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EXTINÇÃO DO PROCESSO

SEM JULGAMENTO DE MÉRITO


E A IMPOSSIBILIDADE DE
RENOVAÇÃO DA AÇÃO
G ELSON A MARO DE S OUZA *

Sumário: Introdução; 1 – A ação; 2 – Elementos identificadores da


ação; 3 – Sentença; 3.1 A nova redação; 3.2 O mesmo conteúdo;
3.3 Ilogicidade do sistema; 3.4 A reforma pela reforma; 3.5 O
objetivo da reforma; 3.6 A sentença como ato extintivo do
processo; 4 – Mérito; 5 – Sentença sem julgamento de mérito; 6 –
Coisa julgada; 6.1 Coisa julgada material; 6.2 Coisa julgada
formal; 7 – Reajuizamento da ação; 8 – Casos que não permitem
o reajuizamento da ação; 8.1 Inciso V, do art. 267 do CPC; 8.2
Outros casos impeditivos definitivamente; 8.3 Casos impeditivos
circunstancialmente; Conclusão; Bibliografia.

Palavras-Chave: Coisa julgada formal. Renovação da ação.


Impossibilidade.

Resumo: O presente estudo visa a demonstrar que apesar do


dogma de que o processo quando extinto sem julgamento do
mérito e que produz a coisa julgada formal autoriza a renovação
da ação, mas que, em muitos casos, não há possibilidade de
repropositura da ação, mesmo em se tratando de sentença
extintiva do processo sem julgamento do mérito. Desta forma,
mesmo sem o julgamento do mérito, em muitos casos, a sentença
sujeita à coisa julgada material não autoriza a renovação da ação.

* Doutor em Direito pela PUC/SP. Professor por concurso dos cursos de graduação e mestrado da
UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná (Campus de Jacarezinho/PR). Ex-Diretor e
Professor da Faculdade de Direito de Presidente Prudente/SP – FIAET e da Faculdade de Direito
de Adamantina – FAI. Professor convidado em Cursos de Pós-Graduação como FADAP de Tupã,
AEMS de Três Lagoas/MS, FIO de Ourinhos, ESUD de Cuiabá/MT e ESA – Escola Superior da
Advocacia da OAB/SP. Procurador do Estado (aposentado). Advogado em Presidente
Prudente/SP.

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I NTRODUÇÃO
Citando Joseph Goebbels, PAULO CASTILHO1 lembra que o mesmo foi o
criador da frase “uma mentira repetida mil vezes torna-se verdade”.
Complementa dizendo que no direito, às vezes, ocorre algo semelhante,
mas não como uma mentira deliberada, porque, por vezes, acredita-se em
alguns enunciados ou jargões de tal forma que quem os pronuncia acredita
que está diante de uma verdade.
Essa situação aparece com frequência no âmbito do direito, quando se
repete um enunciado sem objeções, como acontecia com a prisão do
depositário judicial2, que, mesmo sem lei, era tida como legal, bem como
com a fraude à execução, que sempre foi considerada de natureza objetiva,
quando se sabe hoje que toda fraude só pode ser subjetiva3. O mesmo se
dava com a decisão do juízo incompetente4 e com o julgamento de mérito
sem citação do réu, que se consideravam nulos5, com a propalada
inexistência de mérito e coisa julgada nos processos cautelares6 e de
execução7, a divulgada improrrogabilidade8 da competência absoluta, a
inexistência de coisa julgada na ação alimentos9, a possibilidade de
reproposição da ação no caso de extinção do processo sem julgamento de

1 CASTILHO, Paulo José. Repetir Uma Mentira Mil Vezes A Torna Verdadeira? Oeste Notícia,
Presidente Prudente, 13.mai.2010.
2 Para maiores informações, confira nossos: Prisão do depositário judicial – uma prisão costumeira

no terceiro milênio. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, v. 19, out. 2004; A
Reforma Processual e a Inconstitucionalidade do art. 666, § 3º do CPC. RT, São Paulo, n. 869, mar.
2008; e Revista Magister de DCPC. Porto Alegre: Magister, v. 18, maio-jun. 2007.
3. Confira nosso: Fraude à execução e o direito de defesa do adquirente. São Paulo: Juarez de Oliveira,

2002. Posterior a esta obra surgiu a Súmula 375 do STJ no mesmo sentido.
4 Veja nossos: Dever de declaração da incompetência absoluta e o mito da nulidade de todos os atos

decisórios. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, v. 320, jun. 2004; Validade da decisão do juízo
incompetente, Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, v. 277, nov. 2000.
5 Validade do julgamento de mérito sem citação do réu. REPRO. São Paulo: Revista dos Tribunais,

v. 111, jul-set. 2003; Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, v. 275, set. 2000; Sentença de mérito
sem citação do réu. Revista Dialética de Direito Processual. São Paulo: Dialética, v. 43, out. 2006.
6 Mérito no processo cautelar. RDDP. São Paulo: Dialética, v.16, jul. 2004; Coisa julgada no processo

cautelar. RT. São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 842, dez. 2005; Revista Jurídica. Porto Alegre:
Notadez, v. 329, mar. 2005.
7 Confira nosso: Mérito no processo de execução. In: Repertório de Jurisprudência – IOB, 2. quinz. nov.

2009; Sentença do art. 795 do CPC. In: Bruchi, Gilberto Gomes (Coord.) Execução Civil e
Cumprimento da Sentença. São Paulo: Método, 2006.
8 Prorrogação da competência absoluta. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, v. 292, fev. 2002;

REPRO. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.110, abr-jun. 2003;


9 Confira nosso: Coisa julgada na ação alimentos. REPRO. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.91,

jul-set. 1998.

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mérito, entre outros tantos, quando se sabe hoje que nada disso era verdade.
Assim também se dá com o dogma de que a sentença que extingue o
processo sem julgamento do mérito autoriza a renovação da ação.
Estes mitos foram afastados aos poucos e outros haverão de ser
afastados, como este de se pensar que toda vez que o processo for extinto
sem julgamento do mérito, a ação poderá ser renovada.
Neste estudo, procura-se demonstrar que nem sempre quando o
processo é extinto sem julgamento do mérito isto viabiliza a renovação da
ação. A coisa julgada formal em muitos casos não autoriza que se proponha
de novo a ação. O legislador, no artigo 268 do CPC, faz referência ao inciso
V do art. 267 do CPC, mas outros casos existem que também não permitem
a repropositura da ação, mesmo sendo a extinção do processo sem
julgamento do mérito10.
1 – A AÇÃO
Muitas vezes equivocadamente confundida com o próprio direito de
ação, a mesma não é direito, é atuação. Tanto pode propor a ação quem tem
direito de ação, bem como quem não o tem. Se a parte tem direito de ação e
cumprindo as formalidades, a ação poderá ser julgada pelo mérito. Caso o
autor não tenha direito de ação, esta não poderá ser julgada pelo mérito,
devendo o processo ser extinto sem julgamento do mérito (art. 167 do CPC).
A ação é o elo entre o interessado e o Poder Judiciário. Inexiste
prestação jurisdicional sem ação do interessado. SATTA a denomina de
postulação e afirma: “Antes que o Juízo, é ela sua postulação”11.
Sob o aspecto processual, pode-se dizer que a ação é o meio de que
dispõe o interessado para provocar a atuação do Poder Judiciário e, com
isso, ver exercido o seu direito de ação, que já existe mesmo antes da
propositura da ação. Também não importa se o autor da ação tem ou não
direito de ação para a sua propositura. Mesmo aquele que não tem direito
de ação (carecedor do direito da ação), mas, pelo simples fato de pensar que
tem esse direito, pode buscar a via judicial para obter um pronunciamento
do órgão judicante. Caso tenha direito de ação e cumprindo as formalidades

10 “Vivemos um momento de grandes mudanças de paradigmas. O que sempre foi tido como uma
praxe, como certo, como óbvio, está se transformando em práticas ultrapassadas, em recordações
que merecem lugar no museu”. BORGES, Leonardo. Direito ao pagamento parcelado. DT, v. 189, p.
7, abr. 2010.
11 SATTA, Salvatore. Direito Processual Civil. Borsoi, 1973, p.64.

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procedimentais, o seu processo seguirá até o julgamento do mérito; não


tendo direito de ação, o processo será extinto sem julgamento do mérito. A
extinção do processo sem julgamento do mérito, em alguns casos, poderá
permitir a renovação da ação, mas há outros em que isso não é possível.
2 – ELEMENTOS IDENTIFICADORES DA AÇÃO
A ação conta com elementos identificadores, como parte, pedido e
causa de pedir. Esses elementos servem para a identificação da ação (art.
301, § 2º, do CPC). Sempre que houver variação de algum desses elementos,
a ação deixa de ser a mesma. Havendo alteração de qualquer das partes, a
ação já não será a mesma. Também se alterar o pedido ou a causa de pedir,
a ação já será outra e não a mesma.
Este aspecto é interessante porque, em muitos casos em que o
processo é extinto sem julgamento do mérito, não se poderá repetir a
mesma ação, senão iniciar outra com outros elementos. A extinção do
processo sem julgamento do mérito por falta de legitimidade de parte,
somente trocando a parte é que se poderá propor nova ação e não repetir a
mesma12. Assim também se dá para os casos de alteração do pedido ou da
causa de pedir em que se apresenta ação nova e não a mesma anteriormente
extinta. Se o autor modificar o pedido considerado juridicamente
impossível,13 como no caso de propor ação rescisória de sentença que fora
substituída por acórdão (art. 512 do CPC) e depois propor ação rescisória do
acórdão, estará modificando a ação e não será reproposição da mesma
anteriormente proposta.

12 Por engano já se considerou repropositura da mesma ação com a troca da parte. “Na hipótese dos
autos, a repropositura da ação se deu com alteração do polo passivo”. STJ, REsp 1027158-MG – 3ª
T., Relª Min. Nancy Andrighi, DJ 04.05.2010, Revista Jurídica, v.391, p.151, maio. 2010. Melhor
andou GUILHERME B. DE OLIVEIRA, ao expressar: “Seja pela desistência do pedido, seja, por
exemplo, pela falta de pagamento das custas de distribuição, uma nova demanda, mesmo com a
alteração parcial dos réus”. Comentários aos artigos 251 a 257 do Código de processo Civil. Disponível
em: <http://www.tex.pro.br>. Acesso em: 02 abr. 2007.
13 “Ação Rescisória – Impossibilidade Jurídica do Pedido. Configuração. Sentença Indicada Como Rescindenda

Substituída por Acórdão. Súmula 192, III, desta Corte. Esta Corte, na compreensão as Súmula 192, III,
firmou entendimento no sentido de que, em face do disposto no art. 512 do CPC, é juridicamente
impossível o pedido explícito de desconstituição de sentença quando substituída por acórdão
Regional. Recursos conhecidos e desprovidos”. Proc. RXOF e ROAR 1132000-29.2004.5.02.0000 do
TST. SDI-JU do TST, v. 161, p.119-120, abr. 2010.
Trecho do acórdão: “A decisão proferida pela C. 10ª Turma deste Regional, por conseguinte, é a
única passível de ataque, já que não se rescinde algo que não existe mais como ato decisório,
consoante se depreende do disposto no artigo 512 do CPC”, idem, p.121.

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3 – SENTENÇA
De acordo com a redação anterior (art. 162, § 1º, do CPC), a sentença
apontava o fim do processo de conhecimento, cautelar ou de execução.
BARBOSA MOREIRA (2006, p.78) critica tal posição, ao afirmar que não
era nesse momento que o processo realmente terminava, afirmando que ele
continuava a fluir enquanto subsistisse a possibilidade de recorrer e mesmo
durante a pendência de recurso. No entanto, este argumento, por si só, não
parece ser suficiente para afastar a sentença do ponto final do processo. Isto
porque o recurso tem força de impedir que a sentença produza todos os
seus efeitos14.
A existência de recurso produz o efeito de suspender a ocorrência da
coisa julgada, mas não tem o condão de descaracterizar a sentença como ato
extintivo do processo. Tanto é assim, que, após o julgamento do recurso, a
sentença ganha o selo da definitividade. Também, quando não existe
recurso, a sentença ganha imediatamente o selo de definitividade. Se a
sentença não extinguir (ou extinguisse) o processo, como explicar os casos
em que não haja recurso? Ainda mais se a sentença não extinguir o
processo, qual será então o ato que o extingue? Ao final, se o processo não é
extinto pela sentença, haverá de sê-lo por outro ato.
No caso de existência de recurso, o processo continua porque a
sentença ainda não produziu todos os seus efeitos, visto estar sob condição
suspensiva pela presença do recurso15. Julgado o recurso, mantida a
sentença, o processo está inexoravelmente extinto. Só não será extinto no
caso de anulação da sentença, situação em que a própria sentença deixa de
existir, caso em que, via de regra, outra será posteriormente proferida, e esta
última então, põe fim ao processo. De qualquer forma, será sentença o ato
que põe fim ao processo.
O objetivo do processo é solucionar a lide e, em sendo esta
solucionada com a sentença, o processo perde seu objeto e por isso será
extinto. A lide será solucionada com a sentença e com esta se dá a extinção
do processo. Por isso ensina BATISTA LOPES (2006, p.142) que, à primeira
vista, a sentença seria sempre o momento culminante do processo em que o
juiz proferiria o veredictum, resolvendo a causa em favor de uma ou de outra

14 PONTES DE MIRANDA pontua: “Antes do trânsito em julgado a sentença não é verdadeiramente


sentença”. Comentários ao CPC. 3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, t.V, p.105.
15 ARAKEN DE ASSIS denomina este de “efeito obstativo” ao dizer que a interposição de qualquer

recurso adia a formação da coisa julgada. Manual dos Recursos, p.220.

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parte.
Não se pode deixar iludir com o procedimento posterior de
cumprimento de sentença. O procedimento de cumprimento de sentença já
não mais integra o processo de conhecimento, senão uma fase de satisfação
daquilo que foi decidido.
Países existem em que o processo de conhecimento se dá no judiciário
e o procedimento de cumprimento da sentença se dá pelas vias
extrajudiciais. Mas mesmo quando se dá pela via judicial, como acontece no
Brasil, não se pode afirmar tratar-se de processo, senão, de mera fase
procedimental de cumprimento. Em verdade, o que se retirou com a
reforma (Lei 11.232/05) foi o processo de execução de sentença e não a
extinção do processo de conhecimento pela sentença.
3.1 A Nova Redação
Essa nova redação, apesar dos elogios16 que possa merecer, em nada
altera a velha concepção de sentença como ato através do qual o juiz encerra
o processo. Assim era antes e continua sendo agora, depois da reforma pela
Lei 11.232/2005.
A moderna redação do artigo 162, § 1º, do CPC, ao fazer referência
aos artigos 267 e 269, rodou e caiu no mesmo lugar. Os artigos 267 e 269
estão inseridos no Capítulo III do Título VI, que cuida exatamente da
extinção do processo. O Capítulo III congrega os artigos 267, 268 e 269,
todos voltados à extinção do processo. Logo, se a sentença é o ato que
implica qualquer das situações dos arts 267 e 269 do CPC, não resta dúvida
de que está cuidando de extinção do processo, como expressamente
dispõem o artigo 267 e implicitamente o art. 269.
Também os artigos 467, 485 e 489 do CPC, interpretados
conjuntamente, levam à conclusão que pela sentença dá-se a extinção do
processo. O primeiro refere-se à coisa julgada quando não mais couber
recurso, o que é indicativo de extinção do processo, porque enquanto este
não for extinto sempre haverá possibilidade de recurso. O segundo impõe
como requisito para a ação rescisória o trânsito em julgado, que só acontece

16 “O novo conceito de sentença merece aplausos na medida em que aumentam as hipóteses de


aplicação de uma técnica essencialmente ligada aos valores efetividade e celeridade: o julgamento
antecipado. Como se não bastasse, permite também uma distinção mais clara entre a técnica do
‘julgamento antecipado de capítulo da demanda’ e a técnica da ‘antecipação dos efeitos da tutela
pretendida em capítulo da demanda”. OLIVEIRA, Bruno Silveira de. Um novo conceito de
sentença. REPRO, v.149, p.127, jul. 2007.

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em processo extinto17. O último afirma que a propositura da ação rescisória


não suspende o cumprimento (execução) da sentença ou do acórdão
rescindendo, indicando que esta pode ser proposta após a sentença ou
acórdão, mas antes do cumprimento (execução) do julgado.
Nem poderia ser diferente. Caso o ato (condenatório) praticado pelo
juiz não encerrar o processo, ainda que se cuide de resolução de mérito, será
decisão18 (art. 162, § 2º, do CPC) e não sentença. Dizer-se que a sentença
condenatória “não” encerra o processo é o mesmo que dizer que de
sentença não se trata, e atribuir a ela a condição de decisão. Isto porque, esta
sim, é ato que resolve questão incidente sem encerrar o processo (art. 162, §
2º, do CPC). O que diferencia a sentença e a decisão é que a primeira
extingue o processo e a segunda não. Não se podem confundir essas
espécies de provimentos (julgamento). Sempre que o processo receba um
provimento interlocutório e tem continuidade, esse provimento será por
certo decisão; quando, diferentemente, ao receber o provimento ele é
extinto, será sentença ou acórdão. Depois, aí sim, poder-se-á exigir ou não
outro procedimento para cumprimento (execução), mas esse procedimento
não se confunde com processo anterior.
Além do mais, caso a sentença não encerrasse o processo, seria ato
incidente e não se poderia falar em atribuição dos encargos sucumbenciais19
previstos nos arts. 20 e 27 do CPC, porque estes somente se aplicam quando
da extinção do processo, e nem em recurso de apelação, este próprio para o
caso de encerramento do processo20. A coisa julgada somente se dá em
processo extinto. Quando ela ocorre, é porque o processo se extinguiu21.

17 “Assim, estão alheios à coisa julgada material os atos judiciais não decisórios (p. ex., os atos
executivos), as decisões interlocutórias, as sentenças que extinguem o processo sem julgamento
do mérito”. TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005, p. 31.
18 PONTES DE MIRANDA, ao se referir a alguns casos de sentença com coisa julgada, disse: “Nenhuma

das decisões de que acima falamos é decisão interlocutória”. Comentários ao CPC, t.V, p.109.
19 Nas decisões interlocutórias não se fala em encargos sucumbenciais. Assim, VI ENTA nº 24: “Não

há honorários em incidentes do processo”. No mesmo sentido: RTJ 105/388; RT 487/78, 543/256 e


599/92.
20 ARRUDA ALVIM ensina: “A sentença, por sua vez, é o ato culminante da ação de conhecimento.

