Patrice bateu delicadamente na porta e esperou.
Alguém surgiu do outro lado. Sally Lawton a
encarava séria.
— Minha senhora não quer ser perturbada.
Patrice sentiu o queixo tremer e morder a parte
interna da boca para conter as lágrimas.
— Preciso falar com ela. Algo aconteceu com
Célia.
A criada inclinou a cabeça de forma a exibir seus
cachos grisalhos.
— De fato? Um momento, por favor. — A porta
se fechou.
Patrice respirou fundo. Lidar com a srta. Lawton
era quase tão ruim quanto lidar com sua avó. Até
Martin dizia acreditar que a srta. Lawton era uma
bruxa. E ela vira a mulher num início de tarde no

Projeto Revisoras
quarto silencioso, preparando poções, seu nariz
longo e encurvado bem próximo do grande
caldeirão. Ela dizia misturar os cosméticos de lady
Honória, mas sua avó era uma conhecedora das
ervas e podia perfeitamente preparar os próprios
tratamentos de beleza. Quem podia saber o que a
srta. Lawton tramava?
A porta se abriu novamente.
— Minha senhora diz que vai recebê-la — Sally
anunciou.
Patrice entrou no quarto e relaxou ao ver a avó
sentada na sua cadeira. Era muito pior ter de
enfrentá-la na sua enorme cama no centro do
quarto. Tinha sempre a sensação de estar se
aproximando de um tumba.
— Disse que algo aconteceu com Célia? Sente-se
e fale.
Patrice aceitou obediente.
— Sim, meu primo afirma que um homem diz ser
noivo de Célia. Como pode ser, se ela estava na
escola?
— Patrice, a menina mora em Somerset há

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quatro anos — lady Honória explicou com um
suspiro cansado.
— Eu. não me lembro disso.
— É claro que não. Está sempre concentrada nos
seus deveres, como deve ser. Contratamos bons
criados para cuidarem de Martin e da menina.
— Como a srta. Prim?
— Exatamente. Uma moça obediente, aquela.
Mas sua enteada, pelo que parece, não conhece o
significado da palavra obediência. O que sabe sobre
esse homem?
— Nada! E meu primo diz que Célia está
desaparecida.
— Desaparecida? — Agora lady Honória estava
alarmada. — O que quer dizer com desaparecida?
— Não sei ao certo. O noivo não consegue
encontrá-la, e lorde Hartley parece crer que ela
esteja em Londres.
— Não. Eu saberia, se ela estivesse.
Era verdade. Todos os serviçais informavam sua
avó de tudo, dentro e fora de casa, e havia uma
verdadeira rede de conhecidos e informantes que

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sempre iam visitá-la e levavam notícias.
— Bem, se ela não está na escola e não está em
Londres, onde pode estar? O que devo fazer, minha
avó?
— Deixe esse assunto comigo. Encontrarei a
menina. Não tema. Não podemos deixá-la vagando
por aí sozinha. Quem sabe em que confusões ela
pode se meter?

— Porque convidou lorde Hartley para ir nos


encontrar no parque amanhã? — Martin perguntou à
irmã assim que os dois ficaram sozinhos na sala de
estudos.
— Porque às vezes é melhor ceder, meu querido.
Ele sabe de alguma coisa. Tenho de acalmá-lo, pelo
menos por enquanto. Além do mais, não ouviu o que
ele esteve conversando com sua mãe. — Ela
resumiu como Stanley havia acusado o marquês de
assassinato.
— Mas você disse que o sr. Arlington é tímido
demais para ajudar-nos! Como ele teve coragem

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para vir até aqui e acusar lorde Hartley de
assassinato?
Sim, como?
Stanley era encantador. Amoroso, generoso. até
alguém colocar uma garrafa de vinho diante dele. E
mesmo assim, ele nunca havia provocado um
confronto com alguém mais poderoso. Embora fosse
considerado o melhor partido de toda a região rural,
herdeiro que era das vastas propriedades do seu
pai, Stanley jamais a defenderia de qualquer coisa.
Era mais provável que ela tivesse de defendê-lo em
caso de perigo.
— Não sei o que deu nele, Martin, mas não porei
em risco meu futuro, caso isso se repita.
— Na minha opinião, o homem é um bravo.
Lorde Hartley me apavora!
Ele também a amedrontava, mas por razões que
preferia não explicar a um menino. Não podia
confessar que o olhar daquele homem a incendiava
e que sua voz fazia seu coração bater mais
depressa. Tinha de concentrar-se no propósito da
sua presença ali.

Projeto Revisoras
Patrice escondia alguma coisa. A carta que
escrevera para a madrasta não podia ter se perdido:
o mais provável era que ela a houvesse ignorado.
Patrice não tinha a intenção de abdicar da fortuna
que roubara. Mas, assim que Célia reunisse provas
suficientes, ela seria forçada a desistir do dinheiro.
Devia haver alguma pista na casa. Contas,
recibos bancários, registos financeiros. Temia que a
verdade se escondesse nos aposentos de lady
Honória, o que faria da mulher também uma ladra.
Não gostava nada da ideia de enfrentar lady
Honória, mas gostava ainda menos da perspectiva
de continuar vivendo no limbo. Tinha de vasculhar
aquele quarto.
Até lá, encontraria uma maneira de acalmar lorde
Hartley. Porque cedera à tentação de mudar aquele
bordado? A peça ficaria escondida no baú no seu
quarto até que pudesse arrumá-la. De qualquer
maneira, o olhar de lorde Hartley havia indicado que
ele suspeitara dela desde o início. Mas. por quê?
Não podia saber quem ela era, mas procurava
por Célia Rider. Maldito Stanley por ter

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desrespeitado sua desconfiança! Havia dito a ele que
tinha certeza da culpa da sua madrasta. Stanley não
julgava as mulheres capazes de lidar com as
finanças. Mostraria a ele uma ou duas coisas antes
de desposá-lo!
Se o desposasse.
Ela balançou a cabeça. Certamente se casariam.
O pai de Stanley cederia assim que ela recuperasse
sua fortuna. Afinal, um acordo tinha de ser
respeitado. Não importava que Stanley não fosse
tão imponente quanto lorde Hartley. Não tinha
importância o fato da sua voz não ser tão rica
quanto a do poderoso senhor. E certamente não
vinha ao caso se o sorriso de Stanley a enchia de
ternura, enquanto um olhar de lorde Hartley a
punha em brasa. O que importava era que havia
cedido sua mão em casamento, e cumpriria a
palavra empenhada. Bem, ainda não estava casada.
— Porque está sorrindo dessa maneira? — Martin
perguntou. — Eu disse alguma coisa engraçada?
— O quê? Ah, não, querido. Vamos jogar uma
partida de damas?

Projeto Revisoras
Algum tempo depois, John entrou na sala e
interrompeu o jogo.
— Com sua licença, srta. Prim. Lady Honória
deseja vê-la.
Essa podia ser sua chance! Célia levantou-se
depressa, provocando reações surpresas em John e
Martin. Sorrindo, justificou-se:
— Não devo deixar a senhora esperando. Pode
continuar o jogo por mim, John?
— É evidente que sim, senhorita. Com prazer.

Momentos depois Célia batia na porta de lady


Honória. Sally a recebeu e conduziu para o quarto,
onde a mulher repousava sobre sua cama
imponente.
— Desejava ver-me, milady?
Lady Honória a encarou com ar cansado.
— Sei que supervisionou o encontro da minha
neta com lorde Hartley. Como foi tudo?
— Eles tiveram uma agradável conversa,
senhora.

Projeto Revisoras
— Acha que ele está interessado em Patrice?
— Em que sentido?
— Não me faça ser explícita, mocinha. Já
entendeu o que quero saber.
— Eu. não vi nenhuma indicação disso, senhora.
Não creio que o marquês de Hartley pretenda
oferecer-se como pretendente para a sra. Rider.
— Ah. Como eu temia. Não sei se estou aliviada
ou decepcionada. Devo cuidar dos dois, entende?
— Sim, lady Honória.
— Gosto da sua obediência, mocinha. Vire-se,
por favor.
— Como?
— Vire-se.
Mais uma vez, Célia obedeceu e tentou sufocar o
sentimento de medo. Teria sido desmascarada?
Lady Honória havia percebido quem era ela?
— Não precisa ficar tão assustada, criança. Não
estou tentando determinar se devo prepará-la com
orégano ou alho.
A srta. Lawton riu. Célia manteve a boca fechada.
— Você é adorável — Lady Honória continuou. —

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Como se tornou governanta tão jovem?
— Minha mãe morreu logo depois de me ter
trazido ao mundo. Meu pai era um soldado e
pereceu com Wellington em Waterloo.
— Ah. Meu pai morreu mais velho de um ataque
cardíaco, pouco depois de enterrar sua terceira
esposa, a mãe de lorde Pellidore. Então, teve de
procurar um emprego?
— Sim, senhora. Tenho a habilidade de lecionar,
felizmente, e seu criado em Hollyoake pensou que
eu me daria bem com o sr. Martin. Devo prepará-lo
para ir para a escola no próximo ano.
— Escola? De jeito nenhum! Trouxe meu bisneto
a Londres para que ele tenha a educação adequada.
Contrataremos um tutor em breve.
O que significava que os dias da srta. Prim
estavam contados.
— É uma pena que ele não possa estar com
outros meninos da sua idade — Célia ainda tentou.
O olhar da srta. Lawton era assassino. Lady
Honória apenas estreitou os olhos.
— Um Pellidore não precisa de ninguém. Ele é

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sempre uma lei em si mesmo. Estou certa de que
meus métodos garantirão tudo que é necessário
para o garoto. Darei a Martin tudo que é preciso
para que ele assuma seu lugar de direito no mundo.
no seu lugar, eu estaria pensando no meu próprio
futuro, srta. Prim.
Ela sorriu para lady Honória.
— Esteja certa de que essa preocupação nunca
esteve ausente dos meus pensamentos, senhora.

Na tarde seguinte, Célia ficou sabendo que lady


Honória pretendia deixar a casa dentro de dois dias.
Teria uma chance para realizar sua busca, afinal.
Precisava da sua fortuna para cuidar do próprio
futuro e livrar o irmão da tristeza de viver sozinho
naquela casa silenciosa e melancólica. Só tinha de
tirar lorde Hartley do seu caminho.
Era estranho. Raramente pensava em Stanley,
mas o marquês não saíra dos seus pensamentos
durante todo o dia.
Martin devia estar tão nervoso quanto ela,

Projeto Revisoras
levando em conta o temor que tinha de lorde
Hartley, mas, na medida em que se aproximavam
de Hyde Park, ele se mostrava mais e mais
entusiasmado. John os acompanhava de uma
distância apropriada. Outras crianças empinavam
pipas e brincavam com seus barquinhos nas muitas
fontes, mas Martin se interessava mais pelos
cavalos.
— Ali está um belo exemplo de pureza de raça —
ele disse, apontando para um castanho que trotava
diante deles.
— Pureza de raça? — Célia riu. — Onde ouviu
isso?
— Henry Mullins, o novo cavalariço, vive dizendo
a mesma coisa dos animais de lady Honória. Gosto
do som. E você?
— Digamos que é. diferente. Mas nunca repita
essa frase diante de lady Honória. Ela o castigaria
por insolência ou impertinência.
— Imagino que sim, embora não entenda o que
há de impertinente ou insolente nisso. Ora, veja
aquele outro animal! Um árabe!

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— Vejo que entende do assunto, Rider.
Martin empalideceu, e Célia teve a sensação de
que desfaleceria nos próximos segundos. Respirando
fundo, ela se virou para encarar o marquês de
Hartley.
— Como tem passado? — ele perguntou a Martin.
— Toleravelmente bem, milorde. E você?
— Igualmente. Estavam caminhando?
— Sim, senhor. E somos esperados em casa para
o chá. — Ele segurou a mão de Célia. — Não é
verdade, srta. Prim?
Lorde Hartley a estudava com aqueles
impressionantes olhos escuros. O que seria
necessário para fazê-los brilhar?
— Sim, Martin, devemos retornar — Célia
respondeu em voz baixa. — No entanto, creio que
ainda podemos ficar mais um pouco.
— Excelente — aprovou o marquês. — Vou me
juntar a vocês. — Não era um pedido ou uma
pergunta. Era uma afirmação. — alguma vez
empinou pipas quando era mais jovem, Rider?
— Talvez, milorde. Porque pergunta?

Projeto Revisoras
— Porque nunca tive essa experiência. Estava
pensando em vivê-la hoje pela primeira vez, mas
preciso de alguns conselhos.
— Quer minha ajuda? — O menino tinha os olhos
arregalados.
— Teria minha eterna gratidão por isso, senhor. E
creio ter visto um vendedor encostado numa
daquelas árvores ali na frente. Se puder ir até lá e
verificar.
— Oh, sim. É claro que sim, senhor!
Martin partiu ansioso e satisfeito, e John e Célia
ficaram sozinhos. Não havia necessidade de nenhum
acompanhante, porque ela era apenas uma criada.
— Muito bem, milorde — ela disse.
— Como vê, não é a única aqui que pode recorrer
a estratagemas, lady Governanta. E agora, conte-
me o que fez com Célia Rider.

Capítulo III

Projeto Revisoras
Era delicioso ver como a jovem não conseguia
disfarçar suas emoções. Com o rosto corado e os
olhos tomados pelo espanto, ela era simplesmente
encantadora. Mesmo sabendo que ela estava
envolvida num plano para prejudicar uma garota
inocente, Brandon não conseguia ignorar a forte
atração.
— A srta. Rider não deseja ser encontrada.
Garanto que ela está bem e em segurança. No
entanto, ela já atingiu a maioridade e não julga
necessário justificar-se para ninguém.
— Ótimo. Quero que ela mesma me diga tudo
isso.
— Ela prefere o anonimato.
— E o terá, assim que repetir tudo que você
acaba de me dizer.
— Porque é tão obstinado?
— Insolente!
— Perdão, milorde. Não tenho o direito de falar
nesse tom.
— Não tem. E agora, trate de dar uma resposta

Projeto Revisoras
para minha pergunta. Sou o chefe da família para a
qual o pai da srta. Rider entrou ao se casar. na sua
ausência, é meu dever suprir as necessidades dessa
senhorita.
— Sua sensibilidade me emociona. Se é mesmo
um guardião tão devotado, onde estava quando ela
foi sentenciada a morrer sozinha e solteira no
campo?
A mulher era eloquente e ousada demais para
uma governanta. Devia colocá-la no seu lugar, mas
algo nas suas maneiras o intrigava.
— Vivi na Escócia até recentemente. O
desaparecimento da srta. Rider e a ausência de uma
comunicação com a mãe dela são motivos
suficientes para que eu interfira.
— Ela não é mãe da srta. Rider. E a srta. Rider
não precisa da ajuda da madrasta. Nem da sua.
— Nesse caso, eu me retirarei de cena assim que
a conhecer pessoalmente.
— Pois bem. Se Martin assegurar que a irmã está
bem, vai ficar satisfeito?
— Não. Como posso saber que não coagiu o

Projeto Revisoras
menino para me dizer aquilo que quer que eu ouça?
— Estamos num impasse, milorde. Não posso
encontrar a srta. Rider, e noto que não ficará
satisfeito até que eu o faça.
— Minha querida lady Governanta, fala como se
tivesse escolha nessa questão. Vim aqui para
descobrir o paradeiro da srta. Rider, e não partirei
enquanto não me der essa informação.
A jovem lambeu os lábios mais uma vez, mas,
antes de esperar pela próxima mentira, Brandon se
surpreendeu pensando em como seria poder
saboreá-los. Estava tão próximo daquela boca
tentadora. Ela ergueu o rosto como se antecipasse o
beijo, como se também o quisesse.
— Milorde, aqui está!
Brandon sobressaltou-se. Em que estava
pensando? Havia ido ao parque para expor um plano
maligno, não para planear uma sedução.
Martin brandia triunfante a pipa que tomara
emprestada do filho do cocheiro. A srta. Prim
recuou, tropeçando no lacaio que acompanhava o
menino.

Projeto Revisoras
— Sua pipa, milorde — Martin insistiu.
Brandon não teve alternativa senão aceitá-la com
uma mesura elegante.
— Receba minha gratidão, sr. Rider. Vejo que seu
conhecimento nesses assuntos é muito mais extenso
que o meu.
— Suponho que sim, milorde.
Brandon tentou pensar depressa. Precisava de
mais um ou dois momentos com a governanta para
arrancar dela uma confissão. Certamente, seria
capaz de ignorar a atração que ameaçava dominá-
lo, não?
— Posso lhe pedir outro favor, sr. Rider?
— O que é agora?
— Preciso saber como isso funciona — ele disse,
mostrando a pipa como se realmente não soubesse
manejá-la.
Martin sorriu animado. Brandon gostaria de saber
se algum dia tivera aquele sorriso feliz nos lábios
nos seus anos de meninice.
O garoto afastou-se levando a pipa, seguido pelo
fiel lacaio.

Projeto Revisoras
— Costuma manipular as pessoas com muita
frequência? — indagou a srta. Prim.
Ele a encarou sério.
— Raramente, mas com facilidade. E você tem
pouco tempo para me dizer onde está Célia Rider.
Ela suspirou.
— Se eu disser, jura que não vai revelar o
segredo a mais ninguém?
— Por quê? Ela corre algum perigo?
Ela assentiu.
— Por quê? Quem a ameaça?
— Não vai gostar de ouvir a resposta.
— Como posso saber, se insiste em negá-las?
— Muito bem. Temos razões para crer que a
madrasta da srta. Rider, sua prima, roubou sua
herança.
— O sr. Arlington disse um absurdo semelhante.
Minha prima é uma criatura de natureza doce,
embora desajustada. Duvido que ela seja capaz de
esconder uma moeda que lhe seja dada, muito
menos uma fortuna como a que David Rider deve
ter deixado. Além do mais, esse dinheiro é mantido

Projeto Revisoras
num fundo. Minha prima não teria acesso a ele.
— Quer dizer que viu o testamento? É isso que
ele determina?
Não havia visto o testamento, ou saberia que
havia sido nomeado guardião. Mesmo assim, tinha
uma vaga ideia de como reparar esse deslize.
— A srta. Rider saberia, com certeza.
— Ela não teve acesso aos documentos do pai.
Todos os papéis foram enviados a Londres
imediatamente após sua morte.
— De qualquer forma, não posso considerar
minha prima uma ameaça.
— E nem parece notar que ontem ela o esteve
manipulando. Um traço de família, pelo que notei.
Ela não pode estar precisando do seu dinheiro,
milorde. Mesmo que não tenha tocado na herança
da enteada, David Rider a deixou mais do que
amparada. Ele assinou aquele acordo quando se
casou com ela, e era um homem de palavra.
Interessante. Essa era outra questão que teria de
estudar. Até onde sabia, Patrice e os filhos não
tinham nenhum dinheiro.

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— Talvez esteja correta. Mas isso deixa ainda
menos motivos para que a sra. Rider tenha roubado
a herança da sua enteada.
— Pense o que quiser, milorde. Alguém se
apoderou da fortuna, e a srta. Rider não terá paz
enquanto não a encontrar.
— E ela pretende fazer tal coisa sozinha? Uma
mulher jovem recém-saída do campo?
— Vejo que a despreza.
— E ela se superestima.
— A quem acha que ela deveria recorrer? A
madrasta, que apesar de todos os protestos é vista
como uma inimiga? Lady Honória, que deve ter
colaborado com o plano? Você, um desconhecido?
O noivo, que parecia ser um idiota bem-
intencionado? Estava começando a entender o
problema.
— Existem as autoridades.
— Bow Street? Acha que eles acreditariam numa
desconhecida que acusa uma dama da sociedade?
— Muito bem, reconheço que a srta. Rider vai ter
de enfrentar muitas dificuldades. Prometo não

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divulgar sua localização, está bem? Só preciso me
certificar de que ela está segura.
Ela hesitou. De cabeça baixada, parecia
considerar todas as possibilidades, e ainda estava
pensando quando Martin retornou.
— E então, milorde? Conseguiu entender como
funciona o brinquedo?
O menino devia ter executado uma dúzia de
manobras enquanto eles conversavam.
— Sim, você é um excelente professor, Rider.
Muito obrigado.
— Posso vê-lo tentar agora?
Brandon o encarou sem saber o que dizer. A srta.
Prim sorriu com doçura.
— Sim, milorde, tente. Seria um prazer instruí-lo
daqui.
Sentia-se paralisado. O garoto havia acreditado
nos seus argumentos, e a jovem a seu lado mal
podia esperar para vê-lo atingido pelo próprio
petardo. Nenhum dos dois tinha ideia de qual seria a
repercussão. Lorde Heartless, empinando uma pipa
em pleno Hyde Park? Os comentários jamais teriam

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fim. Com isso poderia lidar. Era a especulação que
devoraria sua alma. As conhecidas questões
recomeçariam. Podia até ouvir a voz preocupada de
Edmund.
— Não parece muito bem hoje, Hart. Como se
sente? Alguma dor de cabeça? Vê manchas atrás
dos seus olhos?
— Ora, mas que estranho — diria lady Honória.
— Primeiro sua avó, depois seu pai, e agora você. E
quase como se não conseguisse se controlar.
— Pode controlar-se, não pode, Hartley?
— Não pode, Hartley?
— Não pode, milorde?
Brandon piscou e olhou para a srta. Prim. O
desafio na voz dela ultrapassara sua preocupação.
— Está me ouvindo, milorde? — ela perguntou
com delicadeza surpreendente.
O lacaio franzia a testa atrás dela, e Martin o
fitava com evidente confusão.
— Não. Desculpe-me.
— Não precisa pedir desculpas. É bom saber que
é humano, afinal.

Projeto Revisoras
Podia sentir uma gargalhada se formando no seu
peito. A reação o surpreendia tanto quanto parecia
surpreender Martin e o lacaio, que arregalou os
olhos. Se ela soubesse o quanto era humano! A
jovem se limitava a sorrir, estendendo a mão para
pegar a pipa e devolvê-la ao garoto.
— Creio que lorde Hartley prefere que você fique
com o brinquedo por enquanto. Suspeito que ele já
voou demais por hoje.
— Sim, obrigado — Brandon confirmou aliviado.
Martin assentiu.
— Muito bem. Posso usá-la mais um pouco e
devolvê-la antes de irmos para casa?
O marquês concordou. A srta. Prim também, e
depois olhou para o lacaio.
— Fique com ele, John, por favor.
— Certamente. Avise-me quando for hora de
irmos, senhorita.
Quando ficaram sozinhos novamente, Brandon
confessou:
— Não queria mentir para o rapaz mais do que é
necessário. Obrigado pela ajuda.

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— Aprecio sua consideração. Ele já teve de
suportar muita falsidade recentemente. E eu
também.
Ela o encarou diretamente pela primeira vez. De
perto, era possível ver que seus olhos eram de um
tom único, uma mistura de cinza, azul e verde. O
vestido preto os fizera parecer mais escuros.
— Você tem os olhos do seu pai — o marquês
declarou. — Como Martin.
— Há quanto tempo sabe?
— Há alguns instantes, apenas. Sua postura era
estranha, no entanto parecia ainda mais
incongruente que uma governanta usasse sapatos
cor-de-rosa e delicados como os seus.
Ela riu.
— Os pés da verdadeira srta. Prim são maiores
do que os meus. Mesmo com papel nas pontas, não
conseguia manter-me calçada.
— Então existe mesmo uma governanta com
esse nome?
— Sim. A governanta de Martine está em
Somerset. Ela é muito dedicada a nós dois. Pretendo

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conservá-la depois do meu casamento.
Brandon tentou imaginar Arlington ao lado de
uma mulher tão forte e determinada, mas era
impossível.
— Então é tudo verdade? É mesmo noiva do sr.
Arlington?
— Sim. E vim a Londres para reclamar minha
herança. Visitei os advogados, e eles tiveram a
ousadia de dizer que meu pai deixou seus dois filhos
na miséria. Então soube que Patrice havia roubado a
herança.
— Entendo. E em nenhum momento imaginou
que os advogados podiam estar dizendo a verdade?
— Não. Não li o testamento do meu pai, senhor,
mas conheci suas intenções e seu valor. Ele dividiu
sua fortuna em quatro partes: uma para Patrice,
uma para mim, e uma porção dupla para Martin. O
dinheiro deveria ter sido mantido num fundo
durante os últimos quatro anos. E não pode ter
desaparecido sem uma boa ajuda profissional.
Brandon acreditava naqueles argumentos, mas
considerava mais provável que os advogados

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houvessem desviado o dinheiro e tentado encobrir o
roubo com uma mentira.
— Não — Célia respondeu ao ouvir essa
sugestão. — Meu pai confiava neles.
— Pode me dizer quem são?
Esperava ouvir o nome de algum desconhecido
com escritório na área rural, mas ela o surpreendeu
com a informação.
— Carstairs & Filho.
Brandon franziu a testa.
— Algo o intriga, milorde?
— Não. Apenas. Bem, é estranho que seu pai
tenha usado os serviços dos mesmos advogados que
cuidam dos negócios do meu pai. Minha fortuna
também está aos cuidados desse escritório.
— Sim, tem razão, é estranho, milorde. Não sei
quando meu pai começou a usar os serviços desse
escritório. Talvez Patrice os tenha recomendado?
— Minha prima é incapaz de lembrar o próprio
endereço. Como poderia indicar os advogados
contratados por nossa família? De qualquer maneira,
srta. Rider, esteja certa de que vou averiguar o

Projeto Revisoras
assunto.
— Caso tenha esquecido, senhor, não pedi sua
ajuda.
— Nem eu a estou oferecendo. Você afirma que
minha prima roubou sua fortuna. Ela não poderia ter
feito tal coisa sem a ajuda de advogados, e os
profissionais que podem tê-la auxiliado também
administram meus bens. Não se trata de caridade,
srta. Rider, mas de sobrevivência.
— Ah, bem. Nesse caso. aceite sua proposta,
milorde. Mas lembre-se da sua promessa: não
revelará meu segredo a ninguém.
— Jurei não revelar sua localização. No entanto,
minha prima está convencida do seu
desaparecimento. E se decidir investigar?
— Se ela tem realmente problemas de memória,
não deve mais lembrar a conversa que teve com
milorde. Se pensar em perguntar por mim, talvez
possa dizer a ela que ouviu rumores sobre eu ter
voltado a Somerset.
— Quer que eu minta no seu benefício?
— Porque a ofensa, milorde? Tive a impressão de

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que mentir não é tarefa difícil para sua senhoria.
— Sua impressão não corresponde à realidade,
srta. Rider.
— Desculpe. Não quis ofendê-lo. E, por favor,
deve me chamar de srta. Prim.
Isso era algo que não poderia fazer, mas ela não
devia saber.
— O nome não faz jus a sua pessoa. Se devo
encorajar tal farsa, continuarei tratando-a por lady
Governanta.
Ela assentiu.
— Muito bem.
— No entanto, se eu descobrir a verdade sobre
sua fortuna, será honesta com minha prima?
— Senhor, seria mais fácil se eu pudesse
simplesmente reaparecer em Somerset.
— Mais fácil para você, não para o menino e
minha prima, sem mencionar o sr. Arlington.
Sempre consigo o que quero. Encontrarei sua
fortuna. E você? Honrará meu pedido?
Ela suspirou.
— Suponho que seu pedido corresponda ao que é

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correto e justo. Muito bem, milorde, se descobrir o
segredo da minha fortuna antes que eu o faça,
confessarei a minha madrasta quem sou realmente.
— Então pretende continuar investigando? Como?
— Tem seus meios, senhor. Eu tenho os meus.
— Quais são?
— Lamento, mas só dizem respeito a mim.
— Dizem respeito a mim também, se envolvem
minha família.
— É mesmo muito teimoso.
— E os semelhantes se atraem.
— De fato. Muito bem, ouça.
E ele ouviu com preocupação crescente enquanto
ela explicava suas intenções de vasculhar a casa de
lady Honória. Depois balançou a cabeça.
— Lady Honória a servirá no jantar, se a
surpreender mexendo nas suas coisas.
— Tomarei cuidado para não ser surpreendida.
— É sempre tão determinada?
— Sempre — ela sorriu. — Meu pai costumava
dizer que essa é uma das minhas mais encantadoras
qualidades.

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Devia protestar, mas a conversa estava se
tornando muito interessante. Brandon mudou de
assunto.
— Quero ser informado sobre os progressos da
sua busca. Vamos nos encontrar novamente.
Amanhã.
Ela balançou a cabeça.
— Impossível. Logo lady Honória e Patrice
saberão que hoje estivemos na sua companhia. Se
esses encontros se tornarem habituais, uma delas
pode suspeitar de alguma coisa.
Sim, suspeitariam de que ele estava seduzindo a
governanta. A ideia tinha seu mérito, mas duvidava
de que ela estivesse interessada. E era imprevisível
demais para ele.
— Está bem, encontrarei um meio de vê-la
amanhã, e ninguém saberá.
— Como?
— Isso, minha cara lady Governanta, é algo que
só saberá amanhã.
Brandon sabia exatamente como encontrar Célia
no dia seguinte e o que devia ser feito primeiro.

Projeto Revisoras
Infelizmente, não era fácil.

Verificar a situação da fortuna Rider parecia ser


simples. No entanto, quando procurou os
advogados, ele não os encontrou. Milford Carstairs,
o proprietário da firma, e seu filho James estavam
fora visitando outros clientes. Brandon marcou um
horário para a manhã seguinte, depois seguiu para
Westminster para apanhar o tio e seguir até a
mansão Pellidore.
Seu avô não havia economizado ao construir um
lar para sua primeira esposa nos arredores de
Londres. Havia dez dormitórios, uma ampla varanda
e muitos cômodos distribuídos pelos três andares da
residência. Com três esposas numa rápida sucessão,
seu avô havia conseguido ser pai de três filhos,
apenas um de cada casamento. A casa vira mais
mortes do que nascimentos. Depois do ambiente
mais íntimo e rústico da propriedade escocesa onde
crescera, ele e o tio vagavam pelos amplos espaços
desertos como almas penadas. Brandon passava ali

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apenas o tempo suficiente para dormir, comer e
mudar de roupa.
Edmund se mantinha em silêncio durante o
trajeto, mas olhava para o sobrinho de tempos em
tempos como se esperasse pela confissão de um ato
desesperado.
— Um momento — ele ordenou quando
chegaram na casa.
Brandon virou-se para encará-lo. Edmund
balançou a cabeça.
— Eu o conheço bem demais para me deixar
enganar por esse ar indiferente. Vamos à biblioteca.
Devemos conversar.
Protestar só aumentaria a curiosidade do tio, por
isso Brandon o seguiu. Momentos depois os dois
homens estavam sentados nas poltronas de couro
castanho entre as estantes de carvalho maciço.
Edmund esperou que o sr. Openshaw, o mordomo,
se retirasse depois de servir a limonada gelada em
dois copos de cristal.
— Quero saber mais sobre essa sua busca pela
srta. Rider. Chegou tarde ontem à noite, e hoje saiu

Projeto Revisoras
cedo. Não queria falar perto dos empregados.
Quanto menos comentários, melhor.
— Localizei a jovem dama, e estou satisfeito por
constatar que ela está bem, por enquanto.
— Por enquanto? Fala como se o perigo fosse
iminente.
— Ela está numa situação difícil. No entanto,
parece ser astuta o bastante para encontrar a saída
e trabalhar nesse sentido.
— Então, está livre para se dedicar a outras
atividades — Edmund concluiu com ar de aprovação.
Era evidente que ele não queria se envolver
nessa questão. Havia muitos segredos, muito a
perder.
— Ela levantou outros assuntos que devo
solucionar.
— Que assuntos?
— Bem,. — Brandon encarou o tio. — O que sabe
sobre os arranjos que minha prima fez antes de se
casar?
— Arranjos?
— Refiro-me ao dote. Arranjos monetários.

Projeto Revisoras
— Não estou informado sobre esse assunto.
Cuidar dele era dever de lady Honória. Porque
pergunta? A menina precisa de dinheiro?
— Não exatamente. Ela afirma que o pai deixou
minha prima em excelentes condições financeiras.
Se isso é verdade, porque estou proporcionando
fundos adicionais à minha prima?
Edmund franziu a testa.
— Deve haver algum engano nisso. Lady Honória
solicitou os fundos pessoalmente depois da morte de
Rider. De acordo com ela, sem essa mesada, Patrice
ficaria destituída.
— Minha prima também parece ser dessa
opinião. Interessante. Há quanto tempo conhece
Milford Carstairs?
— Desde sempre. A fortuna da família está sob
sua administração desde que ele começou na
prática. Naquele tempo a firma se chamava Trent,
Macy e Carstairs. E porque ele saberia alguma coisa
sobre a situação financeira de Patrice?
— Minha prima também contratou seus serviços.
— É claro. Honória haveria de querer que todo o

Projeto Revisoras
dinheiro ficasse dentro da família, por assim dizer.
Por isso ela contratou o jovem Carstairs. Ela sempre
valorizou os que têm ambição.
— Quer dizer que ele anseia progredir? — Tal
desejo poderia explicar o roubo da fortuna de Célia,
ou negar sua possibilidade, dependendo dos riscos
que o jovem advogado se dispusesse a correr.
— Estou apenas especulando. Notei como ele
adula Honória. Vi esse rapaz ao lado da cama dela
pelo menos uma dúzia de vezes nos últimos meses.
Não me diga que suspeita de fraude?
— Saberei mais amanhã, depois de conversar
com ele.
Edmund balançou a cabeça.
— A srta. Rider deve ter causado uma forte
impressão, ou não estaria se empenhando tanto
nesse assunto. — Ele franziu a testa para o
sobrinho. — Sente-se bem?
— Pare com isso — Brandon reagiu irritado,
levantando-se imediatamente. Ele deixou o copo
sobre a mesa com calma deliberada, embora parte
dele desejasse partir o cristal para extravasar a

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irritação. — Estou muito bem, tio. Obrigado por
perguntar. Com licença.
— Espere. — Edmund também estava em pé e
tinha uma das mãos sobre seu ombro. Brandon
moveu-se para interromper o contato. — Perdoe-
me. Você não tem o hábito de demonstrar tal
interesse por estranhos. Mas confio no seu
julgamento nessa questão. É um cavalheiro, afinal, e
cavalheiros sempre ajudam uma dama em
dificuldades.
— Essa dama não deseja nenhum socorro.
— Seu amigo do campo também não queria
ajuda, e mesmo assim você foi generoso com ele.
— E agora vai me dizer que considera essas
atitudes sinais de fraqueza?
Edmund sorriu.
— Não. Você tinha de encerrar o espetáculo que
ele estava oferecendo e impedir o surgimento de
comentários. A propósito, eu o vi. Ele parece estar
um pouco perdido.
— Vai sobreviver. Assim que solucionar essa
questão relacionada ao dinheiro, eu o levarei até a

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sita. Rider e mandarei os dois de volta para casa. —
Algo lhe dizia que mandá-la embora era errado, mas
ele ignorou o aviso. Não podia fraquejar e submeter-
se a tolos presságios. Seu único interesse em Célia
Rider era a ligação dela com sua família.

No dia seguinte, quando Brandon chegou ao


escritório, James Carstairs ainda estava indisponível.
Seu pai, no entanto, o recebeu com alegria.
— Milorde — ele o cumprimentou, levantando-se
para apertar sua mão. — A que devo a honra?
— Curiosidade — Brandon improvisou. — Logo
entrarei na posse da minha fortuna, e preciso saber
que dívidas herdei.
— Dívidas? — Carstairs o convidou a sentar na
poltrona de couro diante da mesa imponente. Seu ar
de competência ainda era o mesmo, e seus olhos
ainda eram atentos e perspicazes. — A propriedade
Pellidore sempre foi produtiva, milorde. Além do
mais, o testamento permite investimentos prudentes
nos fundos e noutros empreendimentos seguros.

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Quaisquer despesas assumidas por seu pai há muito
foram pagas.
— E lady Honória e sua neta? Devo prover seu
sustento, também?
— Certamente, meu senhor. Por uma
infelicidade, o marido dela não deixou nada para a
família. Eram suas ligações internacionais que
agregavam algum valor ao nome, mas depois das
hostilidades com Napoleão, elas também perderam
boa parte da importância.
— E minha prima?
— A sra. Rider? O pai a deixou sem nada. Parece
que o homem tinha problemas com jogo. No
entanto, ela recebe algum dinheiro da pensão do
finado marido. Seus rendimentos somam cinco por
cento dos investimentos, se não me engano. Mas
meu filho poderá informá-lo melhor.
E o informaria, sem dúvida nenhuma.
— Então, não preciso cuidar também dos filhos
dela, um menino e uma jovem dama?
— Não — Carstairs respondeu sem hesitar. — O
menino tem direito ao dobro do que a mãe recebe, e

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estará muito bem amparado quando atingir a
maioridade. Só esperamos receber notícias da jovem
dama para informá-la sobre sua parte na herança.
Brandon ergueu uma sobrancelha.
— Não teve notícias de Célia Rider?
— Não, milorde. Nenhuma. James a instruiu
sobre como deve proceder para receber sua
herança, mas ela não parece estar preparada para
isso. Ela e a mãe decidiram deixar o dinheiro render
um pouco mais, mas. Bem, para conhecer os
detalhes, sugiro que converse com meu filho.
— É o que pretendo fazer. Diga a ele para
esperar por mim depois de amanhã, às quatro da
tarde. Há alguém que ele deve encontrar.
Carstairs concordou com a proposta, e os dois
homens se despediram. Fora do escritório, Brandon
balançou a cabeça. Que conclusões deveria tirar das
duas histórias? Seu pai e seu tio sempre haviam
confiado em Milford Carstairs. Nada na postura, nas
atitudes e nas palavras do advogado sugeria que
Brandon devesse desconfiar dele.
Mas também não podia suspeitar de Célia. Sim,

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ela enganava sua prima, mas por bons motivos. E
não havia nenhuma questão quanto a ela ser filha
de David Rider. A semelhança entre ela e Martin era
marcada, e a afeição entre eles parecia genuína.
Além do mais, testemunhara a dificuldade do
menino para mentir.
E no entanto, o garoto não revelara ser ela sua
irmã.
Isso era interessante. Porque não percebera
antes? Não tinha nenhuma prova da identidade da
jovem dama. Nada além da sua palavra. A falsa
srta. Prim era realmente Célia Rider, ou alguém
tentando apoderar-se de uma fortuna que, de outra
forma, nunca seria dela. Uma filha ilegítima, talvez?
Ou a situação era um grande engano, ou uma séria
conspiração.
Só tinha dois dias para encontrar a resposta. Se
a jovem estivesse mentindo, nem Deus poderia
ajudá-la.

Célia ocupava seu tempo até o encontro com

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lorde Hartley. Ela e Martin haviam concordado que
não deveria tentar desempenhar as funções da srta.
Prim, a menos que alguém os estivesse observando,
e suas únicas ocupações eram entreter o irmão e
buscar provas do roubo da sua fortuna.
Naquele dia, ao deixar a sala de estudos, ela
tinha em mente outro propósito. Precisava saber se
podia confiar em lorde Hartley. Havia contado a
Martin sobre sua decisão de revelar a verdade ao
homem. Não havia sido essa sua intenção original,
mas quando ele a encarara no parque. Bem, notara
algo de estranho na sua expressão. Havia sido como
se sua presença o abalasse. Fora tomada pelo súbito
impulso de abraçá-lo e acalmá-lo com suas carícias.
Ridículo. Que possíveis razões o homem poderia ter
para perder subitamente sua confiança? Mesmo sem
saber, decidira pôr um ponto final na encenação e
contar a verdade, certa de que assim o ajudaria de
alguma maneira. Agora se perguntava se havia
tomado a decisão acertada.
Era típico. Estava sempre agindo sem pensar. Tal
característica a metera em muitas confusões, mas

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também rendera bons frutos. Seu noivado, por
exemplo. Não teria fisgado o mais cobiçado solteiro
de Somerset, não fosse por sua rapidez. Mas todo
bom partido tem suas falhas, e Stanley tinha mais
do que deveria. Talvez, se houvesse refletido
melhor, as tivesse visto antes de aceitar sua
proposta.
Devia agir melhor com relação a lorde Hartley.
Sabia exatamente como tomar conhecimento dos
seus segredos. Criados, ela havia aprendido,
possuíam sempre uma visão diferente e mais precisa
dos seus senhores do que qualquer outra pessoa. De
acordo com o que ouvira, os criados da sua
madrasta eram pagos pela Propriedade Pellidore. De
certo eles deviam ter alguma opinião sobre lorde
Hartley. É claro, convencê-los a partilhar essas
impressões era uma outra história. Como
empregada em posto superior e recém-chegada,
havia sido objeto de curiosidade.
Sabia que seria tolice tentar argumentar ou
convencê-los a aceitá-la. Em vez disso, passara as
últimas três semanas oferecendo conselhos úteis,

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ajudando numa ou outra tarefa, sendo tão simpática
quanto era possível. Comparada à arrogância azeda
de Sally, sua gentileza, esperava, pareceria ainda
maior. Já sentia que, embora não fosse de maneira
nenhuma uma aliada, deixara de ser a inimiga.
Utilizando essa influência, já começava a fazer
algumas investigações discretas.
Ao ouvir a menção casual do nome de lorde
Hartley, a cozinheira enrugou a testa.
— Pobrezinho — ela disse, mexendo a panela
onde fervia a sopa para a refeição daquela noite. —
Deixar um órfão dessa maneira!
— De que maneira? — Célia a encorajou,
arrumando uma bandeja com um lanche para
Martin.
O sr. Kinders e a sra. Watson, que faziam um
breve intervalo nas suas tarefas, trocaram um olhar
cúmplice.
— Ela não conhece a história, sra. Watson — o
mordomo comentou balançando a cabeça grisalha.
— Veio do campo — acrescentou a governanta
enquanto ajeitava os cabelos castanhos.

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— Nunca ouvimos nada por lá — Célia suspirou.
— Vocês têm vidas muito mais interessantes por
aqui.
— Não tanto quanto na época em que o senhor
vivia na mansão Pellidore — disse o sr. Kinders.
A sra. Watson parecia interessada.
— Eu não estava lá nesse tempo. Como era?
Célia permaneceu onde estava, atenta. O
mordomo empregava um tom de voz sério, solene.
— Foi há mais de vinte anos, e ainda posso me
lembrar daquela noite escura como se fosse ontem.
Devíamos ter antecipado. Lady Honória o prevenira
sobre sua própria mãe ter falecido daquela maneira.
Mas foi tudo tão repentino! Nós o ouvimos gritando
coisas horríveis. O cocheiro disse que os gritos
foram ouvidos nos estábulos. De vez em quando
algo se partia com um estrondo aterrorizante. Mais
tarde, descobrimos que ele havia quebrado quase
todos os móveis do quarto. Lorde Pellidore esteve lá
com ele até o final. Pode imaginar que fardo? Ver o
meio-irmão enlouquecer e morrer, espumando pela
boca como um cachorro raivoso?

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Célia engoliu em seco.
— A avó e o pai de lorde Hartley ficaram loucos?
A sra. Watson levou um dedo aos lábios.
— Fale baixo. É melhor não falarmos mais nada.
Isso perturba minha senhora. — Ela olhou para a
porta como se esperasse ver Sally ordenando
silêncio com um olhar severo.
— É compreensível — concordou o sr. Kinders.
Mas ele prosseguiu com o relato. — Uma horrível
característica familiar para se herdar. Felizmente,
lorde Pellidore veio de uma linhagem diferente.
Todos sabemos que é só uma questão de tempo
antes de lorde Hartley começar a exibir os sintomas.
— Gagueira, confusão. loucura — recitou a sra.
Watson.
A cozinheira suspirou.
— Pobrezinho.
Célia olhou para cada um deles.
— Estão falando sobre o lorde Hartley que
conheço? Mas. ele é tão polido!
— Sim — confirmou a sra. Watson. — Já ouvi
pessoas se referirem a ele por um apelido. Lorde

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Heartless. Ou o Senhor Sem Coração. E é bom que
ele não tenha mesmo um coração, ou já o teria
partido há muito tempo.
— E só uma questão de tempo — repetiu o
mordomo.
Célia terminou de arrumar a bandeja com mãos
trêmulas.
Que horrível! Ele devia ser apenas uma criança,
pouco mais que isso, talvez. Se os empregados do
estábulo escutaram os gritos, como o som chegara
aos ouvidos daquele menino? Não era de estranhar
que ele mantivesse uma postura tão rígida!
Sentia pena do menino exposto a tanto
sofrimento. Devia lembrar que ele não era mais uma
criança, mas um homem adulto e com um poder
considerável que podia influenciar até mesmo seu
futuro. O problema era que não tinha certeza de
poder encará-lo, agora que conhecia essa história.
Não sabia como ele pretendia promover um
encontro entre eles no dia seguinte, e por isso
estava sobressaltada. Pulava de medo cada vez que
ouvia passos na escada, embora soubesse que ele

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não poderia ir encontrá-la ali, na casa que abrigava
Patrice. Não via a madrasta com frequência. Apenas
quando ela ia ao quarto falar com Martin,
normalmente à tarde, mas John relatara que ela
perguntava constantemente por lorde Hartley, como
se aguardasse por sua visita.

No meio da manhã, Célia aproveitou um intervalo


para ir caminhar pelo jardim atrás da casa. Ali não
teria de temer eventuais encontros. De fato, ela e
Martin às vezes se perdiam um do outro naquele
local. Embora a área não fosse extensa, havia sido
subdividida em terrenos menores para abrigar
plantas específicas e até uma estufa para as ervas
especiais de lady Honória. Entre os muros que
dividiam os lotes e as árvores que propiciavam
sombras amplas e frescas, não era difícil perder-se.
Aquele também era o melhor lugar do mundo
para brincar de esconder. Naquele dia ela contou até
vinte antes de ir procurar o irmão. Depois começou
a percorrer lentamente a alameda central. O

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cascalho estalava sob seus pés. Ela verificou todos
os lugares de sempre: atrás da fonte, no canteiro de
girassóis, na gruta grega. Sim, dessa vez Martin se
superara. Devia ver pelo menos o tom escuro da sua
jaqueta entre as flores coloridas, mas não havia
nada. Apenas o silêncio e a quietude.
Então, algo escuro passou correndo pelo muro do
fundo do terreno.
Célia sorriu. Voltaria pelo caminho que havia
percorrido. Se atravessasse o canteiro de roseiras,
poderia pegá-lo antes que ele entrasse em casa,
onde, de acordo com as regras combinadas, ele
venceria o jogo. Segurando a saia, ela correu por
entre os arbustos espinhosos. Mais um flash escuro
revelou que estava progredindo. Ela continuou
correndo e saltou por cima da última mureta.
— Peguei você!
Seus braços envolveram algo significativamente
maior do que os ombros do seu irmão. Lorde Hartley
olhou-a com ar intrigado.
— E o que pretende fazer comigo, agora que me
pegou?

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Capítulo IV

Brandon a viu corar. Ela o soltou e recuou alguns


passos. O riso de Martin ecoou pelo jardim.
— Devia ver sua cara, Célia! Eu a enganei!
— Certamente — ela confirmou com esforço,
tentando se mostrar calma.
Brandon parecia mais interessado no fato de o
jovem Rider a ter chamado pelo nome de Célia.
— Sua irmã não parece estar se divertindo,
Rider.
O menino ficou sério, mas Célia balançou a
cabeça.
— Oh, mas estou me divertindo muito, senhor,
com minha estupidez. Devia poder diferenciar um
cavalheiro de um menino.
Martin sorriu novamente.
— Célia é normalmente muito boa nesse jogo,

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milorde. Acho que a assustou. Pode juntar-se a nós,
se quiser. Agora ela deve ir se esconder.
Brandon sentiu vontade de sorrir, mas conteve-
se. Como seria interessante vasculhar um jardim
florido em busca da mais bela flor dentre todas.
Infelizmente, cada minuto ali aumentava as chances
de alguém notá-lo.
— Não posso ficar durante muito tempo —
respondeu. — Só vim para trocar algumas palavras
com sua irmã.
— Esconda-se novamente, Martin — sugeriu
Célia. — E seja criativo, porque, quando for procurá-
lo, não terei misericórdia.
Rindo, o garoto afastou-se correndo.
— Como conseguiu passar sem ser visto por
Patrice?
— Meu tio Edmund vivia nesta casa quando era
mais jovem. A vegetação que sobe pelas muralhas
esconde um portão.
— E ele não rangeu por desuso?
— Não. Alguém deve mantê-lo em boas
condições. — E havia se perguntado se não seria ela

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essa pessoa. — Como vai indo na busca por sua
fortuna?
— Ainda não pude entrar nos aposentos de lady
Honória. Soube que ela sairá em breve, mas não
confio que Patrice se manterá fora do meu caminho.
Não pode me ajudar?
— Quer que eu vasculhe a suíte de lady Honória?
— Não, não! Quero que mantenha Patrice
ocupada e longe de mim, mas com muito cuidado.
Ela o considera o candidato ideal para substituir meu
pai.
A revelação não o surpreendia.
— Nesse caso, Patrice perde seu tempo.
Célia sorriu. Estaria satisfeita com seu
desinteresse por Patrice?
— Que bom. Então, não vai se incomodar por
mantê-la ocupada — ela disse, provando seu erro.
Brandon disfarçou bem a insatisfação. Podia ir ao
encontro de Patrice, e o faria para ver esse mistério
solucionado.
— Você tem uma hora. E quero ser informado
sobre os resultados do meu sacrifício. Manterei

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minha carruagem na esquina da Kensington com a
avenida principal às quatro da tarde. Encontre-me
lá.
— Mas meu irmão.
— Leve-o com você. Agora vá, porque posso
mudar de ideia se continuar aqui parado, pensando
no que Patrice pode ter preparado para mim.
Célia encontrou Martin, explicou a situação ao
menino e o levou de volta à sala de estudos, depois
desceu a escada correndo, atenta à presença de um
criado ou da sua madrasta.

