Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
http://lattes.cnpq.br/5554369327457364
ednagranja@gmail.com
Este Capítulo tem como objetivo marcar o seu olhar de diferença. Diferenças! Isso
mesmo! Se no Capítulo anterior trouxemos aspectos históricos, conceitos,
classificações, refletimos sobre padrões de usos e conhecemos a epidemiologia do
uso de drogas no Brasil e no mundo, neste Capítulo buscaremos problematizar
como as vulnerabilidades e potencialidades das pessoas que usam drogas variam
em função do seu posicionamento social. Lugares sociais diferentes, certamente,
marcam vivências distintas no que se refere aos usos de drogas e seus efeitos.
Dessa forma, partiremos para reflexão sobre como as nossas políticas públicas e
serviços estão preparados para intervir no sentido de minimizar tais desigualdades.
Chegaremos assim à discussão sobre o cuidado voltado para as pessoas que usam
drogas como mais do que uma intervenção biomédica, que tem o foco em um corpo
biológico, adoecido a partir do uso de uma substância.
No final década de 1980, foi estabelecida a Convenção das Nações Unidas contra o
Tráfico Ilícito de Drogas Narcóticas. Tal iniciativa contribuiu para a criminalização do
comércio ilegal de drogas em larga escala, já em curso, uma vez que trouxe como
contrapartida dos países envolvidos a elaboração de marcos legislativos marcados
por acentuação de penas e, por conseguinte, a consolidação de sistemas criminais
mais severos. Alguns autores/as se referem a esse marco como a emergência de
uma política global de “guerra às drogas” e afirmam que essa inciativa, liderada
pelos Estados Unidos, fortaleceu a economia bélica, bem como favoreceu práticas
totalitárias em diversos pontos do planeta (KARAM, 2003).
A “guerra às drogas” é considerada, assim, uma estratégia bélica e econômica, que
busca combater a produção das substâncias ilícitas no mundo. Parte-se da
categorização dos países entre produtores, exportadores e consumidores. E, assim,
opera-se a repressão da oferta dos países produtores, da procura dos países
consumidores e da exportação nas fronteiras, portos e aeroportos. Baseada em uma
lógica geográfica, esta estratégia dá margem para compreensão de que os países
periféricos são a fonte causadora dos problemas gerados pelo tráfico de drogas.
Dessa forma, sobretudo nesses países, intensifica-se o controle social, uma vez que
as drogas são identificadas como “encarnação do mal”: “no campo da guerra global
às drogas toda humanidade pode, por um lado, unir-se contra o mal e, por outro
lado, qualquer um pode ser um inimigo da humanidade” (PASSOS; SOUZA, 2011, p.
153).
No Brasil, a década de 1980 e início da década 1990 foram marcadas por altos
índices de inflação, explosão demográfica, aumento dos cinturões de pobreza nas
periferias e favelas. O declínio do modelo econômico nacional e o consequente
desemprego conjuntural foram territórios férteis para a acentuação do mercado
ilícito. Souza e Passos (2011) agregam a esses elementos, o sucateamento da
educação pública e o aumento da violência urbana. Segundo Batista (2001), é neste
contexto que o tráfico de drogas, principalmente o da cocaína, ganha projeção tanto
no mercado nacional quanto no internacional. As favelas e periferias urbanas
passam a ser locais estratégicos para o mercado de drogas, que recruta jovens
pobres para o tráfico. Violência e disputas de poder marcam os cotidianos das
periferias, uma vez que há disputas por pontos de venda de drogas entre facções
inimigas. É importante considerar ainda o enfrentamento direto com a polícia, que
agregou, ao mercado de drogas, o mercado de armas, dando início a uma
verdadeira guerra civil, como parte desse ciclo global de guerras.
Conhecer a história dessa “guerra” nos ajuda a significar vários aspectos presentes
no nosso cotidiano que podem ser considerados efeitos dela, mesmo sem, às vezes,
darmo-nos conta. Sabemos, por exemplo, que não há registro de sociedade na qual
não houve consumo de drogas. Ainda assim, admitir que as pessoas consomem e
vão continuar consumindo drogas, por mais óbvio que possa parecer, ainda é algo
que se tem dificuldade de fazer em público atualmente. Experimente perguntar em
um auditório lotado de pessoas algo como: “quem aqui usa drogas?” Geralmente,
essa é uma pergunta que causa constrangimento, sobretudo porque, muitas vezes,
quando falamos em drogas, vem logo à cabeça as drogas ditas ilícitas.