Nas ações de conhecimento em geral, a sentença é o ato final do juiz”. Manual de Direito Processual
Civil, v.2, p.561. Em outro ponto, acrescenta: “O que conta, pois, é que proferida a sentença (ainda
que não seja de mérito) estará terminado o ofício jurisdicional, à luz do pressuposto que o juiz
entendeu presente, para o proferimento da sentença, já que esta não mais poderá ser alterada”.
Idem, p.567.
21 “Sendo assim, deve-se entender por coisa julgada a imodificabilidade da eficácia declaratória

contida numa sentença emanada da atividade jurisdicional, não mais sujeita a recurso”. ALMEIDA
JUNIOR, Jesualdo Eduardo de. O Controle da Coisa Julgada Inconstitucional, p.66.

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Se a sentença não extinguisse o processo, não se poderia falar em


coisa julgada, porque esta somente recai sobre sentença ou acórdão, jamais
sobre decisão interlocutória22.
3.2 O Mesmo Conteúdo
Mudaram-se os termos; mudaram-se as palavras; mas não mudou-se
o conteúdo, que, na prática, tudo continua como antes. A sentença continua
representando um conteúdo finalístico23, visto que põe fim ao processo de
conhecimento ou, pelo menos, coloca fim à fase de cognição, sendo que, de
uma forma ou de outra, está pondo fim à relação processual cognitva.
A nova redação do artigo 269, ao dizer “haverá resolução de mérito”
nas hipóteses indicadas nos incisos I a V que se segue, não mais fala em
extinção do processo, mas isso em nada altera a situação. Isto porque,
solução de mérito acontece tanto em sentença como em decisão
interlocutória. As liminares de regra apreciam questão de mérito e não são
sentenças. O mesmo também se dá com a tutela antecipada em que se
antecipa o próprio mérito, muito embora o seja de forma provisória. No
caso de concessão de tutela antecipada no início ou durante o processo, o
ato que a concede é decisão e não sentença, mas aprecia questão de mérito.
A mesma questão de mérito, quando apreciada, pode indicar ato
judicial diferenciado. Ao apreciar a questão de mérito, o ato judicial poderá
extinguir ou não o processo. Mas, somente será sentença se pôr fim ao
processo. Ilustra-se essa constatação com julgamento recente proferido no
âmbito do Superior Tribunal de Justiça.

22 ALMEIDA JUNIOR ensina: “Pela redação do Código de Processo Civil, a coisa julgada atinge apenas
as sentenças e por extensão óbvia os acórdãos. As decisões interlocutórias e os despachos não se
sujeitam ao fenômeno, ficando à mercê de preclusão processual”. O Controle da Coisa Julgada
Inconstitucional, p.54. No mesmo sentido DIDIER JR., BRAGA e OLIVEIRA: “Se, porém, a decisão é
definitiva em relação a um procedimento (principal, recursal ou incidental), não ficará submetida
à coisa julgada”. DIDIER JR., Fredie; BRAGA, Paula Sarno; OLIVEIRA, Rafael. Curso de Direito
Processual Civil, v.2, p.277.
23 VICENTE GRECO FILHO anota: “O Código optou por conceituar sentença por seu conteúdo,

referindo as situações de extinção do processo sem resolução do mérito e as de resolução do


mérito”. Direito Processual Civil Brasileiro, v.2, p.257. No mesmo sentido ensina JOSÉ ROGÉRIO CRUZ
E TUCCI: “[...] a coisa julgada material, por sua vez, coincide com o momento no qual a tutela
jurisdicional é definitivamente prestada”. Limites subjetivos da eficácia da sentença e da coisa julgada,
p. 168. Ainda no mesmo sentido, GUSTAVO FILIPE BARBOSA GARCIA: “Simultaneamente ao trânsito
em julgado da decisão final de mérito, agrega-se à coisa julgada este efeito de natureza
preclusiva”. Coisa julgada, p.17. Ligando a coisa julgada ao pronunciamento final, EGAS MONIZ
ARAGÃO expõe: “Todo pronunciamento final (isto é ‘sentença’ tal como definida no art. 162, § 1º,
do CPC) produz coisa julgada formal”. Sentença e coisa julgada, p.201-202.

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O egrégio Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar o Conflito de


Competência nº 88.954-SP, em acórdão da lavra da eminente Ministra
Nancy Andrighi, assim restou consignado:
“Na hipótese sub judice, não há sentença de mérito proferida
pelo juízo cível, entendido o termo ‘sentença’ como o ato que põe
fim ao processo. Em que pese o fato de que a decisão sobre a
preliminar de prescrição tenha conteúdo de mérito, a sua rejeição
não provocou a extinção do processo, que prosseguiu em 1º grau
de jurisdição. Assim, com o advento da EC nº 45, foi correta a
decisão do juízo estadual de remeter os autos à justiça do trabalho.
O fato de a preliminar de prescrição ter sido reapreciada e
acolhida, com a extinção do processo, não modifica o
entendimento de que, até a referida remessa à justiça
especializada, nenhuma sentença havia, ainda, sido proferida”
(STJ, CC 88.954, Relª Min. Nancy Andrighi, j. 26.03.2008, DJU de
02.04.2008. Decisório Trabalhista = DT, v.165, p. 43, abr. 2008).
Dois aspectos interessantes sobressaem nesta passagem: a)
primeiramente, há de se observar que o ato do juiz discutido era o
julgamento de preliminar de prescrição, matéria sabidamente de mérito à
luz do artigo 269, IV, do CPC. Caso fosse acolhida a preliminar de
prescrição, o processo seria extinto e, aí sim, o ato seria sentença; como a
preliminar de prescrição (julgamento de mérito – art. 269, IV, do CPC) foi
rejeitada, o ato foi considerado decisão e não sentença, porque o processo
continuou; b) depois, porque este julgamento é recente e foi proferido em
data de 26.03.2008, portanto, posterior à reforma processual que deu nova
redação aos artigos 162, § 1º, e 269 do CPC e mesmo assim tratou a sentença
como ato que extingue o processo.
No corpo do voto da eminente Ministra Relatora, sobressai a seguinte
passagem:
“Esse precedente, porém, não pode ser estendido à hipótese dos
autos. É que, nele, havia uma sentença de mérito, proferida pelo
juízo cível, que pôs fim à relação jurídica material, justificando que
se invocasse a regra estabelecida no julgamento do CC 51.712/SP.
Aqui, porém, a preliminar de prescrição foi rejeitada. Tal
rejeição, em que pese ter conteúdo de mérito, nos termos do art.
269, inc. IV, não pôs fim ao processo” (STJ, CC 88.954, Relª Min.
Nancy Andrighi, j. 26.03.2008, DJU de 02.04.2008. Decisório

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Trabalhista = DT, v.165, p. 48, abr. 2008).


Nesse julgamento ficou bem caracterizado que a apreciação do mérito
incidentalmente não caracteriza sentença. Sentença somente será assim
considerada aquele ato que põe fim ao processo. No mesmo sentido
encontra-se acórdão do Supremo Tribunal Federal, que assim está
ementado:
“Recurso Extraodinário. Decisão Interlocutória. Retenção.
Consoante dispõe o § 3º do art. 542 do Código de Processo Civil,
tratando-se de extraordinário interposto contra decisão
interlocutória, ou seja, pronunciamento que não se mostra
definitivo – deixando, assim, de pôr termo ao processo, com ou
sem julgamento −, o recurso há de ficar retido, pouco importando
a origem da decisão proferida” (STF, AI-AgR 513.242-1/SP, 1ª T.,
Rel. Min. Marco Aurélio, DJE 02.05.2008, p.110. RMDCPC, v.24,
p.110).
Também nesse último julgamento, o egrégio Supremo Tribunal
Federal, reafirma o entendimento de que o julgamento em decisão
interlocutória não é definitivo porque não põe fim ao processo, deixando
claro que não se trata de sentença definitiva, de onde se extrai a conclusão
de que somente quando se puser termo ao processo é que se pode falar em
sentença e em julgamento definitivo.
3.3 A Ilogicidade do Sistema
A doutrina desde há muito reclama de suposta atecnia de que se
revestia o artigo 162 do Código de Processo Civil ao definir o que é
sentença. A nova redação que está sendo elogiada em nada mudou o
conteúdo. Ao contrário, escancarou-se a ilogicidade do sistema. O sistema
processual brasileiro não é, nem era, revestido de sentido lógico.
Agora, como maquiagem em alguns dispositivos, desvelou-se a
ilogicidade. Percebendo isso, BAPTISTA DA SILVA (2008, p.94) advertiu:
“Mesmo com esse aparente rigor lógico, um exame mais detido mostrará
que o sistema não é lógico, mas teleógico. Sua lógica é rigosamente
instrumental; lógica que se observa na medida em que atenda aos fins
políticos superiores, visados pelo sistema processual”.
Que lógica é essa, quando o artigo 162 do CPC afirma que será
sentença o pronunciamento que implicar qualquer das hipóteses dos artigos
267 e 269 do CPC, e este último, logo no inciso I, afirma que será sentença

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de mérito quando acolher ou rejeitar o pedido do autor? Tanto o julgamento


de acolhimento como o de rejeição do pedido do ator somente o serão por
sentença, se puserem fim ao processo. Caso isso não se der será decisão
(julgamento interlocutório) e não definitivo.
O raciocínio de que o ato referido no artigo 269 do CPC é sentença só
porque aprecia o mérito é falso. Por primeiro, porque o mérito pode ser
apreciado em questão incidente também. Por segundo, porque o artigo 267
do CPC se refere exatamente à extinção do processo sem julgamento do
mérito e, por igual, tem a natureza de sentença. O que caracteriza como
sentença o ato referido no artigo 269 é exatamente a extinção do processo24, e
que, por isso, desafia recurso de apelação. Caso a sentença do artigo 269 do
CPC não extinguisse o processo, seria apenas decisão, e desafiaria recurso
de agravo e não o de apelação.
A mesma Lei 11.232/05, que alterou a redação do artigo 162, § 1º, do
CPC para dar nova definição de sentença, retirando neste ponto a expressão
originária “extingue o processo”, em outro ponto, no art. 475-M, § 3º, voltou
a utilizar-se da expressão “extinção”, ao dizer que cabe apelação quando
ocorrer a extinção da execução. Ora, apelação só cabe de sentença, e se cabe
apelação quando a execução for extinta, é porque esta extinção equivale à
sentença.
Por tudo isso, pode-se concluir que a Lei 11.232/05 alterou a definição
de sentença, mas o conteúdo continua o mesmo.
3.4 A Reforma pela Reforma
Já faz alguns anos que se convive com a ideia de reforma na legislação
e nunca se viram grandes mudanças. O que se vê é uma reforma aqui e
outra acolá, mas sempre voltadas ao sentido formal e muito raramente
sobre o conteúdo propriamente dito. Mudam-se as palavras, mas não se
muda o conteúdo, que continua quase sempre o mesmo.
Essa circunstância chamou à atenção de THEODORO JUNIOR (2008: 28)
que assim se expressou:
“Permanece-se – como adverte LUCIANA DRIMEL DIAS –
praticamente adicto a esta ideia e ideologia (a incessante criação e
recriação legislativa) como se fosse a única opção reformadora;

24 “A sentença que põe fim ao processo é coisa julgada”. PONTES DE MIRANDA. Comentários ao CPC.
3.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, t.V, p.105.

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quando o mundo atual está cansado do mote reformista em tal


sentido, e ciente de que os fatores essenciais em que se apoia a
prestação jurisdicional são homens (sociedade) e estruturas”.
Fazer reforma pelo prazer de reformar-se em nada adianta, se na
prática tudo continua como antes. Dizem os críticos que a redação anterior
do art. 162, § 1º, do CPC, levava em conta apenas o topus e não o conteúdo25.
Agora a nova redação leva em conta o conteúdo e não o topus. Mero engano.
Tanto antes, como agora, se leva em conta o topus e o conteúdo. Ao tratar da
finalização do processo com sentença, já se está levando em conta estas duas
vertentes. Considera-se como topus ao dizer que a sentença extingue o
processo (art. 267 do CPC) e considera-se como substância ao indicar a
sentença como ato de conteúdo extintivo da lide (art. 269 do CPC). Sendo
ato extintivo da lide, será ato extintivo do processo, porque não se pode
admitir processo sem lide.
3.5. O Objetivo da Reforma
O que se pode pensar é que o objetivo da reforma processual foi o de
atender à parte da doutrina que criticava a definição anterior oriunda da
redação originária do artigo 162, § 1º, do CPC. Não se vislumbra nem se
conhece nenhuma consequência prática que justificasse tal alteração.
Para MARINONI e ARENHART (2006, p. 407), a razão de ser da alteração
das normas dos arts. 162, § 1º, e 269, caput, foi a de permitir a aglutinação
dos processos de conhecimento e de execução em um único processo com
duas fases distintas. Data maxima venia, não se vê como concordar com essa
afirmação. Desde a origem do Código de Processo Civil em 1973, já existiam
ações em que o cumprimento (execução) da sentença já se dava no mesmo
processo, tal como se dava no mandado de segurança, na ação de despejo,
nas ações possessórias, entre outras.
Para que o cumprimento (execução) da sentença se desse no mesmo
processo, não havia a necessidade de alterar a sua definição. O sistema
processual civil brasileiro sempre acolheu a sentença executiva lato sensu,
espécie que dispensa a propositura de novo processo para a execução. As

25 “Afirmava-se, nessa linha, que o critério definidor de sentença era topológico, não algo que
dissesse respeito ao conteúdo do ato”. “Todavia, não é mais o momento ou lugar do
procedimento o fator de diferenciação entre sentença e decisões interlocutórias”. OLIVEIRA, Bruno
Silveira. Um novo conceito de sentença. REPRO, São Paulo, v.149, p.121. “Resta, portanto,
inteiramente descartado o critério topológico de diferenciação dos atos decisórios, pois agora, em
meio ao procedimento tanto poderão surgir sentenças quanto decisão interlocutória”. Idem, p.124.

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sentenças nas ações possessórias sempre dispensaram novo processo para a


sua execução. O mesmo se dá na ação de mandado de segurança. Mais
recentemente, no final do século passado, as sentenças impondo obrigação
de fazer, não fazer ou de entrega de coisa também passaram a dispensar
processo de execução e o cumprimento é exigido em fase procedimental na
forma dos arts. 461 e 461-A do CPC. Para isso, até aí, não precisou mudar a
definição de sentença.
Se a definição anterior de sentença estava sujeita a críticas, com maior
razão está a nova definição, que se apresenta em contradição com o sistema
geral adotado pelo Código de Processo Civil brasileiro26.
3.6 A Sentença Como Ato Extintivo do Processo
Há forte inclinação pela doutrina nacional em negar que a sentença
extingue o processo, sob os embalos da nova redação dada ao art. 162, § 1º,
do CPC. Todavia, parece tratar-se de posição motivada mais pela influência
da nova redação do que pela mais apurada razão. Todavia, mesmo se
admitindo que a sentença não extingue o processo de conhecimento quando
condena, haverá de se admitir que é através de sentença que se extingue a
fase de cumprimento da condenação27, seja pelo real cumprimento da
obrigação ou pelo reconhecimento de impossibilidade de dar seguimento
até o cumprimento (exemplos: arts. 267, 475-L, I, II, IV e VI, 586 e 794, II e
III, do CPC).
Também, para os casos de ação simplesmente “declaratória”, não se
vê como negar que a sentença extingue o processo com a simples
declaração28. De outra forma, se a sentença não mais extingue o processo,
qual então será o ato que o extingue? Ainda, se a sentença não extingue o
processo, este haverá de prosseguir mesmo após a sentença; então, como se

26 Por exemplo, o artigo 795 do CPC, ao cuidar da extinção da execução com base no artigo 794,
afirma que a extinção só produz efeito quando declarada por sentença. O artigo 475-M, § 3º, do
CPC fala em apelação como recurso adequado para o caso de extinção da execução, o que implica
dizer que essa extinção se dá por sentença. O artigo 329 também fala em extinção do processo
quando se der qualquer dos casos dos artigos 267 e 269 do CPC.
27 ARAKEN DE ASSIS afirma: “Forçoso reconhecer que a execução contemplada no art. 475-I, realizada

incidenter tantum, cedo ou tarde terá seu fecho, satisfazendo ou não o exequente (art. 794, I, c.c. art.
475-R), e o respectivo ato constituirá sentença (art. 162, § 1º) digna de apelação”. Manual dos
Recursos, p.385.
28 LUIZ GUILHERME MARINONI e SÉRGIO CRUZ ARENHART assim ensinam: “As sentenças de

procedência que precisam que o processo se desenvolva em uma fase de execução, para satisfazer
o autor, obviamente extinguem o processo (sentenças declaratórias e constitutivas)”. Manual do
Processo de Conhecimento, p.407.

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falar em coisa julgada da sentença, se o processo ainda continua? Ainda, se


a sentença não extingue o processo, como então se condena a parte aos
encargos da sucumbência, se isto deve se dar ao final? Também se a
sentença não extinguisse o processo, ela poderia ser modificada a qualquer
momento enquanto o processo estivesse em aberto, na forma dos artigos
267, § 3º, e 303 do CPC, o que é desmentido pelos arts. 463 e 474 do CPC.
Antes de extinguir o processo, o juiz pode conhecer das questões previstas
no art. 267, § 3º, e das relacionadas no artigo 303 do CPC. Proferida a
sentença, já não pode mais fazê-lo (arts. 463 e 474 do CPC).
Não fosse o processo extinto com a sentença, poderia, após esta, o juiz
corrigir vício anteriormente ocorrido29 e, com isso, não se poderia falar em
eficácia preclusiva da coisa julgada30. Da mesma forma, se a sentença não
extinguisse o processo, este seguiria31 e outros julgamentos viriam32. No
entanto, a sentença, quando não mais couber recurso contra ela, passa em
julgado e forma a coisa julgada, tornando-a imutável e indiscutível (art. 467
do CPC), por isso, não mais podendo ser alterada pelo juiz33.
Referindo-se à coisa julgada, MOURÃO (2008, p.36) afirma que
cumprida e exaurida a atividade jurisdicional, não permite o legislador seu
exercício em duplicidade. Depois, o mesmo eminente Professor MOURÃO
(2008, p. 37) acrescenta: “É preciso ficar claro, contudo, que essa proibição

29 “Sentença – Revisão de ofício pelo juiz – Inadmissibilidade – Decisão que não foi objeto de recurso
pela parte interessada – Ofensa ao princípio tantum devolutum quantum appelatum”. STJ, AgRg no
REsp 750.311-RS, j. 09.05.2006, Rel. Min. Ari Pargendler. RT 852/186.
30 HUMBERTO THEODORO JUNIOR assim se expressa: “Em regra, as nulidades dos atos processuais,

observa LIEBMAN, ‘podem suprir-se ou sanar-se no decorrer do processo’. E, ‘ainda que não
supridas ou sanadas, normalmente não podem mais ser arguidas depois que a sentença passou
em julgado. A coisa julgada funciona como sanatória geral dos vícios do processo’” Nulidade,
Inexistência e rescindibilidade da sentença. REPRO, v.19, p.29.
No mesmo sentido julgou o TJRS: “Coisa Julgada – Sentença – Imutabilidade da decisão transitada
em julgada – Hipótese em que é defeso ao juiz decidir novamente sobre a matéria nela decidida –
Inteligência dos arts. 467 e 471 do CPC” (TJRS, Ap. 70011609831 – 16ª Câm., j. 25.01.2006, vu, Rel.
Desemb. Claudir Fidelis Faccenda. RT, v.847, p. 327, maio. 2006).
31 PONTES DE MIRANDA observa: “A coisa julgada só obsta a que se prossiga no mesmo processo”.