Lorde Hartley estava mantendo Patrice ocupada,


ou não teria conseguido chegar à suíte sem ser
importunada. Depois de bater na porta sem obter
nenhuma resposta, Célia entrou cautelosa. O
silêncio ali era imponente, pesado, mas ela seguiu
em frente.
Algum tempo depois, retornou à sala de estudos
onde foi recebida pelo irmão com um sorriso. Célia
balançou a cabeça.

Projeto Revisoras
— Se a senhora guarda registos, ela os mantém
mais escondidos e protegidos do que as jóias da
Coroa.
— Oh. Espere só até lorde Hartley saber que teve
de conversar com minha mãe por nenhum motivo.
Célia engoliu em seco. Sabia que o poderoso
lorde ficaria aborrecido.
As horas se arrastaram até chegar o momento do
encontro.
John não a questionou quando ela os guiou pelos
caminhos que levavam à rua atrás do Hyde Park,
para uma esquina próxima. Martin, informado sobre
o que ocorreria, afirmou que a escolha havia sido
sua. Ali podia apreciar os cavalos, seus animais
preferidos. Célia sentia-se menos confortável. A
esquina era exposta a todos que por ela passavam,
e todos os olhos pareciam buscá-lo cheios de
desaprovação. Era quase como se tivesse no peito
um cartaz anunciando sua perfídia.
— Olhe só para aqueles ali — Martin apontou
para uma carruagem que reduzia a velocidade na
esquina. — Um conjunto de quatro! Um dia guiarei

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um desses veículos.
— Porque não hoje? — o marquês sugeriu da
janela. A carruagem negra e laqueada se deteve
diante deles. — Sr. Rider, que prazer encontrá-lo.
Célia sentiu o coração disparar no peito. Como
sempre, ele estava vestido de preto. Porque a cor
conferia ao lorde uma aparência elegante, enquanto
ela lembrava um corvo quando coberta por trajes
dessa tonalidade?
Martin aproximou-se do veículo.
— Está falando sério? — perguntou,
entusiasmado com a perspectiva de ter as rédeas
nas suas mãos. — Posso mesmo dirigir?
— Quando quiser — lorde Hartley garantiu. —
Afinal, tenho uma dívida com você. Estava mesmo
indo para casa. Porque não vem comigo?
— À mansão Pellidore? — Célia indagou,
lembrando o nome mencionado pelo mordomo.
Mentalmente, calculava o tempo que seria
necessário para a viagem de ida e volta à
propriedade rural. Uma hora para ir, outra para
voltar, no mínimo.

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— A sra. Rider pode fica preocupada.
— Nesse caso, creio que devemos informá-la.
Não é John?
John adiantou-se com um passo formal.
— Sim, milorde.
Lorde Hartley atirou para ele uma moeda que
brilhou à luz do sol.
— Diga a minha prima que Martin está comigo e
eu o levarei de volta esta noite.
— Imediatamente, milorde. — Ele olhou para
Célia, que encolheu os ombros como que para
indicar que conhecia seus deveres. Devia ficar com
Martin. John assentiu e partiu na direção da casa da
família Rider. O cocheiro de Brandon saltou do
veículo para ir abrir a porta.
— Pensei que eu ia dirigir — Martin comentou
desconfiado ao ver a escada preparada para
conduzi-los ao interior da cabine.
— E vai — o marquês prometeu, afastando-se
para abrir espaço no banco. — No entanto, guiar na
cidade é aborrecido e perigoso. São muitas as
paradas e partidas. Venha comigo aqui dentro até

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superarmos o tráfego.
Célia aceitou a ajuda do cocheiro e entrou na
carruagem. Martin a seguiu e acomodou-se no
banco de veludo azul, sorrindo com entusiasmo.
Segundos depois o veículo partia.
Martin falava sem parar, descrevendo os veículos
e os animais que por eles passavam. Célia ouvia
distraída. Como poderia revelar que ainda não sabia
de nada?
O marquês a encarava.
Ela sustentou seu olhar com ar de desafio. Ele
sorriu, e a irritação que ameaçava dominá-la
desapareceu. O homem era muito atraente, e
quando sorria. Era impossível não retribuir.
— Se olhar pela janela, Rider, verá o território de
Kensington. Eles possuem belas montarias por lá.
Não quer trocar de lugar? A visão é bem melhor
daqui.
Martin aceitou a oferta sem fazer perguntas, e
lorde Hartley acomodou-se ao lado de Célia.
Estavam próximos. Muito próximos. Ela poderia
ouvir seu coração batendo acelerado? Em que

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estava pensando? Esticando um braço sobre o
encosto do banco, ele tocou seus cabelos.
Célia sabia que não sobreviveria àquela tortura.
Sua única alternativa era manter o olhar fixo na
paisagem. Infelizmente, cavalos e lojas não eram
suficientes para distraí-la do homem sentado a seu
lado. A colônia com aroma de sândalo provocava os
sentidos, e ela fechou os olhos para ouvir sua voz
profunda enquanto ele explicava alguma coisa a
Martin. Estava perdida.
Quando ousou abrir os olhos novamente, notou
que o tráfego diminuía, e as lojas se transformavam
pouco a pouco em amplas propriedades. A
carruagem reduziu a velocidade até parar. Martin
olhou para Brandon.
O marquês assentiu.
— Se quiser experimentar a função de cocheiro,
Rider, este é o momento ideal.
O menino saltou do veículo e correu para perto
do cocheiro.
— Com licença — pediu o marquês,
desembarcando mais devagar.

Projeto Revisoras
Célia suspirou e recostou-se na almofada presa
ao banco.
Sentia-se aliviada. Talvez o marquês e seu irmão
pudessem esquecê-la enquanto se entretinham com
os cavalos. Então não teria de relatar seu fracasso e
nem se sentiria descomposta pela presença do
lorde.
A carruagem balançou quando ele voltou a
ocupar o assento a seu lado.
— Martin está com o cocheiro — ele a informou.
— O rapaz parece ser esperto, ele vai aprender
depressa.
A carruagem partiu com suavidade, e ele relaxou.
— E então, o que descobriu nos aposentos de
lady Honória?
Célia suspirou. Era melhor acabar com isso de
uma vez.
— Nada. Já vi lady Honória trabalhando em
algumas contas nos seus aposentos, mas não
encontrei papéis. Conhece a casa. Onde acha que
ela pode guardá-los?
— Bem, talvez a suíte tenha um cofre. Verificou

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as paredes?
— Não. Nem pensei nisso. Que espiã
incompetente estou me revelando!
— Não se culpe. Mesmo que houvesse
encontrado um cofre, não poderia tê-lo aberto. O
que vai fazer agora?
— Não sei. Deve haver alguma forma de provar a
culpa da minha madrasta!
— Ou sua inocência.
Célia o encarou séria.
— Parece muito certo disso. O que ela disse
quando estavam juntos?
— O de sempre. Ela me admira, precisa de
dinheiro.
— Vê? Patrice precisa de dinheiro.
— Não precisaria, se houvesse roubado sua
fortuna.
— Possivelmente. Mas meu pai me contou que o
pai dela perdeu tudo que tinha nas mesas de jogo.
Talvez esteja no sangue de Patrice. Ela pode ter
gastado todo o dinheiro, e agora quer mais.
— Sim, é possível. Ouvi dizer que ela frequenta

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casas de jogo.
Mas o marquês ainda não parecia estar
convencido da culpa de Patrice.
— Começo a pensar que só me ajuda para provar
sua inocência — Célia o acusou.
— Eu a ajudo porque me divirto com isso. Não
interprete meus atos de maneira errônea, srta.
Rider. Não leia neles mais do que realmente existe.
O rosto do lorde estava muito próximo do dela.
Se inclinasse um pouco a cabeça, poderia beijá-los
nos lábios. Seriam quentes? Doces?
A carruagem sofreu um solavanco, e ele a
segurou pelos ombros para impedi-la de cair no seu
colo.
— Acho que Martin acaba de tomar as rédeas —
ele explicou, colocando-a de volta no seu lugar.
Célia esperava que o rubor no seu rosto fosse
interpretado como resultado do solavanco.
A carruagem sacudia e ia traçando um caminho
errático pela estrada esburacada, provocando
grande desconforto.
— Desculpe-me — Hartley pediu sorrindo depois

Projeto Revisoras
de alguns momentos. — Julguei ter encontrado uma
maneira muito astuta de garantir um pouco de
privacidade para nós dois.
— Receio que tenha de pagar o preço da sua
ousadia, milorde. — Queria rir da ironia, mas sentia
o estômago enjoado e a garganta oprimida.
— O custo é mais do que justificado e válido.
Tem certeza de que deseja desposar o sr. Arlington?
Célia o encarou. O rosto do marquês não traía
nada além de um interesse casual, mas seus olhos
pareciam estar um pouco mais escuros. Ele a
queria? Uma louca esperança a invadiu, mas,
infelizmente, seu estômago decidiu se fazer
presente também.
— Pare a carruagem — Célia pediu.
Ele balançou a cabeça.
— Não vai conseguir me evitar com tanta
facilidade. Aquele homem não parece ser adequado
a alguém como você. Porque decidiu se casar?
— Pare a carruagem — Célia exigiu. Depois
apertou as duas mãos sobre a boca para conter uma
reação fisiológica que não tardaria a dominá-la.

Projeto Revisoras
Ele finalmente a entendeu, porque bateu no teto
do veículo.
— Relaxe — aconselhou enquanto a carruagem ia
perdendo velocidade. — Inspire pelo nariz e leve ar
aos pulmões. Isso, muito bem.
Um segundo depois o cocheiro abriu a porta.
Célia saltou apressada e correu até a beira da
estrada.
Estava tentando limpar a boca com o dorso da
mão, quando notou que Brandon oferecia um lenço.
Não tinha coragem para fitá-lo. Que vexame!
Ouviu Martin chamá-lo preocupado e, com esforço,
ergueu o corpo.
Lorde Hartley a segurou pelo braço.
— Devagar. Pode sentir vertigens, fraqueza. Acha
que consegue caminhar?
— Sim, obrigada — ela respondeu com voz fraca.
— Talvez eu deva levá-la para casa. Infelizmente,
a estrada é muito estreita para realizarmos o
retorno aqui mesmo. Vamos seguir em frente por
mais alguns metros, e depois voltaremos. Juro que
não insistirei em interrogá-la hoje. Só quero que

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prometa ir me encontrar no jardim amanhã,
sozinha. Quero reuni-la ao sr. Arlington.
Stanley nunca havia parecido tão pouco
interessante. No entanto, concordar com a proposta
seria um meio de garantir mais alguns momentos ao
lado do marquês.
— É claro, milorde. Amanhã.

Lady Honória sentou-se diante da sua


escrivaninha. Uma das poucas coisas que havia
herdado da família era a artrite que havia matado
seu avô. Em alguns dias, mal podia se levantar da
cama.
— Minhas contas — ela ordenou a Sally, que
correu até um quadro retratando uma paisagem e o
afastou da parede. Lady Honória fechou os olhos e
ouviu o ruído da fechadura. Não temia uma traição
por parte de Sally. A criada apreciava muito o poder
que tinha sobre os outros criados. Lady Honória
sabia. E gostava de alimentar esse tipo de apetite.
Ah, mas como era muito mais satisfatório saciar

Projeto Revisoras
seu próprio apetite! Ela suspirou contente ao ver a
criada espalhar os papéis sobre a escrivaninha e
ajeitar a tinta e pena ao alcance da sua mão. Muito
bem, o que James havia dito horas antes sobre
aqueles investimentos?
Alguém bateu na porta, e ela mandou Sally ir
abrir. Todos aqueles adoráveis números dançavam
diante dos seus olhos. Nunca se fartava deles,
especialmente porque, cada vez que acrescentava
um zero na sua coluna, podia tirar um zero da
coluna deles.
— É a sra. Patrice — Sally anunciou séria, sem
disfarçar o desgosto. — Devo dizer que está
ocupada?
Sra. Patrice. Sua neta era uma mulher viúva,
mãe de um menino adorável. E Martin era o futuro,
desde que a mãe dele e sua meia-irmã não
interferissem.
— Não. Mande-a entrar.
Assim que Patrice entrou, lady Honória notou a
preocupação no seu rosto. Esse era o maior
problema de Patrice. Ela era sempre muito óbvia. A

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sutileza dos Pellidore se perdera.
— O que a perturba, criança? — Lady Honória
indagou, mergulhando a pena na tinta e
preparando-se para voltar às contas.
— Não gosto da srta. Prim. Quero que ela seja
dispensada.
Típico!
— Gostava dela quando a jovem chegou com
Martin. O que foi que ela fez?
— Acho que ela está interessada em lorde
Hartley.
Lady Honória sorriu.
— Prefiro pensar no contrário. Ouvi dizer que
meu sobrinho está muito interessado nessa moça.
Patrice olhou para Sally com expressão chocada.
Sally levantou ainda mais o queixo. Que vergonha!
Então ela queria que Patrice suspeitasse de como ela
ameaçava os outros criados e os coagia a contar
tudo que sabiam e ouviam? Patrice virou-se para a
avó.
— Então, creio que compreende porque ela deve
ser demitida — disse. — Pensei que eu me casaria

Projeto Revisoras
com lorde Hartley!
— Duvido que ele esteja considerando um
casamento com a srta. Prim. No entanto, tem razão
em dizer que ele não precisa de distrações. Só não
sei se demissão é a atitude mais correta nesse
momento.
— O que mais podemos fazer?
Uma boa pergunta, mas ela não estava
preparada para responder. Patrice ignorava que a
mulher que se fazia passar pela srta. Prim não era a
matrona severa que fora contratada por seu
comissário. Devia ter suspeitado de que ela iria
procurar por Patrice depois de Sally ter destruído
aquela carta. Era melhor mantê-la ocupada e sob
seus olhos.
— Vou pensar nisso — lady Honória prometeu. —
Talvez não saiba, mas tenho um certo afeto pela
srta. Prim. Ela é uma companhia alegre quando
Sally não está disponível, e sempre tem as mais
interessantes histórias para contar.
— Mas. não permitira uma ligação entre lorde
Hartley e a srta. Prim, não é?

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— É claro que não — a mulher sorriu. — Afinal,
ele é da família. Agora vá, minha querida. Estou
esperando o jovem sr. Carstairs. Ele ficará para o
jantar, e você pode se juntar a nós. De fato, ficaria
muito satisfeita se o tratasse com alguma. cortesia.
Patrice piscou.
— Cortesia?
Ah, sim, essa era a melhor maneira de tornar sua
neta útil. James teria de ser mantido numa coleira
durante algum tempo.
— Sim, querida. Ele tem trabalhado duro por
nossa família. Ajuda a administrar o fundo, cuida da
propriedade do seu finado marido. É um homem
muito perspicaz, e ele já mencionou uma certa
afeição por você.
Patrice ofereceu um sorriso radiante.
— Seria um prazer ajudá-la e entreter visitante
tão ilustre, minha avó. Só preciso mudar de roupa.
Lady Honória deu permissão para Patrice sair e
voltou às contas. Algumas coisas na vida deviam ser
saboreadas. Por causa da temporada na Escócia,
fora forçada a esperar por mais de vinte anos. A

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vingança seria doce.

No dia seguinte, Célia esperou por ele como


havia prometido, altiva no vestido de viagem que
usara no dia em que havia chegado do campo. Não
era um traje moderno como os da sua madrasta,
feito por uma simples costureira do campo, mas
acreditava que as listras do tecido cinza e branco a
faziam parecer mais alta. E era melhor do que seu
vestido de governanta. Devia parecer apresentável
para Stanley, pensou. Seu desejo de tornar-se mais
atraente não tinha nada a ver com o marquês.
Se pelo menos pudesse dizer o mesmo sobre o
restante dos seus sentimentos.
A lembrança daquele sorriso radiante a provocara
durante toda a noite. E quando adormecera, aquele
olhar penetrante aquecera seus sonhos. Era
evidente que não tinha nenhuma fibra moral, porque
estava noiva de um homem e pensava em outro!
— Arrependida, srta. Rider? — o marquês
perguntou ao deixar o abrigo proporcionado pela

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sombra das árvores.
Ele podia ler sua mente! Não. Que ideia tola.
Célia forçou um sorriso.
— Não, milorde. Apenas um pouco melancólica.
Talvez sinta mais falta do campo do que havia
percebido.
— Então, permita-me reuni-la com parte desse
campo — ele disse, oferecendo o braço. — O sr.
Arlington a espera.
O nome de Stanley deixou-a ainda mais
deprimida. Célia aceitou o braço do marquês e
deixou-se guiar pelo portão do jardim para onde
estava sua carruagem.
— Espero que essa viagem seja mais confortável
— ele comentou ao ajudá-la a embarcar.
— Com meu irmão longe das rédeas, tudo vai dar
certo.
— Como conseguiu escapar das suas obrigações?
Enquanto conversavam, o cocheiro deu início à
jornada.
— Martin saiu para cavalgar com um dos
empregados do estábulo. O rapaz é muito

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respeitado por sua competência, e minha madrasta
permitiu que a srta. Prim tivesse alguns momentos
para si mesma.
— Então, não vai se opor se dedicarmos algum
tempo extra ao nosso encontro.
— Não. Por quê?
— Pretendo descobrir a verdade sobre sua
fortuna, como já disse.
Ela riu.
— Se conseguir realizar tal proeza, passarei a
acreditar que tem poderes mágicos, lorde Oberon.
— Oberon? Esse é o nome do rei das fadas.
Considera-me um ser mágico?
Ela riu.
— Alguma vez leu Sonhos de Uma Noite de
Verão, de Shakespeare? Embora possa relacioná-lo
às fadas, pois ele é mesmo o rei desse povo, Oberon
é muito mais que isso.
— De fato. Arrogante, exigente, controlador.
— Se a carapuça lhe serve, milorde.
— Perfeitamente, srta. Rider. Devo presumir que
julga ser Titânia, rainha das fadas?

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Ela balançou a cabeça.
— E me apaixonar por um estorvo como aquele?
Não, obrigada.
— É uma pena — ele respondeu com um brilho
novo nos olhos. — Estava começando a gostar do sr.
Arlington.
Célia explodiu numa gargalhada e foi
recompensada pelo sorriso radiante que iluminou o
rosto do marquês. Era como ver o sol surgindo de
trás de uma nuvem. Levando em consideração sua
história, no entanto, não era de estranhar que o
momento surgisse tão raramente.
Sua expressão devia trair os pensamentos que
ocupavam sua mente, pois o sorriso de Brandon
desapareceu tão depressa quanto havia surgido.
— O que é?
— Nada — ela respondeu, demonstrando uma
alegria que soava mais sincera do que realmente
era. Esperava que ele desse prosseguimento ao
interrogatório, mas ele parecia mais interessado em
preservar a atmosfera relaxada e leve. Por isso
mudou de assunto, e os dois conversaram sobre

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trivialidades até o cocheiro parar o veículo.
Brandon viu o desfile de emoções no rosto
animado de Célia. Ela sabia quanto era
transparente? Cada pensamento, cada sentimento,
podia ser visto no fundo daqueles olhos. Era como
espiar por uma janela para sua alma. Patrice devia
ser cega para não se dar conta desse jogo. Ou essa
franqueza era algo que Célia reservava para ele,
apenas?
Não queria que a ideia o animasse mais do que
julgava ser conveniente. Não queria se distrair com
ela. não naquele momento. A poucos meses do seu
aniversário, lady Honória o estaria observando em
busca de algum sinal de mudança de
comportamento. Ela não entregaria a fortuna até
estar certa de que dispunha do equilíbrio para
manejá-la. Apaixonar-se não fazia parte dos planos.
Mas como resistir aos encantos de Célia? Ela era
tudo que desejava encontrar numa mulher, aberta,
amorosa, generosa, espontânea. Vestida naquele
traje de viagem, exibia um corpo tão perfeito quanto
seu caráter, uma silhueta que, embora esguia, era

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curvilínea nos lugares propícios. Parte dele rezava
para que ela fosse uma fraude, pois assim teria bons
motivos para manter-se distante.
Brandon ajudou-a a descer da carruagem parada
diante do edifício de pedras. Ela olhou para o prédio
antes de encará-lo.
— Stanley virá nos encontrar aqui?
Era impossível não notar o uso do primeiro nome
do sujeito.
— Sim. Já esteve aqui antes, não?
Ela franziu a testa e olhou novamente para o
edifício.
— Não. A menos que tenha sido na infância.
O dia parecia mais frio, mas não podia permitir
que isso o detivesse.
— Devo ter cometido um engano. Podemos
entrar?
Ela não se moveu. A ruga na sua testa ganhava
profundidade.
— Duvido que cometa muitos enganos, milorde.
A única palavra capaz de descrevê-lo é perfeição.
Fale-me sobre a importância do edifício.

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Ele apoiou a mão nas suas costas e sentiu sua
resistência. Poderia forçá-la a entrar usando a força
física, mas não se sentia capaz de ir tão longe na
sua ousadia.
— Célia!
O grito alegre de Arlington o salvou. Célia virou-
se e sorriu.
— Stanley!
O rapaz a abraçou. Brandon não teve escolha
senão recuar. Como o sujeito ousava tocá-la
daquela maneira? Seus punhos se cerraram, e ele
fez um grande esforço para abri-los. Depois respirou
fundo. Era obrigado a vê-la responder às carícias
públicas de outro homem? As pedras cinzentas do
edifício pareciam ter se tingido de vermelho. Ele
respirou mais uma vez e olhou para o casal.
Célia batia no ombro de Stanley e ria.
— Seu grande palhaço! Porque me seguiu até
aqui? Não sabe que posso cuidar de mim mesma?
Stanley sorria.
— Admita que está feliz por eu ter vindo! Além
do mais, quando não voltou para casa, meu pai ficou

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preocupado.
— Ah! Eu devia saber! Quando vai enfrentá-lo,
Stanley?
Brandon acompanhava a cena com interesse
crescente. Ela falava com ele naquele mesmo tom
que empregava com Martin! Onde estavam as
carícias de dois amantes apaixonados e saudosos?
Onde estavam os olhares doces? Se a mulher que
ele amava desaparecesse da sua vida por quatro
semanas e estivesse presumivelmente morta, não
ficaria ali parado, no meio da rua, falando sobre seu
pai.
Como sempre, pensar no pai serviu para deixá-lo
sóbrio. Ele deu um passo para frente e
cumprimentou Arlington.
— Sr. Arlington, é bom vê-lo novamente.
Stanley apertou a mão do marquês.
— Obrigado, milorde. É uma alegria ver que
cumpriu sua palavra. Agora acredito na sua honra.
— Stanley! — Célia o censurou. — Ouvi dizer que
acusou lorde Hartley de assassinato! Que história é
essa? Eu lhe disse que minha madrasta havia ficado

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com a fortuna. O marquês não tem motivos para me
roubar.
— Acho que devemos entrar — Brandon sugeriu
ao ver o constrangimento de Stanley. — Logo
começarão a atrair olhares curiosos.
Célia corou e deixou-se guiar pela mão do
marquês no seu braço. Stanley os seguiu de cabeça
baixa, constrangido.
Que pena não poder chamar lorde Hartley pelo
primeiro nome como fazia com Stanley, Célia
pensou enquanto, parada, esperava que o marquês
abrisse uma porta interna para eles. Talvez pudesse
chamá-lo de Brandon mentalmente. Tal gesto
certamente não teria qualquer reflexão sobre
Stanley. Embora estivesse muito feliz por rever o
noivo, não podia deixar de notar as diferenças entre
eles. No campo, Stanley era o solteiro mais cobiçado
num raio de muitos quilômetros. Perto de Brandon,
ele era como um pangaré ao lado de um garanhão
puro-sangue.
Seus sentimentos também eram um contraste.
Olhar para o rosto sorridente de Stanley era como

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calçar um chinelo velho: confortável. Olhar para os
traços harmoniosos e fortes de Brandon era como se
preparar para disputar uma corrida: seu corpo todo
cintilava com o entusiasmo. Estar entre eles causava
um nervosismo que ela não conseguia ignorar.
— Carstairs & Filho — Stanley leu na porta. —
Não são os homens que você veio procurar?
Célia sobressaltou-se. Brandon e Stanley a
observavam. Stanley tinha uma expressão curiosa,
mas Brandon parecia intenso, como se muito
dependesse da sua resposta.
— Esses são os nomes dos advogados do meu
pai — ela disse. — Mas eles mantêm um escritório
no porto de Londres.
— Talvez tenham se mudado desde que você era
criança — Brandon explicou, incentivando-a a passar
pela porta.
— Não. Fui visitá-los naquele escritório quando
cheguei aqui.
Brandon ergueu uma sobrancelha, mas não disse
nada. Um assistente careca correu para recebê-los.
— Lorde Hartley, seja bem-vindo. O sr. Carstairs

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o aguarda. Devo anunciar também seus
acompanhantes?
— Certamente. Célia Rider e seu noivo, sr.
Stanley Arlington.
O homem assentiu, sorriu com cortesia para
todos e correu para uma das portas que levava ao
interior do conjunto de salas.
— Milorde? — Célia indagou confusa.
— Tudo ficará claro num momento — ele disse.
Depois fez um gesto convidando-a a seguir em
frente.
Célia não sabia o que esperar quando entrou
naquela sala. Dois homens os aguardavam. Um era
mais velho, mais baixo e quase careca. Rugas
contornavam seus olhos quando ele sorria. Suas
roupas pareciam ser de outra era.
O outro desconhecido era mais jovem,
consideravelmente mais alto, e muito atraente. As
roupas que ele vestia eram elegantes, e seus olhos
azuis revelavam inteligência e concentração.
— Lorde Hartley — ele cumprimentou. — Srta.
Rider, sr. Arlington. Como posso ajudá-los?

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— Esclarecendo um mistério — Brandon
respondeu sem rodeios. — A srta. Rider é a herdeira
legal da fortuna de David Rider. Gostaria de saber
porque ainda não entregaram o dinheiro a ela.
Oh, ele era magnífico! Célia o observava com
admiração. Suas palavras eram polidas, mas os
advogados teriam de ser surdos para não
identificarem o poder por trás delas.
— Célia, não compreendo — Stanley comentou,
como se de repente começasse a enxergar a
importância daquele momento. — Foram esses
cavalheiros que informaram sobre o
desaparecimento da sua fortuna?
— Não. Nunca os vi em toda minha vida.
— Agora entende minha preocupação, Carstairs
— Brandon acrescentou. — Alguém parece estar
tirando vantagem da ingenuidade da srta. Rider.
— É o que parece — concordou o cavalheiro mais
velho. Ele se adiantou para tomar a mão de Célia e
levá-la aos lábios. — Srta. Rider, é uma alegria vê-la
novamente. Imagino que não se lembre de mim,
mas eu jamais a esqueceria. David Rider tinha

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grande orgulho dos seus dois filhos e os exibia
sempre que podia. E esses olhos são idênticos aos
do seu pai.
— Obrigada — Célia agradeceu antes de sentar-
se.
Stanley acomodou-se a seu lado. Brandon
permaneceu em pé ao lado da mesa.
— E então, pode confirmar a reclamação da srta.
Rider? — o marquês perguntou ao ver o advogado
mais velho sentar-se na sua cadeira. O filho dele
também continuava em pé, observando-os com um
sorriso polido que era radiante demais para a
ocasião.
— Essa é uma circunstância que exige algumas
formalidades, lorde Hartley — explicou o jovem
Carstairs. — Precisamos de uma cópia do seu registo
batismal, cartas de apresentação de cidadãos
preeminentes que tenham conhecido o pai dela,
uma declaração formal assinada pela sra. Rider.
— Tudo isso é secundário — interrompeu o pai
dele num gesto de desdém. — Sua palavra é
indiscutível, milorde. Deve estar certo da identidade

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da srta. Rider, ou não a teria trazido aqui. Srta.
Rider, o que quer saber?
Célia massajou as têmporas doloridas.
— Muitas coisas, senhor. Por exemplo. Se é
realmente o sr. Carstairs, porque o encontrei em
Wapping High Street?
— Wapping High Street? — O homem franziu a
testa numa demonstração de confusão.
Brandon inclinou-se para frente.
— A srta. Rider escreveu para sua firma. O
endereço era aquele que ela recordava dos tempos
do seu pai.
— Ah, sim! Nós nos mudamos daquele escritório
há muitos anos, minha querida menina. E as cartas
que lá chegam raramente são trazidas para cá. Sua
missiva deve ter se extraviado.
— Não. Você a respondeu — Célia insistiu. — Ou
melhor, alguém a respondeu. — Ela abriu a bolsa
para pegar a carta, que mantinha sempre no seu
poder para impedir que alguém na casa a
encontrasse e desconfiasse das suas intenções e da
sua real identidade.

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O advogado deu uma olhadela na missiva e seu
rosto tornou-se sombrio. Ele a entregou ao filho,
que se limitou a erguer as sobrancelhas como se
estivesse surpreso.
— De fato, a srta. Rider foi vítima de uma cruel
trama para destituí-la — anunciou o pai. — Lamento
ter de confessar que esse papel timbrado pertence
ao nosso escritório. Mas essa não é a minha
caligrafia.
— Nem a minha — acrescentou o advogado mais
novo.
— Posso ver o documento? — Brandon pediu. Ele
leu a carta em poucos minutos.
— O homem que encontrei depois de seguir
essas instruções disse que a fortuna do meu pai já
não existia — Célia contou.
— Isso é ridículo! — o velho Carstairs exclamou
irritado.
— De fato — concordou o mais jovem. — Sua
fortuna está em boas mãos, srta. Rider. Sua
madrasta aprovou bons investimentos que elevaram
o valor de maneira significativa.

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— Minha madrasta?
Antes que o homem pudesse responder, Brandon
tocou o ombro de Célia.
— Está vendo? Tudo dentro da mais perfeita
ordem. Você se preocupou por nada.
Ela o encarou.
— É o que parece. Não é necessário lembrar que
me comportei como uma tola.
— De maneira nenhuma — Brandon protestou. —
Alguém se empenhou muito para fazê-la acreditar
que sua fortuna havia desaparecido.
— Mas quem? — ela indagou intrigada. — E por
quê? —
Talvez nunca tenhamos as respostas para essas
questões — disse James Carstairs. — Sejamos
gratos a lorde Hartley por tê-la trazido até aqui,
porque assim pudemos retificar suas impressões.
Gratidão era a menor emoção que sentia por
lorde Hartley. Naquele momento, era impossível
identificá-las, embora não pudesse negar o alívio por
saber que seu dinheiro ainda estava disponível. No
entanto, ela percebeu que o marquês havia

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guardado a carta no seu bolso.
— Muito bem, agora vamos tratar do que
realmente importa — Stanley falou com autoridade.
— Qual é o valor da herança?
— Stanley! — ela o censurou com o rosto
vermelho.
Carstairs sorriu, embora o filho dele
permanecesse sério.
— É uma questão lógica, sr. Arlington. James,
pode fazer a gentileza de levantar o montante total
da herança da srta. Rider?
— Certamente, pai. Com licença, senhores.
— Verá que ele cuidou muito bem dos seus
negócios, srta. Rider. A herança do seu pai foi a
primeira grande causa que ele assumiu como
advogado. James trabalhou duro para ser digno
dela.
O jovem retornou carregando uma pasta grossa e
pesada. Ele a deixou sobre a mesa, escolheu uma
das folhas nela contidas e entregou-a a Célia.
Stanley olhou por cima do seu ombro e assobiou.
— O que significa isso? — Célia perguntou.

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— Não tenho a menor ideia — respondeu Stanley
—, mas gosto de todos esses zeros atrás dos
números.
— Permita-me — Brandon aproximou-se para ler
o que estava impresso naquela folha, inclinando-se
e aproximando sua cabeça da dela. Sentindo o hálito
morno na face, ela mal conseguia se concentrar no
que era dito. — Esse valor é o investimento inicial
do seu pai na firma — ele explicou, apontando um
número com seu dedo longo e fino. — E aqui está o
total obtido com a venda.
— Patrice insistiu nisso — Célia lembrou. — Ela
dizia que um cavalheiro não deve se dedicar ao
comércio, mesmo que seja marítimo.
Ele assentiu como se a entendesse.
— Aqui — o marquês prosseguiu —, está uma
série de investimentos. São aqueles que o sr.
Carstairs mencionou. Escolhas interessantes. fáceis
de vender em caso de necessidade premente de
dinheiro.
Ela sentiu seu olhar mudando de direção e notou
que o marquês encarava James Carstairs. O jovem

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inclinava a cabeça em sinal de concordância.
Brandon voltou ao exame das contas.
— Mesmo considerando que sua parte é um
quarto do valor total, noto que o assobio do sr.
Arlington foi mais do que justificado. É uma jovem
muito rica, srta. Rider.
Ele soava um pouco surpreso com a própria
constatação. Não havia acreditado quando ela
dissera ser filha de um homem rico? Ou suspeitava
de que o dinheiro ainda era uma farsa?
Ele se levantou.
— Suponho que o valor a que minha prima tem
direito ainda esteja disponível para ela?
O advogado mais velho olhou para o filho. James
estava tenso.
— A sra. Rider está de posse da sua parte,
senhor. Terá de perguntar a ela. Trata-se de um
direito do cliente. Espero que entenda.
O pai do rapaz franziu a testa, mas Brandon
assentiu.
— O que mais tem a dizer para a srta. Rider,
então?

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Carstairs recuperou-se.
— Realizaremos um processo mais formal,
certamente, como meu filho já explicou antes. Estou
certo de poder contar com sua cooperação, srta.
Rider.
— É claro que sim — Célia respondeu
prontamente. Se aqueles cavalheiros podiam colocá-
la na posse de uma considerável quantia em
dinheiro, faria o que estivesse ao seu alcance para
ajudá-los. — Mas entreguei meus papéis de
identificação ao outro sr. Carstairs. Terei de escrever
a Somerset solicitando outras cópias.
— Permita-nos cuidar disso — ofereceu o jovem
Carstairs com seu sorriso polido. — É o mínimo que
podemos fazer depois de tudo a que foi submetida.
Célia concordou. O grupo passou mais alguns
minutos trocando gentilezas e cumprimentos, e pai e
filho os acompanharam até a porta assegurando que
tudo acabaria bem.
Só quando deixou o prédio em companhia de
Stanley e lorde Hartley ela compreendeu que seus
problemas estavam apenas começando.

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Capítulo V

Stanley não parecia acreditar na própria sorte.


— Como posso agradecer, milorde? — ele disse
ao se aproximarem da carruagem. — Primeiro
encontra Célia, depois sua fortuna. Opera
verdadeiras mágicas!
— Já ouvi isso antes — Brandon respondeu
sorrindo, um sinal claro de que Stanley o divertia.
Célia não conseguia ver graça na situação.
— Agora meu pai pode dizer o que quiser —
Stanley continuou. — Que empurre Violet Thornhill
para os meus braços! Eu a empurrarei de volta. Vou
me casar com uma herdeira!
— Pare com isso, Stanley! — Célia o censurou. —
Não está prestando um favor a você ou a seu pai
com toda essa conversa.
Ele a encarou com ar aturdido.

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— Porque está tão tensa? Tudo se resolveu,
afinal!
— Como pode ser tão ingênuo? Alguém quer
manter minha herança longe de mim, e agora estou
presa em Londres até poder entregar documentos
de identificação aceitáveis. Você, por outro lado,
pode voltar para casa.
Stanley ficou sério.
— Talvez eu vá mesmo. Talvez não. De repente
compreendo que não soube desfrutar do tempo que
passei na capital. Em vez de me ocupar com uma
jovem dama que é muito mais esperta que eu, pela
maneira como se comporta, embora eu tenha sido o
primeiro a dizer que não havia nada de errado com
sua herança, devia estar cuidando dos meus
assuntos. Afinal, em breve não terei mais assuntos
só meus.
— Excelente ideia, sr. Arlington — Brandon o
incentivou apressado, impedindo que Célia
respondesse à ameaça infantil. — Permita-me
oferecer algumas sugestões. Pode nos dar licença
por um instante, srta. Rider? Eu a levarei para casa

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em poucos minutos.
Célia assentiu, irritada demais para falar. O
marquês e Stanley afastaram-se alguns metros. Não
podia ouvir o que diziam, mas Stanley empalideceu,
assentiu abalado e nervoso, e partiu pouco depois
sem olhar para trás. Brandon voltou para perto dela.
— O que disse a ele? — Célia perguntou quando
se acomodou na carruagem do marquês.
— Nada de muita importância.
Duvidava disso. O marquês era um homem de
poucas palavras, já havia notado, e costumava
empregá-las apenas de maneira a fazê-las contar. O
que quer que tenha dito, Stanley estaria melhor se o
levasse a sério. E não pensaria mais nisso, porque
tinha os pensamentos ocupados por outras
questões.
— Como soube sobre a fortuna? — ela indagou.
— Percebi que você e o sr. Carstairs relatavam
histórias distintas sobre a fortuna do seu pai. Achei
que seria propício reuni-los e observar o confronto.
Assim seria mais fácil retificar tal incongruência.
— E quanto ao falso sr. Carstairs?

Projeto Revisoras
Seu rosto tornou-se sombrio e o ar pareceu
esfriar de repente.
— Cuidarei também desse assunto.
— Por isso ficou com a carta? Já comprovou sua
habilidade para solucionar um problema, milorde,
mas não consigo entender porque deseja envolver-
se ainda mais nessa questão. Disse que queria
certificar-se de que o sr. Carstairs dizia a verdade.
Notei que ele parece ser um homem honesto. Seu
dever está cumprido.
— E se eu quiser ajudá-la? Porque se oporia?
— Porque sou perversa? — ela sorriu. — Além do
mais, já tenho uma grande dívida de gratidão com o
marquês. Se continuar me ajudando, como poderei
pagar por tudo que tem feito?
Ele permaneceu em silêncio, encarando-a, e de
repente Célia se deu conta de que estavam
sozinhos. Ninguém saberia se trocassem palavras
doces de desejo, se tocassem um ao outro, se
trocassem beijos ardentes. Seu coração bateu mais
depressa, e ela engoliu em seco.
O marquês inclinou-se para frente, e ela esperou

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que seus lábios tocassem os dela. Só uma vez,
apenas uma lembrança. Guardaria para sempre a
sensação que, sabia, o beijo despertaria no seu
corpo.
— Pode começar—ele murmurou com aquela voz
profunda e sedutora — revelando a verdade. Diga a
minha prima quem realmente é.
Ela piscou. O olhar do marquês mergulhava no
dela como se quisesse arrancar dele uma promessa.
Ela respirou fundo tentando recuperar a compostura.
— Eu. creio não ter motivos para contrariá-lo.
— Nenhum que eu possa ver. Ela administrou
bem sua fortuna, contrariando todas as
expectativas. É culpada apenas por não lembrar que
você cresceu, o que parece ser um defeito de todos
que criam filhos ou enteados. Não pode acusá-la por
isso.
Ele estava sendo razoável, e Célia não se sentia
disposta a isso.
— Não posso? Fala assim porque não viveu no
exílio durante quatro anos.
— Talvez não. — Ele se deteve e franziu a testa.

Projeto Revisoras
— Porque está sorrindo para mim dessa maneira?
Célia sentiu-se tola e baixou a cabeça.
— Perdoe-me, senhor. Eu apenas aprecio a
maneira como fala. Devagar, com uma voz rica,
profunda. O som me faz pensar em chocolate
derretido. — Deus, isso era o melhor que podia fazer
para flertar com ele? Soava tão insípida! Ela o
encarou e viu que o marquês lutava contra um
sorriso. Um sentimento de poder desabrochou no
seu peito, envolvendo-a rapidamente. Pelo menos
podia fazê-lo sorrir. Não acreditava que muitas
outras tivessem essa capacidade. — Tem razão, é
claro. Contarei a verdade a Patrice assim que
chegarmos em casa.
— Ótimo. — Ele se reclinou no assento.
A conversa foi agradável e amena durante o
restante do trajeto de volta a Mayfair. Ela via sua
oportunidade de tocá-lo esvair-se por entre seus
dedos como a areia de uma ampulheta. Talvez fosse
melhor assim. Nada poderia advir da sua atração
por ele. Era noiva, afinal.
Quando a carruagem parou junto ao portão dos

Projeto Revisoras
fundos do jardim da casa de Patrice, ela percebeu
que aquele poderia ter sido seu último encontro com
o marquês. Se o advogado impostor fosse apenas
um vigarista sem importância, lorde Hartley não
teria mais motivos para procurá-la.
— Voltarei a vê-lo? — As palavras soaram
assustadas, e ela se calou em seguida. O que faria
agora? Choraria e declararia sua admiração como
uma colegial apaixonada? Era noiva de Stanley. Não
tinha o direito de sonhar como seria beijar lorde
Hartley.
Ele a encarava sério.
— Se eu descobrir alguma coisa relacionada ao
falso advogado, mandarei notícias. Caso contrário,
talvez nos encontremos por meio da minha prima.
Socialmente, noutras palavras. Não haveria mais
encontros secretos. Nem conversas sussurradas.
Não o teria mais só para si.
— É claro. Que tolice a minha.
— Vai voltar a Somerset em breve, não?
Havia uma sugestão nas suas palavras? Ela o
fitou com uma súplica nos olhos. Diga que quer que

Projeto Revisoras
eu fique! Diga que precisa de mim como Stanley
jamais precisará! O rosto dele era uma máscara
impassível. Ela baixou a cabeça.
— É claro. Somerset.
— Desejo que seja feliz. Posso lhe dar um beijo
de adeus?
Ela o encarou novamente. Era um costume,
afinal, beijar a noiva, e ele não iria a Somerset para
o casamento, porque não teria coragem para
convidá-lo. Assim, ela assentiu e ofereceu o rosto.
Os dedos longos e finos tocaram seu queixo, e
ela sentiu o calor do couro macio da luva na pele.
Uma pressão gentil fê-la virar o rosto. Antes que
pudesse interpelá-lo quanto ao que pretendia, a
boca apoderou-se da dela.
Foi um beijo ardente e ousado, mas Célia não se
envergonhava por ter correspondido a essa ousadia.
Pelo contrário. Queria mais. Queria a perfeição de
estar nos braços desse homem, de tê-lo
preenchendo todos os espaços vazios da sua vida e
do seu corpo.
Quando Brandon afastou-se, ela teve de respirar

Projeto Revisoras
fundo para não perder os sentidos.
A julgar por sua expressão, ele também havia
sido afetado pelo beijo. Ela, a insignificante Célia
Rider, havia abalado o grande marquês de Hartley.
O que havia acontecido com lorde Heartless, o
Senhor Sem Coração? Com o superior lorde Oberon?
— Agora você deve ir — ele disse.
Seria sua imaginação, ou a voz soava ainda mais
rouca e profunda que de costume? Haveria um certo
temor no seu tom?
Não podia deixar que tudo terminasse assim.
Atirando-se sobre o marquês, ela tomou a iniciativa
de beijá-lo novamente, e dessa vez ele a abraçou
como se nunca mais quisesse soltá-la.
— Célia — murmurou arfante. — Isso é loucura!
Ao pronunciar tal palavra, o marquês
empalideceu e um medo profundo surgiu nos seus
olhos.
— A culpa é minha — ela disse antes de se
afastar. — Sou impetuosa demais. Qualquer
cavalheiro reagiria dessa mesma forma, se uma
jovem dama se atirasse nos seus braços. A culpa

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não é sua.
Ele a segurou pelos ombros.
— Pare. Desejei tudo isso tanto quanto você.
Talvez mais. No entanto, sou mais velho e
experiente, e sou também seu guardião. Isso está
errado.
Então, porque tinha a sensação de estar agindo
tão corretamente?
Sabia por quê. Estava noiva.
— Perdoe-me — disse. — Mais uma vez, muito
obrigada por tudo que fez por mim. Adeus, lorde
Hartley.
E ela saiu da carruagem antes que o marquês
pudesse responder.
Brandon ouviu a porta da carruagem se fechar e
caiu sobre as almofadas. Não podia ir atrás dela.
Caso contrário, ambos estariam perdidos. Por isso
ele bateu no teto do veículo, ordenando que o
cocheiro seguisse em frente.
Alguma outra mulher o afetara tanto assim? Não
conseguia lembrar-se de nenhuma outra. Jamais
havia permitido que alguém se aproximasse tanto

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para ter esse poder. Um beijo havia parecido trivial,
mas no momento em que seus lábios tocaram os
dela, ele soube que o beijo era apenas o começo, o
mínimo. E quando ela se jogara nos seus braços,
havia sido difícil conter o ímpeto de possuí-la ali
mesmo. Queria tocá-la, sentir sua pele macia e o
sabor do seu corpo. O desejo era tão forte que o
assustava. A única chance de paz era esquecer que
um dia havia conhecido Célia Rider.
Mas as lembranças o atormentaram durante toda
a viagem de volta para casa. Ela era noiva. Podia
fazer Stanley desaparecer, sem dúvida. E ela era da
família. A igreja não desaprovaria essa união. Foi
nomeado seu guardião. Ela era maior de idade. Por
mais que tentasse, não encontrava argumentos
contrários a uma aproximação.
Quando alcançou o refúgio dos seus aposentos,
ele se deitou e fechou os olhos. Porque era tão difícil
encontrar quietude dentro de si mesmo? Há muito
aprendera a isolar-se num local silencioso e pacato
num recanto oculto da sua alma. Agora era incapaz
de encontrá-lo, e sabia que dispunha de pouco

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tempo para essa busca. Gregory, seu valete,
apareceria a qualquer momento para ajudá-lo a
vestir-se para o jantar.
Todos os empregados cuidavam do seu conforto
com diligência e deferência. Alguns que haviam
estado presentes por ocasião da morte do seu pai
ainda sussurravam na sua presença, como se
esperasse um ataque de fúria a qualquer momento.
Felizmente, não se lembrava de ter visto o pai
naquele estado. Naquela noite, fora mantido
afastado do quarto, porque todos temiam pelas
ações do homem.
Deus o protegesse contra tal destino.
Precisava de ar. Levantando-se, foi até a janela e
a abriu, enchendo os pulmões com o ar fresco do
campo. O aroma ali era puro, limpo. como o de
Célia.
— O que está fazendo?
Brandon virou-se e viu o tio parado na porta do
seu quarto. Seu rosto estava pálido e assustado.
— Apenas respirando o ar fresco, tio. E deixando
entrar a luz. Já suportamos muita escuridão por

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aqui, não acha?
A última frase soou como uma daquelas de
Stanley Arlington, e Brandon sorriu.
Edmund aproximou-se devagar, cheio de receio.
— Considero a casa bem iluminada para os
nossos propósitos. E hoje esteve ausente do
Parlamento mais uma vez. Ouvi comentários.
— Como eles sobreviviam quando eu estava na
Escócia?
— Não oferece nenhuma explicação?
— Estive ocupado com outras questões.
— Por quanto tempo pretende seguir os passos
da srta. Rider?
Brandon exalou com força exagerada.
— Juro, tio, que você é pior que uma velha
fofoqueira. Não pode me permitir alguma
privacidade?
Edmund balançou a cabeça e sentou-se numa
poltrona ao lado da lareira.
— Não. Prometi a seu pai que você receberia sua
herança. Até agora fiz tudo que pude para cumprir
essa promessa, chegando ao extremo de levá-lo

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comigo para outro país. Não pode me culpar por ser
zeloso, mesmo que esse zelo seja excessivo, em
alguns momentos.
Brandon sorriu.
— É sempre tão carrancudo e sério, que chego a
pensar que detesta essa responsabilidade.
O homem suspirou.
— Odeio o fato de deixá-lo zangado com meus
cuidados. A raiva não é um sentimento que você
possa nutrir.
— Por isso me esforço tanto para manter esse
arremedo de vida? Para poder me dar ao luxo de
sentir raiva?
— Você sabe tão bem quanto eu que bem pode
advir de um comportamento perfeito. Honória
controlou a fortuna por todos esses anos.
Envergonho-me por dizer que a deixei fazer tal
coisa. Às vezes acho que ela odiava seu pai e eu por
termos nascido depois dela. Mas, por nós, ela teria
ficado com tudo.
— Ela parece ter se saído muito bem.
— Reuniu um poder considerável. Porque acha

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que o jovem Carstairs a adula tanto? Ele deseja um
assento na Casa e, de lá, um título.
— Ele pode ter o que quiser, desde que
administre nossos bens com probidade.
— Talvez, mas você nunca terá um centavo se
não formos cuidadosos. Menos de três meses, Hart.
É pedir demais, quando já percorremos um caminho
tão longo?
— Não. Mas, meu tio, juro que em alguns
momentos sinto que um dia é tempo demais para
continuar suportando esse tormento.
Seu tio se levantou para ir pousar uma das mãos
sobre seu ombro. O toque era leve, porém firme.
— Entendo o que diz, meu rapaz. Mas estudou e
foi bem preparado para esse momento. Não tem
razões para esperar qualquer coisa que não seja a
vitória. Já discursou diante do Parlamento, jogou no
White's, dançou no Almack's. E em nenhum
momento traiu a si mesmo. Ninguém o conhece bem
o suficiente para imaginar.
— E considera tudo isso um conforto? Pois eu
digo que é uma maldição.