Efetivamente, aspectos subjetivos que tornam o uso de drogas algo tão presente e
associado à condição humana parecem não serem considerados pelas discussões
que subsidiaram a dita “guerra”. Certamente, também por isso, falar sobre drogas,
geralmente, não tem muita relação com fazer perguntas. Isto é, buscar conhecer o
que as pessoas que usam buscam, entender os porquês. O que encontramos de
forma mais recorrente é a emissão de respostas a perguntas que sequer foram
feitas. Respostas que não aceitam perguntas de volta.
“Diga não às drogas”, “Viva à vida sem crack”, “Não ao crack”, “Drogas: a família
vive o problema com quem usa”, “Liberdade é viver sem drogas”. Estes são slogans
comuns de campanhas, que você encontra facilmente em sites de buscas na
internet, frequentemente utilizados por nós.
Pedro Abromovay (2015), ao referir-se à “guerra às drogas”, diz que o mundo fez
uma aposta de que, se toda energia dos países fosse canalizada para proibir as
drogas, seria possível eliminá-las do globo. Como toda aposta, poderia ter dado
certo ou errado. Para o autor, parece ter dado errado, uma vez que: 1) atualmente, o
mundo consome mais drogas do que consumia antes; 2) as drogas estão cada vez
mais perigosas e sem controle de qualidade, o que pode resultar em efeitos
colaterais imprevisíveis, indesejáveis; e 3) somaram-se aos problemas provenientes
dos usos das drogas muitos outros, como a violência e a desigualdade na
distribuição dos danos causados pelas mesmas.
Este último ponto, ressaltado por Abromovay (2015), é o que dá margem para
outros/as autores/as contra argumentarem, afirmando categoricamente: “a guerra às
drogas deu certo!” Eduardo Ribeiro (2015), em texto publicado na Revista Fórum,
com o título “A guerra às drogas: sucesso de crítica e público”, diz ser nítido, desde
a sua origem, que esta é uma guerra contra pessoas e não contra uma ou outra
substância. Para subsidiar sua argumentação, remete-se à história brasileira e
identifica um estereótipo na construção de um tipo “suspeito”, que traz atrelado a si a
ideia de perigo. Para o autor, este estereótipo é racializado; esse tipo suspeito é
negro.
Ribeiro (2015) insere assim a “guerra às drogas” como uma das estratégias de
extermínio da população negra no Brasil. O autor apresenta dados que caracterizam
uma violência considerada tolerável, desde que cometida em determinadas
condições – de acordo com quem a pratica, contra quem, de que forma e em que
lugar. A população negra morre 142% a mais quando comparada com a população
branca. No sistema prisional, das cerca de 700 mil pessoas presas, os jovens
representam 54,8% e, entre estes, aproximadamente 70% são negros/as. Ribeiro
acrescenta que, quanto mais cresce a população prisional, mais cresce a proporção
de jovens negros/as encarcerados/as.
O convite agora é para que, uma vez estabelecido o nosso cenário, “guerra às
drogas”, e iniciada a problematização sobre os efeitos que o mesmo provoca,
interseccionalizemos o olhar para as pessoas que usam drogas. Trata-se de
reconhecer diferenças, identificar desigualdades e, assim, pensar em estratégias de
cuidado que visem a garantia de direitos de populações historicamente
estigmatizadas e segregadas.
Será que temos na nossa frente um usuário de drogas? Será que é isso que
essa pessoa é? Será que resumir estas pessoas apenas à suas relações com as
drogas nos ajuda a pensar o cuidado? Essa pessoa que vem lá no serviço, ou
que abordamos quando vamos fazer um trabalho de campo ou uma busca ativa,
será que é isso que essa pessoa é? Será que ela é um usuário de drogas, ou
uma pessoa em toda sua integralidade? (...) Além do mais, a expressão ‘usuário
de drogas’ é jargão jurídico e policial. Será mesmo que ver estas pessoas como
‘usuários de drogas’ nos ajuda a pensar na integralidade? Naquilo que estas
pessoas são, para além de seu uso de uma ou outra droga? (PETUCO, 2013,
p.6).