Comentários ao CPC, t.V, p.108.


32 GUILHERME POCHALSKI TEIXEIRA afirma: “No entanto, como se verá adiante, será possível a

modificação (mutabilidade) até a extinção do processo, por não ter ainda alcançado a eficácia ou
qualidade de coisa julgada (preclusão máxima), imutabilidade a que se refere o art. 467 do CPC”.
Sentenças objetivamente complexa: impossibilidade de trânsito em julgado parcial. REPRO, v.162,
p.241.
33 “A sentença encerra a instância de conhecimento, retirando do juiz condutor do feito a

possibilidade de voltar a atuar no processo”. MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito


Processual Civil, v.I, p.559.

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restringe-se ao exercício da mesma atividade jurisdicional”. No caso da


sentença condenatória, se ela não encerrasse a relação processual cognitiva,
por certo não passaria em julgado nem impediria novo pronunciamento à
luz dos artigos 267, § 3º, e 303, II, do CPC. No entanto, não é assim. Ao
publicar a sentença, o juiz não mais pode modificá-la34, salvo as hipóteses
dos artigos 296 e 285-A do CPC. Os atos que o juiz pratica no processo
depois da sentença não são jurisdicionais, e, sim, de natureza
administrativa35.
Um dos marcos de que a sentença encerra o processo é o seu prolator
não mais poder modificá-la (art. 463 do CPC), ressalvadas as excepcionais
hipóteses dos art. 296 e 285-A do CPC. Desta forma, se a sentença não
extinguisse o processo, ela poderia ser modificada posteriormente (art. 463
do CPC)36, bem como não produziria a eficácia preclusiva prevista no art.
474 do CPC. Ainda, se a sentença não extingue o processo, este permanecerá
sujeito a recurso37 e a sentença continuará modificável, sem atingir a coisa
julgada? A sentença somente atinge a coisa julgada se ela extinguir o
processo38; como dizer, então, que ela não extingue o processo, mas atinge a
coisa julgada?

34 Ensina CARLOS ALBERTO ÁLVARO OLIVEIRA: “[...] ao publicar a sentença de mérito, o juiz cumpre e
acaba o ofício jurisdicional [...]”. E ainda: “[...] o reexame do mérito da sentença proferida, a
revogação da primeira ou sua complementação, assim como a prolação de outra constituirá, sem
dúvida, atividade não revestida do selo da jurisdicionalidade e, por conseqüência, inapta para
ingressar no mundo jurídico”. Execução de título judicial e defeito ou ineficácia da sentença.
REPRO, v.80, p.67.
35 STJ assim decidiu: “Decisão em que o juiz acrescenta novo dispositivo à sentença já publicada. Tal

decisão não é ato judicial, pois o magistrado já exaurira e acabara seu ofício jurisdicional (CPC –
art. 463). Nela se contém ato administrativo, emanado de autoridade incompetente. Contra ela
cabe Mandado de Segurança, independentemente de recurso preparatório” (RMS 1.618-3-SP, 1ª
T., j. 09.12.92, Rel. Min. Humberto Gomes de Barros, DJU 01.03.93, e RT, v.699, p.173, jan. 1994).
36 “Daí concluir-se que o capítulo não impugnado da sentença pela parte interessada, quando lhe

competia fazê-lo, precluiu. Tornou-se indiscutível em razão da preclusão do direito da parte


impugná-la. No entanto, como se verá adiante, será passível de modificação (mutabilidade) até a
extinção do processo, por não ter ainda alcançado a eficácia ou qualidade de coisa julgada
(preclusão máxima), imutabilidade a que se refere o art. 467 do CPC”. TEIXEIRA, Guilherme
Puchalski. Sentenças objetivamente complexas: impossibilidade de trânsito em julgado parcial.
REPRO, v.162, p.241.
37 “O processo apenas terá o seu término quando não mais cabível a interposição de qualquer

recurso”. MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil, v.I, p.559.
38 “Ao exarar o acórdão, o Tribunal esgota sua função jurisdicional, podendo modificá-lo apenas

para corrigir erro material ou para sanar omissão, contradição ou obscuridade, mediante a
interposição de embargos de declaração” (STJ – REsp 970.190-SP, j. 20.05.2008, Relª Minª Nancy
Andrighi, RDDP, v.67, p.142, out. 2008).

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MARINONI ensina que a coisa julgada indica a extinção do processo39.


Também explica o mesmo autor, MARINONI40 (2008, p.56), que a decisão
judicial é o elemento final do discurso jurídico, e se é o resultado final do
discurso jurídico, é porque corresponde ao final do julgamento, bem como à
extinção do processo. Não é por acaso que AMARAL SANTOS (1979, p.3)
afirma: “A sentença é o ato culminante do processo”. Essa culminância
indica a extinção do processo. Outro aspecto a ser observado: diz o art. 262
do CPC que o processo começa pela iniciativa da parte, mas ganha impulso
oficial. Ora, se a sentença não extinguisse o processo, não haveria
necessidade de requerimento da parte para se iniciar o cumprimento da
sentença (art. 475-J do CPC), visto que se aplicaria o impulso oficial do art.
262 do CPC. Sempre que se tratar do mesmo processo, segue-se o impulso
oficial (art. 262 do CPC) e não se exige nova provocação da parte.
Outro forte indicativo de que a sentença põe fim ao processo, está no
recente enunciado nº 367 da Súmula de Jurisprudência do STJ. Por esta
Súmula, a competência estabelecida pela Emenda Constitucional nº 45/2004
não alcança os processos já sentenciados. Se não alcança os processos já
sentenciados, certamente é porque estes são considerados extintos, porque
se ainda não finalizados não haveria razão para ficarem excluídos do
alcance da referida Súmula. O normal é o Juiz ao se dar por incompetente
(art. 113 do CPC) remeter o processo para o juízo competente, e se não o faz
após a sentença, é porque esta encerra o processo. Ora, se a nova
normatização da EC 45/2004, que cuida da competência da Justiça do
Trabalho para decidir sobre as lides oriundas de contrato de trabalho, não
se aplica aos processos já sentenciados, somente pode ser porque estes já
estão encerrados41.

39 “O trânsito em julgado expressa a preclusão das impugnações à decisão tomada ao final do


processo. Indica, simplesmente, que o processo foi encerrado.” MARINONI, Luiz Guilherme. Coisa
julgada inconstitucional, p. 140. Nesse sentido também expressa TEIXEIRA: “Daí concluir-se que o
capítulo não impugnado da sentença pela parte interessada, quando lhe competia fazê-lo,
precluiu. Tornou-se indiscutível em razão da preclusão do direito da parte impugná-la. No
entanto, como se verá adiante, será passível de modificação (mutabilidade) até a extinção do
processo, por não ter ainda alcançado a eficácia ou qualidade de coisa julgada (preclusão máxima),
imutabilidade a que se refere o art. 467 do CPC”. TEIXEIRA, Guilherme Puchalski. Sentenças
objetivamente complexas: impossibilidade de trânsito em julgado parcial. REPRO, v.162, p.241.
40 “A decisão judicial é o elemento final do discurso jurídico, realizado para que o Estado possa

exercer a sua função de tutelar os direitos e, por consequência, as pessoas.” MARINONI, Luiz
Guilherme. Coisa julgada inconstitucional, p.56.
41 STJ, SÚMULA 367. “A competência estabelecida pela Emenda Constitucional nº 45/2004 não

alcança os processos já sentenciados”. DJe, STJ. Corte Especial, 26.11.2008, p.1.

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A ideia de sentença sempre indica encerramento do processo, visto


que esta somente pode ser proferida quando o Juiz já se convenceu e está
pronto para o julgamento. Se está pronto para julgamento, deverá julgar
desde logo o processo (arts. 329 e 330 do CPC). Isso levou OLIVEIRA (2007, p.
128) afirmar que “se o magistrado já firmou seu entendimento e encerrou
sua atividade cognitiva sobre um dos capítulos da demanda, nada legitima
que retarde o julgamento do mesmo”. Veja-se que este autor fala em
“encerramento da atividade cognitiva”, e se encerrou esta atividade
(cognitiva), é porque encerrou o processo de conhecimento. Caso não
encerrasse o processo de conhecimento, este sempre estaria sujeito a recurso
e, com isso, não se concretizaria a coisa julgada. Sabe-se que a coisa julgada
somente se instala quando a sentença ou outra forma de julgamento que
encerra o processo não comporta mais recurso (art. 467 do CPC)42.
Se, de um lado, a coisa julgada somente ocorre quando a jurisdição é
prestada e o processo é extinto, visto que nas decisões interlocutórias
apenas pode ocorrer preclusão, jamais a coisa julgada, de outro lado, a
aferição dos encargos da sucumbência somente pode se dar no final do
processo43 (arts 20 e 27 do CPC), não se permitindo condenação em
sucumbência nas decisões interlocutórias44. Ora, se a sentença, em geral,
sempre há de condenar o vencido nos encargos da sucumbência (art. 20 do
CPC), e a sentença condenatória também condena o vencido nos encargos
da sucumbência, tanto quanto as sentenças chamadas declaratórias e
constitutivas, isso é indicativo de que o processo chegou ao seu final, pois os
artigos 20 e 27 do CPC levam ao entendimento que condenação em

42 “Ocorre a coisa julgada material quando a sentença não só atinge a relação processual, mas
também a relação de direito material controvertida entre as partes, ou seja, extingue-se o processo
com resolução de mérito.” GAIO JUNIOR, Antonio Pereira. Direito Processual Civil, v.1, p.285.
43 “Não é cabível a condenação da parte sucumbente ao pagamento de honorários advocatícios em

favor da parte que teve impugnação acolhida para declarar nulidade do acordo homologado e
dos atos processuais que se seguiram ao mesmo, haja vista que referida sentença não pôs fim ao
processo, havendo a continuidade da prestação jurisdicional.” TJMG, Ap. 1.439.03.027177-9/001, j.
29.04.2008, Rel. Desemb. Osmando Almeida, JM, v.185, p.64, abr-jun. 2008.
44 “Sendo a exceção de pré-executividade mero incidente processual, a sua rejeição não pode impor

ônus sucumbenciais ao vencido. A condenação em honorários só será pronunciada na sentença


que puser termo ao processo, julgando ou não o mérito – Recurso desprovido”. TJSP, AI
7.106.663-0, j. 23.11.2006, JTJSP-Lex, v.315, p.405, ago. 2007.
“Incabíveis os honorários pleiteados, como se viu. É que o art. 20, caput, da legislação processual
codificada dispõe que a sentença condenará o vencido a pagar ao vencedor as despesas que
antecipou e os honorários advocatícios. Deduz-se que, ao final, isto é, quando da solução definitiva
da pendência, por qualquer das formas previstas, é que haverá condenação final do vencido” (1º
TACSP (extinto), AI 319.881, 7ª Câm., RT, 582, p.122).

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sucumbência somente pode ocorrer no final do processo.


Além do mais, cada processo ou procedimento fica sujeito apenas a
um provimento sobre a sucumbência, que deve se dar ao seu final. Ao se
admitir que o cumprimento da sentença é o mesmo processo, não se
poderiam impor novos encargos sucumbenciais45.
Além do mais, admitindo o cumprimento de sentença como fase do
mesmo processo, haverá de se admitir a compensação dos encargos da
sucumbência para os casos de uma parte vencer a fase de conhecimento e a
outra vencer a fase de execução? Seriam as verbas da sucumbência
compensáveis46, na forma do artigo 21 do CPC? Uma parte vencendo uma
fase e a outra parte vencendo a outra fase de um mesmo processo, deverá
haver compensação a ponto de uma nada dever à outra a título de
sucumbência, conforme normatiza o artigo 21 do CPC? Como cumprir a
norma do artigo 21 do CPC? Outra questão: como ficará a sucumbência em
relação à condenação já exposta na sentença com força de coisa julgada?

45 “Processo Civil. Cumprimento de Sentença. Nova Sistemática Imposta pela Lei Nº 11.232/05. Condenação
em Honorários Advocatícios. Possibilidade. – O fato de se ter alterado a natureza da execução de
sentença, que deixou de ser tratada como processo autônomo e passou a ser mera fase
complementar do mesmo processo em que o provimento é assegurado, não traz nenhuma
modificação no que tange aos honorários advocatícios.
– A própria interpretação literal do art. 20, § 4º, do CPC não deixa margem para dúvidas.
Consoante expressa dicção do referido dispositivo legal, os honorários são devidos ‘nas
execuções, embargadas ou não’.
– O art. 475-I do CPC é expresso em afirmar que cumprimento da sentença, nos casos de
obrigação pecuniária, se faz por execução. Ora, se haverá arbitramento de honorários na execução
(art. 20, § 4º, do CPC) e se o cumprimento da sentença se faz por execução (art. 475, I, do CPC),
outra conclusão não é possível, senão a de que haverá a fixação de verba honorária na fase de
cumprimento da sentença.
– Ademais, a verba honorária fixada na fase de cognição leva em consideração apenas o trabalho
realizado pelo advogado até então” (STJ, REsp 978.545-MG, Relª Min. Nancy Andrighi, RBDPro,
v.62, p.195-196, abr-jun. 2008).
“O fato é que a natureza jurídica, a forma e a época de fixação dos honorários não restaram
alteradas somente porque, agora, o cumprimento da sentença (execução de sentença) terá sede no
mesmo processo.” Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, v.62, p.202, abr-jun. 2008.
46 13/53 – Honorários de Advogado. Custas Processuais. Sucumbência Recíproca. Reconhecendo-se a

sucumbência recíproca, os honorários advocatícios e despesas processuais deverão ser suportados


por ambas as partes, conforme norma disposta no art. 21 do CPC” (STF, AI-AgR. 475474-RS, 1ª T.,
Rel. Min. Cezar Peluso; DJU 16.06.2006, p. 12. RMDCPC, v.13, p.149, jul-ago. 2008).
TJRS. “Considerando que a embargada decaiu em sua pretensão na proporção da metade do
valor postulado na execução, deve responder no mesmo percentual pelas custas processuais.
Honorários advocatícios fixados segundo art. 21 do Código de Processo Civil, admitida a
compensação” (TJRS – 16ª Câm. Cível, Ap. Cív. nº 70020810529 / Passo Fundo/RS, Relª Desembª
Ana Maria Nedel Scalzilli, j. 14.11.2007, vu. Bol. AASP, n. 2607, p. 1620, Ementa 16).

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Como conciliar a ideia de sentença com coisa julgada em processo ainda em


andamento? A coisa julgada implica imutabilidade do julgado e o
andamento do processo implica novos provimentos.
Outro aspecto importante é o referente à legitimidade para executar
as verbas de sucumbência no mesmo processo. A se admitir que o
advogado é legitimado para propor a execução da verba honorária (art. 23,
da Lei 8.906/94 − EOAB), estar-se-á admitindo ser outro processo, porque
no mesmo processo não poderia haver alteração das partes (art. 264 do
CPC). Sabe-se que no mesmo processo, após a citação, não mais poderá
haver modificação das partes, salvo os casos expressos em lei (arts. 41 e 43
do CPC)47.
Fosse o mesmo processo, não poderia o advogado iniciar o
cumprimento da sentença porque até então não fora parte e pela norma do
artigo 264 do CPC não mais poderia alterar as partes na mesma relação
processual.
Não se deixe iludir com a redação do § 1º do art. 24 da Lei 8.906, de
1.994, que autoriza o advogado propor a execução nos mesmos autos. A lei
fala “nos mesmos autos” e não no mesmo processo. Autos e processo são
entidades diferentes. Os mesmos autos podem comportar vários processos48.
Cita-se como exemplo o caso de condenação da Fazenda Pública no
processo de conhecimento em dívida de valor, caso em que se exige outro
processo de execução que segue nos mesmos autos do processo anterior
(processo de conhecimento), na forma exigida pelo art. 730 do CPC.
No caso do cumprimento (execução) de sentença para cumprimento
de obrigação sucumbencial, quando este cumprimento é postulado pelo
advogado, não se altera apenas a parte, mas também o pedido e a causa de
pedir. Neste caso, o que se pede no cumprimento da sentença e o que se
apresenta como causa de pedir nada têm a ver com a causa originária e por

47 “Uma vez ocorrida a citação, forma-se ou aperfeiçoa-se a relação processual entre as partes
originárias. Ao pretender-se modificar o pedido e a causa de pedir, o autor deve buscar a
concordância do réu. O réu por sua vez poderá concordar ou não com esta alteração. Como isto,
fica no poder de disposição do réu, ele escolhe o que melhor lhe convier. Por outro lado, a
alteração da ação em relação às partes não está no poder de disposição do réu e por isso ele não
pode dispor sobre interesse alheio, que é do terceiro que ainda não se encontra nos autos. Esta é a
razão da restrição da parte final do art. 264 do CPC, que expressamente impõe: ‘[...] mantendo-se
as mesmas partes, salvo as substituições permitidas por lei’”. SOUZA, Gelson Amaro de. Emenda
da petição inicial. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, v.220, p.38, fev. 1996.
48 Este aspecto foi tratado com maior amplitude por SOUZA, Gelson Amaro de. Curso de Processo

Civil.

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isso há de incidir a norma do artigo 264 do CPC.