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— Não pode estar pensando em contar a ela. Ela
não pode ser tão importante para você.
— Não, não pode, mesmo que eu deseje fazer
dela alguém muito importante na minha vida.
O calor desapareceu dos olhos de Edmund, e a
transformação deixou seu rosto pálido, implacável.
— Não é o tipo de homem que seduz uma
menina.
As palavras o tocaram profundamente. A raiva
latejava nas suas têmporas.
— Eu não a seduzi. E ela não é uma menina. Está
me seguindo?
— Meus criados são bem pagos. E sua repentina
obsessão nos preocupa.
— De fato? — A voz do marquês soava gelada, e
ele cerrou os punhos. — Então, sinta-se livre para
dizer a suas criaturas que não estou.
— Obcecado?
— Não ponha palavras na minha boca!
— Mesmo quando sei que não é capaz de
pronunciá-las?
— Mesmo assim. Ajudei a srta. Rider a localizar

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sua fortuna. Por mais que deseje fazer o oposto,
estou mandando a jovem de volta para casa.
Conheço meus deveres, tio. Não sou nenhum idiota.
— E acha que ela vai desistir com toda essa
facilidade? Tenho a impressão de que ela o tem
onde quer. Não acha que essa história de fortuna
perdida pode ter sido apenas uma mentira para
aproximar-se de você?
— Agora chega. — As mãos de Brandon tremiam
e ele sentia que as emoções ameaçavam dominá-lo.
— Não conhece essa jovem dama, não sabe da sua
inteligência, da sua generosidade, da sua alegria de
viver. Não pode julgá-la.
— E você pode, depois de uma visita ao parque e
alguns passeios de carruagem?
— Mais do que imagina. — Ele passou por
Edmund antes de ser devorado pela raiva. Havia
apenas um lugar para onde pudesse escapar
naquela casa. Ele saiu do quarto despindo o casaco.
Enquanto subia a escada, ele passou por uma
criada e assentiu. A jovem gemeu assustada,
embora não pudesse dizer se a reação era

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provocada por seu estado emocional ou por não
estar propriamente vestido. Mesmo assim, abriu a
camisa e arrancou a gravata enquanto percorria o
corredor. Quando alcançou a porta do salão de
treinamento, ele deixou todas as roupas com o
valete. A camisa também foi despida.
Seus passos ecoavam duros no piso de madeira.
O saco de couro o esperava em canto, alto, bem
recheado, um pouco irregular por conta de sessões
anteriores. Ouvira falar de poucos como aquele na
Inglaterra. Havia sido um fazendeiro escocês que
revelara o segredo, e esse mesmo homem guardara
o segredo de Brandon, suas esporádicas escapadas
da propriedade para ir se juntar aos homens do
vilarejo nas suas reuniões animadas. Naquela época
Edmund não vivia preocupado nem ordenava que os
criados o seguissem.
Brandon começou a esmurrar o saco de couro. O
ritmo era natural, uma concentração que bania da
mente todos os problemas e anseios.
Um jab, um cruzado de direita, um cruzado de
esquerda. Um golpe para cada criado que o havia

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seguido, outro para o tio que lembrava uma
promessa de sobrevivência, mas esquecia o afeto
que a promovera. Mais um golpe para um homem
que não podia se dar ao luxo de mandar todos para
o inferno.
O suor escorria por seu peito nu, e ele respirava
ofegante. Havia sangue nas suas mãos. O veneno
no seu organismo persistia. Dessa vez deixara o
descontrole ir longe demais. Sufocara muitas
emoções. Era espantoso que houvesse conseguido
resistir às investidas de Célia.
Pensar nela fê-lo interromper os golpes. O saco
oscilou até parar. Ele apoiou o rosto no couro frio.
Edmund estava errado sobre Célia. Tinha de estar.
Ela jamais traçaria um plano para enganar alguém.
Tudo que queria era a própria fortuna.
De posse da herança, ela poderia se casar com
Stanley Arlington.
Brandon desferiu mais um golpe contra o saco de
couro, lançando-o contra a parede. O gesso do
revestimento se partiu, e fragmentos de madeira se
desprenderam do trabalho cuidadoso. Brandon

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virou-se e saiu da sala.

À tarde de Célia terminou ainda pior do que a de


Brandon. Ela mal havia passado pelo portão, quando
os sentimentos a inundaram com força
avassaladora. Qual era o problema com ela? Um
acordo era um acordo. Ia se casar com Stanley, e
ele logicamente esperava uma esposa virgem. Mas
acabara de pensar em se entregar a outro homem!
Uma mulher não se atira nos braços de Oberon sem
sofrer as consequências. Tinha sorte por ele ser um
cavalheiro.
Por que não o conhecera antes? Podia ter vivido
uma verdadeira temporada em Londres, e eles se
teriam conhecido apropriadamente. Ele a teria
cortejado, conhecido seu pai, encantado sua
acompanhante. Ela teria se vestido com algo mais
belo que simples vestidos listrados, e o teria
encontrado no parque, nas festas e na ópera, sem o
temor de serem vistos por alguém. Talvez até se
houvessem apaixonado.

Projeto Revisoras
Célia respirou fundo. Não era de lamentar o que
poderia ter sido. A vida era como era, e cabia a ela
tirar melhor proveito possível de todas as situações.
Manteria a promessa de dizer a verdade a Patrice.
Depois seguiria em frente com sua vida.
Infelizmente, sua madrasta não estava em casa,
e Martin já havia retornado. Com John solicitado
para ajudar no preparo do jantar, ela teve de ocupar
o posto de governanta por mais algum tempo.
Haviam terminado a refeição, quando John apareceu
na sala de estudos e murmurou:
— A senhora deseja vê-la. Tome cuidado. A sra.
Watson afirma que ela está bastante nervosa.
Célia suspirou. Se lady Honória estava de mau
humor agora, como ficaria quando soubesse que ela
havia desfilado por Londres mascarada de
governanta?
Apressada, ela se dirigiu aos aposentos da
senhora. A expressão desdenhosa de Sally sugeria
que a srta. Prim estava numa terrível encrenca. Uma
tarde inteira fora de casa devia ter sido demais.
Como era irônico que lady Honória pudesse demiti-la

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agora, justamente quando não tinha mais de fingir
que precisava do emprego.
Lady Honória estava sentada diante da sua
escrivaninha, usando um vestido cor-de-rosa que
era uma explosão de cor contra a escuridão da noite
além da janela. Havia papéis espalhados sobre a
mesa, e Célia surpreendeu-se tentando ler um deles
antes de lembrar que já não precisava mais
garimpar informações sobre sua herança.
— Mandou me chamar, senhora?
Lady Honória a olhou da cabeça aos pés. Célia se
manteve quieta, rezando para que o vestido não
estivesse sujo ou amarrotado. Talvez ainda pudesse
reconquistar as boas graças da senhora. Precisaria
de todos os aliados que pudesse ter.
— Espero que tenha usado outra coisa quando
saiu hoje à tarde. Patrice devia se preocupar mais
com as roupas da própria enteada.
Célia a encarou pálida.
— Então sabia?
— Está vendo, Sally? Eu disse que ela não
tentaria negar.

Projeto Revisoras
E como poderia? Mentir para lady Honória? Seria
o mesmo que tentar enganar lorde Oberon. Ambos
saberiam imediatamente da perfídia.
— Porque fez isso? Diverte-se enganando sua
família?
— Não, senhora — Célia respondeu aturdida.
Havia temido o momento em que seria descoberta,
mas nunca considerara o que poderia dizer nessas
circunstâncias. Não podia revelar a lady Honória que
acreditava que todos ali estivessem conspirando
para roubar sua fortuna.
— Não sabia como seria recebida — ela
improvisou. — Afinal, não fui chamada à cidade
desde a morte do meu pai.
— Então decidiu sair e ver o mundo? Por mais
que admire seu espírito, deploro seus métodos,
mocinha. E deploro também o fato de ter estado
sozinha com meu sobrinho nesses últimos dias.
Não havia motivo para mentir sobre isso.
— Sim, senhora.
— E pare de agir como se fosse uma criada. É
minha bisneta por casamento. Espero que me

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chame de avó, como Patrice.
Sabia que acabaria vomitando, se tentasse.
— Como quiser — Célia respondeu.
— O que acha de Hartley?
Essa era uma pergunta difícil. Qualquer que fosse
a resposta, as consequências seriam desastrosas. Se
dissesse que não gostava dele, lady Honória ficaria
certa de que ela mentia. Se dissesse que o adorava,
ela leria mais na afirmação do que julgava
conveniente.
— Lorde Hartley é um nobre e elegante
cavalheiro.
— Ah, sim! E o tempo hoje é maravilhoso, e
graças a Deus por nosso Regente gozar de boa
saúde. Se quisesse ouvir essas bobagens, eu teria
mandado chamar sua madrasta. Quero saber o que
pensa dele como homem.
Podia sentir o rosto queimando.
— Não devo pensar nesse cavalheiro como
homem, senhora. Se sabe quem sou eu, então
também sabe que sou noiva.
— Já ouvi essa sandice. Quem é ele?

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— Sr. Stanley Arlington, dos Arlington de
Somerset. — Agora ela mudaria de atitude. O pai de
Stanley era um homem respeitado, conhecido em
várias regiões do país. Havia sido magistrado e
possuía propriedades de elevado valor. E conhecia
pessoas no Parlamento.
— Nunca ouvi falar deles — lady Honória
respondeu. — Além do mais, você não pediu minha
permissão para ficar noiva. O compromisso não tem
nenhum valor.
Célia se sentiu subitamente animada. Poderia ser
tão fácil? Só teria de dizer que a bisavó a proibira de
ver Stanley, e o noivado estaria encerrado.
Imediatamente, sua consciência a censurou pelo
pensamento. Havia feito uma escolha, uma opção
que, na época, parecera muito boa. Não podia fazer
nada se agora era de opinião diferente.
— Sou maior de idade, senhora, por mais que
sua neta prefira esquecer tal fato. Posso me casar
com quem quiser sem pedir sua permissão.
— Olhe só para ela, Sally! Tão orgulhosa e altiva!
— Como um pavão, senhora — a ama concordou

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balançando a cabeça, como se desaprovasse a
ousadia da jovem.
Célia teve de morder a língua para engolir uma
resposta ríspida.
— Você mesma me disse, menina, que Hartley
não tem nenhum interesse em Patrice. Por quê? Por
já estar interessado em você?
Quem dera!
— Não ouso adivinhar os sentimentos de lorde
Hartley. Terá de perguntar a ele, senhora.
— Talvez o faça. Ele a amedronta?
Naquele momento, seu único receio era não
conseguir controlar a raiva que crescia no seu peito.
Preferia não demonstrar sua ira no confronto com
lady Honória.
— Não, senhora.
— Ótimo. E eu a amedronto?
Mais uma questão cuja resposta poderia levá-la à
desgraça.
— Sim, senhora.
Lady Honória riu.
— Está vendo, Sally? Célia é uma boa menina.

Projeto Revisoras
Ela sabe o que é melhor para si mesma. Mande
chamar minha neta.
Célia ficou tensa. Por mais que não gostasse de
Patrice, sua madrasta merecia um tratamento mais
digno do que ouvir toda a verdade dos lábios de lady
Honória. Enquanto Sally saía para ir cumprir a
ordem, ela se aproximou da poderosa senhora.
— Por favor, milady, deixe-me explicar a situação
para Patrice.
— Gostaria de ouvir essa explicação. Ela o deseja
para si, sabe?
— Sim, senhora. Mas, como já disse, ele não
corresponde a esse interesse.
— Eu sei. Em que pensava quando foi encontrar
meu sobrinho sozinha, e por várias vezes?
— Não foram encontros secretos, senhora, ou
não os teria descoberto. E Martin sempre esteve
presente, exceto por hoje.
— Uma criança não serve de companhia nesses
casos.
— Já tentou seduzir um homem com alguém
olhando?

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Lady Honória apertou os lábios como se quisesse
conter o riso. Depois balançou a cabeça.
— Pode fazer todas as piadas que quiser, mas o
que o importa é que permiti que essa situação fosse
longe demais. Não devia nem estar morando nesta
casa.
— O que então me expulsaria?
Antes que a mulher pudesse responder, Sally
retornou acompanhada por Patrice, que parecia
estar pronta para sair, a julgar por seu vestido
elegante e pelas plumas que adornavam seus
cabelos. Ela se mostrava dividida entre a frustração
por ter sido chamada em momento tão impróprio e
o medo da avó.
Célia tentava conter o pânico. O que faria, se
lady Honória a expulsasse? O sr. Carstairs poderia
adiantar-lhe algum dinheiro da herança para custear
suas despesas? Teria sua reputação arruinada por
passar algum tempo num hotel?
— Mandou me chamar, avó? — Patrice parecia
surpresa com a presença de Célia.
— Sim, eu mandei. Sua srta. Prim tem uma

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confissão a fazer.
Patrice levou as mãos ao peito e empalideceu.
— Ela desposou lorde Hartley!
Célia piscou.
— Não. Não é isso. — Patrice relaxou, mas Célia
podia sentir que todos olhavam na sua direção. —
Sra. Rider. Patrice. Mãe, eu menti para você. Não
sou a governanta de Martin, a srta. Prim. Sou Célia,
sua enteada.
Patrice franziu a testa.
— Você é?
— Ela é — lady Honória confirmou com firmeza.
— E eu a perdoei por não ter confiado em nós e
ocultado sua real identidade. No entanto, espero que
compreenda que essa farsa pode nos causar um
problema, Patrice, uma situação que espero que
você resolva.
O problema de uma punição adequada, Célia
pensou. Patrice olhou para a avó.
— Espera?
— Sim, espero. Célia é maior de idade. Sabe o
que isso significa, não?

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Patrice pareceu confusa durante um momento.
Depois se animou.
— Certamente! Ela deve se casar!
Célia respirou fundo. Porque lady Honória não
acabava logo com isso?
— Já estou noiva — ela relatou à madrasta.
— Está?
— Ela está — lady Honória interferiu novamente.
— E devemos agir quanto a isso.
— Como expliquei a lady Honória — Célia
interrompeu, vendo o entusiasmo crescente no rosto
da madrasta —, não há nada a ser feito. Pretendo
manter minha palavra.
— Sim, é claro! Mas há muito a ser feito. Temos
de oferecer o almoço de noivado, providenciar o
enxoval, tomar todas as providências para o
casamento. Sei tudo sobre essas coisas!
— Não se incomode. Stanley e eu planeamos um
casamento simples na igreja em Somerset.
— Minha bisneta merece mais que uma igrejinha
no campo. Patrice, quero um début completo.
Célia a encarou. Um début! Ela havia

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enlouquecido?
— Ela precisa de um novo guarda-roupa — lady
Honória decretou. — E quero que ela seja instalada
nos aposentos vizinhos aos seus, Patrice. E, Sally,
faça alguma coisa com aquele cabelo.
— Com prazer, senhora.
— Ei, esperem um momento.
— Não podemos esperar. Não temos tempo para
isso — Patrice declarou com alegria. Depois abraçou
a enteada e, com os olhos cheios de lágrimas, disse:
— Seja bem-vinda ao lar, filha! Mal posso esperar
para apresentá-la à sociedade em grande estilo

Naquela noite, Patrice quase desistiu de sair.


Célia havia saído da escola e estava em casa, pronta
para se casar! Seu entusiasmo era tanto, que mal
conseguia respirar. Não entendia porque Célia havia
fingido ser uma governanta, mas isso não importava
realmente. O que importava era que Célia não
parecia muito agitada. Pelo contrário, ela se
mostrara um pouco distante quando a levara à sala

Projeto Revisoras
de estudos para recolher suas coisas e dar uma boa-
noite Martin.
— Vamos arrumar seu quarto como você quiser
— ela prometeu à enteada ao conduzi-la a seus
novos aposentos. — Aquelas cortinas azuis serão
removidas amanhã mesmo! Tenho certeza de que
poderemos encontrar algo cor-de-rosa em Bond
Street.
— Azul está bem — Célia respondeu.
Que coisa mais tola. Como se a cortina da cama
fosse importante, agora que tinha a enteada com
ela.
Patrice tentou conversar, mas Célia se mostrou
cansada e pediu para se recolher cedo. Sozinha, sua
primeira reação foi chamar a carruagem e sair.
Naturalmente, Patrice se dirigiu ao salão de
madame Zala.
Gostava do lugar. Havia sempre mais homens
que mulheres.
E normalmente as pessoas a tratavam com
gentileza. O ar carregava o entusiasmo de muitas
conversas, e até a fumaça parecia proporcionar

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conforto quando a envolvia.
James Carstairs a levara ali pela primeira vez
quando sua avó insistira em convencê-la a aceitar a
companhia do jovem advogado. Ainda se sentia
fascinada com o som das cartas deslizando sobre a
mesa. Naquela noite, entretanto, não conseguia
colocá-las na ordem certa. E foi assim que ela viu os
últimos centavos da sua mesada desaparecerem.
Quem podia ter inventado aquele jogo idiota? Quem
conseguia reunir as cartas de forma a somar vinte e
um pontos?
— Quer beber alguma coisa, sra. Rider?
A proprietária do estabelecimento estava em pé
ao lado da mesa, tentando tirá-la dali. Patrice sentiu
um instante de revolta. Não era justo! Passara toda
a vida fazendo o que sua avó dizia, usando as
roupas que ela escolhia, flertando com os homens
que ela indicava, vivendo em casas que ela
selecionava. Fora muito além de cumprir seu dever,
e o que obtivera com isso? Sua mãe estava morta
há muito tempo. David estava morto, e Martin não
acreditava na sua devoção. E agora, Célia nem se

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dava ao trabalho de conversar com ela!
E ali estava madame Zala, alta, bem-sucedida,
linda. Ela não precisava se casar por dinheiro. Suas
roupas atestavam riqueza e conforto. Patrice seria
capaz de apostar que a mulher só seguia as próprias
regras. Infelizmente, não tinha mais nada para
apostar.
A mulher serviu uma dose de Madeira num copo
de cristal. Só homens bebiam Madeira, todos sabiam
disso. Patrice levantou uma sobrancelha.
— Posso obter uma taça de champanhe, se
preferir.
Patrice balançou a cabeça.
— Não, obrigada. Suponho que devo ir embora.
Creio ter ficado sem fundos. A menos que queira
adiantar-me um crédito, como fez outras vezes?
Madame Zala sorriu.
— Eu já estaria falida se deixasse os créditos
avançarem sem antes serem saldados. No entanto,
conheço um meio pelo qual pode ganhar algum
dinheiro.
Patrice ergueu os ombros.

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— Uma dama não ganha dinheiro. Ela se casa
com ele.
— Nesse caso, desejo-lhe toda a sorte, sra.
Rider.
— Sra. Rider?
Patrice virou-se e viu um homem ainda jovem,
alto e de ombros largos parado atrás dela. Suas
roupas não acompanhavam os rigores da moda, mas
eram elegantes num sentido clássico. Ele tinha um
rosto alongado e um nariz proeminente que
terminava numa espécie de bulbo achatado. O traço
só aumentava seu charme.
— Já nos conhecemos, senhor?
— Permita-me — pediu a anfitriã. — Sra. Patrice
Rider, quero apresentar o sr. Stanley Arlington. Sr.
Arlington, esta é a sra. Rider.
Ele sorriu.
— Eu soube assim que ouvi seu nome. Em breve
serei seu genro, caso ainda não saiba.
Madame Zala afastou-se, e Patrice franziu a
testa.
— Não, eu não sei de tal coisa. Deve estar me

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confundindo com outra pessoa.
O sorriso desapareceu do rosto do jovem.
— Desculpe-me, mas duvido disso. Já a vi antes,
de longe. Meu pai sempre disse que David Rider se
havia casado com a mais bela mulher de Londres, e
duvido que possa haver duas beldades chamadas
Patrice.
— Ora, muito obrigada! É muita gentileza sua vir
se apresentar, sr. Arlington. Devo entender, então,
que vai se casar com minha Célia?
— Exatamente. — ele confirmou orgulhoso.
Depois piscou. — Mas devo admitir que, se houvesse
conhecido antes a madrasta de Célia, talvez
houvesse desposado outra pessoa.
Ele estava flertando. Que encantador. Patrice
adorava flertar, essa era uma área em que se sentia
confiante.
— E se eu o houvesse visto antes de Célia,
certamente não a estaria desposando — respondeu
com um sorriso radiante.
Stanley a encarou como se houvesse sofrido um
violento golpe na cabeça. Já vira aquela expressão

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antes nos rostos de cavalheiros tímidos demais para
flertar. Por isso sabia que o assustara com sua
resposta ousada.
Patrice sorriu.
— Ora, sr. Arlington, um cavalheiro do seu
charme não pode ter ficado sem palavras por tão
pouco. Estou certa de que podemos conversar mais.
Afinal, somos quase da mesma família!
Ele assentiu e, devagar, recuperou-se.
— Sim, nós somos — disse. Depois olhou em
volta. — Está aqui sozinha? Ou lorde Hartley a
acompanha?
Ela sorriu novamente, batendo as pestanas com
ar sedutora.
— Estou completamente sozinha, sr. Arlington, e
certamente gostaria de ter alguma companhia.
Minha carruagem só virá apanhar-me dentro de uma
hora, e pareço ter esgotado meus fundos.
Ele a segurou pelo braço.
— Tem em mim um criado, senhora. Será um
prazer acompanhá-la até a chegada da sua
carruagem. E meus bolsos estão abertos para você.

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Patrice o encarou. Sabia que ainda não havia
entendido tudo. Célia dissera estar noiva de um
homem de Somerset, não de um apresentável
cavalheiro londrino. O relato do sr. Arlington podia
ter o objetivo de enganá-la. Mas ele tinha um
sorriso adorável, e sua oferta de patrociná-la na
mesa de jogo era a coisa mais gentil que alguém já
fizera por ela. Gostava de homens gentis.
Ela aceitou a oferta.
— Será um prazer para mim, sr. Arlington. Leve-
me onde quiser.

Capítulo VI

Alguém estava atrás da fortuna de Célia. Brandon


não podia chegar a outra conclusão. Visitara o
endereço em Wapping High Street e encontrara
apenas uma sala vazia. Marcas na madeira
revelavam o local onde uma placa fora removida

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recentemente, e outros sinais na fechadura e no
batente sugeriam um possível arrombamento.
Ele conversara com os vizinhos do escritório e
um deles se lembrara vagamente de ter visto
alguém ocupando o espaço durante pouco tempo.
Conseguira obter o nome do proprietário do edifício,
que ficara furioso ao tomar conhecimento de que
alguém havia usado uma das suas salas sem sua
prévia autorização.
Os culpados haviam coberto suas pistas com
esmero, o que indicava que eram mais do que
simples aventureiros. Mas o motivo de tudo isso era
algo que não conseguia compreender. Sem acesso
direto aos fundos, o que alguém poderia ganhar
enganando Célia e levando-a a pensar que estava
destituída? Talvez uma rival desejasse impedi-la de
se casar com Arlington, mas não acreditava que
alguém de Somerset pudesse ter obtido uma folha
timbrada no escritório de Carstairs ou encenado
uma charada elaborada em Londres.
Também não conseguia imaginar de que outras
maneiras Célia ainda poderia ser prejudicada. Os

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Carstairs estavam cientes do incidente e
trabalhavam no sentido de proteger sua fortuna.
Assim, não havia mais nada que pudesse fazer por
ela. Sem notícias, não tinha razão alguma para ir
visitá-la. Devia estar feliz por poder evitar a
tentação com tanta facilidade. Infelizmente, suas
boas intenções ruíam rapidamente.
De um lado, estava inteiramente consciente do
olhar atento de muitas pessoas. Criados o atendiam
enquanto ele cavalgava ou dirigia sua carruagem.
Jardineiros o espiavam por entre os arbustos
enquanto ele caminhava pelo jardim. Dentro de
casa, diversos lacaios e amas pareciam mantê-lo
sob constante vigilância. Seu humor ia se tornando
sombrio, tanto que praticamente rosnou para
Arlington depois de encontrá-lo pela segunda vez na
mesma noite. Depois, fora forçado a pedir
desculpas.
— Não foi nada — Stanley respondeu com seu
invejável bom humor. — Gostaria mesmo de
conversar com você, e agora tenho essa chance.
Depois de tê-lo insultado de maneira irreparável,

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o mínimo que Brandon podia fazer era ouvi-lo.
— De quantos quartos dispõe na sua
propriedade?
Brandon o encarou confuso.
— Muitos. Por quê?
— Bem, por mais que estejamos frequentando os
mesmos lugares, faz sentido unirmos nossas forças,
eu acho, de maneira mais efetiva. Nas atuais
circunstâncias, tenho de confiar na sorte para
encontrá-lo todas as noites. Se me hospedasse na
sua casa, tudo seria muito mais fácil.
— Não tinha planos de voltar para casa em
breve?
— Sim, mas as circunstâncias mudaram.
— Que circunstâncias são essas?
Stanley chegou um pouco mais perto.
— Não tenho liberdade para revelar, mas afirmo
que vai ficar surpreso quando souber.
Arlington poderia fazer parte do plano? Ele
aparecera em Londres pouco depois da chegada de
Célia. Ou teria vindo antes dela? E com que
propósitos? Ele se gabava da sorte de casar com

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uma herdeira. E aquele rosto sorridente nunca
escondia as emoções que fervilhavam na sua alma.
Não. Ele devia ter em mente alguma outra surpresa.
— Não se cansa de surpreender-me, sr.
Arlington? De qualquer maneira, duvido que goste
da minha propriedade. Ela fica afastada da cidade, e
há meu tio a se considerar.
Stanley torceu o nariz.
— Pelo que vi até agora, o homem é realmente
obstinado, se me permite dizer. Mas nós dois
podemos trabalhar juntos para despistá-lo. Quando
unirmos nossas cabeças no mesmo pensamento,
certamente prevaleceremos. O que me diz?
Seu tio jantaria o pobre Stanley com molho de
ameixas. Brandon quase riu imaginando a cena. A
ideia de que ele e Stanley poderiam enganar a rede
de espiões que o cercava, entretanto, tinha seu
mérito. Seu tio poderia até passar a ver em Stanley
uma espécie de guarda-costas. Saber como Célia
estava passando e talvez até vê-la novamente não
acrescentava nada a sua inclinação de aceitar a
oferta.

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— Tenha suas coisas prontas ao amanhecer, sr.
Arlington. Terei uma suíte preparada para recebê-lo.

Lady Honória sorriu ao ver James Carstairs


cumprimentá-la com uma daquelas graciosas
mesuras. O rapaz era realmente bonito, e ela
sempre havia preferido lidar com a beleza. A
vaidade a acompanhava frequentemente, e essa era
uma característica útil e fácil de manipular. Além do
mais, gostava de ambientes agradáveis.
Ele se adiantou para colocar sobre a mesa os
últimos balancetes, espalhando as folhas como se
fossem pratos de um requintado e saboroso
banquete.
— Como pode ver — começou com satisfação
evidente —, tudo prossegue de acordo com o plano.
Ela examinou os números, fez rápidos cálculos
mentais e assentiu.
— Muito bem, James. E minha bisneta?
— Ainda espera pela confirmação.
Seria má vontade que identificava na voz dele?

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Ou crítica?
— Não aprova a maneira como estou lidando com
a garota?
— Não tenho a presunção de criticá-la, senhora.
Só penso que ela parece ser muito. voluntariosa.
— E isso o perturba.
Ele se sentou na cadeira diante da mesa e apoiou
os cotovelos nela, como se precisasse garantir total
privacidade, embora não houvesse ninguém na
suíte. Até mesmo Sally fora dispensada durante a
conversa.
— E se ela suspeitar que estamos manipulando a
fortuna deixada por seu pai?
— E porque ela suspeitaria? Conheço o homem
que se fez passar por você. Ele vai guardar segredo.
— Concordo que tínhamos nosso sucesso
garantido, mas isso foi antes do seu sobrinho
envolver-se na história.
— Uma lástima, certamente. No entanto, você
conseguiu remediar a situação quando requisitou
documentos que confirmassem a identidade da
moça.

Projeto Revisoras
— Essa é apenas uma medida temporária,
milady. Dentro de algum tempo ela estará nos
pressionando, pedindo uma solução para o caso.
Em momentos como esse, o rapaz fazia-a pensar
num potro assustado. Qual seria sua reação se
soubesse que a ruína financeira era apenas parte do
seu plano?
— Manterei minha bisneta tão ocupada que ela
nem pensará na herança — disse.
— Então, decidiu realmente casá-la com o
marquês?
A voz do rapaz ganhara um tom estridente, e
seus olhos buscavam os dela como se quisessem
desvendar um segredo. Tentando ser mais rápido
que ela? Não podia permitir.
— Talvez — ela disse.
James humedeceu os lábios.
— Então, desistiu de casá-lo com a sra. Rider?
Ah, então era esse seu jogo. O homem estava
interessado na sua neta. Pena que ainda não
estivesse disposta a libertar Patrice para viver a
própria vida.

Projeto Revisoras
— Ele não se mostrou interessado nessa
possibilidade — Lady Honória respondeu cautelosa.
— Mas isso não importa. Decretei o destino desse
homem no momento em que ele nasceu, e a
temporada na Escócia só adiou meus planos. Se
minha bisneta não sabe se comportar como uma
dama exemplar, ela que partilhe desses planos. E
espero que não discuta esse ponto, Carstairs.
Ele sorriu.
— Eu jamais tentaria discutir qualquer ponto com
minha senhora.
Ela correspondeu ao sorriso com a mesma
sinceridade.

— onde vai esta noite? — Arlington perguntou,


debruçando-se sobre o corrimão da escada da
mansão Pellidore.
Edmund, que, naquele momento terminava de
vestir a casaca, olhou para Brandon.
— Não sei o que deu em você para trazer esse
idiota à nossa casa, mas mantenha-o longe de mim

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— ele murmurou.
Brandon conteve um sorriso.
— Certamente, meu tio. — O marquês se virou
para o hóspede. — Fomos convidados para um
evento, Arlington. Venha connosco.
Já estavam na porta quando Edmund perguntou
para onde se dirigiam. Brandon sabia que aquela era
uma vitória breve. Seu tio havia aperfeiçoado a arte
de segui-lo.
Stanley falava sem parar enquanto a carruagem
os levava para a cidade. Brandon respondia na
medida do necessário. Era surpreendente como as
coisas estavam dando certo. Uma vez ultrapassada
a etapa das frases feitas e superado o preconceito
contra o jeito rural, era possível perceber que
Arlington possuía uma certa coerência, afinal. O
homem era versado em diversos assuntos,
cavalgava como o vento e sabia jogar cartas como
se vivesse delas. E também apreciava a beleza,
fosse na arquitetura, na arte ou na forma feminina.
Muitas noites o encontravam pelo menos durante
algum tempo na companhia de Stanley, embora ele

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também gostasse de sair sozinho ocasionalmente.
Brandon não sabia o que ele estava tramando ou o
que fazia naquelas ocasiões em que saía sozinho,
mas o alívio proporcionado por sua ausência era
menor do que havia antecipado alguns dias antes.
Mesmo em companhia de Stanley, seus
pensamentos ainda flutuavam buscando Célia.
Diferentemente do que Brandon havia esperado,
Stanley não demonstrara interesse em ir visitar sua
noiva. Brandon não podia insistir nisso. Mas queria
vê-la, nem que fosse apenas mais uma vez. Se pelo
menos fosse Oberon, como ela o chamava, capaz de
comandar a natureza e ir e vir como quisesse. Se
pudesse pelo menos confiar em alguém! Por
necessidade, nunca desenvolvera amizades
próximas. Agora não tinha ninguém a quem pudesse
confiar seus sentimentos, exceto Edmund. E
considerando o comportamento recente do tio, não
tinha nenhum interesse em confiar nele.
— Estou enganado, ou nos dirigimos ao baile dos
Borin? — perguntou Stanley.
— Trata-se de um evento a que não podemos

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faltar — Brandon explicou. — Nossas famílias se
conhecem há anos. — Ele decidiu não mencionar
que o visconde não era uma das suas companhias
preferidas. Por sorte o local estava cheio, e ele só
teve de cumprimentar os anfitriões antes de
misturar-se aos outros convidados.
Stanley continuava falando, como sempre,
enquanto Brandon se movia procurando por um
lugar de onde pudesse observar tudo sem interagir.
Próximo da parede dos fundos do salão, um ponto
privilegiado para quem desejava observar todo o
ambiente, Brandon acomodou-se pronto para
suportar uma noite longa e aborrecida. A seu lado,
Stanley se abanava com a mão e resfolegava.
— Não sei porque essas damas lotam seus salões
de baile. As velas estão derretendo, como eu!
— Sinta-se livre para caminhar um pouco, se
preferir — Brandon anunciou com os olhos fixos na
multidão.
Lady Borin havia alugado o espaço para a
realização do seu baile e adotara um tema egípcio.
Toda a decoração fora feita de acordo com esse

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tema, e elevadas palmeiras debruçavam seus galhos
frondosos sobre a pista de dança. Um quarteto de
cordas tocava sobre um palco cercado por painéis
com desenhos de hieróglifos, e os anfitriões já se
moviam para começar a primeira dança. Em breve
teria de cumprir seu dever. Senão, porque convidar
homens solteiros?
— Está procurando uma parceira interessante? —
Stanley indagou. — Sugiro a srta. Dalrymple. Ela
parece estar em boa forma.
— Boa forma? Meu caro Arlington, isso é pouco
para mim!
Stanley riu.
— Oh, muito bem. Que tal a srta. Emily Turner,
então? Porte elegante, lábios carnudos e silhueta
perfeita, se me permite comentar.
Morena e esguia, a srta. Turner era dona de uma
bela figura, realmente. O vestido verde de cintura
alta e decote profundo atraía muitos olhares para o
corpo de contornos perfeitos.
— Excelente escolha. Obrigado pela sugestão,
Arlington.

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— É sempre um prazer servir, milorde. Acho que
vou tentar a sorte com a srta. Mitchell. — Ele
apontou para uma loura escultural.
— Homem ousado — Brandon respondeu
tentando demonstrar orgulho.
— Sei que ela está um pouco além do que devo
buscar. Normalmente, procuro nunca me aproximar
de uma dama com muitas posses ou muita beleza,
mas com meu tempo limitado, acho que vale a pena
tentar.
— Tempo? Vai partir em breve, então?
— Oh, nem tanto. Os papéis ainda não chegaram
de Somerset, e por isso Célia ainda tem de esperar
um pouco mais. Deseje-me sorte, meu velho. Vou
abordar minha dama antes do início da próxima
dança.
Sozinho, Brandon franziu a testa. Agora que
pensava no assunto, pelo menos uma quinzena se
passara desde se despedira de Célia com aquele
beijo. Os papéis solicitados pelo advogado já deviam
ter chegado de Somerset. Porque ela ainda
continuava em Londres?

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A música chegou ao fim. Tinha de se mexer e
escolher uma parceira. A srta. Turner parecia ser tão
interessante e disputada quanto a beldade escolhida
por Stanley, porque o lugar onde ela se encontrava
estava repleto de cavalheiros. Mesmo assim, poria a
própria sorte à prova.
O pequeno grupo era composto por mais gente
do que imaginara a princípio. Só o uso bem
calculado de um ombro deu a ele o privilégio de
ocupar um lugar na porção mais interna do círculo.
O prazer da vitória foi breve. A primeira visão
registada por seus olhos foi a da sua prima.
— Cavalheiros, cavalheiros — ela suplicava
agitada. — Estamos muito emocionadas com toda
essa atenção. Vão nos fazer corar.
Desde quando Patrice ajudava outras
debutantes? Ele olhou em volta e não viu a srta.
Turner. Toda essa comoção por sua prima? Era
estranho.
— Aceitarei a oferta do sr. Darby — ela decidiu,
segurando o braço de um cavalheiro louro e de pele
muito clara —, e Célia aceitará.

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— Célia? — Brandon falou sem pensar.
Todas as cabeças se voltaram para ele.
— Lorde Hartley — Patrice o reconheceu confusa.
Ao lado da madrasta, Célia o viu olhando para a
prima como se estivesse hipnotizado. Mal podia
acreditar que ele também estava ali. Em cada um
dos bailes que frequentara com Patrice, em todos
eles, tivera a vã esperança de encontrá-lo. Vira
Stanley diversas vezes, mas o único homem que
desejava encontrar parecia ter desaparecido.
Agora ele se adiantava ansioso para tirar proveito
da surpresa de Patrice.
— Oh, sim, eu ficaria honrada em ser sua
parceira, milorde. — Ela estendeu as mãos. Todos
poderiam ouvir as batidas do seu coração? Esperava
que Brandon pudesse ouvi-las e que elas o
emocionassem, nem que essa emoção fosse apenas
piedade. Não suportaria ficar ali exposta nem por
mais um minuto.
Os olhos do marquês brilharam, e ele levantou
uma sobrancelha. Estaria surpreso por encontrá-la
ali? Porque não se movia, não dizia alguma coisa?

Projeto Revisoras
Logo Patrice recuperaria a compostura, e então ela
estaria perdida.
De repente ele se curvou.
— A honra é toda minha, srta. Rider. —
Levantando-se, ofereceu o braço, e quase explodiu
de alívio e alegria quando ela o aceitou.
Ele a levou para a filha de dançarinos e ocupou
seu lugar diante dela. Seu rosto estava tenso,
rígido. O que quer que estivesse pensando, não
devia ser um pensamento muito agradável.
Felizmente, aquela era uma dança que ela conhecia.
Muitos movimentos haviam sido criados desde
que Célia deixara a escola, e temia embaraçar seu
parceiro. Também não estava muito segura daquela
artística pilha de cachos que Sally fizera na sua
cabeça, e ainda havia o insípido vestido cor-de-rosa
em que lady Honória insistira com veemência, uma
confecção com camadas e camadas de babados que
fazia-a sentir-se uma rosa desabrochando.
Começava a se sentir grata por nunca ter realmente
enfrentado seu début em Londres.
O movimento da dança exigia que se

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encontrassem no espaço entre as fileiras e girassem
com o ombro tocando o do parceiro, embora o dela
chegasse apenas na metade do peito de Brandon.
— Continua olhando para mim com esse ar
chocado. Qual é o problema? — ela murmurou. —
Estou tão horrível assim?
— Pelo contrário. Está mais linda do que nunca.
Estou apenas surpreso por encontrá-la aqui.
Eles se separaram para prosseguir na dança,
percorrendo todas as fileiras num vai e vem entre os
outros dançarinos. Célia se sentia desanimada.
Havia esperado que ele aprovasse as mudanças
quando a encontrasse, especialmente porque, com
toda sinceridade, não pudera opinar ou emitir sua
opinião sobre o assunto. Mas, no fundo, sua maior
esperança era de que ele odiasse tanto a nova Célia
que ordenasse a lady Honória e Patrice que a
pusessem novamente como era antes.
Brandon e ela se encontraram e repetiram os
movimentos.
— Pensei que pretendesse receber sua fortuna e
voltar a Somerset — ele comentou enquanto

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giravam com os ombros se tocando.
— Era o que eu tinha em mente, mas Patrice e
lady Honória tinham outras ideias. Você me
convenceu a confessar, lembra?
Ele assentiu. Continuaram dançando, mas o
marquês não disse mais nada. Era evidente que se
arrependia do que acontecera entre eles e se sentia
constrangido por sua presença. Era muito provável
que se inclinasse e desaparecesse ao final da
música. Era mais provável ainda que nem a
houvesse tirado para dançar, se não o houvesse
obrigado a isso com sua ousadia.
Assim que a música chegou ao fim, ela se
preparou para a amarga despedida. Mas, para sua
surpresa, Brandon segurou sua mão e colocou-a
sobre seu braço.
— Vamos caminhar um pouco, srta. Rider.
Não gostava do tom autoritário, mas gostaria
ainda menos de dizer adeus a Brandon. Por isso
deixou que ele a conduzisse para fora da pista.
Mas um passeio privado seria impossível com
todas aquelas pessoas andando pelo salão. Brandon

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resmungou alguma coisa que parecia uma praga,
uma maldição. Segurando sua mão, ele a conduziu
para a porta.
Seu tio os interceptou.
— Ora, ora, meu rapaz, não pode estar pensando
em manter só para si a mais bela do baile.
Brandon parecia furioso.
— Imaginava que houvesse ido buscar outros
entretenimentos para esta noite, meu tio.
Lorde Pellidore sorriu.
— E desapontar lady Borin? De maneira
nenhuma. Depois notei a presença da srta. Rider e
tomei a liberdade de pedi-la a sua prima para a
próxima dança. Devemos nos conhecer melhor.
E agora, o que ela devia fazer? Não poderia
aceitar a oferta do cavalheiro sem correr o risco de
ofender Brandon, e também não poderia insistir em
permanecer com o marquês sem dar a impressão de
que tinha ideias de propriedade com relação a ele.
Como se entendesse sua delicada posição, Brandon
a soltou e curvou-se num cumprimento cortês.
— noutra oportunidade, srta. Rider — ele disse.

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— Certamente, lorde Hartley — ela respondeu,
transferindo a mão enluvada para o braço do
cavalheiro mais velho.
Lorde Pellidore a conduziu de volta à pista.
— Você está linda esta noite — lorde Pellidore
comentou quando começaram a dançar.
Ela sorriu de maneira a demonstrar gratidão pelo
elogio.
— Li no jornal que está sendo apresentada à
Corte.
— Lady Honória insistiu nisso.
— Não gosta da atenção, então.
— De certo que não! Houve um tempo em que
sonhei viver a Temporada, mas agora compreendo
que não perdi muito.
— Quer dizer que não vai integrar a fileira das
jovens que buscam casamentos?
Que maneira revoltante de expressar-se!
— Não, milorde. Já tenho um noivo.
— Oh, sim, o sr. Arlington. Ele parece estar muito
próximo do meu sobrinho.
— De fato? É estranho.

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— Sim, muito. Mais estranho ainda que nem
tente vê-la ou saber sobre você.
Seria uma censura?
— O sr. Arlington apenas procura tirar proveito
máximo dos seus últimos dias em Londres, e eu
acompanho minha madrasta enquanto espero para
receber minha fortuna. — Bem, pelo menos
conseguira chegar bem perto do propósito da sua
presença ali. — Ah, sim. É uma pena que a
confirmação demore tanto a chegar. Suspeito de
que ainda tenha de permanecer aqui durante algum
tempo.
— Espero que não, milorde!
A veemência o impressionou, porque ele ergueu
uma sobrancelha.
— Deseja voltar a Somerset?
— Asseguro-lhe que estou ansiosa por isso,
senhor.
— Talvez eu consiga ajudá-la.
— Aprecio qualquer ajuda que possa receber.
A dança chegou ao fim, e ele se despediu com
um sorriso quase paternal.

Projeto Revisoras
— Lembre-se, srta. Rider, que deve procurar-me
antes de qualquer outro, caso precise de ajuda.
Cuidarei para que todas as suas dificuldades sejam
resolvidas.
— Obrigada — ela respondeu, mesmo sem
entender tanta insistência. Lorde Pellidore tinha
menos razões que Brandon para ajudá-la. O que
estaria motivando tanta generosidade?
Lorde Pellidore a levou de volta para perto de
Patrice e despediu-se com uma mesura. Patrice
arregalou os olhos.
— O que ele queria? — perguntou ao vê-lo
afastar-se.
— Apenas oferecer sua ajuda para confirmar meu
direito à herança.
Patrice franziu a testa.
— Ele ofereceu ajuda? Nunca soube da sua
gentileza. E notei que ele foi bastante insistente
quando a tirou para dançar. Pensei que quisesse
censurá-la por ter dançado com meu primo.
— Porque me censurar? Só dancei com ele uma
vez.

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— Sim, tem razão. Tolice minha. Lorde Pellidore
tem mais motivos para estar zangado com a srta.
Turner.
— Por quê?
Patrice apontou para a pista.
— Lorde Hartley dança com ela desde que a
deixou em companhia do tio. Agora eles dançam
uma valsa.
Célia olhou para o casal e não conseguiu conter
uma onda de ressentimento. Brandon dançava com
uma bela morena que o fitava com ar de adoração,
uma mulher alta e curvilínea que compunha com ele
um belo par. Ela suspirou.
— Você o quer tanto assim? — indagou Patrice.
Ela desviou o olhar do marquês com grande
dificuldade. O rosto da sua madrasta denotava
preocupação, e o sentimento parecia ser sincero.
— Suponho que sim.
Patrice assentiu.
— Bem, não desista. Não perca a esperança. Meu
primo é um homem difícil de prever. Talvez ele
ainda se aproxime de você. E algo me diz que a

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srta. Turner não estará ao lado dele no final da
Temporada.

Brandon suportou duas danças com a adorável


srta. Turner, embora mal se lembrasse delas. Logo
depois, ele localizou Stanley.
— Se quer voltar para casa comigo, Arlington,
terá de partir agora.
— Certamente — Stanley respondeu.
Os dois se despediram dos anfitriões e partiram.
— A srta. Turner o aborreceu? — Stanley
perguntou quando se acomodou na carruagem.
Brandon mantinha os olhos fixos na escuridão
além da janela.
— A dama é adorável. Meu humor é que não
estava de acordo.
— Lamento. Eu estava me saindo muito bem com
a srta. Dalrymple. No entanto, admito que ela não
chega aos pés de uma certa outra dama nesta
adorável capital.
— Pena que não o tenha visto dançando com tal

Projeto Revisoras
dama.
— Ela estava ocupada. — Stanley o encarou. —
Foi Célia quem o deixou aborrecido? Não devia se
importar com ela, Hart. A pobrezinha não teve
chance de aprender como as coisas são feitas em
Londres.
— Oh, mas eu acho que ela aprendeu muito bem.
As respostas secas finalmente surtiram o efeito
desejado, e Stanley acomodou-se num canto do
banco e ficou em silêncio. Brandon balançou a
cabeça. Porque se deixava aborrecer por essa
situação? Célia estava na cidade esperando pela
libertação da sua fortuna. Tinha todo o direito de
divertir-se enquanto aguardava.