(Doença)
Quem são as pessoas que usam e têm problemas em função do uso drogas no
nosso País?
A pesquisa revelou que, no Brasil, as pessoas que usam crack e/ou similares são
poliusuários, havendo uma forte superposição dessas drogas com o consumo de
outras substâncias lícitas, sendo o álcool e o tabaco as mais frequentes. Tratam-se,
majoritariamente, de adultos jovens – com média de idade de 30 anos, cerca de 1/3
concentrados na faixa etária de 18 a 24 anos. A presença predominante nas cenas
abertas de uso é do sexo masculino (78,7%). Há ainda um predomínio importante de
pessoas “não brancas”, uma vez que apenas 20% dos/as entrevistados/as se
autodeclararam de cor branca. Se considerarmos que na população geral, segundo
o Censo 2010 (IBGE), os “não-brancos” correspondiam a aproximadamente 52%
dos brasileiros, há uma sobrerrepresentação de pretos e pardos em contextos de
vulnerabilidade social, como os observados nas cenas abertas de uso de crack
(BERTONI; BASTOS, 2014).
O perfil dos usuários regulares de crack, retratados nessa publicação, aponta para
uma ampla maioria de pessoas em situação de grande vulnerabilidade social. A
partir dos resultados observados foi possível definir quatro perfis: 1) homens
marginalizados; 2) mulheres marginalizadas; 3) adolescentes vulneráveis; e 4)
adultos socialmente integrados. O Quadro 1 apresenta uma síntese da descrição
desses perfis (GARCIA; KINOSHITA; MAXIMIANO, 2014).
Homens marginalizados
Constituem a grande maioria dos usuários regulares de crack no Brasil. São adultos jovens do
sexo masculino, majoritariamente pardos e pretos, com baixa escolaridade, sinalizando uma
origem familiar e uma inserção social que os expõe às diferentes formas de marginalização e
estigmatização, como, por exemplo, o racismo.
Mulheres marginalizadas
São mulheres marcadas pelas mesmas desvantagens sociais e trajetória dos homens
mencionados. Estas usuárias estão gravemente expostas à violência sexual (44,5% relataram
ter sofrido esse tipo de violência) e à ausência de apoio social na gestação (50% das
entrevistadas engravidaram ao menos uma vez durante o período de uso regular do crack).
Adolescentes vulneráveis
O componente de estimação da pesquisa aponta que 14% dos usuários regulares de crack,
vivendo no conjunto de capitais brasileiras, são menores de 18 anos. Os adolescentes são
minoria nas cenas de uso. Embora não se tenha captado informações sobre seu perfil no
contexto da presente pesquisa, sabe-se, no entanto, que o uso de crack e/ou cocaína já
atingia, dez anos atrás, até 4 em cada 10 adolescentes em situação de rua no Brasil.
Adultos socialmente integrados
Nesse perfil estão incluídas as pessoas que experimentaram menos danos em decorrência do
uso do crack. Alguns desenvolveram estratégias de “gestão” (mais ou menos exitosa) do
consumo do crack. Eles trabalham, ainda que por vezes em tempo parcial ou de forma
temporária, e/ou contam com maior apoio social, o que inclui o papel da família e
comunidades religiosas. Muitos desses homens e mulheres, em algum momento, pertenceram
ao perfil dos marginalizados e conseguiram sair dele ao longo dos anos. Outros, já contavam
com mais recursos para evitar a marginalização social quando iniciaram o uso de drogas.
Fonte: GARCIA; KINOSHITA; MAXIMIANO, 2014, p. 149-150
Das 1.062 pessoas que participaram da pesquisa e faziam uso de crack 77,1% eram
homens, enquanto 22,9% eram mulheres. A maior parte dessas pessoas eram
adultos/as jovens, com idade entre 18 e 34 anos (59,1%). A distribuição por raça/cor
autodeclarada revela que as proporções de pardos (65,1%) e pretos (15,5%) foi
maior do que a proporção geral para o estado de Pernambuco. No que se refere à
escolaridade e à frequência na Escola, apenas 3,8% dos/das entrevistados/as
estavam estudando, na ocasião da pesquisa, somente 12,1% haviam completado o
ensino médio ou ingressado/completado o ensino superior. Em relação à moradia,
mais da metade (54,8%) havia passado ou dormido a maior parte do tempo na rua,
proporção superior a encontrada na pesquisa nacional. Tal dado pode ser explicado
pela natureza do Programa Atitude, lócus da pesquisa, que é voltado para pessoas
que têm vínculos familiares rompidos ou extremamente fragilizados, podendo,
inclusive, estarem em situação de ameaça, sem poder retornar para os seus lares
(SANTOS et al., 2016).