Por fim, uma última questão: sabe-se que os recursos interpostos das
sentenças, de regra, têm efeito suspensivo (art. 520 do CPC). Esse efeito
suspensivo impede a realização da execução (cumprimento) da sentença.
Desta forma, esse cumprimento (execução) da sentença somente vai se dar
quando já estiver estampada a coisa julgada e a sentença tornada definitiva.
Como prosseguir no mesmo processo se já existe coisa julgada (caso em que
esta não mais poderá ser alterada)? Também, se não houver recurso, a
sentença passa em julgado, tornando-se definitiva49 e não mais sujeita a
alteração, salvo o caso do art. 463 do CPC.
Como entender um processo ainda não extinto (em andamento), no
qual o juiz não mais pode alterá-lo? Não fosse caso de processo extinto50, por
certo o juiz poderia conhecer e julgar todas as questões de ordem pública e
aquelas outras não sujeitas à preclusão, conforme dispõem os arts. 267, § 3º,
e 303, II, do CPC51. Se o juiz não pode mais alterar a sua sentença, é porque
esta extingue o processo52 e retira dele o poder jurisdicional naquele
processo53. É princípio geral de processo de que, enquanto não acontecer a

49 LUIZ EDUARDO RIBEIRO MOURÃO afirma: “A coisa julgada consiste, justamente, na atribuição legal
de imutabilidade ao conteúdo da decisão judicial, tendo como base o trânsito em julgado, a fim de
preservar valores socialmente importantes”. Coisa julgada, p. 33.
50 MISAEL MONTENEGRO FILHO anota: “Como visto anteriormente, caracteriza-se a sentença como o

pronunciamento do juiz que pelo Código de Ritos põe fim ao processo com ou sem julgamento de
mérito, operando a pretendida solução do conflito de interesses instaurado”. Curso de Direito
Processual Civil, v. I, p. 558.
51 MOURÃO define a coisa julgada como: “A res iudicata como uma situação jurídica que se

caracteriza pela proibição de repetição do exercício da mesma atividade jurisdicional, sobre o


mesmo objeto, pelas mesmas partes (e, excepcionalmente, por terceiros), em processos futuros”.
MOURÃO, Luiz Eduardo Ribeiro. Coisa julgada, 29. O julgado só se torna definitivo quando se
encerra o processo e a sentença se torna imutável, por não mais ser possível recurso algum (art.
467 do CPC). Enquanto o processo estiver em aberto, sempre será possível a apreciação de
questões não sujeitas à preclusão.
52 “Após a publicação da sentença, em princípio não mais se confere ao magistrado que a prolatou a

prerrogativa de voltar a atuar no processo em respeito ao princípio da inalterabilidade.”


MONTENEGRO FILHO, Misael. Curso de Direito Processual Civil, v.I, p.595.
53 Observa HUMBERTO THEODORO JUNIOR: “Outro exemplo de nulidade da sentença é aquele

lembrado por PONTES DE MIRANDA e que ocorre quando o juiz da causa, depois de já julgado o
feito, volta a proferir, no mesmo processo, uma segunda sentença. Com o pronunciamento feito
no primeiro julgado, o juiz exauriu a jurisdição e encerrou a relação processual”. Nulidade,
Inexistência e rescindibilidade da sentença. REPRO, v.19, p. 32.
O STJ, assim decidiu: “I – Com a prolação da sentença, o juiz cumpre e encerra o ofício
jurisdicional. Eventual alegação de nulidade do processo, depois disso, deve ser formulada em
recurso apropriado” (STJ, REsp 222.611, Rel. Antonio de Pádua Ribeiro, j. 24.08.2004, DJU
06.12.2004. RSTJ, v.187, p. 276, mar. 2005).

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extinção do processo, não se dá a coisa julgada; enquanto não se der a coisa


julgada, também não se dá a eficácia preclusiva prevista no artigo 474 do
CPC54. Não se dando a eficácia preclusiva do artigo 474 do CPC, pode o juiz
apreciar e julgar as questões previstas nos arts. 267, § 3º e 303, II, do CPC.
Interessante, ainda, é anotar a doutrina de GUERRA FILHO (2006), ao
expor: “A sentença, conforme a própria definição legal do CPC (art. 162, §
1º), é o ato do juiz que encerra o processo, com ou sem decisão de mérito –
ou, nos temos decorrentes da recente reforma, com ou sem uma resolução
do mérito”. Nota-se que o autor fala que a sentença encerra o processo, e o
faz com referência à reforma processual que alterou a redação originária do
art. 162 do CPC.
4 – MÉRITO
Conforme dispõe a exposição de motivos do CPC, quando o juiz
julgar conflito de pretensões, acolhendo ou rejeitando o pedido, constitui
sentença definitiva de mérito (Exposição de Motivos nº 6).
Denota-se que as palavras “mérito” e “pedido” estão relacionadas de
tal forma que uma está vinculada à outra. Se a sentença julga o pedido,
estará julgando o mérito. Desta forma, quando se diz que o juiz julgou o
mérito, é o mesmo que dizer que ele julgou o pedido.
A palavra “mérito” vem de merecimento. Daí a razão do
correlacionamento entre esta e a palavra “pedido”. O autor pede e o juiz
julga, afirmando ou negando o merecimento. Se o juiz disser ao autor você
merece o que pediu, estar-se-á diante de julgamento de mérito. Da mesma
forma, se o juiz disser você não merece o que pediu, haverá julgamento de
mérito. Para haver julgamento de mérito, basta que o juiz julgue se o pedido
é merecido ou não.
Quando o juiz julga o pedido, seja para reconhecer o merecimento por
parte do autor, seja para lhe negar tal merecimento, o julgamento é de
mérito e nas palavras da Exposição de Motivos nº 6, trata-se de sentença
definitiva de mérito.
O mérito (pedido) somente poderá ser julgado uma vez, daí a alusão à
sentença definitiva de mérito. Uma vez julgado o mérito do pedido, este não

54 A eficácia preclusiva prevista no artigo 474 do CPC, implica impossibilidade de conhecer e julgar
aquilo que foi deduzido ou era dedutível durante o processo. Uma vez extinto o processo, ocorre
a eficácia preclusiva, e mesmo aquilo que não foi deduzido considera-se como se deduzido fosse e
rejeitado, não podendo mais ser analisado.

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pode mais ser julgado novamente em razão da coisa julgada material. Disto
surgiu a afirmação de que uma vez julgado o mérito do pedido não mais se
poderá repetir a mesma ação, o que se afigura correto. Todavia, surgiu
outra expressão de que o processo quando extinto sem julgamento de
mérito poderá a ação ser reproposta, o que não deixa de ser um grande
equívoco. É verdade que quando há julgamento de mérito a mesma ação
não pode ser reproposta, mas não é verdade de que toda sentença sem
mérito autoriza a repropositura da ação.
5 – SENTENÇA SEM JULGAMENTO DE MÉRITO
A sentença sem julgamento de mérito é aquela que não julga o
pedido. Esta sentença por não julgar o pedido não produz coisa julgada
material e, em alguns casos, permite-se a repropositura da mesma ação55.
Todavia, equivocam-se aqueles que pensam que toda vez que o processo é
extinto sem julgamento do mérito o autor poderá repetir a mesma ação. Se
tal providência pode ocorrer em alguns casos, isto não significa que poderá
acontecer sempre e, em todos os casos.
Quando a sentença extingue o processo sem julgar o mérito do
pedido, ela fica sujeita apenas à coisa julgada formal. Isto porque apenas se
julgou a forma e não a matéria. A matéria, de regra, poderá ser julgada em
outra ação ou mesmo com repetição da mesma ação, desde que cabível
repropor a ação ou a propositura de outra ação para o caso concreto. Mas
isso não quer dizer que o autor está autorizado a renovar a mesma ação em
todos os casos. Há hipóteses que não autorizam a renovação da mesma
ação, mesmo em se tratando de sentença ou acórdão sem a apreciação do
mérito do pedido. Inúmeros são os casos em que não se admite a
repropositura da ação.
6 – COISA JULGADA
A coisa julgada é conhecida como qualidade que torna a sentença
imutável (coisa julgada formal) ou a imutabilidade de seus efeitos (coisa
julgada material). Assim, a coisa julgada é a imutabilidade da sentença ou
de seus efeitos, que não mais poderão ser alterados. Não é um efeito direto
da sentença, mas uma qualidade que após ser incorporada à sentença
produz indiretamente os efeitos da sua imutabilidade.

55 Usou-se a expressão “repropositura da mesma ação” para maior clareza, mesmo sabendo do risco
de pleonasmo e de redundância. Isto porque, ao se falar em repropositura, já se está falando da
mesma ação.

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Coisa julgada é a qualidade que se agrega à sentença não mais sujeita


a recurso e que a torna imutável, nada importando para essa imutabilidade
se foi ou não julgado o mérito. Uma vez não podendo mais ser a sentença
atacada via recurso, estabelece-se a coisa julgada. Toda vez que uma
sentença não mais esteja sujeita a recurso, estar-se-á diante de uma coisa
julgada, muito embora possa ela (sentença) excepcionalmente ser alterada
pela ação rescisória (art. 485 do CPC) ou reconhecida ineficaz por falta de
citação em relação a determinada pessoa através de embargos do devedor
(art. 741, I, do CPC)56.
A coisa julgada pode ser classificada em formal ou material. Toda vez
que um ato judicial põe fim a um processo, este mesmo ato (sentença) em
princípio pode ser objeto de recurso, visando à sua reformulação. Todavia,
chegar-se-á a um momento em que não mais será possível a apresentação
de recurso algum. Isso se dá quando o interessado perdeu a oportunidade
de recorrer, ou quando utilizados todos os recursos cabíveis. Acontecendo
isso e como foi anotado, instaura-se a coisa julgada. Entretanto, essa coisa
julgada pode gerar efeitos diferentes, conforme seja o desfecho final do
processo atingindo situações diferentes, quando houver o juiz decidido ou
não o mérito da causa. Quando o mérito for decidido, tem-se a coisa julgada
material. Ao contrário, se decidido apenas aspectos processuais, tais como
os pressupostos processuais ou as condições da ação, a coisa julgada será
apenas formal.
6.1 Coisa Julgada Material
A coisa julgada material é um plus a mais que se junta à coisa julgada
formal. Foi visto que a coisa julgada formal atinge o processo e uma vez
extinto não mais poderá ser retomado; na coisa julgada material, também a
matéria que se decidiu não mais poderá ser posta em discussão, nem
mesmo em outro processo.
Percebe-se que a coisa julgada material vai além da coisa julgada
formal, porquanto esta se prende ao processo em que houve a decisão, a
primeira atinge também a matéria decidida que faz coisa julgada material e
tem força de lei entre as partes (art. 468 do CPC), não mais podendo ser
objeto de discussão em outro processo.

56 Falou-se que a sentença no caso art. 741, I do CPC é ineficaz, porque nula não é. O assunto foi
tratado mais detalhadamente em trabalho intitulado: Efeitos da sentença que acolhe embargos à
execução por falta ou nulidade de citação na forma do art. 741, I, do CPC. RBDP, v.6; RIPE v.20;
REPRO, v. 93; RNDJ, v. 9; RT, 785.

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Ao dizer que a sentença que julgou a lide tem força de lei, o legislador
quis tão somente dizer que a decisão da lide é imutável dentro e fora do
processo após o trânsito em julgado da sentença. Em verdade, a sentença
que julga a lide faz coisa julgada material e tem mais força de que uma lei
entre as partes às quais foi dada. Pode parecer estranha essa afirmação, mas
ela tem mesmo mais força do que uma lei ordinária. A lei pode ser revogada
a qualquer tempo por outra e a coisa julgada material nem mesmo por lei
nova poderá ser modificada (art. 5º, XXXVI, da CF/88). Ora, se nem mesmo
a lei poderá modificar a coisa julgada, logo ela tem mais força do que a lei.
A coisa julgada material somente não prevalece frente à própria
Constituição, eis que, com relação à Constituição nova, não incidem os
efeitos da coisa julgada.
A coisa julgada material atinge além da imutabilidade da sentença
também a matéria (pedido/lide/mérito) decidida. A matéria que for
decidida não mais será objeto de discussão nem no mesmo, nem em outro
processo. A coisa julgada material extrapola o âmbito singular do processo e
irradia seus efeitos no mundo jurídico, não mais se permitindo reabrir a
questão em nenhum outro processo. Ressalvam-se os casos especialíssimos
do artigo 485 do CPC, que autoriza a ação rescisória e por tempo limitado
de dois anos.
6.2 Coisa Julgada Formal
Sempre que uma sentença não mais comportar recurso, estar-se-á
diante de uma coisa julgada formal. É formal porque formalmente ela está
consolidada e não mais pode ser alterada dentro daquele processo.
É a simples impossibilidade de se recorrer da sentença, seja porque os
recursos possíveis já foram utilizados ou esgotados, seja porque não foram
utilizados e atingidos pela preclusão. Em outros termos, pode-se dizer que a
preclusão recursal gera na sentença os efeitos da coisa julgada.
Equivocou-se o legislador ao dizer no art. 467 do CPC: denomina-se
coisa julgada material a eficácia que torna imutável e indiscutível a
sentença, não mais sujeita ao recurso ordinário ou extraordinário. Não
tivesse a lei se utilizado da expressão “material”, teria a perfeita
conceituação de coisa julgada formal.
A coisa julgada formal é um plus que vai atingir toda sentença a partir
do momento em que esta não mais comporte recurso. Mas o mais
importante é saber quais os efeitos desta coisa julgada. É notório que toda

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coisa julgada se prende ao que foi decidido na sentença. Quando a sentença


decide aspectos formais dentro do processo, os seus efeitos somente
atingem este processo, não se irradiando efeitos para fora do mesmo.
Desta forma, quando o processo é extinto por ausência de
pressupostos positivos ou pela presença de fatos considerados pressupostos
negativos ou, ainda, pela falta de uma das condições da ação, tem-se um
julgamento apenas de formalidades, sem atingir a lide e por isso haverá
apenas a coisa julgada formal. Tem-se, assim, uma extinção do processo sem
julgamento do mérito. Logo a coisa julgada não se instaura sobre a lide
(mérito), mas tão somente sobre as formalidades apreciadas e atinge
somente o processo em que houve a decisão, de regra, não impedindo que
seja a ação novamente proposta, desde que suprimidos os vícios que o
levaram à extinção. Todavia, existem casos que não há como corrigir o vício
e outros em que a própria correção do vício implica alteração dos elementos
da ação e, por isso, tem-se nova ação e não renovação da mesma anterior
proposta.
7 – REPROPOSITURA DA AÇÃO
A renovação da ação acontece sempre que ocorre a coincidência entre
os três elementos da ação, ou seja, o mesmo pedido, a mesma causa de pedir
e as mesmas partes. Caso ocorra a alteração de um desses elementos, não
mais se trata de repetição da mesma ação, senão de ação nova. Casos
existem que não se permite a renovação da mesma ação.
Tornou-se comum a afirmação de que sempre que o processo for
extinto sem julgamento do mérito a ação poderá ser repetida. Mas esta
concepção não é verdadeira. Existem muitos casos em que, apesar da
extinção do processo sem julgamento do mérito, a ação não pode ser
renovada. Há casos que por engano se pensa que se trata de renovação da
ação, quando isto efetivamente não acontece, pois o autor não repete os
mesmos elementos da ação, para a nova atuação altera um ou outro
elemento da ação, o que acaba por configurar nova ação e não a renovação
da mesma que foi extinta.
8 – CASOS QUE NÃO PERMITEM A REPROPOSITURA DA AÇÃO
Muitos são os casos em que, apesar de a sentença pôr fim ao processo
sem julgar o mérito do pedido, mesmo assim o autor não poderá renovar a

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ação57.
O artigo 268 do CPC, de forma extremamente tímida e equivocada,
dizendo muito menos do que pretendia (ou deveria) dizer, afirma que nos
casos do inciso V do art. 267 não poderá haver renovação da ação. Mas
deixa transparecer que nos demais casos previstos no artigo 267 a renovação
é possível. Ledo engano. A lógica não aceita e não admite tal conclusão.
Muitas das causas que levam à extinção sem julgamento do mérito em
outras hipóteses também podem impedir a renovação da ação, como se dá
nos casos dos incisos VII, IX e X, de forma inarredável. Mas em outros
casos, como os dos incisos I, III, IV, VI e VIII, podem surgir situações
impeditivas, muito embora isto não seja em todos os casos.
8.1 Inciso V do Art. 267
O inciso V do artigo 267 do CPC fala em extinção do processo sem
julgamento do mérito quando o juiz acolher a alegação de perempção, de
litispendência e de coisa julgada, e o artigo 268 afirma que nestes casos não
poderá haver renovação da ação. Neste ponto a lei foi clara, mas não se
pode pensar que essa impossibilidade de renovação apenas se dá nestes
casos. Outros tantos existem e que não se permite a renovação.
8.2 Outros Casos Impeditivos Definitivamente
O inciso VII do art. 267 do CPC determina a extinção do processo sem
julgamento do mérito quando houver convenção de arbitragem. Quando as
partes convencionarem a arbitragem, isto impede a busca da via judicial, e
uma vez extinta a ação por este motivo, não se poderá pensar em renovar a
ação, porque sempre haverá o mesmo obstáculo a impedir o seguimento do
processo.
Também determina o inciso IX do art. 267 do CPC: será extinto o
processo sem julgamento do mérito quando falecer a parte e a ação for
considerada intransmissível. Neste caso, uma vez extinta ação pela
impossibilidade de transmissão, esta situação permanecerá e não mais
poderá ser renovada ação.
Quando o processo for extinto sem julgamento do mérito em razão da

57 Uma questão enganadora e que tem provocado muitos equívocos é a extinção do processo sem
julgamento do mérito, fundada na ilegitimidade de parte. Há um pensamento generalizado de
que o autor poderá renovar a ação desde que corrigido o vício. Mas se o vício está na
legitimidade, ao modificar a parte, estará modificando a ação, porque se está alterando um dos
elementos identificadores da ação. Altera-se a parte e propõe-se nova ação e não a mesma.

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confusão, conforme dispõe o inciso X do mesmo artigo, a ação não poderá


ser renovada, porque a confusão uma vez instaurada perdurará e não há
como se pensar em renovar a ação.
O artigo 267, IV, do CPC fala em extinção do processo sem
julgamento do mérito quando ausente pressuposto processual. Quando o
pressuposto faltante for a falta de capacidade de ser parte por ausência de
personalidade jurídica, não haverá como renovar a ação.
O mesmo artigo 267, VI, fala em extinção do processo sem julgamento
do mérito por falta de condição da ação. Se a falta de condição for
relacionada à legitimidade, ao substituir a parte estar-se-á mudando a ação
e não mais será caso de renovação. Também se o pedido for juridicamente
impossível, a eventual troca de pedido implica nova ação e não se pode
falar em renovação da ação anterior, senão em nova ação.
Estes casos mencionados se apresentam de forma definitiva com a
indicação de que não se poderá repropor a ação. Mas outras situações
existem em que poderá haver impedimento circunstancialmente, muito
embora, em outros, poderá ser a ação renovada.
8.3 Casos Impeditivos Circunstancialmente
Não se pode dizer que sempre que o processo for extinto sem
julgamento do mérito a ação poderá ser renovada. Mesmo naqueles casos
em que de regra se permite a renovação, pode surgir circunstância especial
em que isso não será permitido.
O artigo 267, I, do CPC afirma que o processo será extinto sem
julgamento do mérito quando a petição inicial for indeferida58. O
indeferimento da petição por si só não impede a renovação da ação, mas os
motivos ou as causas do indeferimento podem impedir a repropositura da
ação.
O artigo 295, II, do CPC afirma que a petição inicial será indeferida
quando a parte for manifestamente ilegítima. Aqui surge uma situação
curiosa, porque pode parecer à primeira vista que a ação pode ser renovada,
mas isso não passa de engano. Para se socorrer da via judiciária novamente,
há necessidade de substituir a parte ilegítima por outra legítima, e essa troca
de partes altera a ação e passa a ser nova ação e não a mesma. Não será

58 Nem sempre quando se indefere a petição inicial ocorre extinção sem mérito. Excepcionalmente,
haverá julgamento de mérito quando o indeferimento se der em razão de prescrição ou de
decadência, na forma dos artigos 295, IV, e 269, IV, do CPC.