Infelizmente, parte dele não concordava com


essa teoria. E ele não superou o mau humor até
mesmo mais tarde, quando foi procurar pela tia.
Encontrar Célia no baile havia sido um choque, de
certo, mas sua disposição piorara depois disso. A
questão principal era a fortuna de Célia. Se havia

Projeto Revisoras
algum motivo que a impedisse de tomar posse do
dinheiro, queria saber qual era. Se havia outra razão
pela qual ela ainda estava na cidade, também queria
conhecê-la. Não queria vê-la como a tentação que
Edmund insinuara, mas precisava encontrar uma
explicação para a súbita transformação em bela do
baile.
E havia sido uma transformação. Quando ela
usava aqueles vestidos horríveis, toucas grosseiras e
ocupava seu tempo brincando com Martin, era fácil
deixar de perceber sua beleza. Mas, depois de vê-la
no baile, não conseguira mais superar o impacto
causado por sua exuberante aparência.
Considerando sua beleza e a herança deixada por
seu pai, muitos cavalheiros se disporiam a ignorar
as raízes mais humildes da sua origem familiar.
Célia estava no mercado de casamentos, e a disputa
seria acirrada.
Só restava a ele decidir se poderia ou não
suportar vê-la ligada para sempre a outro homem.
Em parte, nunca acreditara que ela se casaria de
fato com Arlington. Embora houvesse aprendido a

Projeto Revisoras
apreciar o sujeito, não via nele o marido ideal para
Célia. Sabia que ela nunca seria completamente feliz
com o noivo, sem fibra ou determinação, logo ele
deixaria de merecer o respeito da esposa. No
entanto, nada sustentava a hipótese de que ele
poderia fazê-la mais feliz. De fato, levando em conta
a situação em que se encontrava, era mais provável
que o contrário ocorresse. E ele. Bem, jamais
poderia ser feliz imaginando-a nos braços de outro
homem.
Não chegara a nenhuma conclusão, mas decidira
abordar o assunto de forma lógica. Iria encontrá-la e
descobriria porque ela ainda permanecia na cidade.
Célia havia sugerido que Patrice e lady Honória a
forçavam a isso. Não conseguia imaginar a prima
criando competição para si mesma, nem lady
Honória oferecendo-se para patrocinar uma
Temporada, quando vivia contando cada centavo.
Uma conversa calma e razoável esclareceria todas
as dúvidas.
Mas, assim que chegou e olhou para o salão da
casa, Brandon sentiu que a razão o abandonava por

Projeto Revisoras
completo. Todos os cavalheiros de Londres estavam
ali reunidos, disputando o direito de visitá-la.
Célia estava sentada no sofá e era cercada por
eles. Um cavalheiro moreno com cachos artificiais se
debruçava sobre o encosto tentando enxergar
melhor seu decote. Um louro encorpado ocupava o
apoio para pés a seu lado, lendo poesias que fizera
pensando na sua beleza. Um outro mais velho,
careca e barrigudo tivera a ousadia de sentar-se ao
lado dela e segurar sua mão, afagando-a como se
lidasse com um animal de estimação.
Lorde Leslie Petersborough estava a seu lado
segurando um prato de doces, e sua expressão
sugeria que ele considerava a hipótese de passar
por cima do rival para servi-los à jovem tão
disputada. Chas Prestwick permanecia apoiado no
console da lareira, e seus olhos verdes brilhavam
tanto que era de estranhar que ainda não houvesse
um fogo ardendo sobre as pedras frias.
— Junte-se a nós, Hartley meu velho — Arlington
proclamou do outro lado da sala.
Ele estava sentado ao lado de Patrice no banco

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do piano. Com um braço atrás dela, ele usou o outro
para acenar para o recém-chegado, depois virou a
página da partitura musical. Patrice interrompeu a
melodia que produzia com suas mãos delicadas para
receber Brandon com um sorriso.
Célia nem parecia notar sua existência.
Ele se adiantou e cumprimentou Patrice com uma
mesura.
— Prima, vejo que tem muitos admiradores,
como sempre.
— Oh, não, recentemente recebemos um número
muito maior de visitantes. Acho que nem posso
lembrar os nomes de todos.
— Nem Célia, imagino — Stanley opinou.
Brandon surpreendeu-se com a nota orgulhosa na
voz dele. — Ela é a jovem mais popular na cidade,
depois da sra. Rider, é claro.
Patrice sorriu.
A sala parecia cada vez menor.
— Na verdade, vim para visitar lady Honória. Se
me dão licença.
— Lady Honória? Mas você nunca visita minha

Projeto Revisoras
avó, a menos que seja chamado!
— Mais um motivo para cumprir meu dever. Com
licença. — Ele se virou e saiu. Se Célia notou, ele
nem queria saber.
Sally o recebeu nos aposentos de lady Honória
sem fazer perguntas. E a velha senhora parecia feliz
com sua presença inesperada. Ela pediu uma
cadeira ao lado da cama e o convidou a sentar-se.
Lady Honória perguntou por Edmund e outros
conhecidos, lamentou a recente posição do
Parlamento sobre a ajuda aos pobres e o preveniu
contra investir no carvão. Brandon continuava
pensando na cena que testemunhara no salão. Célia
estava feliz no seu novo papel? Gostava de ser alvo
de tantas atenções? Sentia falta dos encontros
secretos no jardim e na sua carruagem? Ele sentia
muita falta.
— Suponho que tenha visto minha neta e minha
bisneta.
— Sim, e todos os visitantes.
— Ah, sim. Ouvi dizer que estamos nos tornando
o lar dos cavalheiros indigentes. E também soube

Projeto Revisoras
que nenhum deles tem grandes perspectivas.
— O filho de lorde Hastings é um excelente
partido.
— Petersborough? Para Patrice ou Célia?
Ele engoliu em seco. Pretendia dizer que para
qualquer uma delas, mas a resposta foi:
— Patrice.
Lady Honória torceu o nariz.
— Ah, mas ele ainda tem de esperar por seu
título, e quem sabe quanto tempo aquele pai ainda
vai viver? Prefiro que elas se casem com homens
que já tenham seus títulos. O que acha desse tal
Arlington?
— Leal como um ## cães de caça/pessoa que
procura tramar a vida de alguém<< sabujo.
— E igualmente brilhante, imagino. De que
tamanho é sua propriedade?
— Não falamos sobre isso. De acordo com o que
disse a srta. Rider, é uma das maiores da região. O
pai dele espera casá-lo com uma senhorita de
grande dote.
— O que exclui Patrice. E não consigo nem

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imaginá-lo com Célia.
— Porque não?
— Ela é determinada, voluntariosa,
temperamental. Precisa de alguém com a mesma
intensidade de espírito e temperamento. O sr.
Arlington tem tanta fibra quanto um travesseiro.
Brandon conteve o riso.
— Talvez ele tenha outros pontos fortes. Ocultos.
— Sim, talvez. Infelizmente, creio que Patrice
tem outras ideias.
— Como assim?
Lady Honória suspirou.
— Minha neta tem um interesse descomunal por
dinheiro. Temo que ela procure aliar Célia a alguém
que prometa sustentá-la, talvez provê-la com uma
generosa mesada.
Ela estava certa. Brandon testemunhara tal
obsessão e ganância, e também sabia que alguns
homens faziam quaisquer promessas para
desposarem a herdeira da fabulosa fortuna Rider.
Carstairs poderia preservar o valor principal, mas,
por lei, os rendimentos seriam administrados pelo

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marido. E essa já representaria uma soma muito
valiosa.
— Talvez eu deva discutir esse assunto com
minha prima. Recentemente fui informado de que os
rendimentos que ela recebe são suficientes para
suas despesas, mas ela continua exigindo dinheiro
extraído da propriedade.
Lady Honória balançou a cabeça.
— Ela gasta tudo que recebe em tolices, sem
dúvida. É inútil conversar com Patrice.
— Sei que exerce grande influência sobre sua
neta. Talvez possa convencê-la a administrar melhor
o próprio dinheiro e encontrar outro pretendente
para a sita. Rider.
— Lamento, meu caro Hartley, mas, se não
aprova a escolha de Patrice para a enteada, terá de
dizer isso a ela pessoalmente.
— Talvez o faça — ele respondeu. — E agora, se
me der licença, devo me retirar. Já estendi demais
minha estadia na sua casa.

Projeto Revisoras
Célia não sabia se queria rir ou chorar. A notícia
sobre sua fortuna devia ter se espalhado, porque
todos os homens de Londres queriam sua mão. O
perfume de todas as flores que recebera provocava
coriza. Se comesse mais um doce ou bom-bom, não
caberia mais nos vestidos. E se tivesse de ouvir
mais um soneto rimando Célia com Ofélia, queimaria
todas as cópias de Hamlet.
Martin era o único que a entendia. Odiava não
poder mais contar com a companhia da irmã, exceto
para a refeição matinal, e enquanto a verdadeira
srta. Prim não atendia ao chamado urgente de
Patrice, o menino passava seus dias em companhia
de John ou de uma das criadas. Até Sally fora
convocada a acompanhá-lo. Sentia pelo irmão, mas
não conseguia se livrar dos chamados deveres
sociais.
A madrasta não a ajudava em nada. Metade dos
seus pretendentes aproveitavam para elogiá-la,
também, como se tentassem obter a simpatia de
Célia por meio dela. Patrice acreditava nos elogios e
se regozijava com eles. Quando Célia reclamava, ela

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dizia apenas: "Mas isso é a Corte!", e recusava-se a
mandar embora um único pretendente que fosse.
Célia estava se cansando de repetir que não
precisava de nenhuma corte.
Havia esperado obter ajuda pelo menos de
Stanley, mas ele parecia pensar que sua
popularidade o engrandecia de alguma maneira.
— Onze visitantes numa hora. Espere só até meu
pai saber disso!
E ele também passava todo o tempo adulando
Patrice, como se precisasse obter sua permissão
para desposar Célia. Se não estivesse na casa de
lady Honória, já teria expulsado todos aqueles
homens há muito tempo, e Stanley teria ido com
eles.
Sua disposição se renovara por um instante
quando vira Brandon. Talvez ele não a odiasse tanto
quanto imaginara na noite do baile. Mas ele se
limitara a cumprimentar Patrice e, depois de trocar
algumas palavras com ela, deixara o salão.
Obviamente, seu interesse maior havia sido o
problema com a herança, não sua pessoa. Queria

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chorar, mas temia que o Sr. Summers considerasse
suas lágrimas um sinal de emoção provocada por
seus poemas.
Célia se sentia irritada e cansada quando
Brandon reapareceu no salão. Tentou ouvir o que
lorde Petersborough dizia, mas não podia deixar de
notar que Brandon falava com um dos seus
pretendentes. De fato, enquanto ele ia contornando
a sala, todos encontravam um ou outro motivo para
partir. Lorde Petersborough era interrompido
frequentemente por alguém que se despedia, até
que, finalmente, apenas o sr. Prestwick, lorde
Petersborough, Stanley e Brandon restassem no
recinto.
— Que maravilha! — Petersborough exclamou
sorrindo. — Hart, meu velho, estou lhe devendo um
favor.
— Na verdade, é ele quem nos deve um —
Prestwick corrigiu, batendo no ombro do jovem
lorde. — Vamos, Lês. Existem pastos mais verdes lá
fora.
— Nunca! — ele reagiu. Mas o toque da mão do

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amigo exerceu pressão maior, e ele se levantou
apressado para encarar Brandon. — Então é isso! Eu
devia ter imaginado. Sempre um pretendente,
nunca um marido. Adeus, srta. Rider.
Ela desejou bom-dia aos dois cavalheiros e
inclinou a cabeça para fitar Brandon como lorde
Petersborough havia feito.
— Mágica impressionante, lorde Oberon. Como
sempre. Só me surpreendo por não ter feito Puck
aqui agir no seu nome.
— O que significa isso? — Stanley perguntou
intrigado.
— Uma alusão literária — Brandon explicou.
Dessa vez, além de Stanley, Patrice também o
encarava com ar confuso.
— Não tem importância — Célia acrescentou. —
Estava apenas tentando agradecer lorde Hartley por
ter me resgatado mais uma vez.
Seu rosto ficou tenso.
— Estou certo de que me dá muito crédito, srta.
Rider. Já é tarde. Seus admiradores devem ter
percebido que precisavam de algo mais nutritivo do

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que suas palavras generosas.
— Talvez.
Patrice olhou de um para o outro.
— O que está acontecendo aqui?
— Nada — Célia respondeu, olhando para
Brandon com um misto de censura e ressentimento.
— Parece que sou menos útil do que imaginava a
srta. Rider — ele disse. — Já estou de saída.
Arlington, quer vir comigo?
Célia viu o noivo pedir licença e despedir-se para
acompanhar o marquês.
— Sra. Rider, saiba que sou seu eterno servo.
Boa tarde, Célia.
Ela balançou a cabeça enquanto os dois se
dirigiam à porta. Stanley parecia feliz e satisfeito,
mas Brandon dava a impressão de carregar sobre os
ombros o peso do mundo. Estava perdendo os dois,
e não tinha ideia de como reverter tal situação.
Patrice também os observava com a testa
franzida. Brandon havia estado ali, no salão onde se
dava a corte a Célia, mas era como se nem
percebesse tal coisa. Se sua intenção era conquistar

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a simpatia da sua enteada, ele estava fazendo tudo
errado, e Célia não ajudava em nada. Mas ela era
noiva de Stanley. Ao mesmo tempo, Stanley era tão
generoso com ela que fazia seu coração cantar.
Tudo era muito confuso.
Ela devia ser a mãe ali. No entanto, como mal se
lembrava da própria mãe, não tinha referências
sobre como deveria proceder. As madrastas nos
livros eram sempre criaturas horríveis, e não queria
ser uma delas. Além do mais, não se sentia com
idade suficiente para arranjar o casamento de Célia.
Talvez lady Honória pudesse cuidar disso. Sua avó
era firme, determinada, segura. E adorava lidar com
papéis, ou não passaria tanto tempo cercada por
eles. Patrice se sentia feliz por não ter de fazer mais
do que assinar um outro contrato de investimento
trazido por James Carstairs.
Mas sabia como fazer a corte. Era boa no
convívio social. Gostava de ir a festas e flertar.
Conhecia muitas maneiras de levar um cavalheiro a
pedir a mão de uma dama. Encontraria um meio de
casar a enteada.

Projeto Revisoras
Se pelo menos conseguisse decidir qual seria o
melhor noivo!

Capítulo VII

Assim que Brandon e Stanley passaram pela


porta, Célia decidiu que já havia suportado demais.
Devia ter detido essa situação há muito tempo,
desde o início, mas, a bem da verdade, sentira uma
certa empolgação com o assédio inesperado. Agora
que sabia que lorde Hartley não estaria entre os
admirados, só queria um pouco de paz. Sentia falta
de Martin. Quando anunciou sua decisão a lady
Honória naquela mesma noite, a mulher se opôs
com veemência.
— Não pode simplesmente se esconder. — Seu
pai não teria desejado tal coisa.
— Meu pai nunca quis que eu viesse a Londres
para uma Temporada.

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— Não é verdade. Nunca parou para pensar
porque seu pai se casou com Patrice?
— Por sua beleza, suponho?
Patrice sorriu para a enteada.
— Beleza foi apenas um complemento — disse
lady Honória. — O que realmente contou foram suas
ligações sociais. Seu pai queria os filhos
frequentando as mais altas camadas da sociedade.
Se voltar a Somerset e desposar o sr. Arlington,
jamais poderá realizar seu sonho.
— Gosto do sr. Arlington — Patrice declarou
séria.
— Sim, querida — lady Honória concordou com
sarcasmo —, mas Célia pode se sair muito melhor.
— Ela olhou para a bisneta. — Pode romper esse
noivado. Não seria a primeira.
— Dei minha palavra, senhora.
Mais tarde, ela recusou o convite da madrasta
para ir ao teatro. Preferia passar o que restava da
noite em companhia de Martin. Como sempre, o
tempo ao lado do irmão a ajudou a focalizar o que
era realmente importante. Fora a Londres com uma

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missão, encontrar sua fortuna. Era hora de retomá-
la.

Na manhã seguinte, ela interrogou Patrice sobre


o assunto.
— Finanças não são meu forte. O assunto é
complexo, querida. Melhor deixá-lo a cargo de quem
o conhece bem.
— Certamente. Vamos à cidade encontrar o sr.
Carstairs.
— Não se incomode com isso, Célia. O jovem
Carstairs vem visitar minha avó quase todos os dias.
Só precisamos encontrá-lo antes que ele suba à
suíte de lady Honória.
E foi o que Célia fez. Mas quando o conduziu ao
salão para expressar sua preocupação pela demora
de uma resposta, ele apenas sorriu com aquela
polidez que tanto a enfurecia.
— Entendo que o processo seja lento, srta. Rider.
No entanto, deve compreender que existem outras
questões a considerar. Seu pároco pode estar

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ocupado demais para copiar e enviar os papéis
imediatamente.
— Sei que não é esse o problema, sr. Carstairs.
Minha madrasta e lady Honória comprovam minha
identidade, e já tem também o testemunho de lorde
Hartley. Porque precisa de uma cópia do meu
registo batismal? Ali só verá que uma criança de
nome Célia Rider foi batizada naquela paróquia, mas
nada garantirá que essa criança sou eu.
— A administração de bens alheios é um negócio
complicado, srta. Rider. Não espero que entenda
todas as nuances.
Sua arrogância só a irritou ainda mais.
— Entretanto, eu espero que você as entenda. E
espero que as explique com clareza até que eu
também as entenda.
— Talvez lady Honória possa ser de alguma valia
nessa área. Ela administra a Propriedade Pellidore.
— Meu pai não pagava lady Honória para
administrar sua propriedade. Era você que recebia
esse dinheiro por esse trabalho. E se espera que eu
continue fazendo o mesmo, é bom que aprenda a

Projeto Revisoras
lidar comigo.
Ele franziu a testa.
— Talvez devamos marcar um horário e convidar
o sr. Arlington para a reunião. Tenho certeza de que
ele pode explicar.
— Esqueça o sr. Arlington — Célia explodiu
furiosa. — Sr. Carstairs, já ouvi mentiras, já fui
enganada e manipulada. Ou disponibiliza minha
fortuna, ou me explica porque não posso recebê-la.
Caso contrário, irei procurar outro advogado para
representar meus interesses. Fui clara?
Ele se inclinou.
— Cristalina, srta. Rider. Não trouxe sua pasta
comigo hoje, e preciso dos papéis para lhe dar as
explicações que exige. Pode me receber nesse
mesmo horário, depois de amanhã?
Célia concordou, e ele se inclinou mais uma vez
antes de sair do salão e subir a escada para os
aposentos de lady Honória. Num impulso, ela o
seguiu sem fazer barulho.
A porta da suíte se fechou antes que ela pudesse
alcançá-la. Sally havia sido rápida, certamente. Célia

Projeto Revisoras
não tinha nenhum motivo para interrompê-los e,
mesmo que tivesse, Sally a impediria de entrar de
qualquer maneira. Ela olhou para os dois lados do
corredor e, certificando-se de que estava sozinha,
colou a orelha na porta. Não ouvia nada.
Suspirando, afastou-se da porta. Devia parar de
ver tramas em todas as partes. Mesmo assim, algo
na atitude daquele advogado a incomodava. Ele agia
como se a considerasse tão indefesa e despreparada
quanto Patrice. E se lidava com lady Honória
diariamente, devia saber que algumas mulheres
eram compostas por outro tipo de material mais
resistente. Talvez esse homem estivesse por trás
dos problemas com a fortuna sobre a qual agora ele
se recusava a falar.
Se pelo menos tivesse alguém com quem
pudesse validar suas impressões! Martin era novo
demais, e não queria preocupá-lo. Patrice só ficaria
mais confusa do que já era. Stanley diria que ela via
problemas demais. Lorde Hartley seria sua opção
ideal, infelizmente, recusava-se a levá-lo a crer que
precisava da sua ajuda.

Projeto Revisoras
Brandon tinha certeza de que o baile de
máscaras seria um desastre. A reputação de lady
Brompton era chocante. Poucos a recebiam, e suas
festas, de acordo com os rumores, degeneravam
frequentemente para situações que, mais tarde,
nenhum cavalheiro admitia ter vivido. Não sabia
porque ela o havia convidado. Estava redigindo uma
recusa formal e polida, quando seu tio entrou no
quarto. Ele inclinou a cabeça para ler o convite que
Brandon respondia.
— O que é isso?
— Agora também quer ler minha
correspondência, tio? — Brandon lacrou a nota e
soprou a cera quente.
— Se for necessário. Vim procurá-lo porque ouvi
um rumor inquietante.
— E decidiu partilhá-lo comigo? Que encantador!
— Parece estar de bom humor, hoje. No entanto,
duvido que sua disposição invejável sobreviva ao
que tenho para dizer. A srta. Turner adoeceu e toda

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a família caiu com a mesma enfermidade. Os
médicos não sabem se ela ou a mãe sobreviverão.
— Meu Deus! Tifo?
— Ainda não se sabe ao certo. Os sintomas são
semelhantes aos da cólera.
Brandon balançou a cabeça.
— Isso é lamentável. Devo enviar flores à família.
— Brandon.
— Sim? O que é agora? Ainda tem mais a dizer?
— Sim. Não acha estranho que a única mulher
por quem tenha demonstrado interesse tenha
repentinamente adoecido?
— Não. Trata-se apenas de. sorte. Ou da falta
dela, no meu caso.
— E não vê nenhuma ligação com a srta. Rider?
— Não, porque não existe nenhuma ligação.
— Acha que não? Talvez também não tenha
notado como ela o olhava enquanto você dançava
com a srta, Turner.
Célia o observara? Sentira ciúme? Não vira
nenhuma indicação de tal sentimento no dia
anterior, quando a visitara. A frieza da recepção

Projeto Revisoras
ainda enregelava seu coração.
— O que quer que tenha visto, meu tio, asseguro
que não se relaciona com os sentimentos da srta.
Rider por mim.
— Não? A moça estava verde! Já ouviu a
expressão "se um olhar pudesse matar?"
— Quer me convencer de que um simples olhar
fez adoecer toda uma família? Agora está indo longe
demais, tio.
— Ela o cegou. Inventou essa história de uma
possível fraude envolvendo sua herança para brincar
com seus sentimentos.
— Sentimentos? Sou lorde Heartless, o Senhor
Sem Coração. Não tenho sentimentos.
— Aprendeu a escondê-los, e era um especialista
nessa arte, até essa jovem aparecer. A beleza é
uma arma mais potente do que todos os canhões de
Napoleão juntos. Ela usou seus encantos para atraí-
lo para o papel de protetor. Quando foi astuto o
bastante para solucionar o suposto problema, ela se
tornou mais direta nas suas tentativas de conquistá-
lo. Quando a rejeitou, talvez ela tenha tentado

Projeto Revisoras
eliminar a rival.
— Chega, tio. Continue dizendo esses absurdos,
e vou acreditar que você sucumbiu à maldição da
família.
— Ela pertence ao seu lado materno. Sou da
família do seu pai, caso tenha esquecido. Não sou
nenhum maluco. E afirmo que essa jovem está
tentando pegá-lo numa armadilha. Veja por você
mesmo.
Ele entregou a Brandon uma folha de papel
endereçada ao marquês de Hartley. O lacre de cera
havia sido removido. Brandon aceitou a carta com
um suspiro resignado.
— Está realmente lendo minha correspondência.
Como descemos tanto, meu tio?
— Desceremos ainda mais se aceitar esse pedido.
Intrigado, Brandon leu a missiva:

Querido lorde Hartley,


Tenho algo de suma importância que desejo
partilhar com você e ninguém mais. Soube que
comparecerá ao baile de máscaras de lady

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Brompton. Por favor, encontre-me lá. Estarei
vestida num traje de dominó cujas cores refletem as
dos meus expressivos olhos. Não me desaponte.
Sua em devoção, Célia Rider

— Entende agora? — Edmund insistiu, cruzando


os braços sobre o peito. — Ela planeia envolvê-lo
numa situação comprometedora. Sabe que a pedirá
em casamento, caso tal fato ocorra.
Brandon releu o bilhete.
— Isso é ridículo. Célia Rider não escreveu esta
carta. Não parece com nada que ela tenha feito.
Aposto que ela adoeceria, se tivesse de usar
linguagem tão suplicante. E nunca se referiria aos
próprios olhos como expressivos, porque não é
vaidosa a esse ponto.
Edmund arrancou a nota das mãos dele e a releu.
— Tem certeza?
— Tanto quanto de que está interferindo na
minha vida.
Edmund devolveu o bilhete.
— Gostaria de considerar essa srta. Rider o bom

Projeto Revisoras
anjo que você parece julgá-la. Permita-me
acompanhá-lo ao baile de máscaras de lady
Brompton. Se ela exibir um comportamento
impecável, talvez eu me convença de que cometi um
erro de julgamento.
Era evidente que Edmund queria dar a Célia
corda para o próprio enforcamento. Mas Brandon
tinha outras ideias. Ele deixou a carta de lado.
— Não, tio. Não irei a esse baile. Alguém
continua interferindo na vida da srta. Rider, e assim
interfere também na minha. Compreendo suas
razões para vigiar-me e os motivos dos seus
cuidados, deseja cumprir a promessa que fez a meu
pai. Esse outro ser misterioso deve ter uma
motivação distinta, um motivo de que devemos
suspeitar. E pretendo descobrir quem é ele.
— Ou ela.
— Ou ela — concordou o marquês. — E juro que
porei um fim a essa interferência, mesmo que essa
pessoa seja você.

Projeto Revisoras
Na tarde seguinte, Patrice recebeu Stanley com
um sorriso luminoso. Ao vê-la esperando, ele
também sorriu e adiantou-se para tomar-lhe as
mãos e beijá-las.
— Sra. Rider. O dia passa tão lentamente depois
que deixo esta casa. E mesmo assim, posso jurar
que só parti há algumas poucas horas.
Patrice corou e baixou o olhar.
— É muito gentil, sr. Arlington. Por favor, venha
por aqui.
Ousada, ela reteve a mão do visitante enquanto
o conduzia pela escada. Seu vestido cor-de-rosa
acariciava as pernas de Stanley, e os dedos do
cavalheiro eram longos e finos. Sentia-se sempre
muito segura na sua companhia. Ele era alto, forte,
sólido e estável. Oh, devia realizar seus propósitos o
mais depressa possível!
— Célia saiu — ela contou quando chegaram ao
salão dos fundos da casa, no segundo andar.
O visitante olhou em volta, apreciando a
decoração em tons de amarelo e azul. Ali o
ambiente sugeria maior intimidade do que no salão

Projeto Revisoras
principal. Além do mais, Patrice gostava de amarelo.
— Pena não ter vindo a tempo de encontrá-la —
ele respondeu. — Porque estamos num aposento
distinto daquele que costumamos frequentar?
— Porque queria ter certeza de que não seríamos
interrompidos.
Stanley fitou-a intrigado.
— O que tem a me dizer, sra. Rider?
— Talvez julgue minha atitude ousada e
impertinente, sr. Arlington, mas desejo formular
algumas perguntas.
— Como quiser. Estou à sua disposição.
Ele soava tão sincero, que Patrice não conteve
um sorriso.
— Gostou desse tempo que passou em Londres?
— Sim, gostei muito. E agradeço por ter sido
gentil o bastante para apresentar-me a sociedade
local.
— Então, também apreciou minha companhia?
— Mais do que posso expressar. Mais do que
jamais saberá, senhora.
— Mas é justamente isso — Patrice murmurou,

Projeto Revisoras
erguendo os olhos para fitá-lo de maneira
significativa. — Preciso saber, sr. Arlington. Preciso
saber o que sente por mim.
Ele engoliu em seco.
— Minha cara sra. Rider, eu. eu não sei o que
dizer.
— Então não diga nada. Apenas escute. Minha
enteada e eu iremos ao baile de máscaras de lady
Brompton amanhã à noite.
— Recebi um convite para esse mesmo evento há
algumas horas.
Ela sorriu.
— Eu sei. Foi por minha interferência que seu
nome passou a integrar a lista de convidados.
Conheço essa dama desde que estudamos na
mesma escola secundária. As pessoas comentam
que ela desfruta de companhias duvidosas. Isso já
me importunou muito no passado. No entanto, por
você, estou disposta a passar por cima da minha
prevenção.
— Não quero que se exponha por mim, senhora.
— Enfrentaria qualquer perigo para conhecer seu

Projeto Revisoras
coração, sr. Arlington. Além do mais, estarei em
total segurança enquanto puder contar com a
companhia de um homem forte, alguém em quem
confio. Posso confiar em você, não é, sr. Arlington?
— É claro que sim. Certamente. Sou seu servo
devotado.
— Ótimo, porque conto com sua presença no
baile. Até providenciei uma fantasia de dominó para
ajudá-lo a preparar-se para o baile. — Ela pegou o
pacote sobre a mesa perto da porta e entregou-o ao
visitante. — Terá de encontrar-nos na multidão —
Patrice explicou. — Se tudo acontecer como suponho
que será, terá a oportunidade de acompanhar
apenas uma de nós. Célia e eu estaremos vestidas
de dominós em cores que combinarão com nossos
olhos. Espero que saiba de que cor são os olhos
dela.
— Sim, eu sei. Célia tem olhos de uma cor única,
uma mistura de cinza, verde e azul.
— Shhh. Agora quero ter certeza de que saberá
distinguir os meus. — Ela se colocou diante dele,
respirou fundo e ergueu-se na ponta dos pés. Sem

Projeto Revisoras
dizer nada, fitou-o nos olhos por alguns segundos,
testemunhando um desfile de emoções complexas.
Surpresa, bom. Interesse, excelente. Ah, desejo!
Podia senti-lo também no seu corpo. Ele estendeu
as mãos para tocá-la, e ela recuou um passo. —
Lembre-se, ar. Arlington. Dois dominós, uma
escolha. Espero que saiba escolher corretamente.

Para Brandon, apenas Patrice poderia ter enviado


o bilhete em nome de Célia. Ou queria atraí-lo ao
baile para fisgá-lo para si mesma, ou pretendia
oferecer Célia e, através de um escândalo, provocar
um casamento. Não podia permitir nenhuma dessas
alternativas. Imaginara diversos cenários para dar a
ela uma lição, mas finalmente decidira que a melhor
vingança seria delatá-la a lady Honória. Com isso
em mente, no dia seguinte ele entrou pelo portão
dos fundos da casa da tia e seguiu para os
aposentos da velha senhora.
Ela virou os olhos ao ouvi-lo relatar suas
suspeitas.

Projeto Revisoras
— Um baile de máscaras — disse. — Uma noite
escura, uma anfitriã conhecida por permitir até
mesmo assassinatos impunes nas suas festas. Que
típico! Mas o que mais poderíamos esperar de
Patrice?
Brandon não sabia se gostava da descrição.
— Vai falar com minha prima, convencê-la a
permanecer em casa esta noite?
— Talvez. Mas creio ter uma ideia ainda melhor.
Acho que deve ir a esse baile. Pode ser sua única
chance de surpreendê-la.
— Não quero surpreendê-la. Quero pôr um fim
nesses planos diabólicos. Imediatamente.
— Pense bem, Brandon. Você não é a única
vítima desse esquema. Não sabe que sofrimentos
ele pretende infligir à pobre Célia. Sei que ela tem
ciúme da enteada. Creio que pode até estar
interessada no sr. Arlington. Não há dúvida de que
sua intenção é comprometer Célia publicamente. Se
não estiver presente, qualquer outro pode servir a
suas nefastas intenções. Gostaria de ver Célia
casada com um daqueles pervertidos que frequenta

Projeto Revisoras
os salões de lady Brampton?
Brandon foi tomado por um súbito terror.
— Acredita que a srta. Rider corre esse perigo?
— Esse e muitos outros. E não creio que Patrice
considere tal coisa um perigo. Ela está determinada
a casar a enteada. Conhece os tipos que frequentam
a casa de lady Brampton. Consegue imaginar o que
um deles pode fazer, se tiver alguns momentos de
privacidade com Célia?
Podia, e imaginar tal coisa só aumentou seu
terror.
— Proíba minha prima e a srta. Rider de
comparecer a esse evento.
— Eu poderia retê-las em casa, mas isso não
poria um fim aos planos de Patrice. Ela repetirá a
tentativa outras vezes, até obter êxito. E como
anteciparemos seus ataques traiçoeiros? Se você for
ao baile, poderá descobrir o que ela tem em mente
e impedir a pobre Célia de cair em desgraça.
O argumento era convincente. Mas, enquanto se
vestia para ir ao baile naquela noite, ele se deu
conta de que havia sido envolvido pela astúcia de

Projeto Revisoras
lady Honória. Podia ter encontrado dezenas de
razões para não ir ao baile e outras tantas maneiras
de impedir a presença de Patrice e Célia, mas a
verdade era que queria uma desculpa para ajudar
Célia mais uma vez.
O anseio de revê-la crescia diariamente, e foi
com grande ansiedade que ele deu ordens ao
cocheiro para levá-lo à casa de lady Brompton.
Sentia saudade dos dias de companheirismo
confortável e beijos roubados. Queria senti-la
novamente a seu lado e nos seus braços. Como
nenhum dos dois era possível, ficaria satisfeito se
pudesse garantir sua segurança.
A casa de lady Brompton ficava poucos
quilômetros distante da dele, erguida sobre uma
colina. Seus jardins eram uma miniatura de
Vauxhall, completos com quedas-de água, colunas
de sustentação e alcovas formadas por galhos e
folhas. Certo de que o baile seria realizado naquela
parte da propriedade, ele não se surpreendeu ao ser
conduzido até o fundo da casa, onde foi recebido
efusivamente pela excêntrica anfitriã.

Projeto Revisoras
Infelizmente, o baile foi tão ruim quanto ele
temia que fosse. Embora ainda fosse muito cedo,
sátiros mal-caracterizados perseguiam ninfas
seminuas pelas alamedas escuras. Antônio seduzia
uma ardente pastora perto da queda-de água,
enquanto Cleópatra dançava com um soldado magro
e alto de mãos muito ágeis. A maioria dos
convidados criara fantasias propícias à reputação da
anfitriã, trajes que revelavam significativas porções
dos seus corpos. Para sua sorte, o número de
dominós era limitado.
Ele se posicionou ao lado da porta e começou a
procurar por Célia. A fantasia devia combinar com a
cor dos seus olhos, mas como nunca pudera
determinar o tom exato, não sabia se devia procurar
por um traje cinza, azul ou verde. Olhando em volta,
viu uma fantasia de dominó prateada emergindo de
um grupo. Brandon caminhou naquela direção,
rejeitando as sugestões de um anjo, de uma
odalisca gordinha e de uma fada de decote atrevido.

Projeto Revisoras
Ainda não havia abordado a pessoa em questão,
quando percebeu que ela era alta demais para ser
Célia.
O convidado se virou e, mesmo com a máscara,
Brandon reconheceu o nariz de Stanley Arlington.
Aparentemente, ele também não teve dificuldades
para reconhecê-lo, embora Brandon se julgasse
anônimo no dominó negro completo com capuz e
máscara.
— Boa noite, Hartley. Não sabia que viria ao
baile.
— Foi uma decisão de última hora. A srta. Rider
está com você?
— Não. Na verdade, ainda não a encontrei nem a
sra. Rider. Brandon, eu. Escute, pode me dar um
momento? Tentei falar com você antes, mas não nos
encontramos na sua casa.
Brandon continuava atento a todos que entravam
e saíam.
— Preciso encontrar minha prima. Esse assunto
não pode esperar?
— Não. E ele se relaciona a sua prima.

Projeto Revisoras
Brandon encarou-o com uma sobrancelha
erguida. O que podia ver do rosto de Stanley era
pálido, e seus ombros não pareciam eretos como de
costume. Era evidente que ele sabia alguma coisa
sobre Patrice, e o segredo o estava matando.
Brandon olhou para um canto mais afastado do
jardim.
— Venha comigo — disse.
Mal se havia instalado numa posição de onde
podia ver a porta de entrada, quando Stanley
começou a falar.
— Sou um homem de pouca sorte. Estou
apaixonado, e a situação me impede de realizar tão
doce sentimento.
— Arlington, não tenho tempo para isso. Em
breve terá a fortuna da srta. Rider e poderá se casar
com ela.
Dois carregadores de água em trajes gregos
passaram por eles, e um deles piscou para Brandon.
O homem.
— Esse é justamente meu medo — lamentou
Stanley. — O que meu pai vai dizer quando souber

Projeto Revisoras
que não quero mais. desposá-la?
— Não quer mais? Está dizendo que desistiu da
srta. Rider?
— Bem, Célia é uma mulher admirável por quem
tenho grande respeito, mas encontrei uma mulher
que é muito mais importante para mim! Ela acendeu
minha paixão, Hart!
— Se fosse você, eu não falaria tão alto. Então,
deseja romper o noivado com a srta. Rider? É isso?
— Sim, é isso. Mas ainda não me desvencilhei do
compromisso. E meu pai dirá que atirei uma fortuna
ao vento.
— Sua nova paixão é menos favorecida nesse
sentido?
— Muito menos. E também é mais velha que eu.
E viúva e tem um filho. Felizmente sempre me dei
muito bem com Martin.
Brandon encarou-o perplexo.
— Martin? Bom Deus, Arlington, não pode estar
dizendo.
— Que me apaixonei por sua prima? É isso. E não
o culparei se me expulsar da sua casa. Minha

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perfídia é lamentável. Mas, francamente, como
poderia ter impedido tal sentimento? Ela é doce
como um pombo, adorável como uma rosa, suave
como.
— Pare com isso! Já entendi o que quer dizer.
Está hipnotizado. Conversou com minha prima sobre
seus sentimentos?
— Não! Sou um cavalheiro, milorde. Mas.
suspeito que ela já os conheça. Patrice se empenhou
muito para dizer-me o que ela e Célia estariam
vestindo esta noite. Creio que será um teste.
— Sem dúvida. — Brandon balançou a cabeça
mais uma vez, mas seus pensamentos recusavam-
se a ocupar seus devidos lugares. Que tipo de jogo
sua prima estava fazendo? Era habilidosa o bastante
para cativar o jovem e ingênuo Stanley Arlington.
Lady Honória já havia dito que Patrice o cobiçava,
mas seria ela capaz de ir tão longe para roubar o
noivo da própria enteada? E porque convidá-lo? Qual
seria sua parte nos planos de Patrice?
— Hartley, não estou gostando deste lugar —
Stanley confessou. — Creio ter visto um cavalheiro

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com a mão sob a saia de uma dama.
— E verá muito mais do que isso se não sairmos
daqui em breve. Só estou aqui por uma razão,
Stanley: salvaguardar a honra e a segurança da
minha prima e da srta. Rider.
— O quê? Acha que elas correm algum perigo
aqui?
— Sim, e afirmo que devia temer por elas tanto
quanto eu. Disse que sabe que fantasia elas estarão
usando?
— Célia estará usando cinza, provavelmente, e a
sra. Rider vestirá um lindo tom de violeta que ficará
entre o azul e o roxo. O capuz e a máscara
combinarão com a cor dos olhos das duas damas.
— Ótimo. Vamos dividir a área do jardim. Você
fica com a região da fonte e as alamedas mais
baixas. Eu procuro perto da casa. Voltaremos a nos
encontrar aqui num quarto de hora.
— E se não as encontrarmos?
— Então tomaremos medidas drásticas, meu caro
Arlington.

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Célia se sentiu intrigada assim que entrou na
casa de lady Brompton. Um lacaio encapuzado e
forte as acompanhou ao fundo da propriedade, onde
a iluminação era bastante limitada. Nas paredes do
corredor de acesso, telas representavam anjos nus e
ninfas de corpos sinuosos e despidos. O tapete
espesso abafava o som dos seus passos. Mal podia
enxergar as pessoas que caminhavam diante delas.
No jardim, entretanto, havia o som estridente de
gargalhadas, música e água corrente.
— A festa é ao ar livre — ela constatou.
Patrice caminhava a seu lado igualmente
perplexa.
— É o que parece. Estou bem coberta?
— Totalmente.
— Ótimo. — Ela olhou para o lacaio. — Pode nos
anunciar agora.
— Não anunciamos os convidados, senhora. É um
baile de máscaras.
Foram apresentadas à anfitriã como as damas
misteriosas.

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Lady Brompton era roliça e baixinha, e
abundantes cachos negros emolduravam seu rosto
redondo. Ela se vestia de querubim, com pequenas
asas de penas verdadeiras e tudo mais, e Célia
respirou aliviada ao constatar que a mulher estava
mais coberta do que os anjos nas telas que acabara
de ver.
Célia ainda estudava o ambiente festivo, quando
um sátiro gordo aproximou-se.
— Há lugar na minha mesa para mais duas
beldades — ele proclamou em voz alta. Um aroma
ácido tomou de assalto os sentidos de Célia, que
franziu a testa.
Patrice a segurou pelo braço como se
pretendesse arrastá-la dali.
— Devemos encontrar o sr. Arlington.
— O quê? Stanley está aqui?
— Sim, ele prometeu que viria. E temos de
encontrá-lo, antes que seja tarde demais.
— Tarde demais para quê?
Dois carregadores de água passaram por trás
delas. Um deles beliscou seu traseiro. Apavorada,

Projeto Revisoras
Célia se virou e viu a mulher do casal olhando para
trás, piscando para ela.
— Patrice, que espécie de lugar é este?
— Precisamos encontrar Stanley — ela repetiu
com tom apavorado. — Ele nos protegerá. Procure
um dominó prateado.
Não era hora de questionar como sua madrasta
sabia que fantasia Stanley estaria usando. Os dois
passavam tanto tempo juntos, que o mais provável
era que ele mesmo houvesse revelado. Assustada,
ela examinava o jardim com ansiedade crescente,
notando que a multidão aumentava a cada instante.
Então, alguém a atropelou e empurrou para a
frente. Um grupo de asas brancas e fofas oscilava
atrás dos rapazes de cabelos claros, e ela teria rido
das suas ingênuas fantasias, não fosse o brilho
ameaçador nos seus olhos.
Tentou afastar-se do grupo, mas eles a cercaram
e carregaram com facilidade, como se fosse um
graveto levado pelo vento. Era arrastada para o
desconhecido, mas sabia que a experiência não seria
agradável. Tentou estender a mão para pedir ajuda

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à madrasta, mas suas mãos escorregaram em
contato com o tecido acetinado da fantasia de
Patrice. Enquanto lutava contra aqueles que a
capturaram, Patrice desaparecia atrás deles. Célia
foi arrastada por um oceano de pessoas alteradas e
assustadoras.
Patrice afastou-se do grupo e apoiou as costas
contra uma mureta. Agarrando-se a um vaso, ela
olhou em volta procurando por Célia. Os rostos
mascarados pareciam olhá-la de maneira
ameaçadora. Uma mão tocou seu braço, e ela se
afastou sobressaltada. Outra agarrou sua fantasia
como se quisesse despi-la, e ela puxou o tecido para
libertar-se. Reunindo forças, ela se afastou da
mureta e começou a percorrer uma das alamedas
com passos trôpegos, só para colidir com um
homem alto vestindo um dominó preto.
— Pega na sua própria rede, prima?
Era a voz de lorde Hartley. Queria sentir-se
confortada, mas o tom continha uma ameaça
velada. Recuando, ela tentou enxergar os olhos
além da máscara. Nunca o vira zangado, mas a

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tensão nos seus ombros sugeria uma ira surda,
contida. Ele tentou segurá-la. Patrice virou-se e
correu.
O pânico a levou a misturar-se aos inúmeros
grupos que por ali circulavam. Desviava de mãos
que tentavam tocá-la, agarrá-la, feri-la. O capuz
caiu da sua cabeça, revelando os cabelos dourados.
Pensou ter ouvido seu nome, mas era difícil
identificar qualquer coisa além da própria pulsação
acelerada.
Então, alguém a agarrou pelo braço, e ela foi
detida. Numa tentativa desesperada de defesa, ela
chutou o agressor.
— Aiii! — Stanley soltou-a e recuou.
— Sr. Arlington! — Patrice atirou-se nos seus
braços. — Salve-me! Ele está atrás de mim, posso
sentir!
— Acalme-se, sra. Rider. Agora estou aqui.
Nenhum mal a atingirá.
Ela se aninhou contra o peito de Stanley,
deixando-se envolver por seu calor.
— Há muitas pessoas aqui, todas me tocando, e

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depois meu primo ameaçou-me, e estou muito feliz
por ter me encontrado e.
— Acalme-se. Agora está segura. Não ficará mais
sozinha.
Ela suspirou.
— Que encantador.
O barulho em volta deles perdeu intensidade, e
ela fechou os olhos durante um momento. A voz
dele era gentil, seu toque, doce. Até seu cheiro era
agradável, como o de chocolate quente num dia frio.
— Stanley?
— Humm?
— Posso chamá-lo de Stanley?
— É claro que sim. Tenho sua permissão para
chamá-la de Patrice?
— Certamente. Stanley, Célia está sozinha em
algum lugar deste jardim. Precisamos encontrá-la.
Ele recuou para encará-la, e Patrice pensou que
Stanley poderia protestar, mas algo na sua
expressão o deteve. Ele a segurou pelos ombros e
empurrou-a contra uma árvore.
— Muito bem. Mas vai me prometer que não

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sairá daqui enquanto eu não voltar.
— Prometo.
— Então está bem.
— Stanley?
— Sim?
— Você me escolheu, não?
O sorriso terno derreteu seu coração. Ele tocou
seu rosto.
— Sempre, meu amor, e para sempre. Estarei de
volta num momento.

Capítulo VIII

Célia dizia a si mesma para não entrar em


pânico. Não estava realmente sozinha. Patrice e
Stanley a encontrariam. Não sabia se Patrice seria
de grande utilidade, mas o tamanho de Stanley seria
suficiente para deter os perseguidores mais
ardentes. Só precisava encontrá-lo.

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Devia ser fácil localizar um homem enorme
vestindo um dominó prateado, mas, por mais que
procurasse, não o via em parte alguma. Talvez ele
ainda não estivesse na festa. Patrice dizia que
cavalheiros modernos sempre compareciam a
diversos eventos na mesma noite. Stanley não podia
ser qualificado como um cavalheiro moderno, mas
não ficaria surpresa se ele imitasse o
comportamento dos que realmente o eram. Afinal,
recentemente começara a se vestir de preto, como
lorde Hartley. Ele não havia se apresentado ainda,
ou chegara e já havia ido embora? Estava realmente
sozinha?
Respirava com dificuldade e seus passos eram
cambaleantes. Não. Podia contar com Stanley. Não
viviam exatamente um caso de amor, e ele sempre
esquecia suas necessidades para cuidar das dele,
mas era leal. Patrice disse que o encontrariam ali.
Stanley não partiria sem antes falar com elas. Tinha
de prosseguir na busca.
Mas Patrice também havia comentado que lorde
Hartley estaria no baile, e essa havia sido uma

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mentira. Célia não podia imaginá-lo num evento
dessa natureza.
Um senador romano colocou-se no seu caminho.
— Ah, uma dama de cinza! — Ele apertava os
olhos como se não enxergasse bem, e apontava sua
fantasia com a mão que segurava uma taça de
vinho. — Permita-me pôr mais cor nas suas faces.
Ele se inclinou na sua direção. Célia tentou se
esquivar, mas um braço a enlaçou pela cintura.
Havia mais cabelo nele do que na cabeça do
desconhecido. Tremendo, ela tentou se libertar do
odioso contato. O vinho saltou da taça para o rosto
do senador e deixou respingos na sua toga. Ela o
ouviu praguejar enquanto fugia apressada.
O sentimento de satisfação durou apenas um
momento. Havia muitos homens desse tipo por ali.
Ela e Patrice corriam sério perigo. Precisava
encontrar Stanley, e depressa. Pensava em muitos
planos, mas nenhum deles era adequado para uma
sociedade polida.
E daí? Ninguém ali parecia estar preocupado com
propriedade. Porque ela deveria se incomodar?

Projeto Revisoras
Olhando em volta, encontrou uma delicada fonte
com um banco de pedra diante dela. Aproximando-
se, ela subiu no banco para examinar o jardim.
Os convidados de lady Brompton não eram
menos desagradáveis vistos dali. Muitos já haviam
bebido demais. Os que não estavam embriagados
perseguiam ou eram perseguidos. Cores e formas se
mesclavam numa massa alucinante. Era difícil
identificar indivíduos. De repente, ela viu um
cavalheiro muito alto num dominó prateado.
— Stanley! — gritou com as mãos em concha em
volta da boca. — Stanley Arlington! Aqui!
Ele olhou em volta. Um Marco Antônio muito
magro aproximou-se do banco e abraçou suas
pernas.
— Visto-me como Antônio, vejo-a como homem,
e teria um enorme prazer de conquistá-la como
Stanley!
Célia moveu as pernas para empurrá-lo.
— Tire as mãos de mim. E está parafraseando
César, não Marco Antônio, e o faz muito mal.
Ele parecia disposto a protestar, mas Stanley

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chegou naquele momento. Ele agarrou o pretenso
político romano pelo ombro e o jogou de costas
sobre a grama. Todos riram, e lady Brompton correu
a aplacar o herói caído.
— O que está fazendo, Célia? — Stanley
estendeu a mão para ajudá-la a descer do banco. —
Quer transformar-se num espetáculo?
— Todos aqui querem ser o espetáculo. Eu
prefiro ir embora. Temos de encontrar minha
madrasta.
— Ela está bem. Vou levá-la até ela, mas antes
temos de conversar.
— Agora não, Stanley. Não vou suportar nem
mais um minuto da hospitalidade de lady Brompton.
Ele balançou a cabeça.
— Mas verá a evidência assim que nos juntarmos
a Patrice. Na verdade, estou surpreso por ela não
cintilar nos meus olhos, não pulsar na minha voz,
não vibrar nos meus membros. Pássaros deviam
estar me circundando, cantando, Patrice, Patrice,
Patrice.
Célia o encarou confusa.

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— Do que está falando?
— Célia, querida Célia. Sempre terei grande afeto
por você. De fato, ouso dizer que a amarei ainda
mais, já que se tornará minha filha, também. E
sempre me lembrarei de que você nos reuniu. Como
posso expressar minha gratidão?
Ela o agarrou pela mão e puxou para a porta.
— Pode me tirar daqui.
— Não, não! Não está entendendo o que digo!
— Nesse caso, pode ser mais claro a caminho de
casa. Onde está Patrice?
— Já vou levá-la até lá. Também não gosto da
ideia de deixá-la sozinha no meio de toda essa
gente, e estaria muito ansioso para voltar para perto
dela, não fossem as circunstâncias. Mas é vital que
você me escute. Venha comigo.
Pensando que ele pretendia falar enquanto a
levava até Patrice, Célia se deixou conduzir para
longe da fonte. Suas suspeitas cresceram, no
entanto, quando ele começou a descer a encosta
que levava ao limite extremo do jardim.
— Stanley?