É válido ressaltar que não há como pensar em políticas diferentes sem repensar a
postura dos/das profissionais vinculados/as às redes de atenção psicossocial. Lilia
Schraiber (2012), ao se referir as práticas em saúde indica que os profissionais
estranham o cuidado integral e define este estranhamento como uma alienação das
marcas sociais de suas práticas. Defende, então, que é preciso politizar as práticas
de saúde e, assim, os/as profissionais de saúde precisam se ver como
garantidores/as de direitos e também como agentes ativos na diminuição das
desigualdades sociais. A autora alerta que, se não politizamos as práticas de saúde,
corremos o risco de reproduzir as ditas desigualdades no cotidiano dos serviços.
Certamente, é possível ampliarmos o sentido desta argumentação, problematizando,
à luz destas considerações, as práticas, serviços e políticas de outros setores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São vídeos curtos que trazem três narrativas que se cruzam, de forma que é
possível reconhecer personagens, que visitam histórias diferentes das que
protagonizam. As três histórias explorarão temáticas de gênero em diferentes
dimensões, tais como o lugar da mulher, juventude e masculinidades e
diversidade sexual
Disponíveis em:
Minha vida de João: https://www.youtube.com/watch?v=gMatcineJi8
Era uma vez uma outra Maria: https://www.youtube.com/watch?v=-
ezAQj3G4EY
Medo de quê?: https://www.youtube.com/watch?v=cIoeUqBxhi0
Para discutir classe, raça/ etnia!
também nos fazem pensar na referida relação, tais como “Um novo olhar sobre
as drogas”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zb6sRUNr6Jw.
https://www.youtube.com/watch?v=IaF0wUroGFs
ABROMOVAY, P. Por que e tão difícil falar sobre drogas? In: ACSELRAD, G. (Org.).
Quem tem medo de falar sobre drogas? Saber mais para se proteger. Rio de
Janeiro: Editora FGV, 2015. p. 7-10.
ACSELRAD, G. Para início de Conversa. In: ACSELRAD, G. (Org.). Quem tem
medo de falar sobre drogas? Saber mais para se proteger. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2015. p.15-30.
BARATA, R. B. Como e por que as desigualdades sociais fazem mal à saúde.
Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2009.
BATISTA, V. M. Drogas e criminalização da juventude pobre. In: Associação
Beneficente São Martinho (Org.). No mundo da rua. Rio de Janeiro: Ed. Casa da
Palavra, 2001. p. 56-44.
BASAGLIA, F. Apresentação a Che cos’è la Psichiatria? In: BASAGLI, F.;
AMARANTE, P. (Orgs.). Escritos Selecionados em Saúde Mental e Reforma
Psiquiátrica. Rio de Janeiro: Garamond, 2005.
BASTOS, F. I.; BERTONI, N. Pesquisa Nacional sobre o uso de crack: quem são
os usuários de crack e/ou similares do Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras?
Rio de Janeiro: Editora ICICT/FIOCRUZ, 2014. 228p.
BERTONI, N.; BASTOS, F. I. Quem são os usuários de crack e/ou similares do
Brasil? Perfil sociodemográfico e comportamental destes usuários: resultados de
uma pesquisa de abrangência nacional. In: BASTOS, F. I..; BERTONI, N. Pesquisa
Nacional sobre o uso de crack: quem são os usuários de crack e/ou similares do
Brasil? Quantos são nas capitais brasileiras? Rio de Janeiro: Editora
ICICT/FIOCRUZ, 2014. p. 45-67.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria Geral. Mapa do encarceramento: os
jovens do Brasil/ Secretaria-Geral da Presidência da República e Secretaria
Nacional de Juventude. Brasília: Presidência da República, 2015. 116p.