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renovação da ação, mas, simplesmente, propositura de outra ação.


Também o artigo 295, I, fala em indeferimento da petição inicial
quando ela for inepta. Ocorrendo o indeferimento da petição inicial por ser
esta inepta, vem logo à imaginação de que basta elaborar nova petição e
renovar a ação. Mas isto nem sempre será possível. O art. 295, parágrafo
único, III, fala que é inepta a petição inicial que contiver pedido
juridicamente impossível. Se a petição inicial é indeferida por pedido
juridicamente impossível, não se vê como o autor poderá renovar ação,
fazendo o mesmo pedido. Isto porque se o pedido é impossível hoje, por
certo e quase sempre o será amanhã. Se o autor modificar o pedido, ele
estará modificando a ação, configura ação nova e não será a mesma ação
anterior. Haverá nova ação e não renovação da mesma anterior.
Mesmo naqueles casos que inicialmente se permitiria renovar a ação,
poderão existir ou surgir fatos supervenientes impeditivos dessa renovação,
como se dá nos casos em que o tempo não permite a repropositura da ação.
Exemplos disso podem ser lembrados: os casos dos embargos à execução
(art. 738 do CPC), os embargos de terceiros (art. 1.048 do CPC), a ação
rescisória (art. 495 do CPC) que uma vez ultrapassados os prazos previstos
o autor não poderá mais repropor tais ações, muito embora as anteriores
tenham sido extintas sem julgamento de mérito. Também o artigo 268,
parágrafo único do CPC impede a renovação da ação quando já houver sido
extinta por vezes sem mérito por força do art. 267, III, do CPC.
Também quando o processo for extinto sem julgamento do mérito em
razão da perda do objeto, não se vê possibilidade de renovação da ação.
Desaparecendo o objeto do processo, haverá extinção sem julgamento do
mérito e não se permite a renovação da ação.
CONCLUSÃO
Com essas observações, pode-se concluir que o dogma de que toda
extinção do processo sem julgamento do mérito autoriza a renovação não
passa de engano e que não pode ser propagado. Inúmeros são os casos que
mesmo a despeito da extinção do processo sem julgamento não há
possibilidade de repetição da mesma ação.
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______. Validade do julgamento de mérito sem citação do réu. REPRO. São Paulo:
Revista dos Tribunais, v.111, jul.-set. 2003; Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez,
v.275, set. 2000.
______. Sentença de mérito sem citação do réu. Revista Dialética de Direito Processual. São
Paulo: Dialética, v.43, out. 2006.
______ Mérito no processo cautelar. RDDP. São Paulo: Dialética, v.16, jul. 2004.
______ Coisa julgada no processo cautelar. RT. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.842,
dez. 2005; Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, v.329, mar. 2005.
______. Mérito no processo de execução. Repertório de Jurisprudência – IOB, 2ª quinz. nov.
2009.
______. Sentença do art. 795 do CPC. In: BRUSCHI, Gilberto Gomes (Coord.). Execução
Civil e Cumprimento da Sentença. São Paulo: Método, 2006.
______. Prorrogação da competência absoluta. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez,
v.292, fev. 2002; REPRO. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.110, abr.-jun. 2003.
______. Coisa julgada na ação alimentos. REPRO. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.91,
jul.-set. 1998.
______. Capacidade processual do nascituro. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez,
v.221, mar. 1996; RIPE. Bauru: ITE, v.16, nov. 1996.
______. Direitos humanos e o processo civil. Revista Jurídica. Porto Alegre: v.325, dez.
2004.
______. Emenda da petição inicial. Revista Jurídica. Porto Alegre: Notadez, v.220, p.38,
fev. 1996.
TALAMINI, Eduardo. Coisa julgada e sua revisão. São Paulo: RT, 2005.
THEODORO JUNIOR, Humberto. Nulidade, Inexistência e rescindibilidade da sentença.
REPRO. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.19, jul.-set., 1980.

40
NATUREZA JURÍDICA DA
RECLAMAÇÃO CONSTITUCIONAL:
UMA ANÁLISE DA INCONGRUÊNCIA
JURISPRUDENCIAL DO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL SOBRE O TEMA *
J ONATHAN I OVANE DE L EMOS * *

Sumário: 1 – Notas introdutórias; 2 – Síntese dos fatos e da


decisão na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.212-1/CE; 3
– Análise crítica da decisão; 3.1 Incongruências teóricas e
práticas; 4 – Conclusões; 5 – Referências bibliográficas.

1 – N OTAS I NTRODUTÓRIAS
A Constituição de um país, segundo os ensinamentos de HÄBERLE,
mais do que estruturar a organização estatal, estabelece o modo de vida de
toda a sociedade1, regulando desde garantias e direitos fundamentais dos
cidadãos até matérias de nítido caráter processual. Ainda, disciplina temas
ligados ao exercício da jurisdição2 constitucional(izada)3 – fato

* Trabalho apresentado na cadeira “Jurisdição, Processo e Ações Individuais”, ministrada pelo


Professor Dr. JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER, no curso de Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado
em Direito – da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), no primeiro
semestre de 2009.
** Advogado. Especialista em Direito Processual Civil e Mestrando em Direito pela Pontifícia

Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).


1 HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição:

Contribuição para a Interpretação Pluralista e "Procedimental" da Constituição. Tradução de


Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 2002, p 33. (Título Original:
Die Offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten. Ein Beitrag zur Pluralistischen und ‘Prozessualen’
Verfassungsinterpreten.)
2 PORTO, Sérgio Gilberto; USTÁRROZ, Daniel. Lições de Direitos Fundamentais no Processo Civil: o

conteúdo processual da Constituição Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p.11.
3 Para ADALBERTO NARCISO HOMMERDING (Fundamentos para uma Compreensão Hermenêutica do

Processo Civil. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p.147), “toda jurisdição sempre é

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compreensível, já que o direito (e, logicamente, o processo) é “autêntico


produto da cultura”4.
Observa-se, hodiernamente, uma busca incessante de soluções,
mediante a criação, alteração ou, até mesmo, nova interpretação de
“antigos” institutos processuais à efetividade do processo. Dentro desse
quadro, um tema que teve sua importância revigorada (se não fosse muita
audácia, diríamos revelada) foi a Reclamação Constitucional, com o advento
da Emenda Constitucional nº 45/2004 e da Lei nº 11.417/2006, que instituiu
e regulamentou, respectivamente, a Súmula Vinculante em nosso
ordenamento.
A Reclamação Constitucional é um instituto originariamente
brasileiro, de criação pretoriana, regulado nos artigos 102, inciso I, l5, e 105,
inciso I, f6, da CF/88, que busca resguardar a importância do Supremo
Tribunal Federal (STF) e do Superior Tribunal de Justiça (STJ) – alicerçado
na teoria dos poderes implícitos (implied powers) do direito norte-americano
–, que já se mostrava, antes da incorporação da súmula vinculante (artigo
103-A, § 3º7, da Constituição, na parte que nos interessa), um importante
instrumento de efetivação das garantias fundamentais aos cidadãos,
protegendo, ao cabo, a supremacia das cortes superiores, assegurando a
autoridade de seus julgados e a preservação de suas competências,
blindando, em última análise, o Estado Democrático de Direito, as
liberdades públicas e a soberania popular8.

constitucional(izada), pois não há como separar o ser do ente. [...] Falar em ‘tribunais
constitucionais’, pois, é ocorrer em pleonasmo”.
4 MITIDIERO, Daniel. Colaboração no Processo Civil: pressupostos sociais, lógicos e éticos. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2009, p.28.


5 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição,

cabendo-lhe: I – processar e julgar, originariamente: [...] l) a reclamação para a preservação de sua


competência e garantia da autoridade de suas decisões; [...].
6 Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: I – processar e julgar, originariamente: [...] f) a

reclamação para a preservação de sua competência e garantia da autoridade de suas decisões; [...].
7 Art. 103-A. O Supremo Tribunal Federal poderá, de ofício ou por provocação, mediante decisão de

dois terços dos seus membros, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar
súmula que, a partir de sua publicação na imprensa oficial, terá efeito vinculante em relação aos
demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal,
estadual e municipal, bem como proceder à sua revisão ou cancelamento, na forma estabelecida
em lei. [...] § 3º. Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou
que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a
procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará
que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso.
8 MORATO, Leonardo L. Reclamação e sua Aplicação para o Respeito da Súmula Vinculante: De acordo

com a EC nº 45/2004 e com a Lei 11.417/2006. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.30.

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Inversamente proporcional à sua importância, o instituto, até meados


da presente década, nunca tinha recebido a devida atenção por parte da
doutrina, tanto que o livro mais profundo, e único, sobre o tema até então
ressaltava em suas primeiras páginas a escassez de materiais para sua
confecção9. Porém, mesmo que tal quadro tenha mudado, pois existem hoje
inúmeros trabalhos acerca da Reclamação Constitucional – veja-se pela
bibliografia ao final citada, que arrola uma parte das obras publicadas sobre
o tema –, muitas celeumas em relação ao instituto permanecem escoimadas
de certeza, entre as quais clama atenção o exame de sua natureza jurídica10.
Por mais que a doutrina esteja majoritariamente inclinada à
caracterização da Reclamação Constitucional como ação11, o Supremo

9 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre:
Sérgio Antônio Fabris Editor, 2000, p.32.
10 Para LEONARDO LINS MORATO (Reclamação e a sua Finalidade para Impor Respeito à Súmula

Vinculante. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JÚNIOR, Luiz
Manoel; FISHER, Octávio Campos; FERREIRA, William Santos (Coord.). Reforma do Judiciário:
Primeiros Ensaios Críticos sobre a EC nº 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.395-
396), “convém salientar que é com base na natureza jurídica que se pode aferir o regime jurídico
aplicável a um dado instituto, os pressupostos a que ele está sujeito, quais os seus limites de
abrangência, quais os efeitos que com ele e a partir dele podem ser produzidos e em que situações
se pode valer dele. Enfim, saber a natureza jurídica de um instituto é imprescindível não só para
estudá-lo, como também para identificá-lo e situá-lo no sistema”.
11 Nesse sentido: MORATO, Leonardo Lins. Reclamação e sua Aplicação para o Respeito da Súmula

Vinculante: De acordo com a EC nº 45/2004 e com a Lei 11.417/2006. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2007, p.109; A Reclamação Prevista na Constituição Federal. In: NERY JR., Nelson;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p.448; Reclamação e a sua Finalidade para Impor Respeito à Súmula
Vinculante. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim; WAMBIER, Luiz Rodrigues; GOMES JÚNIOR, Luiz
Manoel; FISHER, Octávio Campos e FERREIRA, William Santos (Coord.). Reforma do Judiciário:
Primeiros Ensaios Críticos sobre a EC nº 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.396;
PACHECO, José da Silva. A “Reclamação” no STF e no STJ de acordo com a Nova Constituição.
Revista dos Tribunais. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 78, v.646, p.30, ago., 1989; DANTAS,
Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Sérgio
Antônio Fabris Editor, 2000, p.459; Novidades em Reclamação Constitucional: seu uso para Impor
o Cumprimento de Súmula Vinculante. In: MEDINA, José Miguel Garcia; CRUZ, Luana Pedrosa de
Figueiredo; CERQUEIRA, Luis Otávio Sequeira de; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel (Coord.). Os Poderes
do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda
Alvim Wambier. 2.tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.1186; ASSIS, Araken de. Manual
dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p.838; Introdução aos Sucedâneos Recursais.
Revista Jurídica, Porto Alegre, v.310, p.11, nota de rodapé n.20, ago.2003; PACHÚ, Cláudia Oliveira.
Da reclamação perante o Supremo Tribunal Federal. Revista de direito constitucional e internacional,
v.14, n.55, p.234, abr.-jun., 2006; MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Reclamação. STF. Legitimação
Ativa. Atingidos por ADIn. Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 31, p.188,
dez.2006; CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Natureza Jurídica da Reclamação Constitucional.
In: NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos
recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais,

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Tribunal Federal, em duas oportunidades12, declarou o instituto como um


simples direito de petição da parte (artigo 5º, XXXIV, a, da CF/8813),
trazendo, como principal consequência prática, a permissão para os
tribunais estaduais, mediante licença da Constituição local, instituírem, em
seus Regimentos Internos, a Reclamação “Constitucional” de sua
competência, motivo pelo qual, nas próximas páginas, tentar-se-á levantar
algumas questões sobre o tema.
2 – SÍNTESE DOS FATOS E DA DECISÃO NA AÇÃO DIRETA DE
INCONSTITUCIONALIDADE Nº 2.212-1/CE
A decisão paradigma foi originada pela propositura da Ação Direta

2005, v.8, p.333; ALVIM, Eduardo Arruda. Do Cabimento de Reclamação pelo Descumprimento de
Súmula Vinculante à Luz da Lei nº 11.417/2006. Revista Forense. Rio de Janeiro: Forense, ano 103,
v.394, p.60, nov.-dez.2007; SILVA, Bruno Freire e. O Desrespeito à Súmula Vinculante e a
Reclamação Constitucional. In: MEDINA, José Miguel Garcia; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo;
CERQUEIRA, Luis Otávio Sequeira de; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel (Coord.). Os Poderes do Juiz e o
Controle das Decisões Judiciais: estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim
Wambier. 2.tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.1164; CRUZ, Luana Pedrosa de
Figueiredo. Reclamação Constitucional para Garantia de Autoridade de Decisão do STJ e a
Violação dos Deveres das Partes. In: MEDINA, José Miguel Garcia; CRUZ, Luana Pedrosa de
Figueiredo; CERQUEIRA, Luis Otávio Sequeira de; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel (Coord.). Os
Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: estudos em homenagem à Professora Teresa
Arruda Alvim Wambier. 2.tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.1168; KOZIKOSKI, Sandro
Marcelo. As Súmulas Vinculantes na Esteira da Lei 11.417/2006. In: MEDINA, José Miguel Garcia;
CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; CERQUEIRA, Luis Otávio Sequeira de; GOMES JUNIOR, Luiz
Manoel (Coord.). Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais: estudos em homenagem à
Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. 2.tir. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p. 1206;
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de
Direito Constitucional. 4.ed. rev. e atual. até a EC nº 57/2008. São Paulo: Saraiva, 2009, p.1345;
GÓES, Gisele Santos Fernandes. A Reclamação Constitucional. In: NERY JR., Nelson; WAMBIER,
Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros meios de
impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, v.8, p.130; ARAÚJO, José
Henrique Mouta. Reflexões que envolvem a nova hipótese de reclamação junto ao STF advinda
da EC nº 45. Repertório IOB de Jurisprudência: civil, processual penal e comercial, n.8, p.244,
2.quinz., abr.2005; ROSSI, Júlio César. Aspectos Processuais da Reclamação Constitucional. Revista
Dialética de Direito Processual, n.19, p.59, out.2004 – apenas com a ressalva, nos dois últimos, de
que a Reclamação Constitucional possui natureza híbrida, sendo uma ação com características de
sucedâneo recursal.
12 ADI 2212, Relatora: Min. Ellen Gracie, Tribunal Pleno, julgado em 02.10.2003, DJ 14.11.2003; ADI

2480, Relator: Min. Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 02.04.2007, DJe-037 DIVULG
14.06.2007 PUBLIC 15.06.2007 DJ 15.06.2007.
13 Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos

brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à


igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXXIV – são a todos
assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes
Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder; [...].

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de Inconstitucionalidade pelo Governador do Ceará, com escopo de


invalidar o art. 108, inciso VII, i, da Constituição Estadual e art. 21, inciso VI,
j, do Regimento Interno do Tribunal daquele Estado, que atribuíam
competência para processamento e julgamento da Reclamação
“Constitucional” no âmbito estadual, utilizando como fundamento a
impossibilidade de se incluir o instituto em comento em sua esfera – seja
pela afronta aos artigos 125, caput14, e 22, inciso I15, da Constituição Federal,
seja pela incapacidade de ampliação e aplicação da Reclamação
Constitucional pelos demais tribunais da federação, levando em
consideração que a Constituição Federal é taxativa nas hipóteses de
cabimento do instituto.
A Relatora do processo, Ministra Ellen Gracie, votou pela
improcedência dos pedidos, aduzindo, para tanto, em seu albor, que a
Reclamação Constitucional, no enfoque da Lex Legum de 1988, não é
“singelo instituto processual”, mas sim um desdobramento das atribuições
jurisdicionais conferido às cortes superiores, motivo pelo qual visa à
efetividade das decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal e pelo
Superior Tribunal de Justiça, assim como a imunização das suas
competências de quaisquer usurpações cometidas pelos demais órgãos do
Poder Judiciário.
Tal raciocínio, segundo a Relatora, deveria ser estendido ao âmbito
estadual, verificando que a natureza jurídica da reclamação, com base no
magistério de ADA PELLEGRINI GRINOVER, seria muito mais próxima ao
direito de petição do que, realmente, ao direito de ação, traduzindo-se em
uma verdadeira ferramenta em prol da efetividade das decisões judiciais,
razão pela qual, com base no artigo 125, caput e § 1º16, da Constituição de
1988, bem como pelo princípio da simetria, estariam autorizados os
tribunais de justiça da federação a utilizar tal instrumento.
Embora a ementa17 demonstre que o voto condutor da decisão foi o

14 Art. 125. Os Estados organizarão sua Justiça, observados os princípios estabelecidos nesta
Constituição.
15 Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal,

processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho; [...].


16 Art. 125, § 1º. A competência dos tribunais será definida na Constituição do Estado, sendo a lei de

organização judiciária de iniciativa do Tribunal de Justiça.