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— Só um momento. Já estamos chegando. — Ele
a empurrou para dentro de uma alcova protegida
por folhas, um lugar discreto e protegido de ouvidos
intrusos.
— Stanley!
— Por favor, me escute! Isso só vai levar um
momento.
— Fale de uma vez, então!
— Célia, quero que me libere da promessa de
casamento. Desejo desposar sua madrasta.

Brandon sentia o pânico crescer a cada passo.


Onde ela estava? Patrice desaparecera antes que
pudesse perguntar, e não conseguia mais localizar o
dominó violeta no meio aos convidados. Também
não conseguia ver a fantasia de Célia. A cada grupo
que invadia, esperava encontrá-la sendo atacada, ou
pior. O comportamento daquelas pessoas ia se
tornando mais e mais degenerado com o passar do
tempo e o consumo de vinho. Já havia encontrado
dois casais em pleno ato sexual. E sabia que a

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situação ficaria cada vez pior.
Não podia contar com Patrice para protegê-la.
Mesmo que lady Honória estivesse enganada sobre o
ciúme da sua prima, questionaria a confiabilidade de
Patrice como acompanhante pelo simples fato de ela
ter levado Célia a um baile como aquele. Não sabia
nem se Arlington merecia confiança, apaixonado
como estava por Patrice.
Sentia-se culpado e negligente, e quase perdeu a
cabeça quando viu Stanley passar por ele correndo.
Ele estava sozinho.
— Arlington!
O rapaz parou e correu ao seu encontro.
— Hart! Graças a Deus! Agora podemos ir!
— Você as encontrou?
— Sim, estava indo buscar Patrice. Ela me
permitiu chamá-la pelo primeiro nome, sabe?
— Maravilhoso! — Brandon exclamou com
sarcasmo, resistindo ao impulso de desfazer aquele
sorriso idiota com um murro. — E onde está a srta.
Rider?
— Lá embaixo, na gruta. Ela precisava de um

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pouco de privacidade depois de ser informada sobre
o rompimento do nosso noivado.
— Você rompeu com ela? Aqui? — Brandon o
agarrou pela gravata sob a fantasia, quase tirando
seus pés do chão. — Como teve coragem de fazer
isso com ela?
— Calma, Hartley. Ela está bem, garanto. Fui um
cavalheiro.
Brandon soltou-o, e ele quase caiu sobre a relva.
— Diferentemente de você, Hart — resmungou
irritado. — Desculpe, mas creio que o ar da noite
afetou seus sentidos.
O ar da noite era como cinzas na sua boca. Podia
sentir as emoções borbulhando no seu peito e
tentava contê-las. Mas como poderia estar calmo?
Esse imbecil não tinha ideia de como podia ter
magoado Célia? Brandon não vira nenhum sinal de
amor ou paixão entre eles, mas mesmo que fossem
apenas bons amigos, ela se sentiria traída. E ouvir
tal notícia no meio de uma orgia só intensificaria a
injúria.
Ele engoliu em seco, respirou fundo e endireitou

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os ombros, fitando Stanley com toda a frieza que
Edmund o ensinara a demonstrar.
— Vá buscar minha prima — disse. — Encontre-
me na carruagem. Vou resgatar a srta. Rider. Onde
a deixou?
— Na gruta mais afastada, além do bosque.
O bosque era uma massa escura e deserta. Ali
não era possível ouvir os sons da festa.
Mas outros ruídos iam se tornando mais altos.
Risadas histéricas, gritos descontrolados, gemidos.
Havia alguém atrás dele. Brandon virou-se e viu um
vulto branco. Uma fantasia inspirada num filme de
terror. Que apropriado!
Ele parou, esperando que o desconhecido o
ultrapassasse, mas o homem também reduziu a
velocidade. Por quê? Estaria procurando alguém?
Célia?
Sabia que sua fantasia escura o esconderia bem
no meio das árvores, e por isso apoiou as costas no
tronco mais próximo. O farfalhar do tecido indicava
que alguém se aproximava. Podia ouvir uma
respiração ofegante, como se seu perseguidor

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antecipasse o prazer de. matar?
Quem ele pensava estar perseguindo? E por quê?

Célia andava de um lado para o outro na alcova


solitária. Em que Stanley estava pensando? Ou
melhor, ele estava pensando? Sua madrasta era
muitos anos mais velha que ele, uma mulher da
metrópole habituada a festas e à vida social
atribulada de Londres, mãe de um filho! O pai dele o
mataria no momento em que ele anunciasse sua
decisão de desposar Patrice.
Uma princesa medieval tentou entrar arrastando
um Adão de meia-idade, mas a expressão severa de
Célia os fez mudar de ideia. Tudo ali girava em volta
de uma só palavra: sedução. Patrice se atirara sobre
Stanley. Não importava se, com isso, ela estivesse
livre do compromisso do noivado. Stanley pedira sua
mão, ela aceitara o pedido. Um acordo é um acordo.
Um cavalheiro encorpado com metade do corpo
coberta por peles e um tampão sobre um olho,
certamente tentando compor uma fantasia de

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ciclope, entrou na alcova.
— Aha! — ele gritou. — Encontrei a presa, afinal!
Agora vai pagar caro por ter me obrigado a
persegui-la!
Célia pôs as mãos na cintura.
— Você não encontrou a presa. Encontrou o
castigo! Saia antes que o faça se arrepender de ter
vindo até aqui!
Ele balançou a cabeça.
— Que sorte a minha. Dúzias de mulheres
ardentes e disponíveis, e encontro a única virtuosa
da festa. Se pretende mesmo preservar sua pureza,
é melhor ir embora agora. Logo este lugar vai se
transformar no paraíso da leviandade.
O homem se retirou, e Célia não hesitou em
segui-lo. Pelo que sabia, a única entrada para o
bosque era pelo gramado do jardim. Stanley teria de
passar por ali para encontrá-la. Subiria a encosta e
ficaria esperando por ele naquele local.
O ciclope desapareceu. Por todos os lados, ruídos
de luxúria indicavam que a festa ia chegando ao seu
apogeu. Ouvia gemidos, sussurros, gritos de êxtase.

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Com o rosto ardendo, ela correu pela encosta e
tentou localizar-se no meio às árvores, mas muitas
tochas se haviam apagado, e mal podia distinguir o
chão onde pisava.
Uma mulher surgiu da escuridão vestida de
branco. Ela corria. Com os cabelos soltos, ela se
atirou sobre Célia e a empurrou contra uma árvore.
Não parou de correr, e logo foi novamente tragada
pela escuridão. Tremendo, Célia recompôs-se
removendo os galhos e folhas que estavam presos
nos seus cabelos.
Empunhando um deles como uma espada, ela
seguiu em frente.
Outra figura se movia na escuridão. Ela ergueu o
galho para defender-se.
— Não estou com disposição para brincadeiras
tolas — avisou. — Saia enquanto ainda pode escapar
ileso.
— Célia, cuidado!
Era a voz de lorde Hartley, mas, antes que ela
pudesse se virar, alguém a agarrou e puxou com
força, imobilizando-a contra o próprio corpo. De

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alguma forma, sabia que era ele. Um estrondo
ecoou no bosque escuro. O barulho das folhas
indicava que alguém se afastava correndo. Lorde
Hartley também interpretava o som corretamente,
porque a soltou e recuou um passo. Célia podia
ouvir sua respiração ofegante.
— O que foi isso? Ou melhor, quem foi aquilo? —
ela perguntou.
— Nem imagino. Mas não gosto da ideia de
sermos surpreendidos novamente. Sabe se há outro
caminho que possamos seguir para sairmos desse
bosque?
— Não — ela respondeu assustada. — E pelo que
posso dizer, a situação fica pior na medida em que
nos aprofundamos nele.
— Então, vamos ter de voltar pelo caminho de
onde viemos. Você está bem? — Ele segurou sua
mão.
O contato a acalmou, e ela assentiu.
— Não estou ferida. Esperava por Stanley, mas a
situação foi ficando muito. agitada. E você? O que
faz aqui? Será que errei ao julgar todos os homens

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que conheço?
— Garanto que esse evento está tão fora dos
meus hábitos sociais quanto dos seus. Mais tarde eu
explicarei como vim parar aqui. Por ora, é mais
importante sairmos daqui!
Célia apertava a mão dele, sentindo-se mais
segura apenas por tê-lo a seu lado. Os ruídos
pareciam menos perigosos. Mais perigosos eram
seus sentimentos. Não era mais uma mulher
comprometida. Se quisesse flertar com Brandon, ou
até mesmo ir além do flerte, só precisava fazer a
escolha. Seria fácil entregar-se. mas ele estava
certo. Esse não era o melhor momento para
conversar ou fazer outra coisa qualquer.
— Venha, vamos sair daqui. Olhe onde pisa — ele
sugeriu, começando a caminhar. De repente ele
parou e se baixou para recolher alguma coisa.
Célia viu a foice brilhar na mão dele e foi tomada
por uma onda de pânico.
— De onde veio isso? — ela indagou.
— Nossa amiga Morte deixou para nós. Quanta
consideração, não? baixe-se.

Projeto Revisoras
Ela obedeceu. Durante um momento, pensou que
ele usaria a foice para atacá-la, e seu coração
disparou. Mas ele a arremessou com força
descomunal contra o tronco de uma árvore,
cravando-a na madeira. O som ecoou pelo bosque,
silenciando outros ruídos. Brandon recuperou a
temível arma com um sorriso satisfeito.
— O que pretende? Vai abrir nosso caminho
como um explorador africano? — Célia tentou
brincar, apesar do medo que a dominava.
Ele exibiu a foice.
— Não sei ao certo a que distância estamos da
entrada, e por isso essa seria uma medida tola e
infrutífera. No entanto, reservo-me o direito de
mudar de ideia a qualquer momento. Especialmente
em caso de urgência ou extrema necessidade.
Venha, vamos sair daqui.

Capítulo IX

Projeto Revisoras
Arlington e Patrice os esperavam na carruagem
de Brandon. Stanley olhou para a foice, mas
Brandon não deu a ele tempo para perguntas.
— Entrem na carruagem. Vamos embora daqui.
Patrice mordia o lábio inferior, como se lutasse
contra as lágrimas, mas o marquês não se
incomodava com isso. Se ela julgava seu tom crítico,
tanto melhor. Não devia ter levado a própria
enteada a um lugar como aquele. Ele entregou a
foice ao cocheiro com instruções para ser cauteloso,
depois se acomodou com os convidados.
Célia era a que mais tinha motivos para reclamar
e, no entanto, era a que menos se manifestava. Ela
removeu o capuz e a máscara, revelando um rosto
pálido e tenso emoldurado por cintilantes cachos
cor-de-mel. A julgar por como apertava as mãos
sobre os joelhos, o comportamento perfeito e
controlado só era mantido à custa de muita
dificuldade.
— Foi bom ter nos resgatado, Hart — Stanley
comentou enquanto se acomodava no banco de

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veludo azul. Ele havia removido o dominó prateado,
e dobrava a fantasia de forma a usá-la como um
travesseiro. — Aquele cenário começava a escapar
ao controle, para dizer o mínimo.
— Não deviam ter comparecido àquele evento.
Patrice choramingou. Ela era a única que ainda
permanecia fantasiada, apesar de ter retirado a
máscara.
— Estávamos acompanhadas. Como pode criticar
a atitude do sr. Arlington?
— O sr. Arlington é novo em Londres, senhora.
Você não é. Devia conhecer as tendências da dama
que convidava para o evento. E também é a mais
velha do grupo. Devia ter recusado o convite.
Ela explodiu em lágrimas. Arlington mudou de
posição, olhou para Brandon e deslizou sobre o
banco para tomá-la nos braços. Para tanto, quase
esmagou Célia contra a porta da carruagem.
— Não, não, minha querida — ele dizia. —
Certamente não podia antecipar o que ia acontecer
na festa. Tal depravação é estranha a sua alma
delicada.

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Célia acomodou-se ao lado de Brandon.
— Se vou ter de ouvir essas bobagens ao longo
de todo o caminho para casa, acho que vou acabar
passando mal.
— Acalme-se — Brandon respondeu. — Não
vamos para Londres. Minha casa está muito mais
perto.
Stanley assentiu como se julgasse a decisão
correta, e uma das mãos dele continuava
acariciando os cabelos de Patrice.
— Enfrentamos momentos difíceis. Agradeço por
sua hospitalidade, Hart.
Patrice resmungou alguma coisa que também
podia ser um agradecimento. Célia olhou-o em
silêncio e apertou os lábios.
Foi a vez do marquês inclinar-se.
— Não aprova minha ideia, srta. Rider?
— Não presumo criticar lorde Oberon no seu
modo mais imperioso.
— Muito sensato. — E ele se afastou um pouco,
antes que acabasse tão hipnotizado quanto
Arlington.

Projeto Revisoras
Felizmente, a viagem foi curta. O sr. Openshaw,
o mordomo, despachou rapidamente um exército de
amas e lacaios para preparar os aposentos
necessários. Brandon se sentiu mais tranquilo ao
constatar que Edmund ainda não retornara de
Londres. Seu tio teria um ataque quando tomasse
conhecimento da aventura daquela noite. Com
sorte, todos estariam recolhidos antes de ele voltar
para casa.
O marquês recebeu seus hóspedes na sala
íntima, onde seu lacaio Timms acendeu lamparinas.
Depois de algum tempo, Openshaw anunciou que os
quartos estavam prontos. Patrice levantou-se
cansada, com os olhos ainda vermelhos pelas
lágrimas. Stanley ofereceu seu braço, e ela o aceitou
com um sorriso triste. Célia também se levantou,
igualmente exausta, mas ninguém se ofereceu para
ampará-la.
— Srta. Rider, fique durante um momento —
pediu Brandon. — Devemos conversar.

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Patrice suspirou.
— Eu espero, então.
Célia sentiu a necessidade de privacidade do
marquês.
— Não é necessário — disse.
— É claro que é necessário. Você deve ter uma
acompanhante. É a propriedade que determina.
— Fora! — Brandon comandou irritado.
Patrice gritou assustada e saiu correndo. Stanley
ficou tenso.
— Hart, vou lhe dizer uma.
— Você também — Brandon o interrompeu. —
Fora. Conversaremos ao amanhecer.
Stanley parecia disposto a dizer mais alguma
coisa, mas pensou melhor e saiu. O marquês olhou
para Célia.
— Estamos cercados por idiotas — ela disse.
— Pelo que sou muito grato. Se eles fossem mais
sensatos, esta noite teríamos nossas mãos cheias.
— Suponho que sim. Queria falar comigo,
milorde? Sobre o quê?
Sobre o quê? Eram tantas as respostas que se

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ofereciam! Mas já havia ido muito longe naquela
noite por se deixar guiar pelos desejos.
— Prometi revelar como fui parar no baile de
máscaras esta noite. Recebi um convite urgente
para comparecer. Um bilhete. assinado por você.
— O quê? — ela se levantou, surpresa. — Não
mandei convite nenhum!
— Nem eu pensei que houvesse mandado. Há
alguém interferindo na sua vida novamente.
— Quem seria tão. Patrice! Ela pretende me
casar. Foi ela!
— Foi o que pensei de início. No entanto, creio
que temos outro inimigo. — O marquês se levantou
e caminhou até a janela, tentando decidir que
medida das suas preocupações devia dividir com a
jovem dama. Célia não precisava de uma carga
maior sobre seus ombros, mas não poderia protegê-
la sem antes preveni-la. Quando se virou, ela o
estava observando com atenção e seriedade. O
brilho das lamparinas desenhava um contorno
luminoso em volta da sua silhueta, e ela parecia
etérea como um anjo, embora já houvesse provado

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ser determinada e capaz. Não devia ocultar dados
importantes com a intenção de protegê-la.
— A criatura que desapareceu no bosque pode
ter ido até lá procurando por mais que uma orgia —
disse. — A foice era bem afiada.
Ela franziu a testa.
— Talvez ele só quisesse dar autenticidade à
fantasia, e para isso tomou emprestada a
ferramenta do seu jardineiro. É possível que nem
tenha se dado conta do perigo que ela representava.
— Ou, talvez, ele tenha levado a foice com a
intenção de usá-la.
Célia estremeceu.
— Está falando de assassinato. Quem poderia
ganhar com a morte de um de nós dois?
Sim, quem? Ainda não conseguia compreender
que vantagens alguém poderia ter ferindo ou
matando Célia. A porção de Patrice na herança não
aumentaria, e Martin já era dono de uma porção
dupla. Além do mais, o menino era jovem demais e
vivia isolado. Não podia estar manipulando tantos
adultos dessa maneira. Quanto a quem desejaria

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matar Brandon, lorde Heartless conquistara um
número admirável de inimigos. No entanto, nenhum
deles o mataria sem antes desfrutar da satisfação de
um duelo. Não conseguia pensar em ninguém que
pudesse se esconder atrás de uma máscara ou
contratar um matador a fim de aniquilá-lo.
Nem mesmo a mulher diante dele.
Edmund estava certo de que ela era uma
aventureira sem escrúpulos. Certamente, Célia não
havia montado toda aquela encenação só para
convencê-lo de que precisava da sua ajuda! Não
queria que a luz nos olhos dela fosse de avareza.
Mas estaria vendo apenas o que desejava ver?
O marquês guardou silêncio durante algum
tempo, que ela estranhou.
— Milorde? Não vai me dar uma resposta? De
quem suspeita?
— De ninguém, srta. Rider. Ainda estou confuso.
No entanto, pretendo descobrir mais sobre o
assunto. Por ora, acho que deve recolher-se. É
tarde.
Ela se levantou e pousou uma das mãos no seu

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braço, surpreendendo-o com a capacidade relaxante
do seu toque.
— Não antes de expressar minha gratidão. Esta
noite expôs-se ao perigo para procurar-me. Sou
grata por isso. — Ela se ergueu na ponta dos pés
para beijá-lo no rosto.
O marquês a tomou nos braços para um beijo de
verdade.
Pelo menos, eram essas suas intenções: um beijo
para demonstrar seu interesse. Qualquer coisa além
disso seria impossível, especialmente depois da
aventura daquela noite. No entanto, no momento
em que os lábios tocaram os dela, ele soube que
estava perdido. Ela o beijou como fazia todo o resto,
com entusiasmo, determinação, com um abandono
que o excitava.
— Brandon, meu amor. — ela sussurrou num
momento em que os lábios se afastaram.
O marquês beijou-a novamente com paixão
redobrada. Depois a tomou nos braços para levá-la
ao quarto, e havia dado dois ou três passos quando
viu Edmund parado na porta.

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Seu coração parou de bater.
Seu tio limitou-se a girar sobre os calcanhares e
afastar-se dali.
Brandon respirou fundo.
Célia levantou a cabeça que mantinha apoiada no
seu ombro e abriu os olhos.
— Brandon?
— Perdoe-me. — Ele a colocou delicadamente
sobre o sofá.
— O que aconteceu?
— Perdoe-me, por favor. Não tenho o direito. Eu
a admiro demais para tratá-la dessa maneira.
Célia soluçou como se sufocasse com um riso
amargo.
— Se é sua admiração que o mantém afastado de
mim, prometo causar-lhe um grande desgosto. Mas,
por favor, fique comigo!
Brandon segurou as mãos dela. Estavam frias.
— Lamento, mas isso é errado. Quase esqueci a
propriedade.
— Não gosta de mim?
— Gosto muito. — Podia ver as lágrimas nos

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olhos dela e odiou-se por tê-las causado. — Célia,
você merece ouvir um pedido de casamento depois
de uma demonstração como essa. E não posso fazer
esse pedido. Não posso me casar até receber minha
herança.
— Porque não? Já tem seu título, é maior de
idade.
— Sim, mas o testamento deixado por meu pai
estabelece que o dinheiro que financia esse título só
estará disponível quando eu completar trinta anos.
Atingirei a idade estabelecida na próxima colheita.
Até lá, não ouso assumir um compromisso.
— Mas eu tenho uma fortuna. Não precisa
esperar.
— Não me casaria com você por sua fortuna.
— Não foi isso que eu disse. Entendi que a sua
viria mais tarde. Só quis dizer que, se são os fundos
que determinam sua decisão, esse não deve ser um
problema.
Ele suspirou. Por mais que admirasse sua força,
não pensava que ela pudesse mantê-la sob o peso
dos seus problemas. E não suportaria ver o desgosto

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nos seus olhos quando contasse a verdade.
— É mais do que isso — tentou. — O testamento
do meu pai exige que eu cumpra certos critérios.
Um casamento, e até mesmo um noivado, pode me
impedir de cumpri-los.
— Critérios? Que tipo de critérios?
— Minha sanidade — ele revelou com coragem.
Célia arregalou os olhos.
— Então a história tem fundamento!
Agora era ele quem se sentia gelado.
— Devia saber que alguém falaria com você
sobre meu pai. Trata-se de uma história suculenta
demais para não ser contada.
— Não é suculenta. É trágica. E lamento que
tenha sido forçado a passar por tudo isso.
— Obrigado. Se entende a situação, deve
entender também que um casamento está fora de
questão.
— Não realmente. Disse que deve satisfazer
certos critérios para provar sua sanidade. Quem o
julga? E porque padrões?
— Lady Honória e meu tio Edmund são juízes e

Projeto Revisoras
júri, embora o voto da minha tia tenha o dobro do
valor de tio Edmund. Eles decidirão se mostro
algumas das características exibidas por meu pai e
por minha avó quando eles morreram. Senão, eles
me entregarão o controle do dinheiro.
— E se exibir essas características?
— Eles me concederão uma mesada pelo breve
período que terei até a doença me dominar.
Célia fechou os olhos. Parte dele parecia morrer.
Sentia-se tenso. Mas era melhor que ela soubesse
agora, quando se dispunha a desposá-lo impelida
pelo fogo da paixão.
Ela abriu os olhos.
— Eu sinto muito. De verdade. — Uma lágrima
rolou por seu rosto. — Amo você, Brandon.
Ele a encarou e não foi capaz de falar. Os lábios
delicados roçaram os dele. Foi um beijo solene, uma
promessa, uma súplica. Com um gemido
angustiado, ele a tomou nos braços. Podia sentir
lágrimas nos seus olhos, também. Precisava
recuperar o controle. Por isso a empurrou e
levantou-se. De costas para ela, respirou fundo e

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piscou banindo a humidade dos seus olhos. Célia
também se levantou e tocou suas costas.
— Não entendo porque deve esperar. Se digo que
o amo! Deixe-me ficar a seu lado.
Brandon balançou a cabeça, odiando-se por não
se sentir capaz de encará-la.
— Não sabe o que está dizendo. Posso morrer
amanhã, espumando pela boca, rasgando minha
própria carne!
— Até agora não revelou nenhum dos sintomas,
não é? Como sabe que essa doença o acometerá?
Não podia dizer. Como todas as decisões de
Célia, a declaração de amor acontecera muito
depressa, com simplicidade espantosa. Oh, ela
certamente acreditava no que sentia, e continuaria
acreditando até que alguma coisa a forçasse a
duvidar. E não queria ser esse fator. Não podia
revelar que suportava o primeiro sintoma desde o
dia em que seu pai falecera.
— Mesmo que essa doença não se manifeste em
mim, sou forçado a viver num mundo vazio até o dia
do meu julgamento. Não quero que partilhe essa

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sombra de vida. Londres está a seus pés.
Ela se colocou diante dele, obrigando-o a baixar o
olhar para não ter de encará-la. Depois, Célia sorriu.
— Londres pode estar a meus pés, mas os
cavalheiros que se apresentaram até agora são
lamentáveis. Nem mesmo os que conheci antes, em
Somerset, podem chegar a seus pés.
Ele balançou a cabeça.
— Arlington é um asno, ou não escolheria minha
prima a você.
Ela o segurou pelo braço e levou-o de volta à
poltrona.
— Não ouvira nenhum argumento da minha boca.
No entanto, digo que não me importo com isso. Na
verdade, havia algum tempo eu lamentava não
poder me libertar de tal compromisso. Desde que.
desde que o conheci, milorde.
Abalado com as palavras de Célia, ele se
recusava a permanecer sentado. Se a tocasse,
perderia completamente o controle sobre suas
emoções.
— Célia, pense. Tem pretendentes em número

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suficiente para encher uma casa. Qualquer um deles
pode oferecer um futuro melhor do que eu.
— Mesmo assim, acredito que devo aceitar o
cavalheiro que amo.
Brandon sentou-se e enterrou a cabeça na curva
do pescoço delicado. Ela afagou seus cabelos, e ele
julgou ser capaz de ficar ali para sempre.
Mas Edmund o esperava lá fora.
Por isso o marquês levantou a cabeça.
— Quero tê-la a meu lado, Célia, pelo resto da
minha vida. No entanto, minha vida não começará
enquanto não me livrar desse amargo legado. Pode
esperar por mim? Acha que não se cansará de
esperar por meu pedido?
— Não sou muito paciente — ela confessou
sorrindo —, mas você merece meu esforço.
Então ele a abraçou, e algum tempo transcorreu
até que ele tivesse forças para soltá-la novamente.

Capítulo X

Projeto Revisoras
Uma criada sonolenta esperava por Célia quando,
finalmente, ela chegou aos aposentos que ocuparia
naquela noite. Usava um vestido azul sob a fantasia,
mas o traje estava irremediavelmente amarrotado.
Sentia o rosto queimar quando lembrava como isso
acontecera, e lançou um olhar constrangido para a
criada que, silenciosa, a ajudava a despir-se. Mas a
jovem se limitou a sufocar um bocejo e cumpriu
seus deveres como se fosse perfeitamente normal
despir jovens amarrotadas no meio da madrugada
na mansão Pellidore.
A anormalidade da sua presença era atestada
pela camisola deixada sobre a cama. A peça estava
amarelada pelo tempo.
— Ela pertenceu à última lady Pellidore — a
criada explicou depois de ouvir a pergunta de Célia.
— O sr. Openshaw decidiu que o senhor não se
incomodaria, se a senhorita e a sra. Rider usassem
as coisas que foram da mãe dele, considerando que
temos aqui uma emergência.

Projeto Revisoras
Não era uma emergência, Célia pensou, mas um
momento de necessidade. Patrice planeara voltar
para casa depois do evento, e por isso não haviam
preparado bagagem para a noite. Ou sua madrasta
havia traçado um plano com a intenção de pernoitar
na propriedade Pellidore? Teria ela contado com sua
impulsividade para garantir a hospedagem na casa
de Brandon?
Fora mais do que impulsiva essa noite, mas não
se arrependia por isso. Embora não houvesse
pronunciado as palavras, Brandon devia amá-la.
Podia esperar por ele.
Mal se havia acomodado sob o cobertor macio,
quando ouviu as batidas na porta.
Célia suspirou.
— Estou bem, Patrice. Obrigada. Boa noite.
Aparentemente, sua resposta não foi satisfatória,
porque sua madrasta entrou no quarto com passos
silenciosos, como se temesse ser ouvida. Ela se
sentou na beira da cama. Célia podia sentir seu
olhar à luz das brasas na lareira.
— Esteve com lorde Hartley durante muito

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tempo. Ele a pediu em casamento?
— Não, mas não importa.
Patrice balançou a cabeça com veemência.
— Importa muito! Esteve sozinha com ele por
mais de uma hora, tarde da noite. Ele deve propor
casamento.
Célia sentou-se na cama.
— Não deve!
— Mas os comentários.
— Não vai haver nenhum comentário. Só
Stanley, você e eu sabemos disso.
— Os criados falam demais.
— Não como seus senhores e suas senhoras,
garanto. Está criando uma tempestade em copo de
água, Patrice. Não insista mais nesse assunto.
— Porque não me deixa guiá-la? Sei que esqueço
datas importantes e coisas do tipo, mas casamento
é um assunto que conheço bem — ela se inclinou e
baixou o tom de voz: — Ainda pode tê-lo. O
ambiente é perfeito.
— Do que está falando?
— Do horário, da casa, do seu encontro com o

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perigo. Quem poderia culpá-la, se entrasse no
quarto errado e passasse a noite lá?
— Patrice! Quer que eu engane o marquês!
Sugere uma armadilha?
— É evidente que sim! Porque fala como se isso
fosse um horror? É assim que as coisas acontecem.
— Não o forçarei a me pedir em casamento!
Quando ele pedir minha mão, será por estar pronto
para admitir seu amor por mim.
— Tolice. É claro que ele a ama. Só precisa de
alguma ajuda para admitir o que sente. Venha, vou
lhe mostrar como é fácil — Patrice insistiu,
segurando a mão da enteada.
— Nunca! Foi assim que fez Stanley propor
casamento?
— Não. Dei a ele uma escolha, e parece que eu
fui a escolhida.
Patrice soava muito satisfeita, e embora Célia
estivesse certa de que jamais poderia ser feliz com
Stanley, não podia evitar a dor que a atormentava.
Stanley comprometera-se com outra mulher de
maneira leviana, sem pensar no sofrimento que

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poderia causar a ela. E Patrice parecia estar ainda
menos preocupada com seus sentimentos.
— Tenho certeza de que lorde Hartley também
me escolheria, se as circunstâncias fossem
semelhantes — respondeu, odiando o tom defensivo
na própria voz.
— Também estou certa disso. Só gostaria que os
cavalheiros soubessem reconhecer e apreciar todo o
trabalho que temos para manipulá-los e criar as
circunstâncias apropriadas.
Célia fechou os olhos.
— Por favor, diga que não forjou um convite para
forçar lorde Hartley a nos trazer para cá.
— É claro que não! Que vulgaridade! Uma dama
não convida um cavalheiro para uma festa! Apenas
pedi a lady Brompton para incluir o nome dele na
lista de convidados.
A explicação fazia sentido, levando em conta a
forma tortuosa de pensar da sua madrasta. Além do
mais, Brandon estava certo de que Patrice não
estava por trás de todos os problemas que
enfrentaram recentemente. Quem, então? Stanley

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havia planeado empurrá-la para Brandon enquanto
ele perseguia Patrice. Não era o estilo dele.
— E tudo funcionou perfeitamente — Patrice
continuou com tom satisfeito. — Mesmo que tenha
decidido não encorajar maiores avanços esta noite,
estou certa de que ele pode ser convencido a pedi-la
em casamento. O marquês mal tem dinheiro
suficiente para manter a propriedade antes de
receber a herança. Ele mesmo me contou. Sua
fortuna será muito bem-vinda.
— Ele não se casará comigo por dinheiro. O
próprio marquês disse isso.
— Os cavalheiros sempre dizem tais coisas. É
uma forma de preservar o orgulho. Aceite minha
orientação nisso. Se quer meu primo, ele ainda pode
ser seu.
Patrice bateu na mão da enteada e saiu.
Célia encolheu-se sob as cobertas com um
suspiro. Patrice devia estar certa, se fosse ao quarto
de Brandon naquela noite, não sairia de lá antes do
amanhecer. A ideia a enchia de entusiasmo. Seria
tão errado assim entregar-se ao homem que amava,

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se já estavam praticamente prometidos um ao
outro?
Mas não estavam prometidos. Ela suspirou
novamente e mudou de posição, encolhendo-se
ainda mais. Devia superar a tentação. Se fechasse
os olhos com força, talvez deixasse de ver a luz
terna no olhar do marquês quando ele falara do
futuro, ou o fogo que o iluminara pouco antes de se
despedirem.
Talvez pudesse adormecer antes de mudar de
ideia.

Brandon percorreu o corredor com passos


silenciosos dirigindo-se aos aposentos do tio. Não
sabia o que diria a Edmund, mas sabia que
precisava reorganizar as emoções antes de tentar
conversar.
Ele bateu na porta e ouviu a voz ríspida do tio
autorizando-o a entrar. Edmund não havia mudado
de roupa. Ele estava ao lado da lareira, olhando para
as brasas que se apagavam lentamente. Um cigarro

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queimava entre seus dedos, e ele olhou para o
sobrinho com uma mistura de desânimo e tristeza.
— Responda sem fazer rodeios. Pediu a moça em
casamento?
— Não — Brandon respondeu. — E sim.
— Escute, estou velho demais para esses jogos.
Será que pode ser mais claro?
— Sente-se, tio.
Edmund recusou o convite.
— Alguém está tentando me fazer cair numa
armadilha de sedução. Alguém quer que eu seduza
Célia — revelou o marquês.
Edmund balançou a cabeça.
— Certamente que sim. Célia. E ela está fazendo
um excelente trabalho.
— Não, tio. Deve se lembrar do convite. Estou
convencido de que não foi ela quem o enviou. Se
pudesse vê-la no baile esta noite, saberia que ela
não foi ao evento por livre vontade. Ou melhor, ela
não sabia a que tipo de evento estava
comparecendo, e só ficou lá pelo tempo necessário,
até poder escapar sem sofrer nenhuma

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consequência.
— Isso é o que você diz. Mas não consigo ver em
Célia o anjo que está descrevendo.
— Nem eu vejo nela o demônio que insiste em
pintar. E acredito que alguém pode ter tentado
matá-la esta noite.
Edmund o encarou atônito.
— O quê?
Brandon contou sobre o vulto branco e a foice.
Edmund balançou a cabeça.
— O homem devia estar apenas procurando uma
parceira. Não tem provas de que ele perseguia a
srta. Rider. E se isso é mesmo verdade, ela pode ter
combinado tudo com esse suposto assassino. Teria
sido apenas uma coincidência o fato de tudo ter
acontecido justamente quando você estava por
perto?
— Não — respondeu. — Ele estava me seguindo
com a intenção de encontrá-la.
— Está vendo apenas o que deseja ver.
Brandon estava perdendo a paciência.
— De que me acusa, tio?

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— Paranóia seria um termo forte demais, não?
— Não vai conseguir me abalar com esse jogo.
Sei o que vi, e estou certo de que há mais em jogo
do que imaginei no início. Infelizmente, não tenho
respostas.
Finalmente Edmund sentou-se, olhando para
Brandon enquanto aspirava a fumaça do cigarro.
— Muito bem. Vou tentar ver seu lado da
questão. É possível que a srta. Rider esteja mesmo
correndo algum tipo de perigo. Suspeita da mesma
pessoa que mentiu a respeito da herança?
— Sim. O que não consigo encontrar é o motivo.
Edmund ficou quieto durante um momento,
fumando seu cigarro. Brandon ouvia o ruído do
relógio esmaltado sobre o console da lareira.
— Alguém deve querer a fortuna — o mais velho
deduziu. — Quem tem acesso ao dinheiro?
— Minha prima, e Milford e James Carstairs,
mesmo que só em segunda mão.
— E Célia.
— E Célia — Brandon confirmou. — Isto é, depois
que receber a confirmação, é claro. Porque ela

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encenaria o desaparecimento da fortuna?
— Para encontrá-lo. Só assim ela poderia forçá-lo
a pedi-la em casamento.
— Tio.
— Já examinei seu lado da equação, e reconheço
que ela faz sentido. Pode pelo menos considerar
meu ponto de vista?
— Não. Eu a amo, tio Edmund.
— Deus nos proteja!
— Por quê? O amor é algo tão horrível assim?
— Se o faz perder de vista seus objetivos.
— Eu não perdi meus objetivos de vista. Disse a
Célia que não poderia desposá-la enquanto minha
herança não estivesse nas minhas mãos.
— Contou a ela sobre seu pai? Revelou a
verdade?
— Apenas o suficiente para que ela entendesse
minha situação. E aceitasse esperar.
— Ela disse que vai esperar? Interessante.
— Vai dar uma chance a ela?
— Pequena — Edmund concordou. Depois aspirou
novamente a fumaça do cigarro. — Se insiste em

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investigar essa história, acho melhor ajudá-lo. E se
ela continuar esperando pacientemente por seu
pedido de casamento, como deve fazer uma jovem
dama, prometo rever minha impressão inicial. No
entanto, se ela insistir em se atirar nos seus braços,
não terei alternativa senão detê-la.
— Não a ameace.
— Previna-me quanto quiser. Sei qual é o meu
dever. Não deixarei você perder tudo por uma
mulherzinha trapaceira do interior. Se ela é a
caçadora de títulos que julgo ser, não será difícil
afugentá-la.
Brandon riu, causando estranheza no tio.
— Quanto mais insistir em intimidá-la, mais ela
lutará contra suas imposições. Conheço Célia.
— Você pensa que a conhece. Nos próximos dias,
veremos se a conhece realmente. Até lá, tome
cuidado. Não quero que entregue seu coração a
quem não o merece.

Célia não sabia o que esperar na manhã

Projeto Revisoras
seguinte. Uma criada havia passado seu vestido de
seda, e ela o vestiu para ir fazer o desjejum. Stanley
e Patrice já estavam à mesa, e pareciam tão
embevecidos um com o outro, que ela quase se
retirou.
Brandon não foi nada efusivo ao entrar na sala.
Já não se viam os sinais do amante impetuoso da
noite anterior. Ele era apenas polido. O desânimo de
Célia foi inevitável.
Esperava ter um momento com ele antes de
partir, mas o marquês parecia tão incomodado
quanto ela com as demonstrações afetivas de
Stanley e Patrice, e saiu da sala depois de beber
apenas uma xícara de chá. Só quando se reuniram
na porta principal e Stanley anunciou sua intenção
de acompanhá-las de volta à cidade, Brandon puxou
Célia de lado.
— Você está bem? — ele perguntou.
— Vou sobreviver. No entanto, ficaria muito feliz
se viesse connosco.
— Não posso. Tenho obrigações, e elas exigem
minha presença noutro lugar. Outro dia.

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Outro dia. Outra jovem dama deixaria o assunto
como estava, e Célia sabia disso. Mas ela não se
sentia capaz de ser tão própria.
— Quando poderei revê-lo?
— Se tudo correr bem, irei visitá-la amanhã.
Ele soava menos galante que James Carstairs e
igualmente pessoal. Queria beijá-lo. Depois da
proximidade física da noite anterior, certamente
deveriam conversar com maior intimidade hoje. No
entanto, o marquês se mostrava ainda mais
distante. Era como se houvesse desnudado a própria
alma à mulher amada e agora estivesse disposto a
tudo para encobri-la novamente. Só os olhares
curiosos de Stanley e Patrice a impediram de exigir
uma explicação. Célia contentou-se com uma
inclinação formal.
— Até amanhã então, milorde.

Parte dela temia que o dia passasse muito


devagar. Outra parte queria não se importar com
isso. A distância a entristecia. Teria errado ao

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interpretar os sinais do marquês na noite anterior?
Ou ele considerava a espera uma atitude tão passiva
que não permitia sequer que ela manifestasse sua
admiração? Isso sim, seria intolerável. Teriam de
chegar a um acordo quando ele aparecesse.
Na noite anterior ele havia mandado um
empregado à casa de lady Honória para informá-la
sobre a situação do grupo. Esperava ouvir um
sermão da austera senhora quando chegassem e por
isso não ficou surpresa quando o sr. Kinders as
instruiu para irem diretamente aos aposentos da
dama. Célia acreditava que Patrice tinha mais
motivos para temer o encontro, já que ela havia sido
a responsável por terem comparecido ao evento
onde, sua madrasta sabia, ocorreria todo tipo de
impropriedades e devassidão. E, no entanto ela
cintilava de felicidade.
— Posso contar as novidades à minha avó? —
Patrice perguntou a Stanley, que as acompanhara
até o interior da casa como um cãozinho fiel.
— Não, por favor. Eu mesmo quero contá-las.
Célia estava quase ansiosa pelo sermão, já que

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ele representaria uma chance de assistir ao anúncio.
Ela recuou para deixar o casal seguir na frente.

Lady Honória estava sentada diante da sua


escrivaninha quando o trio entrou, mas Célia não viu
os papéis que normalmente cobriam a pequena
mesa. Stanley logo começou seu emocionado relato,
e na medida em que ele ia recitando os fatos, a
carrancuda senhora ia ficando mais e mais
vermelha, como se fosse difícil manter a calma.
Seus olhos escuros pareciam lançar pequenos raios
mortais. Quando ele terminou de falar, lady Honória
apoiou as duas mãos sobre a mesa e encarou-os.
— Suponho que espera que eu deseje felicidades
ao casal?
Patrice olhou para Stanley com ar de adoração.
— Sim, minha avó, porque estou certa de que
serei feliz.
Stanley afagou a mão da mulher amada sobre
seu braço.
— E você, Célia? Não tem nada a dizer sobre o

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assunto?
Ela balançou a cabeça.
— O que está feito está feito. Eles parecem estar
decididos.
Lady Honória assentiu.
— De fato parecem. Infelizmente, tal coisa seria
impossível, uma vez que indivíduos desprovidos de
miolos, como esses dois, não são capazes de tomar
decisões.
Stanley ficou tenso. Patrice mordeu o lábio. Lady
Honória levantou uma das mãos, indicando que
nenhum dos dois devia falar.
— Patrice, você procurou essa situação para si
mesma. Hoje de manhã recebi dois visitantes que
vieram para manifestar repúdio por terem visto
Célia num evento tão deplorável. A reputação da
menina está arruinada.
— Minha reputação? — Célia gritou. — Eu nem
sabia que tipo de evento seria aquele, até chegar lá!
Ela olhou para Patrice com ar sério, e a mulher
mais velha piscou para conter as lágrimas.
— Ninguém pode maldizer Patrice ou Célia —

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Stanley interferiu corajoso.
— Lamentavelmente, Patrice parece não ter sido
notada — Lady Honória contou com evidente
desgosto. — Como ela não foi vista ao lado de Célia
pelos fofoqueiros que aqui estiveram, parece que
ninguém sabe ao certo se ela esteve ou não
presente ao tal evento de depravação.
— E como sabem que eu estava lá? — quis saber
Célia. — Usávamos fantasias!
— Pelo que ouvi, você subiu num banco e gritou
o nome do seu noivo, ou ex-noivo, que foi
igualmente estúpido para gritar seu nome de volta.
Não há muitos casais chamados "Stanley" e "Célia"
nesta cidade. Até idiotas como os que estiveram
aqui puderam fazer a associação correta.
— Isso é horrível! — Patrice choramingou. —
Célia está desonrada!
Célia encolheu os ombros.
— Não tenho mais nenhum interesse na corte.
— Não mesmo? — indagou lady Honória. — Que
sorte a sua! Duvido que ainda receba uma única
proposta de casamento de um cavalheiro honrado.

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— Ela encarou Stanley, que pareceu encolher sob o
olhar penetrante. — Sr. Arlington, eu o culpo por
tudo isso. Tinha um compromisso com Célia, e
parece ter se sentido muito à vontade para rompê-lo
sem refletir, com a mesma facilidade com que troca
suas gravatas.
— Com sua licença, eu refleti mais do que está
sugerindo. Sofri horas de agonia!
— Stanley! — Patrice lamentou.
Ele gemeu e bateu novamente na mão dela.
— Desculpe-me, meu amor. Não foi isso que eu
quis dizer. Não lamento minha decisão. No entanto,
odeio deixar Célia em situação tão delicada.
— Não vou permitir que a deixe — lady Honória
anunciou. — Não o libero do seu compromisso com
ela. Vai se casar com minha bisneta assim que
pudermos obter uma licença.

Capítulo XI

Projeto Revisoras
Assim que Célia e os outros partiram, Brandon foi
procurar lady Brompton. O interior da casa parecia
ser muito mais apropriado do que o ambiente da
noite passada, a julgar pela sala onde fora levado
para esperar por ela. Lady Brompton, no entanto,
não correspondia à imagem sóbria criada pelo lugar.
Ela tinha os olhos inchados e vermelhos, seu rosto
estava pálido, e seu nariz escorria sem parar. Alguns
convidados ainda se encontravam na residência,
porque Brandon ouvia ruídos estranhos no corredor,
como se alguém resfolegasse ou. vomitasse!
Apesar da aparência deplorável, ela parecia
julgar a própria memória elogiável. Ao ouvir o sutil
questionamento de Brandon, ela insistiu que o
visitante devia estar enganado.
— Recebi todos os meus convidados, lorde
Hartley, e não me lembro de nenhum que tenha
estado fantasiado de Morte. Se viu realmente
alguém vestido dessa maneira, devia ser um
invasor.
Ela também foi efusiva ao oferecer suas

Projeto Revisoras
desculpas a lady Honória.
— Sempre convido a sra. Rider, em nome dos
velhos tempos — confessou. — E ela sempre recusa
meus convites. Como podia saber que dessa vez ela
o aceitaria, ou que traria a enteada? — Ela piscou
como se pretendesse flertar. — É claro, eu não teria
desfrutado do prazer da sua companhia, não fosse a
insistência de Patrice para que eu também o
convidasse.
Então, Patrice havia manipulado a lista de
convidados para incluir seu nome nela. Talvez
houvesse enviado o bilhete, afinal. Brandon
agradeceu à mulher e voltou para casa com a
cabeça cheia de possibilidades.
Edmund o esperava.
— Tenho notícias sobre seu novo brinquedo.
Brandon ergueu uma sobrancelha.
— Brinquedo?
Edmund assentiu, depois o convidou a segui-lo
até a biblioteca. A foice estava apoiada contra uma
estante. Seu tio a pegou com uma das mãos.
— Seu cocheiro perguntou o que poderia fazer

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com isto. Sugeri que a devolvêssemos ao legítimo
dono. nosso jardineiro.
— Então. Um dos nossos?
— Exatamente. Reconheci a ferramenta de
imediato. — Ele a ergueu um pouco mais para
mostrar as iniciais do empregado gravadas no cabo.
— Como uma das nossas ferramentas pode ter
ido parar noutra propriedade?
— Talvez eu possa ajudá-lo a entender. O sr.
Neighbors, nosso jardineiro, lembra-se de tê-la
levado à cidade para limpar uma área que lady
Honória desejava replantar. Ele não voltou a ver a
foice desde então.
Brandon sabia que tipo de ideia Edmund
desejava promover. Ali estava a prova de que Célia
criara toda a farsa. Mas ele tinha outra teoria.
— Então, minha prima teve fácil acesso à foice.
Nossa anfitriã de ontem à noite revelou-me que
Patrice a procurou para solicitar a inclusão do meu
nome na lista de convidados.
Edmund devolveu a ferramenta ao lugar de onde
a tirara.

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— Interessante. Mesmo assim, não consigo
acreditar que Patrice tenha tido a astúcia necessária
para arranjar esse seu encontro com a Morte. Temo
que, mesmo tendo várias peças desse quebra-
cabeça, ainda não tenhamos montado o conjunto e
enquadrado o cenário na sua moldura apropriada.
Ou a moldura que Edmund desejava ver,
Brandon pensou enquanto ele e o tio se preparavam
para ir à cidade naquela tarde, onde participariam
de uma sessão do Parlamento. Brandon não podia
negar que Patrice era incapaz de arquitetar todas as
ameaças impetradas contra Célia nos últimos
tempos. Mas. quem mais poderia ser? Desconhecer
o inimigo provocava uma horrível sensação de
impotência! Recusava-se a dizer a Célia que não
encontrara o responsável por seu tormento. Se ela
podia esperar com paciência por seu pedido de
casamento, certamente ele também poderia
encontrar aquele que a ameaçava. Não podia
expressar seu amor por ela publicamente, mas faria
com que ela o sentisse por meio de coisas que
realmente contavam.

Projeto Revisoras
Como salvar sua vida.

Célia tentou argumentar com lady Honória, mas


foi inútil. Só conseguiu receber mais uma censura
por seu comportamento.
— Deixou até o jovem Carstairs esperando hoje
cedo, e foi você quem o chamou aqui — lady
Honória apontou severa. — Agora ele terá de voltar
amanhã para vê-la. Que tristeza é detectar numa
jovem dama comportamento tão rude.
James Carstairs tiraria proveito de uma boa lição
sobre paciência e disponibilidade, mas ela decidiu
não dizer nada a lady Honória. Já havia discordado
demais recentemente. Quando deixou a companhia
da viúva, sentia-se tão frustrada quanto Patrice e
Stanley pareciam estar.
— Não dê ouvidos a ela, Stanley — Célia o
preveniu. — Não me importo com minha reputação
em Londres.
— Com sua licença, não posso concordar com o
que diz. Compreendo que causei grandes dissabores

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aqui. Talvez devamos nos casar, afinal.
Patrice explodiu em lágrimas e saiu da sala
correndo. Stanley tinha os ombros caídos. Célia
bateu no seu ombro.
— Vá atrás dela, Stanley. Você a ama. É com ela
que deve estar.
Assentindo, ele também se retirou.
Célia tinha os punhos cerrados quando se dirigiu
ao quarto para mudar de roupa. Que direito tinha
lady Honória de regular seu comportamento? Uma
coisa era criticar suas ações, outra era decidir como
devia remediá-las. Era capaz de assumir a
responsabilidade pela própria vida.
A melhor coisa que podia fazer, ela decidiu
enquanto se vestia, era passar o resto do dia com
Martin. Assim poderia esquecer Brandon, e sabia
que o irmão não a criticaria.
Mas estava enganada sobre esses dois pontos.
Martin a recebeu com entusiasmo:
— Quando será o casamento? — perguntou.
A questão a deteve ainda na porta.
— Casamento?

Projeto Revisoras
Ele assentiu, deixando de lado a lousa onde
estivera escrevendo. Fileiras muito retas de números
cobriam a superfície escura.
— Deve desposar Stanley imediatamente. Lady
Honória decidiu.
— Mas o que é isso? Acabei de deixá-la nos seus
aposentos!
— Ela me contou ontem à noite — Martin revelou
satisfeito, como se orgulhasse por estar de posse de
tantas informações importantes.
Ontem à noite? Enquanto ainda estavam no
baile? Como lady Honória podia saber sobre a fofoca
antes mesmo de Célia a ter provocado? Que
diabólica! Havia sido ela quem enviara a nota a
Brandon no seu nome? E por que, se pretendia
casá-la com Stanley?
Talvez quisesse tirá-la do caminho para casar
Patrice com Brandon.
— Com licença — Célia pediu ao irmão.
— Mas, Célia. — Ele tentou retê-la.
A jovem dama ergueu uma das mãos e partiu
sem dar explicações.

Projeto Revisoras
Decidida, voltou aos aposentos de lady Honória,
e nem se deu ao trabalho de esperar para ser
recebida depois de bater na porta.
Sally transferiu os papéis da mesa para a cadeira
atrás dela e encarou-a com ar de censura.
— O que quer agora? Lady Honória não pode ser
perturbada.
— Lady Honória já está bastante perturbada, ou
não pensaria poder decidir com quem devo me
casar.
A velha senhora não estava no quarto. Quando
retornou à saleta, Célia viu Sally guardando os
papéis num cofre na parede e escondê-lo com uma
tela retratando uma paisagem.
— Onde ela está?
— Não ia gostar de saber — respondeu a criada
de má vontade, cruzando os braços sobre o peito
magro. — Não tem direitos aqui. Volte para o seu
quarto e agradeça ao céu por minha senhora ainda
prover um teto sobre sua cabeça.
— Eu poderia lhe dar o mesmo conselho. De onde
venho, as criadas se comportam de maneira mais

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cortês e adequada.
— De onde você vem não existem criadas como
eu. Você cheira a mato.
— E você tem um cheiro único que é só seu. E
horrível. — Célia saiu da suíte antes que Sally
pudesse responder.
Procurou pelo sr. Kinders, que informou que lady
Honória havia pedido a carruagem. Ela ainda correu
até a porta da frente, mas tudo que conseguiu ver
foi o veículo passando pelo portão da propriedade.
Aonde iria sua senhoria com tanta pressa? E
porque Célia tinha o pressentimento de que não
gostaria da resposta?

Brandon e Edmund dirigiam-se à Câmara dos


Lordes quando Timms correu atrás deles. Um olhar
para o lacaio, e Brandon soube que havia algo de
errado. O homem era sempre confiante e elegante,
mas agora tinha as mãos trêmulas e o rosto pálido.
— O que é isso, Timms? — ele perguntou,
detendo o tio com um gesto de mão.

Projeto Revisoras
Timms engoliu em seco, olhando para os dois
lados como se esperasse ver um agente francês
escondido em Westminster. Depois ele se inclinou e
baixou a voz.
— Lady Honória — ele disse. — Ela veio.
Brandon foi tomado por um terrível sentimento.
Havia acontecido alguma coisa com Célia? Não
esperara pelo retorno de Arlington, e por isso ainda
não sabia como tudo transcorrera na casa da velha e
autoritária senhora.
— Onde está ela? — Edmund indagou solene,
olhando para os dois lados da rua.
Brandon virou-se e viu a carruagem da tia atrás
da dele. E voltou sobre os próprios passos.
— Boa sorte, milorde — desejou o lacaio
preocupado.
Brandon seguiu em frente, porém mais devagar.
Não havia nem pensado que podia haver outro
motivo para a súbita chegada da sua tia. Se sabia
alguma coisa sobre seu comportamento na noite
anterior, podia estar ali para pô-lo à prova. Das
ameaças a Brandon à quase sedução de Célia, tinha

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muitas atitudes censuráveis a justificar.
Ele ergueu os ombros, jurando não deixá-la
detectar nenhuma mudança na sua postura. Então
se aproximou do veículo, suas maneiras beirando a
perfeição. Quando o cocheiro abriu a porta, ele se
inclinou para lady Honória, depois entrou. Edmund o
seguiu.
— Honória — cumprimentou o homem mais
velho.
Ela assentiu com frieza.
— Desculpe tomar seu tempo, irmão, mas tenho
notícias inquietantes de Célia, e achei que deveriam
ouvi-las.
O anúncio quase destruiu o controle de Brandon.
Foi necessária toda a disciplina aprendida ao longo
dos anos para permanecer onde estava, quieto,
ouvindo com aparente calma.
Honória o observava atenta.
— Sei tudo sobre seu envolvimento na pequena
aventura de ontem à noite.
Brandon recusou-se a morder o isco, apesar de
sentir a temperatura subindo no interior da

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carruagem.
— A culpa foi inteiramente de Patrice — ela
continuou, porém dirigindo-se a Edmund. — Às
vezes me pergunto se aquela criatura é mesmo meu
sangue e minha carne.
— Não aconteceu nada que deva preocupá-la —
Brandon interferiu.
O sorriso da mulher era gelado.
— Não foi o que ouvi dizer.
Ela não estaria dando tantas voltas, se Célia
corresse algum perigo real. Por isso Brandon
relaxou.
— Estou ouvindo, minha tia.
— Para começar, seu amigo Arlington interessou-
se por Patrice.
Edmund ergueu uma sobrancelha.
—Não havia me contado esse detalhe — ele disse
a Brandon.
— Achei que esse era um anúncio que cabia a ele
fazer.
— Os dois se merecem, se querem saber minha
opinião — Honória prosseguiu com desdém. —

Projeto Revisoras
Infelizmente, conceder a mão de Patrice a esse
senhor não vai ajudar em nada a restaurar a
reputação de Célia. Ela foi vista. Como pode ter sido
tão estúpida?
Brandon franziu a testa.
— Era um baile de máscaras. Imagino que ela
tenha contado com o anonimato.
— Soube que ela subiu num banco e gritou o
nome do sr. Arlington. Em que podia estar
pensando? Comportamento tão vulgar não teria sido
tolerado na minha geração.
Brandon rangeu os dentes.
— Posso assegurar que qualquer pequena
infração da srta. Rider não foi nada, comparada ao
restante do evento.
— Ele tem razão — Edmund concordou. — No
entanto, suponho que todas as outras pessoas
tenham permanecido anônimas.
— Precisamente — lady Honória reforçou. —
Agora ela terá de se casar com Arlington para calar
os comentários.
Brandon inclinou-se para frente.

Projeto Revisoras
— Casar com Arlington? Ele não rompeu o
noivado?
— Ele tentou. — O tom de voz de Honória não
escondia seu desgosto. — Mas, francamente, ela não
tem escolha. É uma pena. Agora terei de enviar uma
nota de justificativa a lorde Wilton — ela suspirou.
A temperatura continuava subindo. Brandon
puxou a gravata.
— Wilton a pediu em casamento?
— Ele foi o terceiro. Rejeitei os dois primeiros por
serem caçadores de fortuna. Mas Wilton é uma
possibilidade distinta.
— Um título, mesmo que seja apenas de
visconde, uma fortuna no seu nome, um poder
considerável entre os lordes. — Edmund se
mostrava impressionado. Ele olhou para Brandon.
— A srta. Rider teria sido uma felizarda se o
desposasse. Não surpreende que ela tenha desejado
aceitar o pedido.
— A srta. Rider aceitou?
Lady Honória moveu uma das mãos com desdém.
— Teria aceitado, especialmente agora que o

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traiçoeiro sr. Arlington revelou suas verdadeiras
cores. Além do mais, como sua bisavó, caberia a
mim aceitar ou rejeitar a proposta.
— Pelo que sei, a srta. Rider é maior de idade —
Edmund apontou. — E ela parece ter ideias bem
claras quanto ao tipo de cavalheiro que prefere
desposar.
Brandon ignorou o comentário sarcástico. Podia
sentir o suor escorrendo por suas costas. Lady
Honória virou os olhos.
— Arlington. Não devia ter permitido que Patrice
a mantivesse no campo. Se pelo menos a tivesse
sob meu comando antes. Mesmo agora, estou
convencida de que ainda posso guiá-la. Ela é uma
menina obediente. E Wilton é um excelente partido!
Brandon engoliu uma gargalhada amargurada.
Célia jamais aceitaria o adjetivo obediente como um
elogio. Mas não podia explodir em gargalhadas
diante de lady Honória. Além do mais, ela estava
certa sobre Wilton. Alexander Devonshaw, lorde
Wilton, era um dos solteiros mais cobiçados da
sociedade local. Atraente, afável, honrado. Wilton

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era tudo que qualquer mulher desejaria para a filha.
E não tinha nenhuma maldição de família para
superar.
— Agora entende porque vim, Edmund — lady
Honória estava dizendo. — Preciso da sua ajuda.
— Compreendo o motivo da sua preocupação,
mas não vejo como posso ajudá-la. A srta. Rider
parece ter uma forte propensão para meter-se em
encrencas, como já comentei com Hartley.
Sua tia o observou por um instante. A força
daquele olhar fez a temperatura subir mais alguns
graus no interior da carruagem.
— Refere-se ao fato de ela ter ocupado o lugar
da governanta do irmão. Sim, foi uma atitude
estranha, reconheço. Parece que ela não confia em
nós. Considero isso muito triste, mas já perdoei a
jovem por essa falta.
— E a situação envolvendo sua fortuna? —
Edmund perguntou. — Hartley foi forçado a interferir
nessa questão. Soube que ela ainda não pôs as
mãos no dinheiro.
Seu tio fazia Célia parecer uma verdadeira

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aventureira, e o tratamento injusto o estava
enojando.
Lady Honória não se mostrou tão preocupada
com a questão da herança.
— Trata-se apenas de formalidade. Ela é a
herdeira. O fato é que Célia não tem necessidade de
acessar o dinheiro antes de se casar.
Edmund cruzou os braços sobre o peito.
— Então, fará com que ela sobreviva da
propriedade Pellidore enquanto espera? Não creio
que seja uma decisão apropriada.
Lady Honória o encarou.
— Parece particularmente defensivo, meu irmão.
A moça o ofendeu de alguma maneira?
— Meu tio teme que a srta. Rider nos esteja
fazendo de bobo — Brandon explicou.
— Ora! — Lady Honória parecia insultada. —
Edmund, você é guardião há tempo suficiente para
não ver perigo numa criança como aquela. Pretendia
pedir que a assistisse agora, mas vejo que isso é
impossível. Tomarei as providências para casá-la
com Arlington imediatamente.

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— Por favor, faça isso — Edmund disparou.
Brandon sentia o suor na testa. Ele respirou
fundo.
— O sr. Arlington e a srta. Rider concordam com
isso?
Lady Honória encarou-o.
— Como disse, ela não tem escolha.
Ele sustentou o olhar penetrante.
— Ela tem.
— Oh? — Lady Honória e Edmund o encararam
ao mesmo tempo.
Era agora ou nunca.
— Sugiro que Célia Rider se case comigo —
Brandon disparou corajoso.

Capítulo XII

Célia pretendia interpelar lady Honória assim que


ela retornasse. Primeiro, tinha de acalmar-se. Esse

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era um momento em que se sentia aliviada por não
poder seguir de imediato o impulso do seu coração.
Lady Honória não era mulher de aceitar desafios.
Patrice ainda soluçava no seu quarto por conta da
suposta traição de Stanley!
Se queria mesmo deter a interferência de lady
Honória, tinha de agir com cautela. Infelizmente,
logo ela descobriu que a velha senhora não era a
única a criar problemas ali. Estava caminhando pelo
jardim para recompor-se, quando um dos lacaios a
abordou. Célia chegava a ter pena do visitante que,
provavelmente, era mais um pretendente. Dirigiu-se
ao salão pronta para dizer ao cavalheiro que não
estava com disposição para tolices poéticas, mas
parou ao ver lorde Pellidore.
— Assustada, srta. Rider? — ele indagou com
uma inclinação de cabeça. — Não se preocupe.
Desejo apenas ter uma palavra com você.
Célia não queria discutir com o tio de Brandon.
No entanto, teve de recebê-lo como cabia a uma
jovem dama, e os dois se sentaram no salão em
poltronas opostas.

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— O que quer para deixar meu sobrinho em paz?
— ele disparou sem rodeios.
— Do que está falando?
— Gostaria de saber ao certo. No entanto,
previno-a de que estou atento ao seu jogo.
— Só jogo com Martin, senhor. E creio que
devemos encerrar essa conversa agora.
— Gosto muito do meu sobrinho para desistir
com essa facilidade, senhorita. Pensou que eu
ignoraria a maneira como lidou com a srta. Turner?
— Ora, eu mal conheço essa senhorita!
— Nós dois sabemos que isso não é verdade.
— Aparentemente, julga saber muito mais do que
eu sei, milorde.
— Ah, agora entendo como Brandon foi envolvido
por suas mentiras, mesmo sendo sempre tão
cuidadoso.
Célia levantou-se.
— Receio não estar disposta a ouvir mais
censuras, lorde Pellidore, especialmente se elas se
resumem a insinuações e ameaças.
Ele também se levantou.

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— Se quer que eu seja mais claro, saiba que a
srta. Turner e toda sua família adoeceram
subitamente e foram forçados a buscar refúgio no
campo para se recuperarem. Não voltarão antes do
final da Temporada. Triste, não? E muito
conveniente para você.
— Acha que tenho alguma culpa nisso? Como eu
poderia ter engendrado tal coisa?
— Minha irmã já foi muito hábil com as ervas.
Não tenho dúvidas de que fez uso dos seus livros de
receitas.
Essa era uma atitude que soava mais própria de
Sally. No entanto, nem ela teria atravessado a
cidade para envenenar uma família inteira, quando
havia tantos inimigos na sua soleira. Célia balançou
a cabeça.
— Vejo que está decidido, e por isso não perderei
meu tempo alegando inocência. Se está tão certo da
minha culpa, sugiro que fale com seu sobrinho.
Acredito que ele se importa comigo.
O homem ficou rígido como se houvesse sido
fisicamente agredido.

Projeto Revisoras
— Então, ele já esteve com você? Cheguei tarde
demais?
O rosto do lorde havia empalidecido de tal
maneira, que ela quase sentiu pena dele.
— Concordamos em esperar até que ele possa
me fazer a proposta — disse.
— Quando ele a pedir em casamento, recuse-o —
ele ordenou. — Farei com que seja bem paga por
isso.
Quando o homem se cansaria de insultá-la?
— Está esquecendo, lorde Pellidore, que não
preciso do seu dinheiro. Sou uma herdeira.
— Oh, sim, a suposta fortuna! Escute bem, não
sei o que prometeu a James Carstairs para obter sua
ajuda nessa farsa, mas se tivesse realmente uma
fortuna, já a teria recebido.
— Está enganado. Não preciso de dinheiro, e se
decidir me casar com seu sobrinho, será por amor.
— E é assim que deve ser — lady Honória
anunciou da porta.
Célia recuou um passo, e lorde Pellidore virou-se
sobressaltado.

Projeto Revisoras
— Honória, não creio que esse assunto seja da
sua conta — disse.
— É da minha conta, se veio ameaçar minha
bisneta sob meu teto. E pensei que fosse um
cavalheiro.
Os dois trocaram um olhar furioso que se
estendeu por alguns momentos, e Célia teve a
impressão de poder ver a animosidade erguendo-se
entre eles como uma nuvem de vapor. Então,
Edmund despediu-se com uma rápida inclinação do
tronco e caminhou para a porta.
Lady Honória balançou a cabeça.
— Não dê ouvidos a ele, Célia — ela ordenou. —
Espero que aceite a proposta do meu sobrinho.
— Seu sobrinho não me fez nenhuma proposta.
Lady Honória ergueu uma sobrancelha e se
sentou no sofá.
— Começo a pensar que perdi meu dom. Todos
com quem falam reagem de maneira defensiva!
Sente-se, menina.
Seu tom era autoritário, o que só tornou Célia
ainda mais precavida. No entanto, permanecer em

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pé seria petulante e infantil. Por isso ela se sentou.
— Peço desculpas por minha atitude imprópria —
ela disse. — Apenas me preocupo por ter tomado
para si a responsabilidade de me ver casada.
— Ora, mas. é claro que desejo vê-la casada.
Que mulher não teria o mesmo desejo para a
bisneta?
Havia algo de errado ali. Os olhos escuros de lady
Honória escondiam segredos sombrios. Célia podia
sentir que ela planeava alguma coisa. Mas, como
fantasmas, suas ideias não podiam ser delineadas.
— Sua generosidade é desperdiçada, senhora.
Posso cuidar de mim mesma e da minha vida. Faço
isso há anos.
— De fato? Reclusa em Somerset? O que sabe
sobre os requisitos da vida em sociedade? Veja com
que facilidade deixou Patrice arrastá-la para uma
situação na qual sua reputação foi prejudicada.
— Serei mais astuta na próxima vez.
— Na próxima vez pode acabar morta, criança.
Célia estremeceu. Como se sentisse sua
fraqueza, lady Honória inclinou-se para frente e

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sorriu. O sorriso só aumentou o desconforto.
— Não creio que já tenha compreendido, mas é
uma jovem dama muito popular.
— Obrigada.
— E também é uma jovem dama de muita sorte.
Sabia que o visconde Wilton está interessado na sua
mão?
— Wilton? Mas. não insistiu para que eu
desposasse Stanley?
— Ele não é um bom partido. Um rapaz do
campo, sem ligações e com uma propriedade que,
apesar de grande, não tem nenhuma importância
estratégica! Wilton é uma jóia rara.
— Não importa, porque não me casarei com
nenhum deles.
— Seletiva, é? Vai recusar meu sobrinho,
também?
— Lorde Hartley não me pedirá em casamento. E
não estou interessada em matrimônio nesse
momento.
— Pena não ter pensado nisso antes de
comparecer ao baile de lady Brompton.

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Célia suspirou.
— Já discutimos esse assunto, e eu já disse que
não me incomodo com os comentários.
— Não? Mesmo que afetem aqueles que a
cercam?
— Quem mais poderia ser afetado?
— Patrice, por exemplo. Alguém vai acabar
lembrando que ela a acompanhava, e as perguntas
serão inevitáveis. Ou ela também estava lá, e nesse
caso terá a reputação tão danificada quanto a sua,
ou não estava, o que a fará parecer negligente como
madrasta.
— São consequências que correspondem aos atos
de Patrice. Não pode me culpar por elas. Se devo
pagar pelo que fiz, não sei porque ela deveria ser
poupada.
— E não se incomoda em poupá-la.
— Não gostaria de vê-la sofrer indevidamente, é
verdade, mas, com o iminente casamento com
Stanley, não devemos nos preocupar com sua
reputação.
— E o meu sofrimento também não tem

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importância, suponho.
Célia sorriu.
— Não sofrerá nenhuma consequência. Todos
que conheço têm tanto medo da sua autoridade, que
ninguém se atreveria a prejudicá-la de um jeito ou
de outro.
Lady Honória também sorriu.
— É muita astúcia sua notar, minha querida. No
entanto, está errada quanto ao pedido de
casamento do meu sobrinho. Ele estará aqui às oito.
Sei disso porque ele mesmo me contou.

Brandon estava sentado num canto do White's,


tocando o anel que havia comprado naquela tarde.
Havia prometido a lady Honória que se apresentaria
às oito para pedir Célia em casamento. E estaria lá.
Pela primeira vez, o destino havia conspirado para
atender seu desejo, em vez de obrigá-lo a seguir os
ditames da sua herança. Por que, então, se sentia
tão deprimido?
— Aí está você! — Stanley exclamou, olhando em

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volta como se procurasse uma cadeira. Como
Brandon havia buscado a região mais isolada do
estabelecimento, ele não teve sorte na sua busca.
Sempre muito desinibido, ele foi buscar uma cadeira
noutra mesa próxima e se sentou. — Temos um
problema, Hart. Célia está em maus lençóis, e
parece que sou o único capaz de safá-la dessa
encrenca.
— Do que está falando?
Stanley repetiu o relato que ele já havia escutado
de lady Honória.
— Como vê — concluiu —, lady Honória está
certa de que o casamento é a única salvação para
Célia.
Brandon abriu a mão para mostrar o anel.
— Concordo. E ela vai se casar comigo.
Para sua surpresa, os olhos verdes de Stanley se
encheram de lágrimas.
— Com sua licença, Hart, esse é o ato mais nobre
que já presenciei. Você é mesmo surpreendente.
Primeiro encontra a fortuna de Célia, depois me
acolhe na sua casa, e ainda salva Patrice e Célia do

Projeto Revisoras
defloramento. Não me importo com o que dizem.
Você é um homem de alma grandiosa.
— Arlington.
— Não, não, estou falando sério. Você me
inspira, sabe? Mas não posso permitir que se
sacrifique por mim. É meu dever desposar Célia. —
Ele limpou os olhos com a manga da jaqueta.
— Pensei que amasse minha prima.
— Minha devoção a Patrice é completa. Jamais
senti por outra mulher o que sinto por ela.
— Nem mesmo por Célia?
— Nem mesmo por ela. Célia é uma mulher
admirável, diferente das outras da sua idade. Não é
confusa nem afetada, não perde tempo com
vaidades tolas. Se Célia está zangada, ela diz de
uma vez e esclarece a situação.
— Já percebi — Stanley sorriu.
— Creio que foi sua fibra que me atraiu no início.
Achei que ela poderia enfrentar meu pai, mesmo
que eu nunca fosse capaz disso.
— Se é isso que procura numa esposa, saiba que
minha prima jamais desempenhará tal papel.

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Stanley sorriu.
— Não. Mas ela não precisa desempenhá-lo.
Quando estou com Patrice, eu sou o mais forte. Ela
me faz sentir como um daqueles cavaleiros das
histórias que Célia costuma contar. Seria capaz de
qualquer coisa pela felicidade da minha dama.
Poderia até revelar o que sinto a meu pai.
Agora sim, ele acenava com uma mudança
importante. Desde que conhecera Stanley, Brandon
tivera a impressão de poder ver a sombra do pai
dele seguindo seus passos, uma força superior
capaz de determinar o destino do filho. Mostrar-se
disposto a enfrentá-lo era realmente uma prova de
que o amor por Patrice havia fortalecido Stanley.
— Você é um homem de sorte, Arlington. E não
pode abrir mão de tanta felicidade. Eu desposarei
Célia.
— Está certo do que sugere, Hart? Acha que
poderá ser feliz com ela?
— Prefiro pensar que sim. Mas há algo que
precisa me dizer. Meu tio está certo de que Célia é
uma aventureira. Você a conhece bem. O que acha

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disso?
Stanley abriu a boca para protestar, mas deteve-
se como se refletisse.
— Meu pai diz a mesma coisa. Por isso ele
insistiu na prova da fortuna antes de permitir nosso
casamento.
— E mesmo assim, você acreditou nela.
Stanley sorriu.
— Eu gostava dela. E não se pode dizer que ela
não seja uma bela mulher. Existem poucas como ela
em Somerset. E ainda havia a fortuna.
— Então, por essa fortuna, pela aparência de
Célia, por sua força de caráter, você ignorou a
possibilidade de ela estar tramando para apoderar-
se das suas terras.
— Suponho que pode ter sido assim. E eu a
conheci antes de ela partir para a escola. Além do
mais, Hart, confiar é acreditar em alguma coisa,
mesmo quando a prova em contrário parece estar
diante dos seus olhos.
— Para mim, isso soa mais como idiotice.
— Não é confiança. É estar certo de alguma coisa

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ou de alguém. Célia, por exemplo. Muitas coisas
nela podem levar as pessoas a pensar que é uma
aventureira. Quando quer alguma coisa, ela persiste
até conseguir. Tem esse tipo de determinação,
entende?
— Também já pude ver essa característica nela.
— Devia vê-la em Somerset. Há uma vala entre
nossas propriedades. Ela decidiu que a saltaria.
Lembrou-me de vê-la tentar diversas vezes e por
vários meses. Montada, então, ela chegou ao
extremo de tomar emprestado o valioso garanhão
do meu pai. Não imagina o sermão que tive de ouvir
por conta disso.
Brandon podia imaginá-la flutuando por sobre a
vala, aterrando graciosamente do outro lado.
— Presumo que ela tenha realizado essa
façanha?
— Oh, sim, mas caiu várias vezes antes de
conseguir. Se quer saber minha opinião, considero
um pouco assustador quando uma mulher
demonstra esse tipo de determinação. Ela é capaz
de ignorar a própria segurança e a de outras

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pessoas para conseguir o que quer.
Brandon não podia discordar. No entanto, a
perspectiva era animadora tanto quanto era
assustadora. O que essa mulher seria capaz de
fazer, considerando as circunstâncias certas e o
encorajamento necessário?
— Foi assim com a fortuna — continuou Stanley.
— Ela estava tão determinada a receber o dinheiro,
que veio para Londres sozinha com aquele plano
ousado de passar pela governanta de Martin. E
parece que também nessa empreitada ela terá
sucesso. Em resumo, Hart, ela pode ser uma
aventureira, de fato. Coragem para isso não há de
faltar em Célia.
— Dinheiro é apenas uma das coisas que uma
aventureira cobiça, Arlington. Elas também buscam
terras e ligações de família.
— E títulos?
— Sim, títulos. — Era isso que Célia desejava
agora? Não Se fosse, já estaria se casando com
lorde Wilton. Sim, ele era apenas um visconde e,
casando-se com Brandon, Célia seria uma marquesa

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de considerável fortuna, e não deveria nada a
ninguém por isso.
Ele sentiu a mandíbula tensa e olhou para
Stanley, que o estudava com ar preocupado.
Brandon inclinou a cabeça.
— Não tema, Arlington. Sua história não me fará
mudar de ideia. Ainda esta noite, pedirei a mão de
Célia. Veremos qual será sua resposta.

Capítulo XIII

Célia apoiou as costas na parede e sentiu o


mundo girar mais depressa. Lady Honória inclinou a
cabeça.
— Estou surpresa. Pensei que gostaria de saber
que meu sobrinho pretende pedir sua mão.
— Estou. confusa — ela respondeu, levantando-
se para andar de um lado para o outro. — Não.
Chocada descreve melhor meus sentimentos.

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Quando ele manifestou essa intenção, em que
circunstâncias?
— Que diferença pode fazer essa informação? Ele
vai fazer o pedido. Se for inteligente como penso
que é, você vai aceitar.
Na noite anterior teria sido sua maior alegria
aceitar. Agora, não podia deixar de pensar em que
poderia ter acontecido para fazê-lo mudar de ideia.
Brandon havia sido tão veemente sobre a
necessidade de esperar! E a tratara com frieza
naquela manhã. Aparecer à noite com uma proposta
de casamento não fazia sentido. A menos, é claro,
que ele simplesmente não soubesse o que queria.
Ou que não estivesse muito equilibrado.
Ela estremeceu. Lady Honória deve ter percebido
o movimento como sinal de fraqueza, porque
insistiu:
— Pense bem, menina! Ele tem uma fortuna igual
ou maior que a sua! Seu título é mais antigo do que
o de Wilton e mais importante. Por essa ligação,
você removerá toda mácula da classe mercantil que
ainda possa haver no seu passado. Ele é até

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atraente! Será a inveja de todas as mulheres de
Londres.
— Não consigo entendê-la. Hoje cedo parecia
decidida a me casar com Stanley, e agora me
aconselha a desposar lorde Hartley.
— Hoje cedo, não tínhamos um pedido de lorde
Hartley. Agora temos. Aceite-o. Não pode ter
certeza de que ele o repetirá em momento mais
conveniente.
Não, não podia. No entanto, não podia concordar
com um casamento dessa maneira fria, calculista.
— Se lorde Hartley pretende pedir minha mão,
ouvirei seu pedido quando ele vier.
A resposta enfureceu lady Honória, que só
controlou a ira à custa de muito esforço.
— Talvez deva se recolher aos seus aposentos
para considerar o assunto.
— Um momento. Quero ter certeza de que nos
entendemos. Enquanto viver sob seu teto, saberei
honrar as regras da sua casa. Entretanto, não
aceitarei que tome decisões por mim. Patrice pode
estar contente com esse modo de vida. Eu não o

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aceitarei jamais.
— Cuidado, menina. Ainda não tem uma fortuna.
Até herdar, terá de viver comigo.
Havia uma ameaça velada naquelas palavras,
mas pelo menos agora falavam diretamente.
— Tenho consciência de que paga minhas contas.
No entanto mantenho o que disse. Respeitarei seus
desejos, desde que eles não contrariem os meus.
Boa tarde, lady Honória. E Célia se retirou.

Brandon chegou as oito em ponto, conforme


havia prometido. Esperara pelo tio no White's, certo
de que Edmund desejaria acompanhá-lo. Para sua
surpresa, ele anunciara ter outro compromisso e
sugeriu encontrá-lo no clube mais tarde. Brandon
partira acompanhado apenas por Stanley.
— Aquele sujeito com seu tio não era o
advogado? — Stanley perguntou quando se
acomodaram na carruagem. — parece que qualquer
pessoa pode entrar naquele clube!
— Já notei — Brandon respondeu. Esperava que

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o tio houvesse ido procurar Carstairs para tratar da
fortuna Pellidore, não para interferir em assuntos
alheios.
Na casa de lady Honória, Patrice desempenhava
o papel de anfitriã. Brandon não teve nenhuma
dificuldade para encorajar um momento de
privacidade entre ela e Stanley. Assim que os dois
começaram a conversar, ele atraiu Célia para o
outro lado da sala.
Ela não parecia feliz por vê-lo. Seu rosto estava
pálido, e os olhos pareciam mais cinzentos e
profundos, como se a cor houvesse desaparecido
com a alegria que os iluminava. A urgência em tocá-
la era quase incontrolável.
— Você está bem?
Ela conseguiu sorrir, embora sem muito
entusiasmo.
— Um pouco cansada. Parece que só tive
conversas difíceis no dia de hoje. Sabe que seu tio
esteve aqui?
— Não! — Era difícil controlar a fúria. — E a
ofendeu?

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— Muito. Porque é tão indelicado?
— Porque teme o que você possa fazer comigo.
— De que maneira eu poderia ameaçar o
poderoso marquês de Hartley?
— Conquistando meu coração.
Um brilho repentino inundou os olhos dela.
Esperança?
— Devemos conversar, Célia — ele anunciou
segurando as mãos dela.
— Sim, eu sei. Lady Honória me disse que
pretende pedir minha mão.
Devia saber que a tia não resistiria ao desejo de
antecipar-se. Ela aceitara sua sugestão
prontamente, o que o levara a especular se não
havia sido essa sua intenção desde o início. Por
outro lado, Célia não parecia estar muito
entusiasmada.
— Minha proposta a incomoda?
— Incomodar é uma palavra muito forte.
Conhece meus sentimentos, porque os manifestei
com clareza ontem à noite. No entanto, fico me
perguntando se nos conhecemos bem o bastante.

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— O que gostaria de saber sobre mim?
— Vejamos. O que faz nas horas de lazer?
— Lazer?
— Sim, aquelas atividades destinadas a conferir
prazer. Sabe o que isso significa, não?
— Passei a conhecer o sentido de tal palavra
depois que a conheci.
Ela corou.
— Obrigada pelo cumprimento, mas nunca fez
nada pela simples alegria de estar fazendo alguma
coisa?
Brandon parou para pensar. Na infância, gostava
de correr pelo vilarejo escocês onde morava. As
pessoas o deixavam fingir que era um menino
normal. Jogar era algo que se esperava dele, mas
experimentava um certo prazer quando as cartas o
favoreciam. Exercitar-se com o saco de pancadas
conferia bem-estar e alívio para as tensões.
Infelizmente, não tinha nenhuma paixão secreta a
revelar. Ela era a única.
— Alegria nunca foi um requisito na minha vida.
Acho que estudar música me conferia alguma

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satisfação. É o máximo que posso dizer.
— Estudou música? Que instrumento?
Estava mesmo encrencado, ou não se teria
deixado conduzir para essa situação. Há anos não
cometia esse erro.
— O mesmo que minha prima estudou.
— Piano? Qual é sua peça preferida?
— Sonata em C Maior de Mozart.
— Por quê?
— Bem, acho que ela exige dedicação e
concentração na sua execução.
— E essas características são muito importantes
para você, não é? Mas deve haver mais. Alguns
cavalheiros cavalgam, outros correm ou lutam boxe.
Deve ter se entretido com alguma coisa, antes de
Martin chegar e mostrar como se deve empinar uma
pipa.
Ele sorriu.
— Minha vida era monótona antes disso. Mas.
Muito bem meus dias não escondem nenhum
mistério. Acordo cedo, corro, pratico exercícios com
um saco de pancadas feito especialmente para mim,

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e tomo banho e me visto. Normalmente ocupo a
manhã com meu assistente e passo as tardes na
Câmara dos Lordes, quando há sessão. À noite,
frequento eventos sociais, vou ao teatro e jogo
cartas. Minha cor preferida é o verde.
— Que tom é verde?
— O tom dos seus olhos.
— Gosta de descompor-me, não é?
— Gosto de flertar com você. Gosto de como os
sentimentos se expressam no seu rosto e no seu
olhar. Você não esconde o que sente.
— E porque deveria? Sou o que sou.
— E esse, minha querida Célia, é um dos seus
maiores encantos.
— Ah, e acha que sabe tudo sobre mim, não é?
Nem tudo, disse uma voz interior. A voz soava
muito semelhante à de Edmund.
— Não, mas podemos começar a retificar tal fato.
Conte-me o que faz para divertir-se, além de
atormentar-me.
Ela riu novamente.
— Antes de vir a Londres, minha vida era

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simples. No campo, eu cuidava da casa e dos
criados, cavalgava, lia e entretinha Martin.
— E seus amigos?
— Fiz algumas amigas na escola, mas elas se
casaram e partiram. Trocamos correspondência.
— E quando voltou para casa?
— Bem, descobri que a sociedade próxima da
nossa casa composta por senhoras casadas, e elas
não me serviam de nada, exceto para formar
alianças.
Célia tivera uma vida quase tão solitária quanto a
dele. E não parecia ter sofrido por isso.
— Não pintou aquarelas? Não estudou música?
— Aprendi a pintar na escola, mas nem mesmo a
srta. Alexander, nossa professora de artes,
conseguiu incentivar-me a prosseguir com as telas.
E sou um horror ao piano.
— Lembro-me de tê-la ouvido dizer alguma coisa
sobre costura.
— Sim, sei costurar e bordar, mas não considero
essa habilidade incomum ou notável.
— E quer ser notável?

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— Gosto de pensar em mim como alguém
diferente. Posso não ter a notoriedade e o espírito
de lady Thomas DeGuis, ou a conversa requintada
de madame DeStael, mas espero jamais permitir
que a sociedade dite minhas escolhas.
— É mais fácil falar do que fazer, minha doce
dama. A sociedade tem um jeito todo especial de
assegurar a manutenção das suas estruturas.
— Agora fala como lady Honória. — Ela suspirou.
— O que nos leva de volta ao ponto de partida. Hoje
cedo ela insistiu em casar-me com Stanley para
silenciar os rumores maldosos. Depois veio com um
pedido do visconde Wilton, e agora parece ter
escolhido você. Deve saber, Brandon, que não me
importo com o que as pessoas dizem. Você queria
que eu o esperasse. Por favor, não se prejudique
por mim.
Impossível não sentir a ternura naquelas
palavras e no olhar penetrante e sincero que
banhava seu rosto.
— Obrigado por sua preocupação. No entanto,
creio que não entende a natureza cruel de certas

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fofocas, ou a determinação de lady Honória em
forçar sua vontade.
— Estou começando a me dar conta dessa
determinação, mas me subestima se pensa que não
posso enfrentá-la.
— Oh, sim, eu sei que pode. No entanto, não
quero que a desafie.
— Também não aprecio essa ideia. No entanto,
não gosto de ser posta numa posição como essa em
que estou agora. Pretende mesmo pedir minha
mão?
Antes que ele pudesse responder, a voz de
Patrice se fez ouvir do outro lado da sala.
— Não! Eu não entendo! Tudo que sei é que está
partindo, e justamente agora, quando mais preciso
de você.
Célia virou-se a tempo de ver a madrasta deixar
a sala correndo. Stanley parecia abandonado e
desolado.
— Foi um pequeno desentendimento — ele
explicou, embora não parecesse acreditar nisso. —
Estarei esperando por você no corredor, Hart. Boa

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noite, Célia.
Ela suspirou ao vê-lo sair.
— Parece que chegamos ao fim do nosso
momento de paz.
— Quer que eu espere para pedir sua mão? —
Brandon indagou com tom desapontado.
— Brandon, escute, temos de discutir questões
mais pessoais do que estou disposta a conversar
aqui. Talvez eu tenha uma solução, mas ela vai
depender de quantos riscos você se dispõe a correr.
— Riscos?
Ela riu.
— Fala como eu estivesse exigindo que dançasse
nu no Parlamento! Não é nada chocante, prometo.
Pode esperar um ou dois dias, até que eu
providencie um local onde possamos conversar com
mais privacidade?
— Sim, mas. — Ora, se a amava o suficiente para
pedi-la em casamento, esse amor também devia ser
suficiente para assegurar sua confiança nela. Mas
não se sentia capaz de correr riscos excessivos. —
Entende as limitações a que estou submetido?

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— Creio que sim. Não farei nada que possa
levantar questões quanto ao seu equilíbrio mental.
No entanto, posso pedir que faça algo
extraordinário.
— O quê?
Ela sorriu.
— Ainda não sei. Mas esteja preparado para agir,
milorde.
Célia acompanhou Brandon e Stanley até a porta,
depois foi procurar Patrice. Ela encontrou a
madrasta no quarto, deitada, abraçando uma
almofada de cetim.
— O que aconteceu?
Ela sufocou um soluço.
— Stanley disse que não pode se casar comigo
sem a bênção do pai. Ele deixará Londres em breve.
Célia suspirou e sentou-se na cama.
— Pobre Stanley. Parece que nunca vai aprender
a lição.
— Pensei que ele me amasse!
— Ele a ama, mas não o suficiente para ignorar a
opinião do pai, ao que parece.

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— Já entendi. Acha que estou sendo petulante,
não é?
— Não, eu.
— Sim, eu sei. Stanley faz o que deve fazer. O
pai dele é um tirano, e pode deixar o pobrezinho
sem um centavo. E sem ter rendimentos próprios da
minha parte, em que situação ficaríamos?
— Porque insiste em dizer que não tem
rendimentos próprios, Patrice? Você recebe uma
pensão deixada por meu pai. Vi as folhas de
balancete.
— Eu. Bem, parece que gastei todo esse dinheiro.
— O quê? Mas. Patrice, era uma soma
considerável! Não teria podido gastar tudo mesmo
que comprasse uma dúzia de vestidos por mês!
— Não gastei o dinheiro em vestidos. Esse é o
problema — ela murmurou, mantendo a cabeça
baixa.
— O que fez com ele, então?
— Joguei.
— Você. jogou? E perdeu todo o dinheiro?
— Shhh! — Patrice segurou as mãos dela como

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se temesse que toda a cidade pudesse ouvi-la. —
Sim, e ficaria grata se guardasse esse segredo.
Minha avó não sabe,
— Patrice, lady Honória sabe de tudo que
acontece nesta casa e na sociedade. Pode estar
certa de que ela sabe sobre suas desastrosas
apostas. A situação. É muito ruim?
— Sim. Não sei como minha dívida cresceu tanto,
mas madame Zala afirma que devo a ela vários
milhares de libras.
A quantia era espantosa.
— Madame Zala?
— Ela é proprietária de uma casa de jogo muito
seleta. James Carstairs me levou até lá, e Brandon e
Stanley também já me acompanharam, o que
comprova a qualidade do local.
— É claro. Eles ficam com seu dinheiro, mas com
elegância e qualidade.
Patrice apertou o travesseiro, e mais duas
lágrimas caíram dos seus olhos. Pobrezinha! Era
bem provável que nem soubesse o que fazia. Célia
estava horrorizada por pensar que tanto dinheiro

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havia mudado de mãos de forma tão questionável.
Por isso Carstairs & Filho insistiam em administrar
sua fortuna? Sabiam sobre a paixão de Patrice pelo
jogo e queria impedi-la de perder o que restava do
espólio de David Rider? Mas ela jamais poderia tocar
a parte de Martin, e Célia não permitiria que ela
dispusesse do que lhe cabia na herança.
Ao pensar no irmão, ela tocou o ombro da
madrasta.
— Farei o que puder sobre a dívida. E não se
preocupe com Stanley. Tenho certeza de que ele a
ama. Agora, peço que me dê licença. Quero desejar
uma boa-noite a Martin.
Patrice levantou-se de um salto.
— Oh, espere por mim! Ainda não vi meu querido
menino esta noite!
Célia suspirou, mas esperou enquanto Patrice
lavava o rosto e apagava os sinais deixados pelo
pranto. Depois seguiram juntas para a sala de
estudos.
John havia acomodado Martin na sua cama,
porque o menino já dormia profundamente.

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Patrice respirou fundo.
— Ele não é lindo?
— Certamente — Célia respondeu sorrindo
orgulhosa. — Diga-me, Patrice, porque o negligencia
tanto?
A resposta soou melancólica.
— O lugar de uma esposa é ao lado do marido. O
trabalho do meu David o obrigava a viver em
Londres. Quando ele faleceu, lady Honória insistiu
em manter-me aqui. Era meu dever obedecer. Foi
uma enorme alegria quando, finalmente, ela disse
que Martin também poderia vir.
Então, havia sido lady Honória quem mantivera
Martin em Somerset durante todos aqueles anos.
Depois de ver como a velha senhora administrava
sua casa e a vida de todos que nela habitavam,
Célia podia compreender a dificuldade de Patrice
para enfrentá-la e impor seus pontos de vista.
Aparentemente, lady Honória julgava as crianças
úteis apenas depois de uma certa idade, quando
podiam ser propriamente educadas.
Mesmo assim, Célia pensou ao sair do quarto,

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aqueles fantasmas de preocupação começavam a
rondá-la novamente. Se pelo menos pudesse
entender o que eles queriam dizer, antes que
alguém fosse prejudicado.

Capítulo XIV

Célia assegurou-se de estar em pé para ir fazer o


desjejum com o irmão na manhã seguinte. Ele
estava eufórico por conta de um cavalo que lady
Honória havia prometido comprar, e a generosidade
da dona de casa fê-la lembrar as preocupações da
noite anterior. Temia confiar o irmão aos cuidados
da senhora pouco misericordiosa, se partisse.
Se desposasse Brandon, no entanto, ele
assumiria a guarda de Martin? E isso garantiria a
segurança do seu irmão? E quanto ao que a
inquietava mais profundamente, a dúvida sobre a
capacidade de Brandon de amar de verdade?

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Como se pudesse ler seus pensamentos, Martin
perguntou:
— Vai mesmo se casar, Célia? E com lorde
Hartley?
— Ainda não sei, querido. Tenho de pensar mais.
Não sei ao certo o que ele sente por mim. Brandon
foi criado de maneira diferente, entende? Papai,
minha mãe e até a srta. Prim sempre nos ensinaram
a revelar o que sentimos e agir de acordo com
nossas crenças. Ele nunca pôde ser sincero nesse
sentido.
— Quando ele disse que nunca havia empinado
uma pipa, Pensei que estivesse brincando.
— Duvido que tenha sido uma brincadeira.
Aposto que ele nunca brincou de nada.
— Que coisa horrível!
— Tem razão, meu pequeno. É isso que devo
fazer. Vou ensinar lorde Hartley a brincar.
John, que acompanhava o encontro dos irmãos,
disse:
— Espero que tenha muita sorte, senhorita. O
homem é chamado de lorde Heartless. Senhor Sem

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Coração! Ele. Oh, me desculpe. Sempre esqueço
quem é e como devo tratá-la.
Ela riu.
— Não se incomode com isso, John. Também me
esqueço de tudo em alguns momentos. No entanto,
se puder contar com sua ajuda e a de Martin, talvez
possa fazer lorde Hart esquecer-se dele mesmo,
também.

Lady Honória convidou James Carstairs a sentar-


se diante dela, depois franziu a testa.
— Se veio para relatar menos que o sucesso,
nossa conversa será desagradável — disse.
O sorriso do rapaz era frio.
— Os fundos foram manipulados de acordo com
suas recomendações. No entanto, acho que deve
saber que lorde Pellidore me convidou para jantar
ontem à noite. Foi um convite bastante. insistente.
O que estava acontecendo, afinal? Primeiro a
menina se rebelava contra suas ordens e
questionava suas sugestões, e agora isso! Tais

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informações deviam ser transmitidas por Sally! Ela
era bem paga por esse serviço. Sally mantinha o
cocheiro dos Pellidore abastecido de tabaco para
assegurar sua cooperação. Desde que Edmund
retornara à Inglaterra ela sempre soubera de todas
as atividades do marquês ao longo do dia. De que
outra forma poderia controlá-lo?
— E porque ele desejava ter sua companhia?
— O homem fingiu ser meu amigo. E
confidenciou que lorde Hartley vai se casar com a
srta. Rider.
Aquilo soava muito menos aborrecido com o fato
do que ela havia ficado. Mas havia uma
compensação para o inconveniente.
— Pode pensar em maneira melhor de esconder o
desaparecimento da fortuna da jovem dama? O
dinheiro dela seria fundido ao dele, e ninguém
saberia o que de fato aconteceu. E teríamos mais
algumas semanas para concluir nosso trabalho.
Ele inclinou a cabeça, mas era evidente que não
estava satisfeito.
— A fofoca foi só um teste a que lorde Pellidore

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submeteu-me. Logo ficou claro que ele queria saber
mais sobre a fortuna Rider.
Não podiam ter sido descuidados a ponto de
despertar as suspeitas de Edmund!
— Por quê?
— Ele considera a jovem uma caçadora de
títulos.
Lady Honória riu.
— Perfeito! Então, porque esse ar insatisfeito,
meu jovem? E o que disse a Edmund?
— Contei a ele a mesma história que contamos a
Célia. Estamos esperando informações de Somerset,
e em breve transferiremos a soma para o nome
dela.
— E ele aceitou essa versão dos fatos?
— Não. Seu irmão acredita que a srta. Rider está
destituída de fundos. Ele também mencionou que
ela é noiva.
Ah, e isso havia aborrecido ainda mais o jovem
James.
— Ela mantém relações com aquele caipira de
Somerset. É só um capricho passageiro.

Projeto Revisoras
— Tem certeza de que ela não o ama?
O homem era persistente! Como se soubesse
alguma coisa sobre a paixão!
— Garanto que se trata apenas de um interesse
passageiro. Ela precisa de alguém mais estável,
mais urbano.
— Concordo com o que diz. — James ajeitou os
cabelos com um misto de vaidade e arrogância.
O que mais teria de aturar antes do fim do dia?
Ela respirou fundo e soltou o ar lentamente. Logo
estaria livre. Só teria de suportar os tolos por mais
algum tempo. Em breve teria encaixadas todas as
peças da sua obra-prima. E sua vingança estaria
completa.
— Obrigada pela informação sobre Edmund,
James. Pode deixar meu irmão aos meus cuidados,
agora.
Ele se levantou e inclinou o corpo.
—Não poderia esperar por mãos mais capazes.
Ainda deseja que eu converse com a menina?
— Suponho que deve ir procurá-la. Ela é teimosa
e agarra-se aos seus propósitos com vontade férrea.

Projeto Revisoras
— Ela não tem seu refinamento ou sua
compreensão, milady.
— Poucas pessoas têm. No entanto, se devo lidar
com Edmund, você pode certamente lidar com Célia.
Seja paciente, James. Tudo que merece será seu.
Em breve.
Ele repetiu o cumprimento cortês, mas lady
Honória pensou que o gesto servia mais para
esconder o sorriso ganancioso do que para
demonstrar respeito.