17 "Ação Direta de Inconstitucionalidade. Artigo 108, inciso VII, alínea l, da Constituição do Estado

do Ceará e art. 21, inciso VI, letra j, do Regimento do Tribunal de Justiça local. Previsão, no
âmbito estadual, do instituto da Reclamação. Instituto de natureza processual constitucional,
situado no âmbito do direito de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea a, da

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prolatado pela Ministra Relatora, ao qual, in hypothesi, aderiu a maioria dos


demais integrantes do Supremo, cumpre ressaltar que os fundamentos do
decisum demonstram uma ausência de pacificação sobre a natureza do
instituto em mote, até mesmo entre os votos que acompanharam a Relatora.
O então Ministro do STF Nelson Jobim em nenhum momento
concorda explicitamente com a premissa adotada pela Min. Ellen Gracie –
de que a Reclamação Constitucional seria um direito de petição da parte –,
chegando ao mesmo dispositivo que a Relatora pela motivação de que o art.
125 é uma exceção legítima ao artigo 22, inciso I. Já os Ministros Carlos
Velloso e Marco Aurélio acompanharam o voto da Relatora,
fundamentando, contudo, que o instituto em análise seria um mero
procedimento, e não um processo propriamente dito, razão pela qual, de
acordo com o artigo 24, inciso XI18, da CF/88, restaria possibilitada a
legislação pelos Estados-membros sobre a Reclamação “Constitucional”.
Para os Ministros Carlos Ayres Britto e Sepúlveda Pertence, o que
importaria para o deslinde do feito seria a interpretação do art. 125 da
Constituição Federal, colimando, seja pelo princípio da simetria, para o
primeiro, seja pela existência de poderes implícitos aos tribunais estaduais,
pelo segundo, no acompanhamento ao voto condutor do processo.
Em sentido contrário, fundamentando que as disposições do Estado
cearense violavam a proibição de legislar sobre matéria processual (art. 22,
I) e, ainda, mesmo que ultrapassado o primeiro argumento, não
encontravam guarida aos princípios que norteavam a organização das
justiças estaduais (art. 125), votaram os Ministros Moreira Alves, Sydney
Sanches e Maurício Corrêa.

Constituição Federal. Inexistência de ofensa ao art. 22, inciso I, da Carta. 1. A natureza jurídica da
reclamação não é a de um recurso, de uma ação e nem de um incidente processual. Situa-se ela no
âmbito do direito constitucional de petição previsto no artigo 5º, inciso XXXIV, da Constituição
Federal. Em consequência, a sua adoção pelo Estado-membro, pela via legislativa local, não
implica invasão da competência privativa da União para legislar sobre direito processual (art. 22,
I, da CF). 2. A reclamação constitui instrumento que, aplicado no âmbito dos Estados-membros,
tem como objetivo evitar, no caso de ofensa à autoridade de um julgado, o caminho tortuoso e
demorado dos recursos previstos na legislação processual, inegavelmente inconvenientes quando
já tem a parte uma decisão definitiva. Visa, também, à preservação da competência dos Tribunais
de Justiça estaduais, diante de eventual usurpação por parte de Juízo ou outro Tribunal local. 3. A
adoção desse instrumento pelos Estados-membros, além de estar em sintonia com o princípio da
simetria, está em consonância com o princípio da efetividade das decisões judiciais. 4. Ação direta
de inconstitucionalidade improcedente."
18 Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...]

XI – procedimentos em matéria processual; [...].

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3 – ANÁLISE CRÍTICA DA DECISÃO


Averiguando a direção adotada pelo Supremo Tribunal Federal sobre
o tema, apenas de maneira fragmentada, sem verificar outras recentes
decisões sobre o instituto em cotejo, poder-se-ia dizer que, mesmo não
concordando com o posicionamento adotado, a conclusão do julgamento se
mostra lógica pelas premissas adotadas.
Ora, verificando, e aceitando, que a natureza jurídica da Reclamação
Constitucional é mais bem enquadrada como um direito de petição dos
cidadãos – por mais que não haja um consenso expresso pela Corte
Suprema sobre a celeuma, mas partindo da proposição que lhe foi dada em
julgados posteriores19 –, nada mais natural que se possibilite a sua existência
e permissão de incidência junto aos tribunais estaduais, justamente para
garantia de suas respectivas competências e cogência de suas decisões.
Entretanto, ao mesmo tempo em que o Supremo declara, com certo
grau de imprecisão, a natureza jurídica do instituto, prolata,
paradoxalmente, uma enorme gama de decisões em total contraposição à
premissa anteriormente adotada como verdadeira. Como se não bastasse tal
fato, não se pode deixar de mencionar que a definição da Reclamação como
direito de petição do cidadão, per se, não obedece, data venia, à melhor

19 "Ação direta de inconstitucionalidade: dispositivo do Regimento Interno do Tribunal de Justiça


do Estado da Paraíba (art. 357), que admite e disciplina o processo e o julgamento de reclamação
para preservação da sua competência ou da autoridade de seus julgados: ausência de violação dos
artigos 125, caput e § 1º, e 22, I, da Constituição Federal. 1. O Supremo Tribunal Federal, ao julgar
a ADIn 2.212 (Pl. 02.10.03, Ellen, DJ 14.11.2003), alterou o entendimento – firmado em período
anterior à ordem constitucional vigente (v.g., Rp 1092, Pleno, Djaci Falcão, RTJ 112/504) – do
monopólio da reclamação pelo Supremo Tribunal Federal e assentou a adequação do instituto
com os preceitos da Constituição de 1988: de acordo com a sua natureza jurídica (situada no
âmbito do direito de petição previsto no art. 5º, XXIV, da Constituição Federal) e com os
princípios da simetria (art. 125, caput e § 1º) e da efetividade das decisões judiciais, é permitida a
previsão da reclamação na Constituição Estadual. 2. Questionada a constitucionalidade de norma
regimental, é desnecessário indagar se a colocação do instrumento na seara do direito de petição
dispensa, ou não, a sua previsão na Constituição estadual, dado que consta do texto da
Constituição do Estado da Paraíba a existência de cláusulas de poderes implícitos atribuídos ao
Tribunal de Justiça estadual para fazer valer os poderes explicitamente conferidos pela ordem
legal – ainda que por instrumento com nomenclatura diversa (Const. Est. (PB), art. 105, I, e e f). 3.
Inexistente a violação do § 1º do art. 125 da Constituição Federal: a reclamação paraibana não foi
criada com a norma regimental impugnada, a qual – na interpretação conferida pelo Tribunal de
Justiça do Estado à extensão dos seus poderes implícitos – possibilita a observância das normas
de processo e das garantias processuais das partes, como exige a primeira parte da alínea a do art.
96, I, da Constituição Federal. 4. Ação direta julgada improcedente" (ADI 2480, Relator: Min.
Sepúlveda Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 02.04.2007, DJe-037 DIVULG 14.06.2007 Public.
15.06.2007 DJ 15.06.2007 PP-00020 Ement. vol.-02280-01 pp.00165).

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solução para a realidade, como a partir de agora se passará a expor.


3.1 Incongruências Teóricas e Práticas
A primeira crítica que merece a decisão do Supremo Tribunal Federal,
a nosso sentir, é a indeterminabilidade da conceituação da Reclamação
Constitucional como mero direito de petição da parte, já que, a priori, a
fundamentação do julgado, no que tange à natureza jurídica do instituto,
data venia, padece de sérios defeitos, seja pelo seu distanciamento com a
práxis forense aplicada pelo próprio STF sobre o tema, seja pela vagueza
inerente à conceituação realizada – falar que qualquer instituto jurisdicional
é um direito de petição, sem explicar os motivos que conduzem a tal
conclusão, é a mesma coisa, mutatis mutandis, que conceder uma pretensão
processual qualquer com fulcro na violação ao princípio da dignidade da
pessoa humana, ou anular o processo pela afronta ao princípio do devido
processo legal, já que a generalidade inerente a tais conceitos impede a
verificação da lógica na aferição dos fundamentos reais do julgado.
Passada tal observação, não se pode deixar de mencionar que o
direito de petição, entre a doutrina processual, pouco ganhou destaque,
inexistindo, com raras exceções, obras que tratem especificamente sobre ele,
podendo-se afirmar que nem mesmo junto aos constitucionalistas o assunto
foi alvo de aguçadas discussões, sendo hoje “mais uma sobrevivência do
que uma realidade”20.
De maneira objetiva, pode-se resumir que o direito de petição é
considerado um meio de defesa não jurisdicional21, sendo um direito
fundamental de participação política22 do cidadão, “esencial en el Estado

20 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24.ed. rev. atual. nos termos da
Reforma Constitucional (até a Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, publicada em
31.12.2004). São Paulo: Malheiros, 2005, p. 443.
21 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed. Coimbra:

Almedina, 2001, p.498. Adotando esse posicionamento, também: MENDES, Gilmar Ferreira;
COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 4.ed.
rev. e atual. até a EC nº 57/2008. São Paulo: Saraiva, 2009, p.612; BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito
de Petição: Garantia Constitucional. São Paulo: Método, 2004, p. 81.
22 CONDE, Enrique Álvarez. Curso de Derecho Constitucional. El Estado Constitucional, el Sistema de

Fuentes, los Derechos y Liberdades. 2.ed. Madri: Tecnos, 1996, v.1, p.420. No mesmo sentido:
NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8.ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.135; BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de Petição: Garantia
Constitucional. São Paulo: Método, 2004, p.81. Em sentido contrário, entendendo que o direito de
petição é direito público, subjetivo e não político, da classe dos Direitos do Homem: PONTES DE
MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Com a Emenda Constitucional
nº 1, de 1969 (arts. 153, § 2º – 159). 2.ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971, t.V, p.633.

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democrático”23 de direito, impessoal – já que presente o interesse da


coletividade no cumprimento do ordenamento jurídico24 –, conceituado
como o “poder-se requerer, observar e reclamar contra autoridades, ou
denunciar abusos delas, mediante petição”25, para que tome as medidas
adequadas26, possuindo legitimidade ampla – já que o constituinte
oportunizou a todos o seu exercício27, independente de interesse direto na
questão –, caracterizando-se, também, pela informalidade na sua
interposição, inexistindo qualquer procedimento rígido para o seu
desenvolvimento28, podendo ser exercido até mesmo de ofício pelo poder
público, não restando a sua decisão ao abrigo da coisa julgada29.
Das breves notas expostas, já desponta a dificuldade de se manter a
coerência de caracterização da providência em questão como um direito de
petição da parte requerente, pois ausente a tipificação da práxis com os
elementos individualizadores desse direito. Ainda, não se pode deixar de
lado o fato de que a corrente atacada não analisa de maneira sistemática os
reflexos que tal posição gera junto ao ordenamento, acatando os
ensinamentos de EDUARDO COUTURE sem levar em consideração as
premissas por ele adotadas.
Esse autor aproximou o direito de ação ao direito constitucional de
representação30, concluindo que “[...] la acción constituye uma forma típica
del derecho constitucional de petición. Este es el género; la acción es la

23 ZARINI, Helio Juan. Derecho Constitucional. Buenos Aires: Editorial Astrea de Alfredo y Ricardo
Depalma, 1992, p. 401.
24 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8.ed. rev., atual. e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.135.


25 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários à Constituição de 1967. Com a Emenda

Constitucional nº 1, de 1969 (arts. 153, § 2º – 159). 2.ed. rev. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1971,
t.V, p.628.
26 MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 23.ed. atual. até a EC nº 56/07. São Paulo: Atlas,

2008, p.181.
27 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 24.ed. rev. e atual. nos termos da

Reforma Constitucional (até a Emenda Constitucional nº 45, de 08.12.2004, publicada em


31.12.2004). São Paulo: Malheiros, 2005, p.443; BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de Petição:
Garantia Constitucional. São Paulo: Método, 2004, p.125; MORAES, Alexandre de. Direito
Constitucional. 23.ed. atual. até a EC nº 56/07. São Paulo: Atlas, 2008, p. 181.
28 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8.ed. rev., atual e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.135.


29 CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Natureza Jurídica da Reclamação Constitucional. In: NERY

JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e
de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, v.8, p. 338.
30 GRINOVER, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Direito de Ação. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1973, p.64.

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especie”31, posição que mereceu aplausos à época de sua confecção pela


ligação entre o direito de ação e a sua visão constitucionalizada, assentando
“uma nova orientação”32 à doutrina existente. Entretanto, por mais que haja
seguidores na doutrina nacional desta corrente33, não se pode concordar
com os postulados do professor uruguaio.
Primeiro, pelo simples fato de que, a nosso sentir, o direito de ação e o
direito de petição são espécies de um mesmo gênero – ao contrário do que
concluiu COUTURE. Observa-se pelas características do direito de petição a
total discrepância entre os requisitos caracterizadores dos direitos ora
cotejados, diferentes tanto em sua essência quanto em seus objetivos34,
motivo pelo qual, compulsoriamente, não se poderá falar em subsequência
de ordem de classificação, já que as espécies devem se encaixar nas
características do gênero – o que, de maneira iniludível, o direito de ação
não faz no direito de petição.
Em segundo, como lembra MOZART VICTOR RUSSOMANO, pode ser
levantada a hipótese teratológica de que o acatamento da teoria de
COUTURE possibilitaria, de maneira divergente, que o Estado, como ser
estatal, exercesse o direito de petição contra si mesmo, nos casos, por
exemplo, de ações de desapropriação por interesse público35.
Por fim, a teoria do professor uruguaio baseia-se no fato de que o
direito de ação é um poder36 jurídico que permite ao interessado requerer do

31 COUTURE, Eduardo J. Estudios de Derecho Procesal Civil: La Constitución y el Proceso Civil. 2.ed.
Buenos Aires: Depalma, 1978, t.I, p.39.
32 GRINOVER, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Direito de Ação. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 1973, p.64.


33 Nesse sentido: GRINOVER, Ada Pellegrini. As Garantias Constitucionais do Direito de Ação. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 1973, p.76; A Reclamação para Garantia da Autoridade das Decisões dos
Tribunais. Revista Síntese de Direito Penal e Processual Penal, ano 1, n.2, p.16, jun.-jul.2000;
GRINOVER, Ada Pellegrini; GOMES FILHO, Antonio Magalhães; FERNANDES, Antonio Scarance.
Recursos no Processo Penal: Teoria Geral dos Recursos, Recursos em Espécie, Ações de
Impugnação, Reclamação aos Tribunais. 4.ed. rev., ampl. e atual. com a Reforma do Judiciário (EC
nº 45/2004). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005, p.432; BERMUDES, Sérgio. A Ação Judicial
como Espécie do Direito de Petição e a Independência do Poder Judiciário como Condição do
Exercício da Jurisdição. Revista Brasileira de Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, ano V, v.17,
p.112-113, 1.trim. 1979.
34 NERY JÚNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 8.ed. rev., atual e ampl.

São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.136.


35 RUSSOMANO, Mozart Víctor. Direito de Ação e Direito de Petição. Revista da Faculdade de Direito de

Pelotas. Porto Alegre: Imprensa Universitária, ano III, n.III, p.129-130, maio 1958.
36 COUTURE (Estudios de Derecho Procesal Civil: La Constitución y el Proceso Civil. 2.ed. Buenos Aires:

Depalma, 1978, t.I, p.31-32) assenta três pontos básicos para construção de sua teoria: “a) en el
estado de derecho, la violencia privada se transforma em petición ante la autoridad; b) esa

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órgão estatal a solução para o conflito de interesse surgido, face à proibição


da autotutela37, existente a todos os sujeitos de direito, independente de
possuir ou não razão no mérito do requerimento – o que não influi na
possibilidade de se responsabilizar o autor pelas consequências advindas de
sua demanda38 –, motivo pelo qual se poderia enquadrá-lo dentro do direito
de petição constitucionalmente garantido na maioria das Lex Legum39,
assumindo junto ao Poder Judiciário feição diversa aos demais poderes
públicos, pois “involucra a un tercero que se ve, así, aún contra su voluntad,
envuelto en la petición”40.
Tal conceituação, contudo, perde a lembrança de que a adoção
indiscriminada da ação como mero poder determina, como corolário lógico,
a função primordial do processo civil como meio de manutenção, apenas,
do ordenamento jurídico objetivo, em vez de instrumento de proteção dos
interesses individuais41 dos cidadãos, o que se mostra ultrapassado em face
das próprias proposições constitucionais tidas como pressupostos da teoria
de COUTURE, em clara contradição sistêmica, colimando na inconsistência,
data venia, da teoria do catedrático da Universidade de Montevidéu,
restando, a nosso sentir, complicado o enquadramento do direito de ação
dentro do direito de petição, já que a corrente em comento, seja em sua
gênese, seja em suas consequências recalcitradas de uniformidade
conceitual, apresenta problemas insustentáveis do ponto de vista teórico.
No que tange à aplicação prática da teoria, mormente em análise de
decisões e das disposições do próprio Regimento Interno do Supremo
Tribunal Federal (RISTF), repara-se que o vezo da Suprema Corte caminha

petición ante la autoridade constituye un poder jurídico del individuo, pero es el medio necesario
para obtener la prestación de la jurisdicción; c) el poder jurídico de acudir ante la autoridad no
puede ser quitado a nadie; prohibida la justicia por mano propria, es evidente que deve darse a
todo sujeto de derecho la facultad de obtenerlo por mano de la autoridad; privarle de una y otra,
seria negarle la justicia misma. Y si también existe acuerdo en cuanto a llamar a ese poder jurídico
acción civil, las ideas básicas para nuestra argumentación han sido sentadas”.
37 COUTURE. Op. cit., p.27-29.
38 COUTURE. Op. cit., p. 42-45.
39 COUTURE. Op. cit., p. 32-34.
40 COUTURE. Op. cit., p. 37.
41 RIBEIRO, Darci Guimarães. La Pretension Procesal y la Tutela Judicial Efectiva: Hacia una Teoría

Procesal del Derecho. Barcelona: Bosch, 2004, p.88. Para o Professor gaúcho: “Por lo tanto, si
determinado autor entiende que el proceso sirve para mantener el orden jurídico objetivo deberá,
por una cuestión de lógica, sustentar que la acción procesal es solamente un poder y no un
derecho. Por otra parte, si el autor entiende que el proceso sirve para la protección de los intereses
individuales, su conclusión, en este particular, será la de que la acción procesal es un derecho
subjetivo y no un poder”.