Célia começou a planear a campanha para


libertar o coração de Brandon. Logo ficou evidente
que, para ter uma medida de sucesso, precisaria ter
acesso a alguns fundos. Por isso esperava por James
Carstairs no corredor, perto da porta dos aposentos
de lady Honória.
Ela o conduziu ao salão principal e sentou-se,
convidando-o a fazer o mesmo. Como deveria
começar a conversa? Precisava de dinheiro para
pagar a dívida de Patrice e financiar seus planos

Projeto Revisoras
com relação a Brandon, mas não ousava revelar a
ele suas razões. Por isso decidiu começar
interrogando-o sobre o estado da sua fortuna. A
resposta a surpreendeu.
— Estamos quase encerrando as formalidades. E
soube que devo desejar-lhe felicidades, senhorita.
Vais casar com lorde Hartley, não?
— Isso ainda não foi decidido.
Ele empalideceu.
— Não? Mas. depois do que aconteceu no jardim
de lady Brompton.
— Não permito que fofocas governem minha
vida. Voltando ao assunto que realmente me
interessa, sr. Carstairs, preciso com urgência de
uma soma elevada em dinheiro. Como gostaria de
arranjar essa transferência?
— Acho que não entendeu, senhorita. Disse que
estamos quase encerrando as formalidades. Ainda
não posso realiza nenhuma transferência. De fato,
apenas comecei os ajustes necessários para
transferir o controle às mãos de lorde Hartley
— O quê? — Célia levantou-se de um salto. —

Projeto Revisoras
Porque lorde Hartley controlaria minha fortuna?
Carstairs também ficou em pé, estendendo a
mão como se quisesse acalmá-la. Ela se afastou
furiosa.
— Vejo que a aborreci novamente. Por favor,
perdoe-me srta. Rider. Só quis dizer que, de acordo
com a lei, quando uma mulher se casa, o controle
das suas finanças é transferido para o marido.
— Deve haver algum modo de proteger o
dinheiro.
— Sim, deve haver. Quer que eu estude o
problema?
— Não. Quero que assine um cheque de cinco mil
libras.
Ele engoliu em seco.
— Verei o que pode ser feito. Talvez em alguns
dias, duas semanas, no máximo.
— Hoje, sr. Carstairs. À tarde, na pior das
hipóteses. Senão, serei forçada a procurar lady
Honória para manifestar meu descontentamento.
Era uma ameaça vazia. Não pretendia informar
lady Honória sobre seus planos, mas James

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Carstairs não sabia disso, e era devoto demais para
correr o risco de conquistar a inimizade de tão
importante cliente.
No entanto, ela se surpreendeu ao vê-lo sorrir.
— Por favor, transmita minhas recomendações
quando a vir — James respondeu com sarcasmo.
Depois pegou a pasta que levara com ele. — Se me
der licença.
James quase tropeçou em Patrice a caminho da
saída. Célia viu a madrasta recuar para deixá-lo
passar. Pálida, ela parecia ter chorado novamente, e
James não deixou de perceber a angústia na sua
expressão.
— Sra. Rider, posso ajudá-la de alguma maneira?
— Não, obrigada, sr. Carstairs. Mas pode me
desejar felicidades. Devo me casar em breve.
Ele mudou de posição e um rubor intenso invadiu
seu rosto.
— Merece toda a felicidade, minha querida. Mais,
merece um homem de poder e recursos.
Ele ousava desdenhar de Stanley? Patrice
acreditava que sim, porque seu sorriso pálido

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transformou-se numa expressão de desaprovação.
— Stanley será um ótimo marido.
Patrice tentou passar pelo advogado, mas ele a
segurou pelos ombros. O gesto insolente inflamou o
temperamento de Célia, que se aproximou da
madrasta.
— O sr. Arlington é um cavalheiro — ela disse.
Carstairs soltou Patrice para lançar um olhar
gelado na direção dela.
— E você deve saber, é claro, uma vez que já foi
noiva dele. Um cavalheiro de gosto discriminador,
certamente.
O homem estava louco? Porque as tratava com
tão grande desrespeito? Até Patrice havia
identificado o sarcasmo na voz dele, porque
começou a tremer.
— Chega de conversas difíceis, por favor! Não
suporto mais!
Ele se inclinou.
— É claro. Desculpe-me. Mas deve prometer que
vai pensar no que eu disse. Deve desposar um
homem digno da sua posição.

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— Eu amo Stanley — Patrice revelou chorando.
Ele ergueu os ombros. Seu rosto não estaria tão
pálido se ela o houvesse esbofeteado.
— Desejo-lhe felicidades — James disse com tom
tenso antes de sair.
Célia amparou a madrasta. Qual era o problema
com o advogado, afinal? Os rumores as haviam
tornado menos dignas aos seus olhos, ou ele já não
se interessava mais pela missão de administrar a
fortuna da família? O mais provável era que
pensasse que já não havia uma fortuna para ser
administrada. Se ela se casasse com Brandon, a
fortuna passaria a integrar os bens dos Pellidore, e
James lidaria diretamente com o marquês. Não teria
mais de dar explicações, nem suportaria outras
ameaças insatisfeitas.
Célia balançou a cabeça. Ele era um tolo se
acreditava que Brandon o deixaria cuidar do dinheiro
sem sua interferência. O marquês tinha planos para
sua herança, e não se surpreenderia se James nem
fizesse parte deles.
Mas. Brandon também tinha planos para a

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herança dela?
Célia balançou a cabeça mais uma vez. Confiaria
nele, devia confiar. Mesmo assim, seria mais fácil se
soubesse que ele também se sentia capaz de
confiar, partilhar todas as coisas com a mulher que,
dizia, desejava desposar. Se conseguisse deixá-lo à
vontade parar rir e brincar, então saberia que ele
era capaz de amar. E se tivesse certeza disso,
confiaria a ele seu futuro.
— Hoje todos estão desagradáveis — Patrice
reclamou sentando-se no sofá.
— Nem todos — Célia a corrigiu. — Antes de você
chegar, solicitei ao sr. Carstairs um adiantamento da
minha herança. Pretendo saldar sua dívida de jogo.
— É muita gentileza sua, meu bem, mas não
precisa se preocupar. Stanley já pagou minha
dívida. Ele me mandou uma nota.
— Mas. você disse que devia milhares de libras.
Stanley não poderia ter se apoderado de tal quantia
sem antes procurar o pai.
— Talvez por isso ele tenha ido para casa. O
pobrezinho! A culpa é toda minha. Nunca mais

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voltarei a olhar para uma mesa de jogo.
Célia esperava que ela mantivesse a promessa,
mas sabia que não seria fácil. Talvez por amor a
Stanley. Mas os outros problemas eram mais
difíceis. Se James Carstairs não atendesse suas
exigências, não sabia como poria em prática seus
planos para Brandon. Odiava solicitar tanto dos
criados, mas não sabia em quem podia confiar ali.
Afinal, estava lidando com empregados de lady
Honória! Por causa da influência da velha senhora
sobre sua madrasta, também temia confiar em
Patrice, o que significava que também não podia
confiar em Stanley. Ele acabaria contando tudo a
Patrice.
Não encontrava respostas para suas dificuldades.
No entanto, o que mais a perturbava era a atitude
de James Carstairs. Quanto mais pensava na
conversa que tivera com ele, mas preocupada
ficava. Sempre o julgara insolente quando discutiam
a questão relacionada a sua herança, mas ele agora
se mostrava ousado a ponto de aconselhar também
Patrice a escolher seu marido. Era quase como se

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acreditasse poder dirigir suas vidas. No entanto,
tanta insolência não era indicação de algo sinistro.
Mais uma vez, estava vendo fantasmas em plena luz
do dia.
Então, porque tinha aquele forte pressentimento
de que algo horrível estava para acontecer?

Capítulo XV

Brandon pretendia esperar por notícias de Célia.


No entanto, Stanley anunciou suas intenções de ir
com ele e Edmund para a cidade no dia seguinte,
porque desejava ir ver Patrice. Brandon atendeu o
pedido do amigo, apesar da evidente contrariedade
de Edmund.
— Irei encontrá-lo na casa da sua tia esta noite
— disse o mais velho quando todos se despediram.
Brandon olhou e viu uma figura coberta por um
manto negro passando apressada pela carruagem

Projeto Revisoras
para ir se perder entre as pessoas que passavam
pela Câmara dos Lordes. Sua expressão intrigada se
refletia no rosto do tio.
— O que é isso? — Edmund perguntou.
Era um sentimento, uma sensação, nada
tangível, nada que pudesse explicar ao tipo. Algo
nos movimentos daquela figura despeitava uma
lembrança. Poderia ser a Morte?
— Nada — Brandon respondeu —, ainda o
veremos esta noite, Arlington?
Stanley o acompanhava pela rua, mas, notando
que ele tomava a direção daquela misteriosa figura
coberta pelo manto negro, ele fê-lo parar.
— Hart, encontraremos um carro de aluguel do
outro lado. Estou em Londres há pouco tempo e já
sei disso.
— Venha comigo. — Sabendo que não podia
demorar, sob pena de perder o alvo, ele seguiu em
frente deixando Stanley decidir se desejava ou não
acompanhá-lo. O que Edmund diria se soubesse que
estava perseguindo sombras, deixando
pressentimentos guiá-lo? Sabia o que lady Honória

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diria disso. Mesmo assim, seguiu em frente
caminhando rapidamente.
Stanley parecia sentir a intensidade de Brandon,
porque começou a se mover de maneira mais
cautelosa. Depois de algumas jardas, no entanto,
chamou em voz baixa:
— Ei, Hart, o que estamos fazendo?
Outros transeuntes o encaravam com a mesma
questão nos olhos. Brandon parou e ergueu os
ombros, engolindo um súbito sentimento de
estranheza e impotência.
— Esqueça, Arlington. É tarde demais.
— Tarde demais para quê?
— Para localizar o sujeito que esperava por nós.
— Mas. eu não vi ninguém!
— Eu sei que não. Venha, vamos sair daqui.
Stanley não fez mais perguntas, e eles foram
procurar um carro de aluguel que os levasse à casa
de lady Honória. Brandon aproveitava a viagem para
refletir. Estivera tão empenhado em pedir a mão de
Célia para poupá-la de um escândalo, que quase
esquecera o maior perigo que a ameaçava. Mas, se

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a Morte a perseguia, porque teria se colocado perto
de Westminster, como se esperasse por ele e
Edmund? Ou estaria mesmo vendo sombras em
plena luz do dia?
Como sempre, duvidar das próprias faculdades
mentais despertou seu receio, e ele ficou satisfeito
por Stanley não voltar a mencionar o incidente.

O encontro com Célia amenizou suas tensões.


Como se sentisse sua necessidade, ela manteve a
conversa amena. Passearam pelo jardim, passaram
algum tempo com Martin e o levaram ao estábulo
para que ele exibisse sua nova montaria. Depois se
sentaram num banco perto da fonte, onde
permaneceram de mãos dadas. Ao ver seu sorriso
desaparecer, ele soube que não estavam sozinhos.
Virando-se, Brandon viu Edmund à sombra de
uma árvore próxima.
— Srta. Rider — ele cumprimentou enquanto se
aproximava. — Desculpe-me pela interrupção.
Terminei meus negócios mais cedo que esperava e

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pensei em vir buscar seus visitantes.
E não fazia nenhuma diferença se Brandon
estava ou não pronto para partir. Estava ficando
realmente farto desse tratamento. Mas, antes que
pudesse abrir a boca para falar, Célia se levantou.
— Então Stanley também estará partindo em
breve. Com licença, cavalheiros, mas preciso falar
com ele antes disso.
Com um último e significativo olhar para
Brandon, ela correu para casa.
Brandon levantou-se, e Edmund acomodou-se no
assento que Célia deixara vago.
— Ela faz bem a você — disse.
Brandon estranhou o comentário.
— O quê?
Edmund encolheu os ombros.
— Não havia notado antes. Mas agora que os vi
juntos, sou forçado a reconhecer que não o via tão
feliz desde que seu pai era vivo.
— Então, pode entender meus sentimentos por
ela?
— É difícil não notá-los. Gostaria de poder

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superar esses pressentimentos. Sinto que há algo de
errado, mas não consigo identificar o que me
perturba.
— Também tenho essa mesma sensação. No
entanto, sei que não é Célia quem a produz.
— Rezo para que esteja certo. Por ora, só nos
resta estar atentos e vigilantes.
Brandon assentiu. Pena não saber a que devia
estar tão atento.

Célia não sabia se a ameaça surtira algum efeito,


mas, no dia seguinte, James Carstairs a procurou
com um cheque de adiantamento.
— Não é a quantia que desejava — ele explicou.
— Mas o banco tem consciência da sua situação e
abriu uma linha de crédito. Com isso deve poder
comprar o que está precisando.
Era evidente que ele pensava tratar-se apenas de
algumas quinquilharias. Célia decidiu não dar
explicações. Com a dívida de jogo de Patrice
liquidada, precisava de uma quantia menor do que

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havia solicitado. Pelo menos a atitude do advogado
voltara a ser profissional, embora ele se mostrasse
muito satisfeito por poder entregar a ela tão irrisória
quantia.
Stanley não ficou muito satisfeito quando soube
qual seria seu papel no plano.
— Desejo partir para Somerset depois de amanhã
— ele argumentou.
— Adie sua viagem. Será apenas um dia!
Prometo que não vai se arrepender.
Tentou instruí-lo sobre como evitar o diligente
lorde Pellidore, mas Stanley não deu ouvidos aos
seus conselhos.
— Posso lidar com ele, Célia. O homem me faz
lembrar meu pai. De vez em quando é preciso
inventar uma história para sobreviver ao lado dessas
pessoas.
Esperava que ele estivesse certo. Todo seu futuro
dependia disso.
Patrice foi ainda menos entusiasta. Célia teve de
se empenhar para tirá-la da casa na tarde em que
pôs o plano em prática. Depois, sua madrasta

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praticamente negou-se a ir ao Gunter's.
— Não tenho direito para confeitos — ela reagiu
irritada. — Porque vou sentir o cheiro do que não
posso comprar?
— Eu tenho dinheiro — Célia insistiu, empurrando
Patrice pela porta a caminho da famosa casa de chá.
No estabelecimento, enquanto Célia fazia o
pedido, Patrice esperava impaciente e nem notava
os olhares de admiração dos homens que ocupavam
as mesas da confeitaria. Ao ver a enteada
carregando caixas, ela estranhou:
— O que é isso? Quer ir comer lá fora?
— Vamos fazer um piquenique.
Patrice torceu o nariz e examinou o vestido de
algodão de Célia.
— Ah, mas você está vestida para isso. E eu?
Devia ter me informado. E podíamos ter trazido
Martin, também.
— Nesse caso teríamos uma multidão. Ah, sr.
Arlington. Por aqui!
Patrice virou-se. Célia não pôde deixar de notar a
elegância de Stanley na sua jaqueta azul-marinho.

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Sempre havia pensado que ele era dono de um belo
sorriso, mas, quando o via sorrir para Patrice, tinha
certeza de jamais ter visto nada tão luminoso ou
radiante. Ele segurou a mão dela e levou-a aos
lábios.
— Sra. Rider, encanta-me vê-la outra vez.
Permita-me acompanhá-la. — E ele a levou para
uma mesa afastada da porta.
Se Patrice fizesse perguntas sobre a ausência de
Célia, Stanley saberia explicá-la. Mas tinha a
sensação de que todas as inquietações da madrasta
desapareceriam diante do sorriso de Stanley.
Sozinha, Célia deixou a porta se fechar atrás dela
e respirou fundo. E lá estava ele. Brandon estava
sentado no lado do passageiro da carruagem
simples. Parecia completamente senhor de si mesmo
no casaco preto, mas havia uma visível rigidez nos
seus ombros. Seria o risco demais para ele? Ela
começou a caminhar para a carruagem, e ele se
virou. Um sorriso iluminou seu rosto. De repente o
dia tornou-se mais brilhante.
Célia entregou os dois pacotes ao marquês.

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— Segure-os, por favor, milorde. Vamos precisar
disso mais tarde.
Brandon olhou para o único assento disponível
atrás dele.
— E onde pretende acomodar o sr. Arlington?
— O sr. Arlington está inevitavelmente retido.
Teria a gentileza de acompanhar-me no lugar dele?
Brandon saltou do veículo para ajudá-la a subir.
— E ele não vai se importar por fazermos uso do
veículo que ele alugou?
— Porque deveria? A carruagem é minha.
Brandon acomodou-se no lugar do motorista e
tomou as rédeas, enquanto ela abria uma sombrinha
para proteger-se do sol na sua pele pálida.
— Os cavalos também são seus?
— Não inteiramente. Eu os tomei emprestados
por hoje. E agora, se puder fazer a gentileza de
conduzir-nos a Kensington Road.
Pedira a Stanley para escolher bons cavalos, e
ele não errara na escolha. Enquanto o veículo
progredia rapidamente pelas vias de terra batida,
ela fechava os olhos e desfrutava da deliciosa

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experiência.
— Como Stanley conseguiu evitar seu tio? —
perguntou curiosa.
Brandon sorriu.
— Arlington disse que precisava dos meus
conselhos para escolher algumas peças do seu
enxoval. Jurei que, se isso não fosse só uma
desculpa para algo maior e mais importante, eu
comeria seu fígado.
Célia riu.
— Teria adorado ver a cara do seu tio.
— Foi um desses momentos preciosos que só
Arlington pode nos proporcionar. Para onde vamos,
afinal?
— Ainda não pode saber, milorde. Hoje, está
inteiramente nas minhas mãos. Saiba que cuidarei
muito bem de você.
Ele assentiu, mas parecia tenso novamente.
Continuaram conversando enquanto se moviam
pela área rural de Londres. Célia ia orientando o
trajeto repetindo as instruções que retirara de um
guia e, quando chegaram ao destino, ela tocou seu

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ombro.
— É ali. Kew Gardens.
Brandon ergueu uma sobrancelha.
— Mantém boas relações com Sua Alteza,
milady? Porque seus agentes exigem autorizações
para permitir a entrada nesses jardins todos os dias,
exceto aos domingos.
— De fato? — O desânimo era impossível de
disfarçar. — E eu pensando que havia planeado
tudo! Oh, Brandon, perdoe-me! Fui impetuosa mais
uma vez. Vi o artigo num guia e decidi que o lugar
seria adorável para um passeio. Não sabia que
precisávamos de permissão para entrar.
— Criatura de pouca fé!
Brandon parou a carruagem diante de uma
pequena cabana.
Ao ouvir o som das rodas, um cavalheiro saiu
para ir recebê-los. Devia ser o zelador, porque
usava roupas próprias para a prática de jardinagem.
— Bom dia, senhor. Posso ser de alguma
utilidade?
— Sim, você pode. Sou o marquês de Hartley.

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Gostaria de visitar os jardins.
Ele se inclinou.
— Imediatamente, milorde. Traga a carruagem
até aqui, e cuidaremos dos seus cavalos.
— Está vendo? — Brandon perguntou sorrindo
enquanto conduzia o veículo ao local indicado. — Um
título pode ser muito útil em algumas circunstâncias.
O dia era lindo. Passearam de braços dados por
entre as flores, almoçaram perto do que parecia ser
as ruínas de um arco romano, e ficaram vendo as
folhas caírem num pequeno lago. Era como se
fossem as duas únicas pessoas no mundo, Adão e
Eva no jardim do Éden.
— Já esteve aqui antes — ela o acusou ao ser
levada para um pequeno templo grego.
— Edmund e eu viemos trazer algumas mudas
doadas por lady Honória. Ela mantém plantas
exóticas na sua estufa. O lugar é perfeito para
caminhar.
— Caminhar? Martin pensaria em correr. Brincar
de pega-pega, talvez. — Ela soltou seu braço. — É
isso milorde! Pegue-me se puder!

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Rindo, Célia correu para as árvores. Brandon
hesitou, mas logo partiu atrás dela.
Ela contornava as árvores, percorria alamedas e
se escondia atrás de arbustos mais frondosos.
Julgava tê-lo conduzido numa corrida frenética que
nunca teria fim, a menos que ela quisesse, mas, ao
sair de trás de uma árvore, Célia percebeu que
estava novamente diante do templo. Correra em
círculos! Ouvindo os passos de Brandon atrás dela,
ergueu a saia e continuou correndo, subindo a
escada para colar as costas numa das colunas. Sua
respiração parecia ecoar nas paredes de pedra. Ela
esperou.
A floresta era um mar de silêncio. Onde ele
estava? Curiosa, arriscou olhar para trás, além da
coluna, e descobriu-se frente a frente com o
marquês. Folhas maculavam o elegante casaco
Preto, e havia uma mancha de alguma substância
púrpura no seu rosto. Ele ria.
— Peguei — ele disse em voz baixa. — Eu disse
que conhecia essa área.
— Não é justo. Exijo revanche.

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— E eu exijo minha recompensa. — Ele se
inclinou como se fosse beijá-la.
— Pois vai receber um castigo — ela murmurou,
deslizando as mãos por baixo do seu casaco para
encontrar a região das costelas.
Brandon riu.
O som era maravilhoso, alegre, puro. Ela se
sentia flutuar. Abraçando-o, colocou o rosto no seu
peito e riu também. Segundos depois, os lábios se
apoderaram dos dela.
Foi um beijo doce, cheio de promessas, e ela quis
saboreá-lo para sempre.
— Célia Rider — Brandon sussurrou enquanto
ainda a abraçava —, quer me dar a grande honra de
ser minha esposa?
— Ah, agora sim! Isso é um pedido de
casamento! Sim, milorde, tal enlace me faria muito
feliz!
— Milorde?
— Brandon.
Ele suspirou contente.
— Obrigado — disse antes de beijá-la mais uma

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vez.

Já era tarde quando eles saíram dos jardins.


Seguiam de braços entrelaçados, e ela usava o anel
que Brandon havia colocado no seu dedo sinalizando
o compromisso. Voltaram por Kensington Road, e
Célia levava no coração a certeza de que seria muito
feliz.
Mas Brandon ficou sério no momento em que
entraram na área mais central da cidade, onde
ficava a casa de lady Honória.
— Há algo de errado — ele disse. — Aquela é
minha carruagem do outro lado da rua.
— O cão de guarda veio procurá-lo — Célia
deduziu com um suspiro. — Devia saber que era
tudo muito bom para ser verdadeiro.
— Edmund está começando a aceitar nossa
situação.
Quando Brandon deteve a carruagem atrás
daquela que pertencia a sua família, ela viu que o
cocheiro dos Pellidore saía apressado da casa.

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Patrice, Edmund e Stanley o seguiam.
— Onde estavam? — Edmund perguntou furioso.
— Tem ideia de como ficamos preocupados?
Brandon segurava a mão de Célia.
— Falaremos sobre esse assunto em casa, tio.
— Não vou esperar mais nada. Seu
comportamento é irresponsável ao extremo.
— Eu assumo a responsabilidade — Célia
interferiu. — Foi uma espécie de rapto.
Edmund ignorou a interferência.
— Solte-a imediatamente e entre na carruagem.
— Vá para casa, tio — Brandon respondeu com
tom controlado. — Irei encontrá-lo lá.
— Com sua licença, deixe-me acompanhá-lo até
a carruagem — Stanley ofereceu.
Edmund olhou carrancudo para todos e se dirigiu
ao veículo. Stanley o seguiu apressado. Brandon
observou a cena por alguns segundos, depois soltou
a mão de Célia.
— Um momento — disse, voltando à rua para
interceptar o tio.
Com um estrondo assustador de cascos, outra

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carruagem surgiu do nada vindo da praça. Stanley a
viu a tempo e conseguiu voltar à calçada. O cocheiro
não reduziu a velocidade. Pelo contrário. Vestido de
negro, ele estalou o chicote para acelerar ainda mais
o ritmo do seu progresso. Edmund olhou na direção
do veículo e, rápido, empurrou Brandon para fora do
caminho do perigo.
Célia gritou.
A carruagem não parou.

Capítulo XVI

Brandon cambaleou no meio ao tropel de cascos.


Alguém gritou, mas ele só conseguiu ver a
carruagem passando a seu lado. A roda traseira o
atingiria, e ele usou a mão para proteger-se. O peso
o esmagou, empurrando suas mãos contra o peito e
jogando-o no chão da rua. As pedras do calçamento
encontraram suas costas, e todo o ar escapou dos

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seus pulmões. Ele usou o impacto para rolar pelo
chão e se afastar do veículo. Tentando respirar, o
marquês engasgou-se com a poeira e os destroços
deslocados pelas rodas. Queria se levantar, mas,
quando se apoiou sobre as mãos e os joelhos, o
mundo todo escureceu.
— Brandon! Meu Deus, Brandon, você está bem?
Célia estava de joelhos a seu lado, abraçando-o.
As mãos dela tremiam no seu corpo.
— Sim, eu. estou bem — ele respondeu,
endireitando-se devagar até conseguir se sentar.
Suas mãos doíam, e as costas ardiam muito. Agora
podia ouvir outros sons, como de pés que corriam e
gritos assustados. Levantando a cabeça, viu Stanley
colado à carruagem Pellidore, os olhos muito
abertos, os braços envolvendo Patrice, cujo rosto
estava enterrado no peito do amado. Mas ele não
olhava para o veículo que causara tão grande
comoção. Olhava para a via. Brandon se esforçou
para ficar em pé.
— Edmund!
Célia também se levantou, mas ele se soltou e

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correu para o corpo inerte do tio. Edmund jazia
contorcido em ângulos estranhos no meio da rua.
Brandon caiu de joelhos ao lado dele e estendeu a
mão, recuando indeciso antes de tocá-lo.
O rosto do homem estava muito brando, e sua
boca permanecia aberta e sem tônus. Brandon
temia admitir seu maior temor. Enquanto estava ali
parado, no entanto, seu tio foi abrindo os olhos, e
aos poucos a visão começou a ganhar foco.
— Hartley.
— Fique quieto, tio. Preserve suas forças. —
Pessoas se reuniam na cena e ofereciam ajuda, ou
teciam comentários chocados.
— Não tenho mais tempo — Edmund murmurou.
— Cuide-se. — E ele parou de falar e de respirar.
— Não! — Brandon exclamou. — Não! — Ele
abraçou o tio e o apertou contra o peito. Havia
muitas palavras que não se sentia capaz de dizer,
outras que não devia pronunciar. e muitas que
lamentava não ter dito antes. Edmund sabia que
havia sido seu pai, irmão, amigo e confidente? Ele
não podia ter partido de maneira tão brusca.

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A dor dele cresceu até quase esmagá-lo com sua
força. Ela o devorava, levando-o para um mundo
onde não tinha certeza do tempo ou do espaço. Algo
molhava seu rosto, e só naquele momento ele
percebeu que chorava.
— Milorde — Stanley chamou-o em voz baixa. —
Com sua licença, Hartley. Precisa soltá-lo.
Brandon piscou, o olhar ainda nublado pelo
pranto, e fitou o rosto longo de Stanley com alguma
dificuldade. Arlington baixou-se a seu lado e tocou
as mãos do marquês sobre o ombro de Edmund.
— Solte-o, Hart. Devemos levá-lo para dentro.
Mas os dedos do marquês não obedeciam ao
comando. Só com alguma força física, Stanley
conseguiu abri-los. Os criados levaram o corpo de
Edmund. Stanley ajudou o marquês a se levantar.
— Venha, vamos entrar — disse. Brandon
balançou a cabeça.
— Não. Preciso ir para casa.
— Nesse caso, conte com minha companhia. Não
pode ficar sozinho agora.
— O que é isso, Arlington? Já está assumindo as

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funções que meu tio deixou vagas. Vai cuidar de
mim e me espionar o tempo todo, também?
— Não é isso. Está abalado, chocado. Pensei que
pudesse apreciar alguma companhia.
— Deixe-me em paz. — Ele se dirigiu à
carruagem com Passos arrastados. Era doloroso
respirar.
— Brandon. — Célia estava a seu lado.
Lágrimas também banhavam seu rosto. Durante
um momento, ele pensou em afastá-la também.
— Você fez isso — ele disparou. Depois bateu no
peito com um punho cerrado. — Deu-me um
coração. Despertou em mim sentimentos que eu
desconhecia, sonhos de fortuna que nunca havia
sonhado. De que me adianta tal aquisição, se só
sinto dor?
— Não vou pedir desculpas pelo que fiz, Brandon.
Você já possuía um coração, ou ele não estaria
partido agora. E esses são os riscos que assumimos
quando amamos. Como podemos apreciar a beleza
do sol sem nunca conhecermos a escuridão de uma
tempestade?

Projeto Revisoras
E ele vira a beleza do sol nos seus cabelos, na luz
dos seus olhos quando o fitavam, no som do seu
nome naqueles lábios, nos seus sorrisos doces. Com
um soluço desesperado, ele a tomou nos braços e
enterrou o rosto nos seus cabelos. Não poderia
soltá-la, mesmo que desejasse.
Foi ela quem fê-lo recuar com um gesto firme e
terno. Preocupada, fitou-o em silêncio por alguns
minutos.
— Quer que o acompanhe até sua casa?
Esse era seu maior desejo, mas já podia sentir a
sanidade retornando. Podia senti-la na rigidez dos
seus ombros e no peso do coração oprimido. E com
a sanidade vinha a certeza de que devia deixá-la ali,
em segurança.
— Não. Preciso de um tempo. Devo fazer jus ao
nome de lorde Heartless.
— Eu sei que ele não existe. Você é o senhor do
meu coração, Brandon. E sei que vai se comportar
de maneira conveniente e equilibrada, porque é
necessário que seja assim. Mas, por favor, não
tenha medo de partilhar comigo o que sente. Não

Projeto Revisoras
deixe esse acidente arruinar a intimidade que
construímos hoje.
Ele a abraçou, esperando que ela interpretasse o
gesto como urna promessa. Naquele momento, não
podia ter certeza de nada.
E isso o assustava.
Célia pensou sentir o próprio coração se partindo
enquanto o via ir embora. Naquele dia vira o rosto
de Brandon iluminado pela alegria, e agora era como
se ele nunca mais fosse experimentar tal
sentimento. Queria abraçá-lo, dizer que o amaria
para sempre, ajudá-lo a ver que existia um futuro
além disso. Mas o deixara ir com um abraço e
algumas palavras. Com suas preces, isso era tudo
que tinha para oferecer por enquanto.
Patrice e Stanley estavam igualmente abalados,
mas foi lady Honória quem assumiu o comando da
situação. Em pouco tempo, os assistentes da
senhora chegaram para tomar as providências para
o funeral e vestir o corpo. Célia ouvia suas ordens
eficientes e via um verdadeiro exército de criados
entrar em movimento para cumpri-las.

Projeto Revisoras
Célia e Patrice não obtiveram permissão para
comparecer às cerimônias fúnebres, embora a
própria lady Honória houvesse participado de todas
as etapas. Só depois do sepultamento, quando
voltou para casa, ela reuniu todos no salão.
Martin e Célia se sentaram juntos no sofá. Lady
Honória, completamente de luto, entrou no aposento
apoiada no braço de Sally. Patrice levantou-se para
ajudar, mas ela a recusou com um gesto.
— Posso ficar em pé, obrigada. Sei que todos
aqui estão tão chocados quanto eu com a morte de
Edmund. No entanto, temos um dever maior a
cumprir no momento. Lorde Hartley não deve ficar
sozinho. Já instruí os criados para cuidarem da
bagagem. Todos iremos para a Propriedade
Pellidore.
Patrice abriu a boca como se quisesse protestar,
mas não disse nada. Martin olhou para Célia
buscando sua orientação. Ela balançou a cabeça,
depois se levantou.

Projeto Revisoras
— Lady Honória, sei que considera tal gesto uma
gentileza, mas creio que lorde Pellidore precisa de
tempo para recuperar-se. Companhia não vai ajudá-
lo em nada.
— Não somos companhia, menina — a mulher
respondeu tensa, demonstrando estar aborrecida
com sua interferência. — somos família. E não pedi
sua opinião sobre o assunto. Esteja pronta para
partir depois de amanhã.
Patrice também se levantou e tocou o braço de
Célia.
— Talvez não seja tão triste — opinou. — Afinal,
estaremos perto de Stanley.
— Não, Patrice. Você não vai estar perto dele —
lady Honória continuou. — Ele seguiu meu conselho
de retornar a Somerset imediatamente.
— Imediatamente?
— Você nunca fica contente? Queria se casar com
ele. Stanley precisa da bênção do pai para isso.
Deixe-o ir buscá-la. E vá ajudar o sr. Kinders com a
bagagem.
Patrice estendeu a mão para o filho. Célia podia

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dizer que ela tentava ser corajosa, mas lágrimas
inundavam seus olhos. Martin segurou a mão dela e
estendeu a outra para Célia.
— Tudo vai ficar bem — o menino garantiu com
tom sério. — Não é, Célia?
Patrice esperou que ela confirmasse a afirmação.
Célia afagou a mão do menino.
— Sim, Martin, tudo vai ficar bem, mesmo que
lady Honória não queira.

O coração de Brandon sangrava. Não sabia


quando a dor havia começado, mas ela não cedia.
Como Edmund, ela era sua companhia durante as
longas noites de silêncio e solidão, a repentina
partida de Arlington deixara outro buraco na sua
vida. Os dias repletos de visitas de amigos,
familiares e conhecidos só pioravam a situação, e
era difícil superar a recordação da breve viagem do
cortejo fúnebre da casa até o cemitério local. Para
piorar, lady Honória decidira instalar-se na sua casa.
— Parece cansado — ela disse com os olhos

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brilhantes.
— Estou bem. — A resposta era só um hábito. Se
não pudera contar a Edmund sobre suas
inquietações, certamente não as revelaria a essa
mulher.
Mas ela não desistiria tão fácil.
— Está se alimentando, meu rapaz?
— Sempre que o alimento me é oferecido.
— E tem dormido.
— Ocasionalmente.
— Está tomando a medicação que Sally preparou
sob minhas ordens?
— Raramente.
— Ora, ora! Quer que eu o recuse, rapaz? Você é
um Pellidore! Levante a cabeça e supere a dor desse
golpe!
— Estou de luto. Até mesmo lorde Heartless pode
chorar a morte de alguém muito querido.
Sozinho, Brandon tentou seguir os conselhos de
lady Honória, mas a medicação tinha um gosto ácido
e só fazia piorar sua dor de cabeça. Mesmo com
todo empenho do cozinheiro, a comida não tinha

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sabor, e quando se deitava o sono parecia fugir
dele. Não conseguia apagar da mente as lembranças
do acidente e do seu tio.
O cocheiro da carruagem que causara o desastre
devia saber que havia deixado a desgraça no seu
rastro, mas ninguém se apresentara para confessar
o delito. Talvez o criado temesse as repercussões.
Afinal, a morte de um homem fora relatada nos
jornais, e Brandon não conseguia deixar de pensar
que não havia sido apenas um simples acidente.
Também tinha a sensação de que Edmund
experimentara esse mesmo sentimento. Lembrava-
se do rosto do tio no meio da rua, pedindo para que
se cuidasse e cuidasse de Célia.
Não havia sido esse seu último aviso? Sim,
ouvira as palavras. E se ele temesse pela segurança
da jovem dama? Podia ter descoberto algo sobre as
ameaças que a cercavam e punham em risco sua
fortuna. Conhecia a identidade da pessoa por trás
dessas ameaças? E se o cocheiro da carruagem
tivesse por objetivo atropelar Célia, em vez de
Edmund?

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Mas havia um pensamento ainda mais sombrio.
Edmund morrera certo de que Célia era uma
vigarista. Brandon não podia imaginar como alguém
podia ter atentado contra a saúde da srta. Turner e
da sua família, mas, se ela realmente estava
envolvida nisso, contratar um cocheiro para
atropelar um homem não seria um grande desafio.
Como a srta. Turner, Edmund fora contra as
intenções de Brandon de desposar Célia. De fato,
Célia era a única que poderia se beneficiar da morte
do seu tio, nem que fosse apenas pela remoção dos
seus protestos.
Os pensamentos o atormentavam tanto, que ele
soube que tinha de agir. Sentira-se confortável
questionando lady Brompton e os comerciantes
locais, mas tinha certeza de que um lorde obteria
poucas informações sobre a morte do próprio tio, a
menos que abordasse as pessoas certas. Era hora
de chamar um profissional.

Dois dias depois do funeral, ele foi à cidade e

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contratou um detetive em Bow Street. O homem
indicado por um respeitado magistrado era
formidável, embora de estatura modesta e careca.
Seus olhos azuis eram penetrantes e sagazes.
— Algum suspeito? — ele indagou depois de ouvir
toda a história do acidente.
O que poderia dizer? Recusava-se a implicar
Célia, e não conseguia pensar em mais ninguém que
pudesse desejar a morte de Edmund. É claro, havia
a possibilidade de não ter sido ele o alvo.
Infelizmente, não conseguia decidir se os atacantes
queriam a vida dele ou de Célia, ou porque
atentariam contra um deles.
— Morte?
Quando o investigador o encarou confuso, ele
relatou o episódio ocorrido na festa de lady
Brompton e a visão que tivera perto de
Westminster. O profissional aceitou o adiantamento
dos seus honorários e prometeu um relatório numa
semana ou menos.
Brandon voltou para casa mais animado, só para
retornar ao estado depressivo quando viu a coleção

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de carruagens parada diante do seu portão. Ao
entrar, ele se deparou com o caos. Criados corriam
em todas as direções, e o saguão da frente estava
tomado por bagagens. Um dos lacaios passava por
ele, e Brandon perguntou:
— Timms, o que significa isso?
— Lady Honória, milorde! Ela se mudou para cá!
— De jeito nenhum! — Brandon reagiu num
impulso incontrolável. — Onde ela está?
— Na última vez em que a vi, ela estava no
segundo andar escolhendo os aposentos onde se
instalaria.
Brandon subiu a escada saltando os degraus.
Pretendia seguir o som das vozes, mas percebeu
que elas vinham de todos os recantos. Por isso
parou e respirou fundo, tentando recompor-se. Uma
das portas estava aberta, e ele viu uma silhueta
atravessando o espaço visível além da porta.
Brandon invadiu o quarto.
— O que pensa que está fazendo?
Célia virou-se para encará-lo e levou a mão ao
peito.

Projeto Revisoras
— Brandon, você me assustou!
Ele se recompôs com dificuldade e adiantou-se
mais devagar.
— Desculpe-me se a assustei — disse. — Onde
está lady Honória?
— Em algum lugar nesse corredor. Ela considerou
este quarto pequeno demais para acomodá-la.
Estava pensando em me instalar nele.
O marquês balançou a cabeça, como se quisesse
clarear os pensamentos.
— Também está se mudando para cá?
— Não foi prevenido? Oh, mas isso é intolerável!
Agora chega! — Ela passou por ele para sair, mas foi
detida pela mão de Brandon no seu braço.
— Espere! Está tentando me dizer que todos
estão aqui?
— Exatamente. Lady Honória e sua criada,
Patrice e a dela, Martin e John, e eu. Ouso dizer que
lady Honória trouxe também outros criados.
— Eu devia saber. — Ele a soltou e recuou um
passo. — Lamento ter extravasado minhas
frustrações. Como se sente?

Projeto Revisoras
— Eu devia estar fazendo essa pergunta — ela
respondeu com um sorriso. — Lamento não ter
podido comparecer ao funeral. Foi muito difícil?
— Foi um funeral, o que equivale dizer que a
ocasião serviu para lembrar a todos sobre o lado
mais sombrio da vida.
Ela tocou seu rosto.
— Sinto muito. Confesso que isso me serve de
consolo quanto à mudança. Posso estar mais perto
de você, caso precise de mim.
Se necessitava tocá-la? Ela não podia imaginar
quanto, ou como seria muito mais difícil demonstrar
seus sentimentos com lady Honória na sua casa.
Edmund havia sido um cão de guarda, certamente,
mas, até recentemente, também se revelara
solidário. Não teria essa mesma misericórdia no
trato com lady Honória.
Mas não podia expulsar a própria tia. Ela
questionaria seu equilíbrio, e toda a cidade a
apoiaria naquele questionamento, levando em conta
que os laços de sangue e a idade avançada
conferiam a ela o privilégio de instalar-se na

Projeto Revisoras
propriedade quando bem entendesse.
E se conseguisse convencê-la a voltar a Londres,
Célia também se afastaria dele. De qualquer
maneira, estava perdido.

Capítulo XVII

Brandon devia ter decidido não confrontar lady


Honória, ou ela o convencera dos seus argumentos,
porque ninguém foi dizer a Célia que eles
retornariam a Londres. Ela se certificou de que
Martin e John estavam bem acomodados na sala de
estudos no último andar, depois foi ajudar uma
criada chamada Bess a preparar o quarto onde ela
se instalara.
Normalmente, teria ficado satisfeita com as
acomodações. Ele possuía janelas largas voltadas
para o oeste, paredes de um azul claro e colcha e
cortinas num tom intenso de verde. A cama não era

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muito macia, mas o tapete era bem espesso.
Mas não conseguia deixar de se sentir uma
invasora. Brandon não estava pronto para o convívio
social. O choque da morte do seu tio ainda era
muito recente. Podia ver a dor nos seus olhos
quando passava por ele no corredor, e ouvia o
sofrimento na sua voz sempre que ele dizia alguma
coisa. Ansiava tocá-lo, abraçá-lo, sentir o calor do
seu corpo, mas temia ser rejeitada. Ele havia
trancafiado novamente o coração. Lady Honória não
devia ter insistido na mudança.
Mas ela parecia determinada na conveniência de
agirem copio se nada houvesse ocorrido. Com
exceção das roupas pretas que tinham de usar,
todos deviam se comportar como antes. Célia
considerava impossível tal perfeição.
Patrice, por exemplo, choramingava pelos cantos
como se estivesse realmente de luto, quando, na
verdade, Célia sabia que ela chorava a falta de
Stanley. Sally Lawton era mais amarga do que de
costume. De acordo com John, o sr. Gregory, valete
de Brandon, julgava ser mais poderoso que todos e

Projeto Revisoras
não media esforços para expressar tal opinião,
especialmente diante da ama de lady Honória. Além
do mais, as outras criadas já começavam a reclamar
que as poções que Sally insistia em preparar para
sua senhora deixavam a cozinha com um aroma
peculiar e desagradável.
Os outros criados de Brandon também se
incomodavam com a situação. noutras
circunstâncias, Célia pensava que poderia gostar do
sr. Openshaw, o mordomo, e das suas perucas
empoadas e maneiras quase militares. O homem
marchava pela casa com o nariz apontando para o
alto, os braços tensos e os passos medidos. Timms
devia ser útil, como John, mas ultimamente se
mostrava sempre à beira das lágrimas.
Brandon era o pior de todos. Para o mundo, ele
mostrava a face que todos esperavam ver, a do
homem calmo, comedido, digno. Mas Célia podia ver
a escuridão no fundo dos seus olhos.
Foi Martin quem conseguiu vencer sua reserva
primeiro. Célia foi visitá-lo na sala de estudos e
encontrou o lugar vazio. De lá podia ouvir o som de

Projeto Revisoras
vozes no fundo do corredor. Seguindo o barulho, ela
encontrou um aposento amplo e aberto desprovido
de mobília. Havia ali um conjunto de toalhas e um
valete silencioso.
Martin, John e Brandon estavam reunidos em
volta de uma enorme sacola de couro suspensa do
teto por uma corrente. Brandon vestia apenas a
camisa e tinha as mangas enroladas. Era possível
ver os músculos flexionados nos braços fortes
enquanto ele cerrava os punhos para bater contra o
saco. Martin o observava fascinado.
— O que estão fazendo? — ela indagou,
aproximando-se do grupo com passos leves.
Todos se viraram para encará-la, e Brandon
corou.
Martin apontou para a sacola.
— Olhe só para isso, Célia! John diz que deviam
pensar em instalar uma dessas no ginásio de boxe
do Cavalheiro Jackson.
Célia sorriu do entusiasmo do irmão, mas podia
sentir a tensão de Brandon aumentando quando,
silencioso, ele vestiu o casaco.

Projeto Revisoras
— Por favor, não pare por minha causa — disse.
Ele balançou a cabeça, mas Martin saltitava
esperançoso.
— Por favor, milorde! Mostre a ela como
funciona!
— Talvez você deva demonstrar — Brandon
sugeriu.
Não podia permitir que ele se retraísse e voltasse
ao silêncio dos últimos dias. Por isso sorriu e
adiantou-se.
— Tenho certeza de que Martin ficaria encantado,
mas é muito melhor observar o mestre do que
testemunhar as tentativas do aprendiz.
Brandon franziu a testa, e Martin os observou
atento e quieto. Depois segurou a mão do marquês.
— Por favor, milorde!
Brandon encarou o menino e não conteve um
sorriso.
— Muito bem. Afaste-se, Martin.
O garoto e John recuaram ansiosos, mas não
tanto que não pudessem observar os golpes de
perto. O marquês empurrou a sacola para fazê-la

Projeto Revisoras
oscilar e ergueu os dois punhos diante do rosto.
— A ideia — explicou — é exercitar os braços e o
peito. O equipamento deve estar em constante
movimento.
Ele começou a desferir socos contra o saco de
couro. Célia assistia ao jogo fascinada. No início,
teve a impressão de que os socos eram aleatórios,
mas logo identificou um padrão. Era quase uma
dança. Os movimentos eram fortes, seguros,
equilibrados. Seu foco estava centrado na sacola. O
ruído dos punhos compunha uma canção, enquanto
sua respiração era a melodia de fundo. Como se
também a ouvisse, aos poucos ele foi adotando uma
expressão mais suave, menos tensa, voltando a ser
o homem que ela aprendera a amar.
Célia se sentia fascinada, cheia de admiração.
Então ele parou e estendeu as mãos para deter
os movimentos da sacola de couro. Martin o
aplaudiu. Brandon inclinou a cabeça de maneira a
agradecer o reconhecimento do menino, mas era
possível ver o verniz da cortesia resguardando seus
gestos. Célia tocou o braço do marquês, que pousou

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a mão sobre a dela e sorriu, fitando-a nos olhos.
— Obrigada — ela murmurou.
Brandon olhou para a boca que se movia como se
os lábios rosados o hipnotizassem.
— Venha comigo, sr. Martin — John ordenou
firme.
Brandon a soltou. Depois se inclinou para todos
os presentes
— Agradeço a atenção de todos. Dou por
concluída nossa demonstração de hoje.
O espetáculo chegava ao fim, de fato, mas Célia
não podia dizer que estava insatisfeita ou frustrada.
Pelo contrário, Martin abrira uma brecha na
armadura do marquês, e esperava que, com o
tempo, o espaço se tornasse maior.

Mas lady Honória tinha outras ideias. Naquela


tarde ela mandou chamar Célia.
Célia a encontrou nos seus aposentos, notando
que, embora a velha senhora esperasse que todos
fossem flexíveis o bastante para se adaptarem às

Projeto Revisoras
mudanças, ela havia alterado muito pouco na sua
rotina. A mobília escura e sólida fora trazida de
Londres e instalada num arranjo muito semelhante
ao anterior na sua nova suíte. A mesa estava
encostada numa parede, com janelas dos dois lados,
e a lareira ocupava o centro da parede oposta. Havia
um sofá e algumas poltronas na saleta. Não fosse
pelas paredes mais baixas e mais claras, Célia podia
pensar que ainda estavam em Mayfair.
— Entre, menina — lady Honória a convidou de
uma poltrona ao lado da lareira. Ela apontou a
cadeira vizinha. — Gostaria de saber como tem
passado.
— Bem, senhora. E Martin e Patrice também
estão bem.
— Ótimo. Estamos todos nos adaptando, não é?
Exceto meu sobrinho. Preocupo-me realmente com
ele.
Célia manteve o sorriso polido.
— Sim, milady, ele sente muita falta do tio.
— Certamente. Mas não podemos nos dar ao luxo
de sucumbirmos sob o peso dos sentimentos. Creio

Projeto Revisoras
que vão se casar, não é?
— Aceitei a proposta de lorde Hartley, senhora.
No entanto, não presumo pressioná-lo para
marcarmos uma data depois do que aconteceu.
— Talvez seja uma decisão sensata. Não
poderíamos mesmo organizar um casamento antes
de três meses transcorridos do funeral, se vamos
observar com propriedade o período de luto. Tem
certeza de que ele pretende desposá-la?
— Certeza absoluta. Ele fez a proposta, e eu a
aceitei. Lorde Hartley é um homem de palavra.
— Sim, em circunstâncias normais. Mas não pude
deixar de notar que ele mudou muito depois da
morte de Edmund. Notou alguma coisa incomum no
comportamento do meu sobrinho?
Mesmo que houvesse notado, jamais diria
alguma coisa a lady Honória. Célia limitou-se a
balançar a cabeça.
— Nada.
Lady Honória imitou o gesto.
— Pois eu notei, mas não é nada que eu possa
identificar. Antes da morte de Edmund ele estava

Projeto Revisoras
feliz, quase eufórico.
— Sim, estava.
— Agora ele parece ressentido, quase zangado.
— É de se esperar, considerando a natureza do
acidente.
— Talvez.
O tom de voz da mulher atraiu a atenção de
Célia, que a encarou. Seu sorriso sugeria alguma
coisa entre a satisfação e o triunfo. Célia
estremeceu.
Lady Honória tocou sua mão.
— Não tive uma oportunidade de desejar
felicidades, criança. Parabéns por seu casamento
iminente.
Célia assentiu, mesmo não estando convencida
de que sua felicidade merecia um segundo dos
pensamentos da dama. A mulher notara mudanças
em Brandon, mudanças para piorar e parecia estar
feliz com isso. O pressentimento que a dominava
não era dos melhores.