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em total incongruência à declaração da natureza jurídica da Reclamação


Constitucional como direito de petição, pois em diversos julgamentos
decidiu 1) pela impossibilidade de sua inserção, mediante Regimento
Interno tout court de algum tribunal42; 2) pela possibilidade de utilização do
princípio da fungibilidade43; 3) pela necessidade de capacidade postulatória
para sua distribuição44; 4) pela indispensabilidade de preenchimento das
condições da ação e dos pressupostos processuais45; 5) pela sujeição da

42 "Reclamação – Regência – Regimento Interno – Impropriedade. A criação de instrumento processual


mediante regimento interno discrepa da Constituição Federal. Considerações sobre a matéria e do
atropelo da dinâmica e organicidade próprias ao Direito" (RE 405031, Relator: Min. Marco
Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 15.10.2008, DJe-071 Divulg. 16.04.2009 Public. 17.04.2009,
Ement. vol.02356-06, p.01114).
43 "Reclamação. Impugnação de decisão interlocutória. Ato decisório que determinou retenção de

recurso extraordinário admitido na origem. Admissibilidade. Jurisprudência vacilante do STF,


que admite também ação cautelar. Princípio da fungibilidade. Medida conhecida. Contra retenção
de recurso extraordinário na origem, com apoio no art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil, é
admissível assim reclamação, como ação cautelar. 2. Recurso. Extraordinário. Interposição contra
decisão interlocutória. Retenção nos autos. Processamento imediato. Inadmissibilidade.
Inviabilidade manifesta do recurso, manejado contra decisão que indeferiu liminar. Reclamação
julgada improcedente. Precedentes. Agravo não provido. É inadmissível processamento imediato
de recurso extraordinário retido na forma do art. 542, § 3º, do Código de Processo Civil, quando
manifesta a inviabilidade jurídica do mesmo extraordinário" (Rcl 3268 AgR, Relator: Min. Cezar
Peluso, 1ª Turma, julgado em 09.05.2006, DJ 09.06.2006 p.00012 Ement. vol.02236-01, p.00119 RTJ,
v.200, p.1100).
44 "Capacidade Postulatória. Direito de Petição (art. 5º, inciso XXXIV, a, da Constituição). Representação do

Peticionário por Advogado (art. 133 da CF e art. 36 do Código de Processo Civil). 1. Não sendo advogado
o peticionário, não tem capacidade postulatória. 2. O exercício do direito de petição, junto aos
poderes públicos, de que trata o art. 5º, inciso XXXIV, a, da Constituição, não se confunde com o
de obter decisão judicial, a respeito de qualquer pretensão, pois, para esse fim, e imprescindível a
representação do peticionário por advogado (art. 133 da Constituição e art. 36 do Código de
Processo Civil). Agravo regimental não conhecido" (Pet 762 AgR, Relator: Min. Sydney Sanches,
Tribunal Pleno, julgado em 01.02.1994, DJ 08.04.1994 p.07240 Ement. vol.01739-03 p.00469). No
mesmo sentido: Pet 607 AgR, Relator: Min. Néri da Silveira, Tribunal Pleno, julgado em
26.08.1992, DJ 02.04.1993 p.05615 Ement. vol.01698-03 p.00578 RTJ vol.00146-01 p.00044; MS 21651
AgR, Relator: Min. Néri da Silveira, Tribunal Pleno, julgado em 05.05.1994, DJ 19.08.1994 p.20895
Ement. vol.01754-01 p.00009; Rcl 7902 MC, Relator: Min. Celso de Mello, julgado em 17.03.2009,
publicado em DJe-055 Divulg. 23.03.2009 Public. 24.03.2009.
45 "Agravo regimental: devolução plena: possibilidade de declaração da ilegitimidade da agravante. O agravo

contra decisão do relator em processo de competência originária do STF, qual a que nega liminar
em reclamação, é recurso ordinário de devolução plena: pode, assim, o Plenário – sem incidir em
reformatio in pejus – examinar de ofício pressupostos processuais e as condições da ação e, sendo o
caso da ausência de uns ou de outros, extinguir o processo (CPC, art. 267, IV e VI, e § 3º). II.
Reclamação: ilegitimidade de quem não foi nem poderia ter sido parte em ação direta de
inconstitucionalidade para ajuizar reclamação fundada em desrespeito ao acórdão que nela se
haja proferido" (Rcl 707 AgR, Relator: Min. Marco Aurélio, Relator p/Acórdão: Min. Sepúlveda
Pertence, Tribunal Pleno, julgado em 17.12.1997, DJ 20.03.1998 p.00012 Ement. vol.01903-01
p.00127). De maneira uníssona: "Direito Processual. Agravo Regimental em Reclamação. Falta de

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decisão proferida à coisa julgada, com cabimento, portanto, da ação


rescisória46; 6) pela cobrança de custas para sua distribuição47; 7) pela
inevitável participação do Ministério Público48; e 8) pelos reflexos diretos em
processos jurisdicionais49.
É de se observar, portanto, que o Supremo declarou a natureza da
Reclamação como direito de petição da parte, estendendo a ela, na prática,
paradoxalmente, todas as consequências naturais do direito de ação, em
total afronta à lógica racional.
O que se quer demonstrar, na verdade, no presente artigo, olvidando-
se da corrente a qual se julga mais adequada à solução de determinada
controvérsia, é a necessidade de se manter uma postura coerente com as
inferências naturais que tal posição espacial gera, sob pena de sempre, por
comodidade, concluir o Supremo em escolhas que facilitam a obstrução de
análise das demandas postas a sua apreciação, oscilando em questões
ascendentes a determinada matéria, que deveriam guardar adequação com
as premissas adotadas na solução da questão primária, semeando
insegurança junto ao ordenamento.
Sancionando que a Reclamação Constitucional constitui mero
exercício do direito de petição – apesar de essa não formar, segundo nossa
concepção, a melhor orientação para o caso concreto, já que patente o
caráter de ação do instituto –, deveria o Supremo acatar todas as
Reclamações formuladas pelos requerentes, sendo, ou não, advogados, sem

Interesse Processual. Pena Privativa de Liberdade Extinta. Improvimento. 1. Agravo regimental foi
interposto contra decisão monocrática que considerou não haver interesse processual na
reclamação. 2. Ausência de interesse processual diante da prévia declaração de extinção da pena
privativa de liberdade cumprida pelo condenado em razão da prática do crime de roubo
qualificado (CP, art. 157, § 2°, I e II). 3. Agravo regimental improvido" (Rcl 4743 AgR, Relator:
Min. Ellen Gracie, 2ª Turma, julgado em 02.09.2008, DJe-182 Divulg. 25.09.2008 Public. 26.09.2008
Ement. vol.02334-01 p.00210).
46 "Direito Constitucional e Processual Civil. Reclamação: Garantia à Autoridade de Decisão do STF (art.

102, i, l, da Constituição Federal e art. 156 do RISTF). Coisa Julgada. 1. Havendo sido julgada
improcedente a Reclamação anterior, sem que os Reclamantes, no prazo legal, propusessem a
Ação Rescisória, em tese cabível (art. 485, incisos VI e IX, do Código de Processo Civil) e na qual,
ademais, nem se prescindiria de produção das provas neles exigidas e aqui não apresentadas, não
podem pretender, com alegações dessa ordem, pleitear novo julgamento da mesma Reclamação,
em face do obstáculo da coisa julgada. 2. Agravo Regimental improvido pelo Plenário do STF.
Decisão unânime" (Rcl 532 AgR, Relator: Min. Sydney Sanches, Tribunal Pleno, julgado em
01.08.1996, DJ 20.09.1996, p.34541 Ement. vol.01842-01 p.00054).
47 Artigos 57, 59, II, c.c. item VI da Tabela B, todos do RISTF.
48 Artigos 52, XIV, e 160 do RISTF e artigo 16 da Lei nº 8.038/90.
49 Artigos 158 e 161, I, II e III, do RISTF e artigos 14, II, e 17 da Lei nº 8.038/90.

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analisar quaisquer requisitos quanto à forma e ao conteúdo, sem a cobrança


de custas e participação de terceiros, permitindo a sua criação para todos os
tribunais da Federação – inclusive Tribunais Regionais Federais e Tribunal
Superior do Trabalho. Ainda assim, ficaria em aberto – tornando-se o maior
problema de caracterização do instituto como direito de petição – a
necessidade de explicação teórica sobre como uma medida não jurisdicional
poderia cassar, alterar, modificar ou sobrestar uma decisão judicial,
provocando o exercício da jurisdição, “[...] sendo absurdo pensar em
medidas puramente administrativas capazes de banir a eficácia de atos de
exercício da jurisdição”50, resposta que a jurisprudência da Suprema Corte,
em decisões que ainda estão por vir, deverá solucionar.
4 – CONCLUSÕES
A Reclamação Constitucional é um instrumento vital para
manutenção da ordem do sistema jurídico51, determinando o respeito às
decisões e a competência dos órgãos de cúpula do Poder Judiciário nacional
– devendo ter seu cabimento restrito a estes (outra não pode ser a leitura da
teoria dos poderes implícitos, sobre a qual se alicerça a providência em
mote).
Tem natureza jurídica de ação, possuindo os três elementos
individualizadores legais (partes, pedido e causa de pedir)52, apesar do
posicionamento exarado pela Corte Suprema, que declarando o instituto
como exercício do direito de petição, esculpido no art. 5º, inciso XXXIV, a,
da Constituição Federal de 1988, realiza, em contraposição, uma série de
exigências técnicas que confirmam a primeira afirmação.
Por mais que não se possa deixar de saudar os esforços e as evoluções
trazidas à doutrina processual por COUTURE, não se admite que o direito de
ação seja uma espécie do direito de petição, pois ambos são integrantes de
um mesmo gênero, possuindo características e objetivos distintos.
Respeita-se, mas não se concorda, com a decisão proferida na ADIn

50 DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reclamação no Processo Civil Brasileiro. In: NERY JR., Nelson;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e de outros
meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, v.6, p.102.
51 MORATO, Leonardo Lins. A Reclamação Constitucional e a sua Importância para o Estado

Democrático de Direito. Revista de Direito Constitucional e Internacional, v.13, n.51, p.184, abr.-
jun.2005.
52 DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre:

Sérgio Antônio Fabris Editor, 2000, p.460.

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2.212-1/CE, merecendo críticas, cardinalmente, o caminho trilhado pela


Corte Suprema face à incompatibilidade com que aborda o instituto,
elidindo o novo paradigma encontrado quando em cotejo com as demais
decisões da Casa, permitindo o nascimento de uma figura que é uma coisa
(direito de petição), mas tem todas as características de outra (direito de
ação), transformando a Reclamação Constitucional – idílio de todos os
tribunais da federação – em um amálgama, trazendo ambiguidades que
induzirão premissas equivocadas para a evolução e o desenvolvimento
natural do instituto em um futuro próximo.
5 – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALVIM, Eduardo Arruda. Do Cabimento de Reclamação pelo Descumprimento de
Súmula Vinculante à Luz da Lei nº 11.417/2006. Revista Forense. Rio de Janeiro:
Forense, ano 103, v.394, p.45-69, nov.-dez. 2007.
ARAÚJO, José Henrique Mouta. Reflexões que envolvem a nova hipótese de reclamação
junto ao STF advinda da EC nº 45. Repertório IOB de Jurisprudência: civil, processual
penal e comercial, n.8, p.241-246, 2.quinz. abr. 2005.
ASSIS, Araken de. Introdução aos Sucedâneos Recursais. Revista Jurídica, Porto Alegre,
v.310, p.7-37, ago. 2003.
__________. Manual dos Recursos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.
BERMUDES, Sérgio. A Ação Judicial como Espécie do Direito de Petição e a Independência
do Poder Judiciário como Condição do Exercício da Jurisdição. Revista Brasileira de
Direito Processual. Rio de Janeiro: Forense, ano V, v.17, p.103-116, 1.trim. 1979.
BONIFÁCIO, Artur Cortez. Direito de Petição: Garantia Constitucional. São Paulo: Método,
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CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 4.ed.
Coimbra: Almedina, 2001.
CONDE, Enrique Álvarez. Curso de Derecho Constitucional. El Estado Constitucional, el
Sistema de Fuentes, los Derechos y Liberdades. 2.ed. Madri: Tecnos, 1996, v.1.
COUTURE, Eduardo J. Estudios de Derecho Procesal Civil: La Constitución y el Proceso Civil.
2.ed. Buenos Aires: Depalma, 1978, t.I.
CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo. Reclamação Constitucional para Garantia de
Autoridade de Decisão do STJ e a Violação dos Deveres das Partes. In: MEDINA, José
Miguel Garcia; CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; CERQUEIRA, Luis Otávio Sequeira
de; GOMES JUNIOR, Luiz Manoel (Coord.). Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões
Judiciais: estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. 2.tir.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008, p.1168-1173.
CUNHA, Leonardo José Carneiro da. Natureza Jurídica da Reclamação Constitucional. In:
NERY JR., Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais
dos recursos cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2005, v.8, p.325-341.

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DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro. Novidades em Reclamação Constitucional: seu uso


para Impor o Cumprimento de Súmula Vinculante. In: MEDINA, José Miguel Garcia;
CRUZ, Luana Pedrosa de Figueiredo; CERQUEIRA, Luis Otávio Sequeira de; GOMES
JUNIOR, Luiz Manoel (Coord.). Os Poderes do Juiz e o Controle das Decisões Judiciais:
estudos em homenagem à Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. 2.tir. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008, p.1174-1187.
______. Reclamação Constitucional no Direito Brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris
Editor, 2000.
DINAMARCO, Cândido Rangel. A Reclamação no Processo Civil Brasileiro. In: NERY JR.,
Nelson; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos
cíveis e de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos
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GÓES, Gisele Santos Fernandes. A Reclamação Constitucional. In: NERY JR., Nelson;
WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.). Aspectos polêmicos e atuais dos recursos cíveis e
de outros meios de impugnação às decisões judiciais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005,
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SUCESSÃO LEGÍTIMA DO
CÔNJUGE E DO COMPANHEIRO
HETEROSSEXUAL: APONTAMENTOS
DAS CONTROVÉRSIAS DO SISTEMA
J ESUALDO E DUARDO DE A LMEIDA J ÚNIOR *
G ISELE C AVERSAN B ELTRAMI **

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Evolução histórica dos direitos


sucessórios do cônjuge e do companheiro; 2.1 Apontamentos
iniciais; 2.2 Abordagem histórica no Brasil: considerações gerais;
2.2.1 Das Ordenações Filipinas ao Código Civil; 2.2.2 Código
Beviláqua; 2.2.3 Novo Código Civil e Constituição Federal de
1988; 3 – Sucessão legítima do cônjuge no Código Civil de 2002;
3.1 Considerações prévias; 3.2 Da ordem de vocação hereditária;
3.3 Meação e herança do cônjuge sobrevivente; 3.3.1
Considerações introdutórias; 3.3.2 Regime de comunhão
universal; 3.3.3 Regime de separação obrigatória de bens; 3.3.4
Regime de comunhão parcial de bens com ausência de bens
particulares; 3.3.5 Regime de comunhão parcial de bens com
bens particulares do de cujus; 3.3.6 Regime de comunhão parcial
de bens: concorrência entre cônjuge e descendentes; 3.3.7
Concorrência: cônjuge x ascendente; 3.3.8 Regime de separação
convencional de bens; 3.4 Quadro 01 – Quotas do cônjuge em
todas as possibilidades de concorrência; 4 – Da sucessão legítima
do companheiro no Código Civil de 2002; 4.1 Considerações
gerais; 4.2 Direito sucessório do companheiro; 4.3 Companheiro

* Advogado, sócio do Escritório Zanoti e Almeida Advogados Associados. Doutorando pela


Universidade Del Museo Social, de Buenos Aires. Mestre em Sistema Constitucional de Garantia
de Direitos. Pós-Graduado em Direito Contratual. Pós-Graduado em Direito das Relações Sociais.
Professor de Direito Civil. e Coordenador da Pós-Graduação da Associação Educacional Toledo
(Presidente Prudente/SP). Professor da FEMA/IMESA (Assis/SP), do curso de Pós-Graduação da
Universidade Estadual de Londrina – UEL, da PUC/PR, da Escola Superior da Advocacia, da
Escola da Magistratura do Trabalho do Paraná. É autor de diversos livros e artigos.
** Advogada. Pós-graduada em Direito Civil e Processual Civil pela Associação Educacional Toledo
de Ensino de Presidente Prudente/SP.

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concorrendo com descendentes comuns; 4.4 Companheiro


concorrendo com descendentes exclusivos do autor da herança;
4.5 Hipótese híbrida de descendentes; 4.6 Concorrência com
outros parentes sucessíveis; 4.7 Ausência de qualquer parente
sucessível; 4.8 Panorama do art. 1.790 do Código Civil; 4.9
Quadro 02 – Possibilidades de concorrência do companheiro no
Código Civil de 2002; 5 – Direito real de habitação e usufruto
vidual; 5.1. Direito real de habitação: considerações gerais; 5.2 Da
exclusividade do imóvel residencial; 5.3 Direito real de habitação
do companheiro; 5.4 Usufruto vidual; 6 – Análise comparativa
dos direitos sucessórios do cônjuge frente ao companheiro; 6.1
Comparativo em relação aos descendentes comuns; 6.2
Comparativo com descendentes exclusivos do autor da herança
e hipótese híbrida; 6.3 Comparativo em relação ao ascendente;
6.4 Tendências; 7 – Considerações finais; Referências
bibliográficas.

Resumo: Enfoca-se sucessão legítima do cônjuge e do


companheiro. Foi elaborada uma análise comparativa entre os
direitos sucessórios de cada um deles e delineou-se a sucessão
legítima, inclusive as hipóteses de concorrência e as respectivas
quotas a que terão direito cônjuge e companheiro frente à morte
de quem com ele dividiu a vida. Destacou-se a origem da
sucessão legítima na legislação pátria. Houve espaço para
esclarecimentos acerca da terminologia própria usada no campo
do direito sucessório. Abordaram-se o direito real de habitação e
o usufruto real, suas aplicações, revogação e aspectos
controvertidos. Fez-se, ao fim, uma análise das controvérsias do
sistema e a violação ao princípio da igualdade, já que cônjuges e
companheiros não apresentam tratamentos isonômicos. Em
situações iguais, tivemos proteção diferente para cada um deles.
Diante disso, analisaram-se as propostas de harmonização de
nosso ordenamento jurídico neste dado aspecto. O trabalho
seguiu uma linha didática utilizando-se de quadros tendentes a
melhor esclarecer os operadores do direito frente a um assunto
tão delicado e complexo. Declinaram-se as propostas de
mudanças já existentes e tendentes a respeitar o princípio da
igualdade.

Palavras-chave: Sucessão legítima. Cônjuge e companheiro.


Violação ao princípio da igualdade. Direito real de habitação e
usufruto vidual. Necessidade de harmonização do sistema.

Abstract: A monograph on the screen gave focus to the


succession of the legitimate spouse and companion. It developed

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a comparative analysis between the inheritance of each. This


paper outlined the legal succession, including the chances of
competition and its shares will be entitled to husband and
partner facing death with whom he shared a life. We highlight
the origin of the legitimate succession in Brazilian legislation. We
had room for clarification about the terminology as used in the
field of inheritance law. We entered the real right to housing and
real enjoyment, its application, revocation and controversial
aspects. We conclude that there is controversy in the system and
that this leads to violation of the principle of equality, as spouses
and partners do not have isonomic treatments. In situations like
we had different protection to each of them. Given this, we
analyzed the proposals for harmonization of our legal system in
this particular aspect. The work followed an online teaching
using frameworks designed to better inform the operators of the
right front of a subject as delicate and complex. For over a quick
already be clear theme so nebulous. We declined the proposals
for changes that already exist and are respectful of the principle
of equality, while also stable, the institute has found a family
entity in the Federal Constitution of 1988.