Projeto Revisoras
Naquela noite, Brandon se recolheu aos seus
aposentos e dispensou o valete. Precisava de um
momento de solidão. onde ia encontrava pessoas.
Considerava a casa vazia quando morava apenas
com Edmund, mas agora ela estava cheia demais.
Sentado na cama, massajou as têmporas. A dor
de cabeça não passava. Tinha a impressão de pisar
em ovos quando estava perto da tia. Tentar ser
cortês e gentil enquanto a cabeça ameaçava
explodir era quase impossível. Havia se alterado
com Timms duas vezes ao longo do dia, o que o
fizera afastar-se de olhos baixos, e também perdera
a paciência com o rapaz do estábulo por não ter
encontrado sua montaria pronta no horário de
costume.
Pior, não se sentia seguro para ficar sozinho com
Célia. Tudo que queria era perder-se nela, mas agir
assim seria fazer o jogo estabelecido pela tia. Não
podia dar tamanho poder a lady Honória. noutro
tempo, teria pensado num meio de encontrar Célia
com alguma privacidade. A casa tinha muitos
quartos, mesmo com os novos hóspedes. Mas agora

Projeto Revisoras
considerava um grande esforço manter os
pensamentos dentro da própria cabeça.
Levantando-se, caminhou até a lareira e remexeu
as brasas. As noites eram mais frias, agora que se
aproximavam do outono. O Parlamento entrara em
## interrupção/recanto << recesso pouco depois da
morte de Edmund. Muitas famílias já começavam a
deixar Londres e se instalar no campo. Faltavam
apenas seis semanas para o seu aniversário. Seis
semanas. Então estaria livre.
Não sobreviveria nem mais um dia com aquela
horrível dor de cabeça.
Alguém bateu na porta. Resignado, ele autorizou
a entrada de Gregory, mas, no lugar do valete, viu a
pequenina Bess, uma criada, surgir na soleira.
— Com sua licença, milorde — ela pediu de
cabeça baixa. — Srta. Rider me pediu para trazer
isto.
Ela segurava uma bandeja de prata com uma
garrafa e um cálice, como se esperasse ser expulsa
aos gritos. O marquês se aproximou, e a jovem ficou
ainda mais tensa. Bom Deus, teria se mostrado tão

Projeto Revisoras
desequilibrado que até os criados temiam suas
reações?
Ele tomou a bandeja das mãos trêmulas antes
que a jovem a derrubasse.
— Obrigado. Ela mandou algum recado?
— A srta. Lawton não disse nada sobre um
recado, milorde. Disse apenas que eu deveria trazer
a bandeja imediatamente, ou enfrentaria problemas.
— Obrigado. Pode ir agora.
A jovem inclinou-se respeitosa e saiu. Então, a
sra. Lawton não podia cumprir as ordens de Célia
pessoalmente. Soubera que a criada de humor
sombrio fora designada para atender às
necessidades de Célia, e sabia que nenhuma das
duas estava satisfeita com o arranjo. Se nem ele
estava! Teria de conversar com Openshaw. Talvez
houvesse outra criada na casa para servi-la.
Brandon deixou a bandeja sobre a mesa próxima
da lareira. Célia era muito gentil e estava sempre
pensando em ajudá-lo. Talvez entendesse seu
comportamento nos últimos dias. Ele removeu a
rolha da garrafa e cheirou seu conteúdo. Cherry

Projeto Revisoras
brandy. Como ela havia descoberto a preferência
familiar? Sorrindo, o marquês serviu uma dose da
bebida doce no cálice de cristal.

Célia despertou de um sono profundo. Intrigada,


tentou identificar o ruído que a despertara. As
brasas se apagavam na lareira e espalhavam um
brilho avermelhado à sua direita. Mal podia ver os
contornos dos móveis no quarto. O ruído soou
novamente, quase um farfalhar. Alguém raspando
sua porta?
— Sim?
Silêncio.
No lugar do som anterior, um grito assustador se
fez ouvir.
Célia levantou-se e saiu do quarto sem se
importar com a camisola branca e fina com que
estava coberta. Timms estava no corredor,
hipnotizado. Outras portas se abriam, e os
estrondos eram como tiros. Patrice e lady Honória
apareceram no corredor, e Célia ouviu passos

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apressados na escada.
— Não há razão para alarme — Timms anunciou
com voz trêmula. — A srta. Rider teve um pesadelo,
só isso.
Célia o encarou perplexa.
— Meu Deus! — exclamou lady Honória com a
mão sobre o peito. — Você está bem, criança?
O olhar de Timms para Célia era atormentado, e
ela podia ver que ele engolia em seco, como se
fosse consumido pelo pavor.
— Estou bem, minha senhora — ela respondeu.
— Lamento tê-la perturbado.
Patrice tocou seu braço.
— Quer que eu me sente a seu lado durante
algum tempo?
— Não é necessário — Célia recusou. — Timms,
acho que derrubei uma cadeira quando saí correndo.
Pode me ajudar, por favor?
— Imediatamente, senhorita — ele respondeu,
correndo para dentro do quarto.
Célia ainda ficou no corredor até ter certeza de
que lady Honória e Patrice se recolhiam a seus

Projeto Revisoras
aposentos. Então voltou ao quarto e fechou a porta.
— O que está acontecendo? — perguntou sem
rodeios.
— Imploro seu perdão, senhorita, mas é a única
que pode nos ajudar. É o marquês. Ele não está
bem.
— Esse barulho. foi Brandon? Leve-me até ele
imediatamente.
— Deus a abençoe, senhorita — ele disse a
caminho da porta.
Depois de olhar para os dois lados do corredor
para certificar-se de que ninguém os vigiava, o
criado convidou-a a segui-lo. Sem se dar ao trabalho
de cobrir-se com roupas mais quentes ou
apropriadas, Célia foi atrás de Timms sentindo o
coração oprimido.
Ele a levou ao andar de cima, onde ficavam os
aposentos de Brandon e Edmund. Seu coração batia
depressa. O que podia ter acontecido? O marquês
havia caído? Fora atacado? Em qualquer desses
casos, lady Honória teria sido chamada, não ela.
Timms parou diante de uma das portas.

Projeto Revisoras
— Eu a previno, senhorita, que não verá uma
cena muito bonita. Mas. Bem, o sr. Edmund
costumava acalmar o antigo lorde Hartley
conversando com ele. Pensamos que talvez pudesse
fazer o mesmo agora. Só não pode revelar nada a
lady Honória. Está entendendo?
Temia estar entendendo perfeitamente, e por
isso sentia o sangue enregelar nas veias.
— Ele perdeu a razão?
— Sim, senhorita. Por favor, ajude-o!
— Abra a porta — Célia ordenou.

Capítulo XVIII

A cena era horrível. O sr. Gregory e o sr.


Openshaw montavam guarda nas laterais da cama,
um de cada lado, e metade do acortinado já havia
sido arrancada. A outra metade pendia em tiras
rasgadas. O valete parecia a um passo do pranto, e

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o mordomo também demonstrava estar tomado pelo
terror. Sobre a cama, Brandon tinha os cabelos
molhados de suor e as roupas rasgadas. As cobertas
ocultavam a metade inferior do seu corpo e estavam
contorcidas, indicando luta. Os dois criados
seguravam os braços do lorde, impedindo-o de
deixar o leito, e o sr. Openshaw mantinha a mão
livre sobre a boca do marquês.
— Temos de mantê-lo quieto, senhorita — ele
explicou angustiado.
— Ele está acordado?
Ao ouvir a voz de Célia, Brandon abriu os olhos.
Ela se assustou. Não havia mais razão neles. Era
como se o marquês visse um espelho de loucura e
obsessão, tal o terror contido nas suas pupilas
dilatadas.
— Cuidado! — preveniu o valete.
O corpo de Brandon sofreu uma convulsão. Célia
cobriu a boca para sufocar um grito e recuou um
passo. A cama sacudiu sob o peso dos seus
movimentos desordenados, e os dois empregados
tiveram de fazer um esforço ainda maior para contê-

Projeto Revisoras
lo. Ela tentou se aproximar, mas notou que o
marquês espumava pela boca.
— Oh, meu Deus.
Timms correu a ajudar os outros dois.
— Faça alguma coisa, srta. Rider! Por favor, fale
com ele, reze, qualquer coisa! Se lady Honória o
encontrar nesse estado, estaremos todos perdidos!
Célia assentiu e respirou fundo. Depois se
aproximou da cama.
— Brandon? Brandon, pode me ouvir?
Ele se debatia.
— Brandon, por favor, volte para nós! Precisamos
de você!
Os movimentos perderam parte da intensidade
febril. Brandon fechou os olhos novamente.
— Há quanto tempo ele está assim?
— Não sabemos, senhorita — respondeu o valete.
— Nunca o vi assim antes. Ele me dispensou mais
cedo esta noite, e decidi vir verificar se meu senhor
não precisava de mais nada antes de ir me deitar.
Eu o encontrei no meio do quarto, dançando.
— Dançando?

Projeto Revisoras
— Sim, senhorita. Ele valsava como se tivesse
uma dama nos braços. Mas não havia ninguém com
ele. No início pensei que ele a estivesse imaginando.
— Ah, é claro! — protestou o mordomo. — O
marquês costuma mesmo sonhar acordado com a
mulher amada e dançar seminu!
— Bem, foi o que pensei. Mas ele começou a
cantar, e então soube que havia algo errado. Fui
buscar o sr. Openshaw.
— E eu trouxe Timms.
— Pensei que ele estivesse embriagado — o
lacaio confessou constrangido. — Havia uma garrafa
meio vazia.
— Garrafa?
— Aquela — ele apontou.
Célia foi buscá-la. Uma garrafa sem rótulo caída
entre as brasas quase apagadas da lareira. Ela
cheirou o gargalo. O aroma de cerejas era
inconfundível. Deixando-a de lado, ela se aproximou
do lavatório.
Quando voltou para perto da cama, Célia
segurava uma toalha molhada.

Projeto Revisoras
— Não posso estar certa, mas não creio que esse
seja o efeito de consumo excessivo de bebida
alcoólica — ela disse, limpando a espuma do rosto
do marquês.
— Não, senhorita — concordou o mordomo. — É
a loucura. Lady Honória precisa ser informada.
— Desculpe-me, sr. Openshaw, mas talvez não
seja tão grave — opinou Timms. — O marquês é
forte. Talvez consiga reagir.
— Sim, talvez. Vamos esperar. Timms, você e
Gregory devem ficar aqui com a srta. Rider. Virei
rendê-los mais tarde, na madrugada.
— Acha que ele estará melhor amanhã? — Célia
perguntou incrédula.
— Se isso for a mesma coisa que acometeu o pai
dele, o senhor não verá o novo dia.
Célia se sentiu devastada. Devia ter cambaleado,
porque o valete soltou seu senhor para ampará-la.
Ela balançou a cabeça e respirou fundo.
Não podia ser verdade! Não permitiria que a
maldição se realizasse. Brandon passara a vida
lutando contra a ameaça da loucura. Não deixaria

Projeto Revisoras
que ele perdesse a luta agora, tão perto do dia da
vitória! Seria vigilante como Edmund havia sido.
Openshaw deixou o quarto, e ele olhou para os
outros dois com os ombros erguidos.
— Não vamos esperar pelo amanhecer.
Ajudaremos o marquês agora.
— Como se pode ajudar um homem louco? —
Timms perguntou.
— Não sei como tratar sua mente, mas podemos
começar pelo corpo. Timms, reacenda o fogo. Sr.
Gregory, por favor, feche a janela. Temos de
aquecê-lo.
— Mas se o soltarmos.
— Correremos o risco. Quero que ele se sinta
confortável. É o mínimo que podemos fazer.
Os dois homens foram cumprir suas ordens, e ela
se debruçou sobre a cama para cobrir o corpo inerte
de Brandon. Ele parecia dormir.
— E agora, senhorita? — Timms quis saber
quando retornou.
— Sabe ler?
— Lamento, senhorita, mas só sei assinar meu

Projeto Revisoras
nome. É o suficiente para mim.
— Eu sei ler — disse o valete.
— Então, vá à biblioteca e traga-me dois livros
que poderia encontrar aqui, no quarto do seu
senhor. Um deles deve ser de William Shakespeare
e conter um bom número de sonetos e peças.
— Sonetos, senhorita?
— Poesia. Rimas.
— Ah, sim. E o outro?
— A Bíblia, sr. Gregory. Precisamos de ajuda.

Brandon sabia que estava sonhando. Era


estranho. Raramente recordava seus sonhos, e
quando isso acontecia, eles pareciam muito reais.
Aquilo tudo era irreal, o que tornava a situação
ainda mais perturbadora.
Estava deitado na sua cama, e Openshaw e
Gregory o seguravam. Tentava escapar, mas era
inútil. Eles nem pareciam ouvir suas ordens! Seus
rostos eram insensíveis e frios.
Pior, Célia também estava ali, e ela ignorava

Projeto Revisoras
seus pedidos desesperados de ajuda. Insistia em
colocar compressas sobre sua testa, como se
quisesse queimá-la, e nem se importava com seus
gritos de dor.
Num dado momento, conseguiu soltar um braço
e agarrou o dela para interromper a dolorosa
terapia, e ela arregalou os olhos e empalideceu.
Estava com medo dele! O pensamento era mais
doloroso que qualquer outra coisa. Por isso ele a
soltou e fechou os olhos, submetendo-se às
compressas.
Por um tempo o mundo mergulhou na escuridão.
Aos poucos, ele tomou consciência de um som.
Começou baixo, discreto, e aos poucos foi ganhando
força. Palavras? no seu idioma? Aquela era a voz de
Célia?
— E mesmo que eu ande pelo vale da dor, não
temerei o mal, pois você está comigo.
— .na dificuldade e na dor, sua presença me
conforta. — Brandon continuou.
Ela parou e prendeu o fôlego.
Ele piscou, e a luz retornou. Ela estava centrada

Projeto Revisoras
em Célia. Havia uma Bíblia entre suas mãos
trêmulas.
— De certo a bondade e a misericórdia me
seguirão por todos os dias da minha vida — ela
concluiu ofegante —, e eu me alegrarei para sempre
na morada do Senhor.
— Estou morto?
Ela parecia conter um soluço.
— Não, graças a Deus. Sabe quem sou?
— Sim, você é Célia Rider, a mulher que amo.
Ela fechou os olhos e fez uma prece rápida,
depois, quando os abriu, se inclinou sobre ele.
— E você é Brandon Pellidore, marquês de
Hartley, meu único e grande amor.
— O que estou fazendo aqui?
— Lembra-se de alguma coisa?
— Sim, lembro-me de ter me sentado ao lado da
lareira para beber o brandy enviado por suas
generosas mãos.
— Eu? Mas. não mandei nenhuma bebida!
— Uma criada informou que a srta. Lawton
mandou-a trazer a garrafa no seu nome.

Projeto Revisoras
— Ela deve ter se enganado. Não se lembra de
mais nada?
— Apenas de um sonho horrível no qual você
tentava escaldar minha testa.
— Que horror!
— Porque estava a meu lado lendo a Bíblia em
voz alta?
— Gregory o encontrou dançando seminu no
meio do quarto. Quando voltou depois de ir buscar
ajuda, você estava cantando em voz alta. Gritando.
Não podia ser. Recusava-se a acreditar nisso.
— Eles mentem.
— Não, Brandon. Cheguei a tempo de vê-lo.
Você. estava fora de si.
Ele se levantou, e Célia pôs-se em pé de um
salto e correu para o canto mais afastado do quarto.
— O que é isso? Acha que vou atacá-la?
— Não. Agora não.
— Nunca! — ele protestou. Mas sabia que o medo
era justificado. — Por quanto tempo fiquei nesse
estado?
— Algumas horas. E depois dormiu por quase dez

Projeto Revisoras
horas.
— Quando eles virão me buscar?
— Eles. quem?
— Os homens da custódia. Os guardiões do
instituto mental em Londres.
— Nunca! Não revelamos nada a ninguém.
— Nós? De quem está falando?
— De mim, do sr. Openshaw, de Gregory e de
Timms. Ninguém mais soube. O sr. Openshaw disse
a lady Honória que você havia ido à cidade bem
cedo, e Timms certificou-se de que ninguém esteve
questionando os empregados do estábulo. Informei
Patrice sobre minha intenção de passar o dia nos
meus aposentos, e Gregory toma providências para
que ninguém vá até lá me procurar. Até agora,
ninguém soube de nada.
Seria assim tão simples? Podia fingir que nada
havia acontecido? Mas acontecera, e podia acontecer
novamente. Não permitiria que Célia sofresse por
isso.
— Deve voltar a Somerset — o marquês decidiu.
— Minha companhia deixou de ser segura.

Projeto Revisoras
— Não diga tal coisa. Foi apenas um episódio. Já
relatou os sintomas, lembra? Euforia, ataques de
fúria. Outras coisas podem ser semelhantes. A
bebida podia ser mais forte do que imaginava. Pode
ter estado embriagado, apenas. Afinal, não
gaguejou como era previsto.
Brandon deixou escapar uma gargalhada amarga.
— Acho que é hora de saber de tudo, Célia, pois
só assim poderá escolher realmente. Meu tio
Edmund sempre me ensinou a controlar emoções e
sentimentos, e por isso quase a perdi.
— Você nunca me perderia.
— Escute. Meu nome é. — ele parou e respirou
fundo. — B-B-B-BBrandon P-P-P-. — ele parou e
fechou os olhos, tentando não deixar a língua
tropeçar nas letras. — P-P-Pellidore.
Ela o encarava pálida.
— Não tem graça, Brandon.
— Não. Eu sei que não. Quer outra
demonstração. Sei que posso me lembrar de uma
poesia com essas mesmas letras. Nunca tive
permissão para recitá-la, mas lembro-me de ter lido

Projeto Revisoras
os versos diversas vezes.
— Não é possível! Você fala tão bem! Nunca
gaguejou antes!
— Porque procuro evitar as letras que me
causam o problema. Certa vez você disse admirar a
maneira como falo, devagar e baixo. Há uma razão
para isso. Prefiro pensar antes de falar, pois assim
posso evitar palavras que trariam de volta essa
dificuldade.
— Entendo.
— Não, você não entende. Por mais que queira
negar, Célia, trago em mim todas as indicações da
doença. Como meu pai, não sobreviverei ao legado
da família. E dessa vez, o título morrerá comigo.
— Brandon, Edmund disse que você nunca havia
gaguejado. Desde quando?
— Começou depois da morte do meu pai.
— Então não pode ser a doença! Pelo que sei,
seu pai faleceu rapidamente depois de exibir o
primeiro sintoma. Como pode ter um deles há anos
e sobreviver a um ataque?
— Não sei. Talvez a doença se manifeste de

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maneira diferente em mim.
— Não, os sintomas apareceram depois de ter
bebido o conteúdo daquela garrafa. Uma poção,
talvez? — ela recuperou a garrafa e deixou-a sobre
o mesinha de cabeceira.
— Uma poção que produz os sintomas da
doença?
— Porque não? Primeiro foi a criatura na festa de
lady Brompton, depois a carruagem que matou seu
pobre tio, e agora a poção. Recebeu a garrafa com
uma explicação de que eu a havia mandado, mas sei
que não enviei nada. — Ela pegou a garrafa.
— O que está fazendo?
Célia serviu a bebida numa taça.
— Toda teoria deve ser testada. Se eu exibir os
mesmos sintomas, saberemos com certeza que
alguém tentou envenená-lo.
— Não! — ele segurou seu braço. — Se estiver
certa, isso pode matá-la!
— Não se eu beber pouco. Quer conhecer a
verdade, não?
— Não se para isso tiver de pôr sua vida em

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risco. Pense noutro teste para a sua teoria, Célia.
— Bem, podemos testá-la num animal, mas não
sabemos se ele tem as mesmas reações que os
seres humanos.
— Além disso, teria de encontrar um motivo,
também. A Coroa fica com minha fortuna e o título,
caso eu pereça sem deixar herdeiros. Porque alguém
desejaria matar-me?
— Não sei, mas não sairei do seu lado enquanto
não estiver bem o bastante para descobrir. Acho que
devíamos sair daqui, ir a algum lugar onde você
possa descansar sem a ameaça constante da
presença inoportuna de lady Honória.
— O que tem em mente?
— Nada de concreto, mas vou pensar. Juro que
superarmos tudo isso, Brandon. Confie em mim.
A expressão no seu rosto dizia que ele apreciava
sua devoção, mas não acreditava na possibilidade
de salvação.

No final da tarde, aliviada por Brandon não ter

Projeto Revisoras
revelado novamente os sintomas da doença que
matara seu pai, Célia decidiu sair do quarto para
não atrair atenção indesejada. Deixando o marquês
aos cuidados do seu valete, ela foi mudar de roupa e
desceu para jantar.
— Soube que esteve doente, menina — lady
Honória disse ao vê-la à mesa.
Célia sorriu.
— Estive apenas um pouco desanimada, mas já
me recuperei, obrigada.
Patrice respirou aliviada.
— Fico feliz por saber que está bem, mas, na
próxima vez, responda quando eu for bater na porta
do seu quarto. Fiquei muito preocupada.
Célia se desculpou e começou a comer.
Patrice insistiu em tocar piano depois do jantar e
a acompanhou até seus aposentos para desejar um
boa-noite. Mais uma hora se passou até que lady
Honória também se recolhesse, e só então Célia
pôde voltar ao quarto de Brandon.
— Como ele está? — perguntou preocupada ao
ser recebida por Timms.

Projeto Revisoras
O lacaio sorriu.
— Voltou a ser o homem de antes, senhorita.
Deus a abençoe.
— Onde ele está?
— Saiu.
— O quê? Você o deixou sair?
— Ele é o amo desta casa, senhorita. O marquês
me pediu para dizer que devia ter uma boa-noite de
sono, e que ele a veria ao amanhecer.
Célia agradeceu e saiu.
Naquela noite, dormir foi quase impossível.

Brandon chegou em Londres quando as luzes


começavam a ser acesas. Os magistrados haviam
ido para casa, mas o homem de plantão em Bow
Street informou onde poderia encontrar o
investigador que havia contratado.
Ao vê-lo, o homem convidou-o a se sentar numa
mesa afastada.
— Eu teria ido procurá-lo amanhã, milorde, Estou
certo de que o caso de que me incumbiu é muito

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interessante.
— Então, localizou o cocheiro daquela
carruagem?
— Não. Sei a quem pertence o veículo. A
carruagem foi alugada, o homem pagou por ela em
moedas de ouro. Disse que seria usada por um
empregado da sua amada.
— Uma dama? Quem?
— Uma certa srta. Célia Rider.
O marquês empalideceu.
— Tem certeza do que diz?
O investigador assentiu.
— Sim. Todos confirmaram a informação sem
nenhuma hesitação. Ela já havia alugado outra
carruagem, e por isso os proprietários sabiam que a
jovem dama era digna de confiança. Sei reconhecer
um mistério, milorde. Porque essa mulher haveria
de desejar a morte de lorde Pellidore? Bem, penso
que talvez ela não a quisesse. Talvez sua intenção
fosse matar o próprio marquês. Procurei investigar
dados que pudessem fundamentar minha teoria, e
encontrei algumas coisas interessantes. Já leu o

Projeto Revisoras
testamento da sua família, milorde?
— Mais vezes do que pode imaginar. Conheço
todas as regras que se relacionam a minha herança.
— E conhece também as regras para a próxima
linhagem?
— Pelo que sei, não existe ninguém depois de
mim. Se eu não puder herdar, fortuna e título
ficarão para a Coroa.
— Não exatamente. O título será transmitido
para o próximo descendente direto do presioneiror
original, mas a fortuna não está atrelada a ele.
— Não.
— Por isso, milorde, ela irá para o parente mais
próximo do seu pai. Os magistrados confirmaram.
Conhece um menino chamado Martin Rider?
— Martin? Ele será o herdeiro no caso da minha
morte?
— Sim, milorde. Sei que ele é apenas um
menino, mas também sei que ele é meio-irmão da
srta. Rider, que se empenhou muito para conhecê-
lo. Talvez, em vez de desposá-lo, ela tenha decidido
fazer do irmão um herdeiro.

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Não podia ser. Célia passara a noite a seu lado,
lutando contra sua loucura. Ela não podia ter
planeado a morte de Edmund.
— Tome cuidado com ela — O investigador
aconselhou. — Ela tem motivos para desejá-lo morto
e, como sua esposa, não terá nenhum controle
sobre seu dinheiro. Como guardiã do menino, ela
poderá manipular os fundos com maior comodidade.
Lamento, milorde, mas essa é minha opinião. Célia
Rider quer pôr as mãos na fortuna da sua família e
não medirá esforços para isso.
Brandon pagou pelo serviço do investigador e
partiu. Com a fumaça brotando das chaminés das
casas e dos estabelecimentos, mas podia ver a luz
das estrelas enquanto a carruagem percorria as ruas
movimentadas de Londres. Era como se a luz
houvesse sido apagada da sua vida.
E não podia permitir que fosse assim.
Seu pai morrera na escuridão. Edmund tentara
amá-lo, mas o medo da escuridão o forçara a
manter Brandon distante, como Brandon também se
mantivera afastado de tantas outras pessoas.

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Honrava o ensinamento, até conhecer Célia.
Célia era a luz, o riso, a alegria. Célia era a
curiosidade e a ousadia. Célia o ensinara a rir e
amar, a valorizar a liberdade. Ela se recusava a
acreditar na doença, mesmo diante da prova da sua
existência. Acreditava nele. Como poderia duvidar
dela, mesmo diante de tantas evidências?
Brandon escolheu seguir a luz do amor.
Acreditaria em Célia até emitir o último suspiro.
O que poderia ocorrer em breve.

Na manhã seguinte, Célia foi procurar por


Brandon e não o encontrou nos seus aposentos.
Intrigada, ela decidiu levar a garrafa que deixara
sobre o mesinha de cabeceira, apesar da estranheza
de Bess, a criada que fazia a limpeza do quarto.
— Foi você quem trouxe a garrafa, Bess?
— Sim, senhorita, recebi ordens da srta. Lawton.
Ela disse que havia recebido ordens suas para trazer
a bebida, mas, como estava muito ocupada
trabalhando para lady Honória.

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— Imagino que tenha estado, mesmo.
Sally terminava de cuidar dos preparativos
matinais na pia dos seus aposentos, quando Célia
entrou e pôs a garrafa diante dela.
— De onde veio isto? — perguntou.
— Como posso saber?
— Você disse a uma criada que eu mandei a
garrafa para lorde Hartley.
— Oh, essa garrafa. — ela sorria com sarcasmo.
— Sim, mandei a menina levá-la por mim.
— Eu nunca pedi que o fizesse.
— Então deve ter entendido mal as ordens da
minha senhora. Se está incomodada com isso, é
melhor ir falar com ela.
Célia saiu do quarto e, no corredor, encontrou o
sr. Openshaw, o mordomo.
— Algum problema, senhorita?
— Não, sr. Openshaw. Estava apenas tentando
identificar a origem desta garrafa.
O mordomo a examinou com atenção.
— Ah, sim! Recebemos tais gentilezas desde os
tempos do avô do marquês.

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— Lorde Hartley costuma beber esse brandy com
frequência?
— Não. Apenas raramente, e sempre muito
pouco.
— Como se pode obter uma dessas garrafas?
— É preciso ter acesso à adega. O criado
responsável pelos vinhos, eu e o marquês temos
cópias das chaves.
— E lady Honória?
— Sim, suponho que ela tenha uma cópia,
também.
Célia agradeceu e pediu que ele guardasse a
garrafa até que ela ou Brandon a pedissem de volta.
Não gostava da direção que seus pensamentos
seguiam. Não duvidava da capacidade de lady
Honória para cometer certos atos, inclusive
assassinato, mas não conseguia entender que
motivos ela teria para tanto. Sim, sabia que ela
detinha o controle da fortuna Pellidore, mas Brandon
não a deixaria destituída depois de herdar. Então?
Logo todos estariam acordados, e teria de
encará-los sem respostas e sem Brandon. Era

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melhor enfrentar de uma vez a difícil tarefa. Célia
estava no seu quarto, escolhendo uma roupa para o
dia, quando ouviu a voz dele.
— Sempre se levanta tão cedo?
Ela se virou e o viu deitado na sua cama. Quando
o marquês se levantou, ela correu ao encontro dos
braços abertos.
Foi um beijo diferente dos anteriores, como se
agora ele não tivesse mais nada a esconder,
nenhuma reserva.
— Amo você — Brandon murmurou.
— Também amo você. Passei a noite toda
acordada, devorada pela preocupação.
— Deixei um recado informando que voltaria ao
amanhecer. Não acredita em mim?
— Brandon, a noite passada foi a pior da minha
vida. Não me sentia tão mal desde a morte do meu
pai.
— Desculpe-me por tê-la assustado.
Ela o abraçou novamente.
— Não foi exatamente medo. Eu me senti
perdida, entende? Quando pessoas que amo estão

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com problemas, ou mesmo quando eu estou com
problemas, eu ajo. E ontem à noite, não havia nada
que eu pudesse fazer.
— O que fiz, só eu poderia ter feito.
— Entendo. Hoje cedo compreendi que ajo de
forma intempestiva porque raramente há alguém
com quem eu possa contar. Mas eu amo você,
Brandon, e devo acreditar que vai agir por nós dois
sempre que for necessário. Devo confiar em você.
— Ah, confiar. Não é fácil, meu amor. Também
aprendi essa lição ontem à noite. Fui à cidade obter
notícias sobre a morte de Edmund, e soube que
você havia alugado a carruagem que o atropelou.
— Eu? Isso é uma mentira! — Ela estava
perplexa. — Quem disse isso? Quero que essa
pessoa repita tal absurdo diante de mim, porque.
— Acalme-se, Célia. Sei que não foi você. Mais
uma vez, é evidente que alguém interfere nas
nossas vidas.
— Sim, mas seu tio pagou caro pela
interferência. Não foi um acidente.
— Não. Foi assassinato. O investigador está

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convencido de que eu era o alvo, não Edmund. No
entanto, estou certo de que alguém deseja
prejudicá-la, Célia.
— Sim, mas.
— Pense. Tudo isso começou com sua fortuna.
Alguém tentou fazer você pensar que não havia
mais nenhum dinheiro. Alguém tentou assustá-la no
baile de máscaras.
— Alguém tentou convencê-lo de que eu
planeava contra você.
— Sim, e agora alguém quer acusá-la de
assassinato.
— Mas. não faz sentido! Se existe mesmo alguém
capaz de matar pessoas, e esse alguém trama
contra mim, porque não me matar de uma vez?
— É possível que não tenham sua determinação
para agir.
— Ou, talvez, não seja eu o alvo.
— O que está sugerindo?
— Não sei ao certo. — Ela contou sobre a
conversa que tivera com Sally e sobre o encontro
com o sr. Openshaw há pouco.

Projeto Revisoras
— E agora me diz que Martin herda, caso você
morra. Sua tia parece ter vivido administrando
fortunas alheias. Nós dois sabemos que Patrice não
pode ter feito os investimentos que James Carstairs
mencionou quando o conheci. E começo a duvidar
de que ela tenha mesmo perdido tanto dinheiro no
jogo. E se foi lady Honória trabalhando com James
Carstairs para roubar-nos?
— Primeiro a pensão da minha prima, depois sua
fortuna, e agora a minha. Mas. assassinato, Célia?
Lady Honória adora dominar e comandar, mas não
consigo imaginá-la cometendo assassinato. E ela
não estava na carruagem que matou Edmund.
— Não acha que ganância é um motivo mais do
que suficiente para matar? E como conhecedora das
ervas, ela tem o conhecimento necessário para
misturar uma poção venenosa ao seu brandy
preferido.
— Sei que prefere acreditar nessa teoria, minha
amada, mas não temos nenhuma evidência de que o
ataque que sofri não foi genuíno.
— Mas temos a possibilidade de ele ter sido falso.

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Está disposto a correr mais um risco, Brandon?
— Por você? todos. Confio em você, Célia.
— Também confio em você. Juntos, faremos sua
tia revelar suas verdadeiras cores.

Capítulo XIX

Lady Honória estava na sua suíte. Sally não


ousou vetar a entrada de Célia com Brandon a seu
lado, mas era evidente que ela desaprovava a
chegada inesperada do casal.
Célia não se surpreendeu ao ver James Carstairs
no interior da suíte. Ele visitava a mansão Pellidore
quase que diariamente desde a chegada da família.
O que a surpreendia era a mudança no jovem
advogado. As roupas estavam largas sobre seu
corpo, sinal de que perdera peso, e ele caminhava
inclinado como se suportasse dor intensa.
— Célia, Hartley! — Lady Honória os

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cumprimentou da sua escrivaninha. — A que devo a
honra da visita?
Brandon sorriu para a tia.
— Viemos desejar um bom-dia, tia — ele disse,
aproximando-se para beijá-la na testa.
A mulher franziu a testa, e até o advogado
demonstrou espanto.
— Parece muito contente hoje — lady Honória
comentou. — Onde esteve? Não jantou connosco
ontem à noite.
— Atrasei-me na cidade e decidi pernoitar por lá.
Cheguei há pouco.
— O que havia de interessante em Londres?
— Somente questões financeiras. Nada com que
deva se preocupar.
— Vejo que se recuperou rapidamente, mas creio
que devia cuidar melhor da sua saúde. Ouvi dizer
que esteve acamado na noite anterior.
Célia ficou tensa. Quem havia informado lady
Honória?
— Foi só uma indigestão. Exagerei na comida.
Brandon voltou para perto de Célia e sorriu,

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indicando que conseguira ver os papéis sobre a
mesa. As suspeitas estavam confirmadas.
Lady Honória pressentiu alguma coisa, porque
reuniu os papéis e deixou-os de lado.
— Devia ter recorrido a mim, Hartley. Sabe que o
aprecio muito.
— Tanto quanto eu a aprecio, minha tia.
— Temo que aprecie mais essa jovem dama a
seu lado, meu querido. E também temo que ela o
tenha levado a cometer alguns enganos.
— O que quer dizer, senhora? — Célia disparou
impaciente.
— Digo que está errada se pensa poder ocultar-
me a verdade. Hartley está doente. Admita. Sofreu
um ataque, não foi?
— Acalme-se, minha tia. Não é como se estivesse
acometido da mesma doença que tanto tememos.
— Não? Gritos no meio da noite, horas seguidas
na cama, um dia inteiro de sumiço. E seu casamento
tem estado longe da perfeição. Até mesmo sua
querida Célia temeu comentários sobre isso.
— Eu? Senhora, quando me perguntou se ele

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havia agido de maneira estranha, eu disse apenas
que Brandon chorava a morte do tio.
— Tenta justificá-lo, minha querida. Também já
fiz o mesmo no passado. No entanto, quando o
bem-estar da família é ameaçado, devo agir
imediatamente. James, quero que seja testemunha.
— Estou ao seu dispor, senhora.
Ela se levantou.
— É o que parece — Brandon apontou com
ironia.
— Hartley, não me deixa escolha se não confiná-
lo ao quarto para observação. Se realmente não
exibir sinais da doença, terá sua liberdade de volta.
No entanto, mais um episódio, e o enviarei para um
lugar onde não possa causar mal a si mesmo e a sua
família.
Célia afagou a mão do marquês. Lady Honória
era perigosa, e tinham de permanecer juntos e
calmos a fim de enfrentá-la. Antes que Brandon
pudesse responder, alguém bateu na porta.
— Minha tia, considerando as circunstâncias, sua
ação me parece injustificada. No entanto, começo a

Projeto Revisoras
crer que tem em mente mais do que a loucura ou a
sanidade.
Vozes soaram altas na entrada da suíte, e Célia
viu Openshaw empurrando Sally para forçar
passagem. Patrice e Timms o seguiam.
James Carstairs erguera o corpo. Havia nos olhos
do jovem advogado um brilho quase ensandecido de
desejo, e a luz se acendera no momento da entrada
de Patrice.
— O que significa isso? — Lady Honória quis
saber.
Openshaw não hesitou. Firme, ele indicou que
Timms devia deixar sobre a mesa a encomenda que
levava.
— Ordens do milorde, senhora.
Patrice adiantou-se.
— Soube que estamos celebrando. O que
aconteceu aqui?
— Obtive uma licença especial — Brandon
anunciou. — Célia e eu nos casaremos
imediatamente.
Patrice aplaudiu encantada.

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— Fico feliz por ainda poder pensar no futuro,
Hartley — disse lady Honória.
Timms pegou a garrafa que havia levado ao
quarto. Lady Honória a viu e empalideceu. Restara o
suficiente nela para que Timms servisse uma
pequena dose para todos os presentes. Ele distribuiu
os cálices.
— É delicioso — Célia comentou com a madrasta.
— Brandon bebeu um pouco na noite retrasada.
Lady Honória estava pálida.
Brandon ergueu seu cálice, observando a tia.
— Um brinde a Célia, meu amor.
— E ao marquês de Hartley — Célia respondeu.
— Que ele tenha vida longa.
— Aos noivos — Patrice ofereceu.
Ela e James Carstairs ergueram suas taças.
Brandon e lady Honória pareciam estar paralisados.
— Não bebam! — Célia gritou. — Está
envenenado!
— Envenenado! — Patrice soltou o cálice, que
caiu no tapete espalhando gotas do licor.
— Ela perdeu a razão! — Lady Honória protestou.

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— Como pode estar envenenado?
— Devia saber, senhora. O veneno é obra sua!
Lady Honória sorriu.
— E porque eu faria tal coisa? Se foi você quem
mandou a garrafa ao quarto de Brandon!
— Não fui eu. Sua criada inventou essa história,
certamente a seu mando.
— De fato? E quem tem a lucrar com a morte do
marquês?
— Martin — revelou Carstairs. — Ele herda a
fortuna Pellidore. Como vendeu sua herança por
uma soma irrisória, agora quer viver da fortuna que
seu irmão pode herdar.
— Eu nunca vendi minha herança!
— Aceitou um adiantamento dias antes da morte
de lorde Pellidore. Aquilo é tudo que vai receber.
— Está mentindo — Brandon interferiu com tom
frio. — Desista. Nada do que possa dizer me fará
duvidar de Célia. Estou certo de que minha tia está
por trás do assassinato. Quer cair com ela,
Carstairs?
— Assassinato? — Lady Honória repetiu,

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buscando o apoio da escrivaninha. — Acha que eu
seria capaz de matar?
O advogado passou a língua pelos lábios, como
se considerasse a questão. Lady Honória reclinou-se
ainda mais sobre a mesa.
— Assassinato? — repetiu, estreitando os olhos e
levando a mão ao peito. — Acha que eu seria capaz
de matar? Por acaso eu estava na carruagem que
matou Edmund?
— Não — Brandon concordou, notando que a
palidez de Carstairs aumentava. — No entanto, acho
que sei quem foi.
— Não pode provar nada — James reagiu
assustado.
— Talvez não. No entanto, é possível que as
autoridades encontrem um manto negro no seu
guarda-roupa. — As palavras o atingiram em cheio.
— Não foi esse traje que usou quando se fantasiou
de Morte, ou quando personificou a criatura que nos
seguiu desde a Câmara dos Lordes, ou como o
cocheiro que matou Edmund?
Carstairs tremia.

Projeto Revisoras
— Fique quieto! Você não sabe de nada!
— Mas eu sei muito — lady Honória interferiu
com tom frio. Ela olhou para Brandon. — Muito bem,
Hartley. Mande buscar as autoridades. O
enforcamento é certo.
— Não! — Carstairs gritou.
Célia teve de fazer um grande esforço para não ir
atrás dele.
Brandon fez um sinal para Timms, que saiu do
quarto atrás do fugitivo.
— Que homem horrível! — Lady Honória
comentou balançando a cabeça. Depois ela se
sentou com ar cansado. — É bem provável que ele
também tenha roubado as propriedades. Como nos
enganou!
— Tanto quanto você — Brandon apontou.
Ela ergueu uma sobrancelha.
— Não pode acreditar nessa tolice sobre meu
envolvimento.
— Oh, sim, eu posso. E acredito.
Lady Honória balançou a cabeça.
— Então é mesmo um louco, afinal. Patrice, você

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é a única em quem posso confiar. Pegue a
carruagem e vá até Bow Street informar que o
marquês de Hartley enlouqueceu.
Patrice piscou.
— Ele enlouqueceu?
Era como se Célia pudesse ver os cordões
suspensos pelas mãos pálidas de lady Honória. Com
Brandon, ela usara o medo, acenando com a
ameaça da loucura. Com Patrice, usava o dever,
mostrando que ali, pelo menos, sua madrasta tinha
alguma utilidade. Não sabia o que lady Honória
planeara usar para dominá-la, a menos que fosse a
ameaça de culpá-la pela morte de Brandon. Agora
que Brandon acreditava nela, a ameaça perdera o
efeito.
— Não, Patrice — Célia intercedeu. — É lady
Honória quem enlouqueceu. Ela tentou matar
Brandon, e posso apostar que também matou o pai
dele.
— Não pode ser!
— Pode — Brandon confirmou com segurança. —
Acabou, tia.

Projeto Revisoras
— Todos estão mentindo. Faça o que eu digo,
menina! Não quer que Martin herde a fortuna?
Mais um cordão. Patrice atendeu ao comando.
Depois balançou a cabeça.
— Martin tem uma fortuna. Meu David deixou
para ele. Ele não precisa da herança de Brandon.
— Isso mesmo! — Célia a apoiou.
Patrice sorriu como se estivesse satisfeita.
— Vocês são patéticos! — Lady Honória explodiu
furiosa. — Cuidarei disso pessoalmente.
Brandon a impediu de sair do quarto.
— Acho que não. Agora entendo tudo, tia.
Edmund disse que você o odiava e odiava meu pai
por terem vindo depois de você. Eles conquistaram o
afeto do seu pai.
— Sim! Eu era o futuro da casa de Pellidore. Meu
pai me amava. Até seu pai nascer, e Edmund depois
dele. Então, passei a ser útil apenas para o
casamento, porque assim uniria nossa família a
outra igualmente poderosa. Esperava ter filhos, mas
tive apenas a mais fraca das filhas. Ela também só
servia para o casamento. Depois o marido dela

Projeto Revisoras
perdeu tudo no jogo, toda a fortuna pela qual eu
havia trabalhado, e acabou morrendo na miséria,
deixando-me a esposa desolada, minha filha, e uma
neta pequena para criar.
Célia tocou o braço de Patrice oferecendo apoio.
— Procurei meu pai e implorei por sua ajuda. Ele
não quis se comprometer. Sua preciosa terceira
esposa havia morrido, e nada era mais importante
para ele do que as próprias necessidades naquele
momento. Um pouco de uma determinada erva no
seu chá, e ele se foi. Ataque cardíaco, disseram.
Como se ele tivesse um coração!
— Você o envenenou? — Célia espantou-se.
— E minha avó? — indagou Brandon. — A
loucura dela também era uma mentira?
— Oh, sim. Nunca aconteceu de verdade. Não
restou ninguém para desdenhar-me. Criei um
horrível conto de loucura e morte, e quando
envenenei seu pai, todos acreditaram que a doença
da família voltava a manifestar-se.
— Então, nada disso era verdade! Vivi
enclausurado, evitando forjar laços de amizade,

Projeto Revisoras
fugindo do amor. por nada?
Célia o abraçou.
— Você encontrou o amor, apesar de tudo.
Ele a fitou, e todo o rancor desapareceu do seu
rosto.
Mas lady Honória ainda não havia terminado.
— Amor? É isso que o move, Hartley? Seja grato
por Edmund ter cuidado de você. Se ele não o
houvesse levado para a Escócia, eu os teria
eliminado há mais tempo. Teria coroado meu triunfo
há meses, se aquele imbecil do James não se
houvesse deixado obcecar por um. caipira!
— O que está dizendo? — Célia perguntou
aterrorizada. — Ele estava atrás de Stanley?
— O idiota queria Patrice a ponto de enlouquecer
por ela, e por isso tentou matar Arlington. Nunca
pensei que ele teria coragem para concretizar a
ameaça, mas livrar-me daquela criatura teria sido
uma bênção.
— Criatura? — gritou Patrice. — Queria meu
Stanley morto? Sua. sua. bruxa!
— Fique quieta, Patrice, ou vou acabar me

Projeto Revisoras
lembrando de que é uma inútil.
— Já chega — Brandon decidiu com autoridade.
— Não sei como o amor se transformou em todo
esse ódio, mas o reinado do terror acabou, minha
tia. Meu pai e Edmund caíram vítimas dos seus
truques, mas eu tenho os olhos bem abertos.
— Você também caiu — ela respondeu venenosa.
— É fácil de manipular. Sem coração? Ah! Você o
tem na manga da jaqueta! Só preciso ameaçar sua
preciosa Célia. O que terei guardado para ela? Um
punhado de erva na sopa, ou no chá?
— Desista, senhora — Célia disparou corajosa. —
Eu amo Brandon, e ele me ama. Sabemos que é
uma criatura transtornada pelo ódio e pela inveja,
uma mulher vingativa que só pensa em praticar o
mal. Faça tudo que quiser ou puder. Não nos
destruirá.
— Vocês terão um horrendo fim! — ela gritou. —
Só eu posso aprovar seu direito à herança, Brandon,
e isso é algo que jamais farei!
— Levaremos o caso à Corte — ele respondeu
controlado. — Pena eu ter de testemunhar contra

Projeto Revisoras
sua sanidade. Os magistrados não permitirão que
uma assassina desequilibrada continue
administrando os bens de uma família inteira.
— Não ousaria expor nossa família a esse
escândalo! Marcaria seus filhos e netos para
sempre!
— Já carreguei marca semelhante e sobrevivi.
Saberemos orientá-los para que também superem
os reflexos das atitudes de outras pessoas.
Lady Honória atirou-se sobre a mesa, pegou um
cálice cheio de brandy envenenado e sorveu toda a
bebida de uma só vez.
— Eu disse que não poderiam vencer — ela
gritou. — Eu os derrotarei, nem que seja do túmulo!

Oito meses depois

— É ele?
Célia sorriu do espanto de Stanley. No Hyde
Park, Brandon e Martin se divertiam empinando

Projeto Revisoras
pipas coloridas.
— Sim, é meu marido, sr. Arlington. E onde está
sua esposa?
— Foi às compras. Como visitamos a capital
apenas duas vezes por mês, ela sempre quer tirar
proveito máximo do tempo. E essa é a primeira
viagem de Patrice desde que saiu do luto.
Patrice havia sido uma das poucas a chorar a
morte de lady Honória. Brandon nem havia esperado
o tempo apropriado do luto para solicitar uma
licença de casamento, e Patrice e Stanley
celebraram bodas alguns meses mais tarde em
Somerset.
— Está feliz? — Stanley perguntou de repente.
— Muito. E você.
— Também. É surpreendente, não?
Os dois riram. Há alguns meses, tudo parecia
sombrio e sem esperanças. Depois da morte de lady
Honória, Sally confirmara ter ajudado sua senhora
em todos os planos diabólicos e explicou os
detalhes. Célia deveria se casar com Brandon,
porque seria a principal suspeita, caso alguém

Projeto Revisoras
desconfiasse de assassinato em vez de loucura. Ela
alegara inocência quanto ao envenenamento da
família Turner, mas todos sabiam que também era
culpada disso. Temendo ser acusada formalmente,
ela partira e os deixara em paz.
James Carstairs fora deportado para a Austrália.
Célia não lamentava a punição do advogado, mas
sentia pelo sofrimento do pai dele. Seria difícil
devolver a ordem a todos os assuntos do escritório
depois da devastadora e breve passagem do jovem
Carstairs por lá. Alguns clientes acenaram com a
possibilidade de cancelar seus contratos, mas,
graças à interferência de Brandon, nenhum
concretizara a ameaça.
Com a morte de lady Honória, Brandon tivera de
recorrer aos tribunais para apoderar-se da sua
herança, mas os magistrados, impressionados com
seu depoimento, foram unânimes na sentença que o
favoreceu.
— Vai sentir falta de Martin quando o levarmos
para Somerset? — Stanley quis saber
Célia sorriu e massajou o ventre.

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— Sim, mas logo estarei ocupada demais para
dedicar-me ao menino como ele merece. Além do
mais, ele precisa de companhia da mesma idade.
Obrigado por mandá-lo à escola, Stanley.
— Era o mínimo que eu podia fazer. Fico feliz por
termos encontrado uma boa escola perto da nossa
propriedade. Patrice já lamenta que ele só possa
voltar para casa aos domingos e nos feriados.
Brandon deixou a pipa nas mãos de Martin e
juntou-se aos dois. Depois de beijar os lábios de
Célia, ele tocou sua barriga.
— Como vão as duas pessoas que mais amo no
mundo?
— Meu Deus, Hart! Estou honrado com essa
declaração — Stanley brincou.
Célia riu.
— Janta connosco, Arlington? — o marquês
convidou. — Quanto mais gente, maior a alegria.
— Certamente que sim, milorde. E agora,
enquanto espero por minha amada, vou ver se
Martin consegue me ensinar a empinar aquela coisa.
Vocês parecem desejar um pouco de privacidade.

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Ele se afastou, e Brandon beijou os lábios de
Célia mais uma vez.
— Tem ideia de como estou feliz? — ela
perguntou. — Você é tudo que eu poderia desejar
num marido. Amoroso, franco, gentil.
— E você é mais do que eu poderia desejar numa
esposa. Até conhecê-la, não sabia o que era sonhar,
amar.
— Então está feliz com nosso casamento?
— Ele é a mais completa p-p-p-perfeição.
Célia riu e o abraçou. Amar-se-iam até que a
morte os separasse. E, enquanto isso não
acontecesse, seriam felizes. Muito felizes.

FIM

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