Keywords: Succession of law. Conjuge fellow. Violation of the


principle of equality. Right to housing and real enjoyment
vidual. Need to standardize the system.

1 – INTRODUÇÃO
Este trabalho foi realizado com o objetivo de proporcionar uma
análise geral e didática do Direito das Sucessões.
Deu-se enfoque para uma forma simplificada e de esquemas práticos
que visaram a uma consulta esclarecedora, sem esquecer-se das principais
correntes doutrinárias e sugestões que visam à melhoria nas previsões
legislativas sucessórias.
A palavra sucessão significa “transmissão do patrimônio dum finado
a seus herdeiros ou legatário”. E o artigo gravitou em torno da sucessão do
cônjuge comparando-a com a sucessão do companheiro. Ademais, fez-se
um apanhado acerca da abordagem histórica e demarcaram-se as inovações
legislativas ao longo do tempo.
Por fim, traçou-se uma análise entre a sucessão do cônjuge e do
companheiro em cada uma das hipóteses de concorrência com descendentes
comuns, com descendentes exclusivos do falecido, na hipótese híbrida e

61
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com os ascendentes.
Usou-se a fonte doutrinária e jurisprudencial através de pesquisas em
livros e via eletrônica, mediante sites consagrados.
De um modo geral, utilizou-se de tese argumentativa, analisando-se
dados históricos através da colheita em pesquisa bibliográfica, com
predominância do raciocínio indutivo.
2 – EVOLUÇÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CÔNJUGE E
DO COMPANHEIRO

2.1 Apontamentos Iniciais


A morte, como fato jurídico natural ordinário, produz vários efeitos
na seara jurídica, entre os quais a extinção da personalidade civil, do poder
familiar, das obrigações personalíssimas, a dissolução do vínculo
matrimonial, etc. Mas o efeito que mais nos interessa é a abertura da
sucessão.
Não se descuide de que há juridicamente duas possíveis espécies de
morte, a saber: a) morte real; b) morte presumida.
A morte real que é aquela que ocorre com a cessação das atividades
cerebrais do sujeito e se comprova com a certidão de óbito.
Por outro lado, a morte presumida é aquela que não é passível de ser
comprovada mediante atestado de óbito pela ausência do vestígio material;
porém, pelas evidências, há alta probabilidade de ter ocorrido.
Prevista no art. 7º do Código Civil, é possível sua decretação judicial
quando for extremamente provável a morte de quem estava em perigo de
vida; ou se alguém, desaparecido em campanha ou feito prisioneiro, não for
encontrado até dois anos após o término da guerra.
A declaração da morte presumida, nesses casos, somente poderá ser
requerida depois de esgotadas as buscas e averiguações, devendo a
sentença fixar a data provável do falecimento. (Código Civil, art. 7º,
parágrafo único).
Existe ainda a morte civil ou ficta, que é tratar um individuo como se
morto juridicamente estivesse, conquanto esteja vivo biologicamente. Essa
se dava, por exemplo, quando alguém era feito escravo e deixava de ser
sujeito de direitos, embora vivo estivesse. Ainda que abolida dos
ordenamentos jurídicos modernos, há quem defenda que deixou resquícios

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em nosso sistema através de institutos como a indignidade (exclusão da


sucessão) e a deserdação1.
Pelo nosso sistema, aberta a sucessão, os bens do de cujus serão
imediatamente transferidos aos seus herdeiros, ao que se usou chamar de
princípio da saisine (droit de saisine). Deste modo, a teor do art. 1.7842 do
Código Civil, falecido alguém, a posse e a propriedade dos seus bens são
incontinenti transferidos aos herdeiros. Nas palavras de NICOLAU (2005, p.
13):
“O princípio consagra a salutar ideia de que não há patrimônio
sem titular. Deste modo, assim que ocorre o evento morte, os
herdeiros já são – para a lei – proprietários e possuidores do
patrimônio do falecido, ainda que ignorem o óbito.”
Em seguida, o autor explica que a saisine teve origem na Idade Média
como meio de frear os abusos dos senhores feudais, que com a morte do
vassalo retomavam a posse da terra e somente devolviam à família do de
cujus se lhes pagassem uma taxa.
No entanto, a saisine não é um princípio absoluto, uma vez que
quando se tratar de bens fungíveis será necessária a partilha para a
transferência da propriedade aos sucessores.
A herança, ou acervo hereditário, nada mais é do que o conjunto de
bens deixados pelo falecido ou de cujus3, também denominado de autor da
herança. Se o sucessor ficar com a totalidade do patrimônio ou uma fração
ideal dele, estamos diante da sucessão universal e o sucessor será
denominado de herdeiro. Mas se ocorrer a sub-rogação de bens
individualizados, eis a figura do sucessor a título singular. E se essa
sucessão a título singular der-se através de um testamento, ter-se-á o
legatário.
A sucessão legítima é aquela que deriva da lei. Neste aspecto, se o
autor da herança não houver deixado testamento ou ato de última vontade

1 Particularmente discordamos desta posição, pois, a nosso sentir, tanto a exclusão da sucessão
quanto a deserdação são apenas limitações circunstanciais de benefícios hereditários, sequer
absolutos, e que em nada têm de morte civil, posto que o indivíduo continua titular de todos os
demais direitos que lhe sejam pertinentes.
2 Art. 1.784. Aberta a sucessão, a herança transmite-se, desde logo, aos herdeiros legítimos e
testamentários.
3 Essa expressão deriva do latim e é uma abreviação da frase “de cujus sucessione agitur”, que, numa
tradução livre, significa “aquele de cuja sucessão se trata”.

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escrito, a lei considera que está satisfeito e aceita as regras sucessórias por
ela impostas e previstas no art. 1.829 do Código Civil, que traz a seguinte
ordem:
“Art. 1.829. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge
sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da
comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art.
1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o
autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.”4
De outro lado, a sucessão testamentária deriva de uma declaração de
última vontade do autor da herança. Essa declaração de última vontade é
materializada por um documento chamado testamento ou codicilo, pela qual
o autor da herança estipula quem serão seus herdeiros, o que receberão,
desde que, evidentemente, respeitada a legítima se houver herdeiros
necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge).
Ressalte-se que o codicilo é usado para disposição sobre bens de
pequena monta.
A partilha seria uma divisão dos bens entre os herdeiros. Nela se
determina o quinhão que caberá a cada um deles. Acontece de dois modos
distintos: por escritura pública, quando amigável e não houver herdeiros
incapazes; ou judicial, nos autos de um inventário.
O inventário é um processo judicial onde se opera o arrolamento de
todos os bens deixados pelo de cujus. Nos autos do inventário, tem-se a
arrecadação, descrição e avaliação desses bens para que ocorra, em seguida,
a partilha, após o pagamento dos tributos de transmissão. Será no
inventário que se dará a constituição do título de herdeiro.
De grande importância para nossa temática é a elementar diferença
entre meação e sucessão.

4 Caso não haja herdeiros, ter-se-á a herança jacente e a herança vacante. A diferenciação entre elas
se dá apenas no aspecto do momento de cada uma. A herança vacante ocorre um ano após a
publicação do primeiro edital de ser considerada a herança jacente, ou seja, sem herdeiros. A
vacância tem a finalidade de transferir os bens ao Município.

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A sucessão dá-se por direito de transmissão; a meação, contudo, é o


direito específico do cônjuge, direito que lhe garante mear, vale dizer,
receber metade do patrimônio que juntos conquistaram durante a comunhão
de suas vidas, dependendo, evidentemente, do regime de bens.
Postas estas primeiras terminologias, cabe uma singela abordagem
histórica de nosso tema.
2.2 Abordagem Histórica no Brasil: Considerações Gerais
A ideia de família como grupo societário vem de muito e remonta aos
primórdios da civilização dita moderna. No entanto, a abordagem do
Direito de Família é bem mais recente, sobretudo no Brasil, país com
história ainda muito vizinha do hodierno.
2.2.1 Das Ordenações Filipinas ao Código Civil
O primeiro tratamento legal acerca do Direito Sucessório se deu com
as Ordenações do Reino. Nesse período, o Brasil era colônia de Portugal,
cuja legislação aplicava-se automaticamente em terras nacionais.
Basicamente, neste período a metrópole experimentou três Ordenações
do Reino, quais sejam: a) Ordenações Afonsinas (1446-1512); b) Ordenações
Manuelinas (1512-1603); Ordenações Filipinas (a partir de 1603).
Em especial as Ordenações Filipinas dispuseram diretamente acerca do
Direito Sucessório. As outras duas ordenações, haja vista serem de período
de pouca colonização, serão desprezadas neste estudo.
As Ordenações Filipinas, diploma que tratou explicitamente do
Direito Sucessório, vigorou de 1603 a 1830. Foi o diploma legal mais
duradouro desde então.
O referido diploma continha cinco Livros, entre os quais o de nº IV
trazia disposições referentes à sucessão.
Havia previsões tais como deserdação, exclusão da herança e ordem
de vocação hereditária, com disposições sobre filhos legítimos e ilegítimos
de nobres e peões, que era o critério classificador da classe social da época.
Havia também disposições quanto à sucessão entre marido e mulher.
E a orientação era no sentido de que se um dos dois falecesse sem deixar
testamento, o cônjuge sobrevivente seria herdeiro universal do de cujus, mas
sob a condição de que não existisse parentes até o 10º grau com direito de
herdar.

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Note-se que o tratamento dado ao cônjuge era flagrantemente injusto,


pois aquele que partilhou não apenas os bens mas também a própria vida
com o outro ficava subjugado por parentes até o 10º grau.
Em 1847, já com o Brasil independente, surge a lei, consolidada por
TEIXEIRA DE FREITAS, que alterou a ordem de vocação hereditária prevista
nas Ordenações Filipinas. Essa alteração foi no sentido de incluir os
descendentes na primeira classe de sucessão, além de citar os filhos
legítimos e os ilegítimos que entrariam na sucessão. Outra alteração foi
acerca dos filhos que ficariam fora da ordem de vocação hereditária, os
chamados de danado coito, oriundos de sacrilégios, incestos e adultério.
Porém, nada dispôs sobre a sucessão dos cônjuges.
Coube à cognominada Lei Feliciano Pena (Decreto 1.839, de
31.12.1907) colocar o cônjuge na terceira posição na linha sucessória,
passando, portanto, na frente dos colaterais. Essa lei ainda limitou a herança
dos colaterais até o 6º grau e não mais até o 10º grau, como ocorria na
redação originária das Ordenações Filipinas. Ademais, reduziu a legítima
da fração de dois terços para metade dos bens do de cujus.
Porém, o grande tratamento sobre o Direito Sucessório adveio com o
Código Civil brasileiro de 1916.
2.2.2 Código Beviláqua
O Código Civil de 1916, elaborado por CLÓVIS BEVILÁQUA,
apresentava a seguinte estrutura: Parte Geral; Parte Especial, esta composta
por cinco livros, entre estes o Livro IV, Direito das Sucessões.
O Livro IV, por sua vez, era composto por quatro títulos, cujo
primeiro era Da Sucessão em Geral, seguido por Da Sucessão Legítima, Da
Sucessão Testamentária e finalizado pelo quarto título, denominado de Do
Inventário e Partilha.
A ideia basilar era a sucessão por classe e dentro de cada classe o grau
mais próximo excluía o mais remoto.
Embora previsse o respeito à legítima como salvaguarda dos
herdeiros necessários, os cônjuges não foram classificados como tais. Via de
consequência, o cônjuge sobrevivente podia ser privado integralmente da
herança se assim fosse a declaração de última vontade de seu finado
consorte.
Ademais, assim se deu a ordem de vocação hereditária:

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I. descendentes;
II. ascendentes;
III. cônjuge;
IV. colaterais;
V. Município, Distrito Federal e União.
Veja que o cônjuge figurava na terceira posição da linha sucessória e
sem concorrência, com a possibilidade de ser alijado da legítima por
testamento.
A partir do Estatuto da Mulher Casada (Lei 4.121/62), coube-lhe o
chamado usufruto vidual instituído em favor da viúva casada em regime que
não o da comunhão, que se tornaria usufrutuária de ¼ dos bens deixados
pelo de cujus aos descendentes, ou ½ dos bens devidos aos ascendentes,
mantendo-se, contudo, a propriedade para os herdeiros.
Já se o regime de bens escolhido fosse o da comunhão universal, ter-
se-ia apenas o direito real de habitação, que previa que o cônjuge
sobrevivente tinha o direito de continuar a residir na residência que dividia
com o de cujus.
Porém, não havia nenhuma proteção ao direito sucessório dos
companheiros. Ao contrário, restringiam-se seus direitos. Por exemplo:
“Art. 1.177, Código Civil de 1916 – A doação do cônjuge
adúltero ao seu cúmplice pode ser anulada pelo outro cônjuge, ou
por seus herdeiros necessários, até 2 (dois) anos depois de
dissolvida a sociedade conjugal.
(...)
Art. 1.719, Código Civil de 1916 – Não podem também ser
nomeados herdeiros, nem legatários:
(...)
III – a concubina do testador casado; (...).”
Em linhas gerais, o Código Civil Beviláqua privava o(a)
companheiro(a) da sucessão e restringia a herança do cônjuge.
2.2.3 Novo Código Civil e Constituição Federal de 1988
PAULO LUIZ NETTO LÔBO afirma que o fenômeno de
constitucionalização do Direito Civil trouxe modificações profundas na

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atitude dos operadores do direito: “Deve o jurista interpretar o Código Civil


segundo a Constituição e não a Constituição segundo o Código”5.
Percebe-se, dessa forma, que sem a observação das categorias
fundamentais da Constituição, a interpretação das leis civis referentes ao
Direito de Família e Sucessão desvia-se de seu real significado.
Neste sentido, hoje se reclama uma releitura do Direito de Família. Os
seus principais primados não estão apenas no Código Civil, mas sobretudo
na Carta Magna.
Deste modo, o intérprete deverá dar à Lei 10.406/02 uma interpretação
constitucional, lembrando-se sempre que é a própria Constituição que traz os
principais apontamentos em seara de Direito de Família, para somente
depois perquirir os ditames do Código Civil.
Além disso, a nova família, na visão de EDUARDO DE OLIVEIRA LEITE6,
“é estruturada nas relações de autenticidade, afeto, amor, diálogo e
igualdade, que em nada se confunde com o modelo tradicional, quase
sempre próximo da hipocrisia, da falsidade institucionalizada, do
fingimento. (...) É o início de uma nova era, prenunciando a alvorada de
novos tempos, onde dominará soberano, acima das leis e das religiões,
apenas o Amor”. O respeito mútuo, o carinho, o amor, enfim, a afetividade e
seus desdobramentos são a essência de uma família.
SÉRGIO REZENDE DE BARROS7, no mesmo pensar, sustenta que “o afeto
é o que conjuga”. Deveras, a nova ordem familiar é pautada pelo afeto,
muito mais do que pelas normas jurídicas.
MARCOS COLARES8 prega que “quando o amor acontece pode caber ao
Direito, na maioria dos casos, apenas homologá-lo através de institutos
competentes (casamento e união estável)”.
Ainda, conforme PAULO LUIZ NETTO LÔBO, a afetividade é a base
familiar9:

5 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil, p. 100.


6 LEITE, Eduardo de Oliveira, Tratado de Direito de família: origem e evolução do casamento. Curitiba:
Juruá, 1991, p.367 e 369
7 A ideologia do afeto. Revista Brasileira de Direito de Família. Porto Alegre: Síntese/IBDFAM, n.14,

p.09, jul.-ago. 2002.


8 Quando o meu bem dá lugar ao “meus bens”. Revista brasileira de direito de família. Porto Alegre:

Síntese/IBDFAM, n.9, p.12, abr.-jun. 2001.


9 Entidades familiares constitucionalizadas. Congresso Brasileiro de Direito de Família, 3, 2001,

Ouro Preto. Anais do III Congresso. Belo Horizonte: IBDFAM, 2002, p.38.

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“A afetividade é construção cultural que se dá na convivência,


sem interesses materiais, que apenas secundariamente emergem
quando aquela se extingue. Revela-se em ambiente de
solidariedade e responsabilidade. Como todo princípio, ostenta
fraca densidade semântica, que se determina pela mediação
concretizadora do intérprete, ante cada situação real. Pode ser
assim traduzido: onde houver uma relação, ou comunidade,
mantida por laços de afetividade, sendo estes suas causas
originária e final, haverá família.”
A vida em família é, destarte, o primeiro polo irradiador dos direitos
humanos fundamentais. Contudo, sua efetividade não se dará unicamente
por critérios legais. Sua fundamentação é multidisciplinar, metajurídica e
marcada proeminentemente pelo afeto.
Neste aspecto, a Constituição Federal reconheceu a união estável
heterossexual como entidade familiar, e o novel Código Civil referendou a
aceitação.
Deste modo, trar-se-á um comparativo entre as regras sucessórias do
Código Civil de forma a se ponderar se a regra da igualdade entre os
institutos (casamento e união estável) é absoluta ou comportaria exceções.
3 – SUCESSÃO LEGÍTIMA DO CÔNJUGE NO CÓDIGO CIVIL DE 2002
3.1 Considerações Prévias
Herdeiros necessários são aqueles que aparecem na ordem do rol
legal previsto no Código Civil. Neste passo, se houver herdeiros
necessários, o autor da herança não terá liberdade plena de testar, posto que
deverá preservar a metade de seu patrimônio, que será obrigatoriamente
destinado àqueles, ao que se dá o nome de legítima.
E o Código Civil atual previu como herdeiros necessários os
descendentes, os ascendentes e o cônjuge.
Cabe também relembrar quanto à distinção entre herança e meação.
Neste propósito, NEVES (2006, p. 10):
“Um dos principais conceitos ligados ao direito sucessório é o
de herança, ou seja, daquilo que é transmitido aos sucessores em
razão da morte do sucedido.
Pode-se dizer que a herança é o patrimônio deixado pelo morto.

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Assim, ela é formada não só pelos bens materiais do falecido,


mas também pelos seus direitos (créditos ou ações) e suas
obrigações. É por isso que se diz que herança é composta do ativo
e do passivo.”
Deste modo, acervo hereditário são os bens deixados pelo falecido, ao
passo que o conceito de herança é mais amplo, pois envolve o somatório de
tudo que é deixado pelo de cujus, incluindo bens, direitos e também
obrigações.
Em contraposição à herança, temos a meação, que dela não é
sinônimo. A meação refere-se ao direito pertinente ao cônjuge e
companheiro e deriva do regime de bens escolhido pelos nubentes.
Isso porque os consortes e companheiros cumulam durante a
comunhão de vidas, quer com esforço do trabalho de ambos, quer pelas
forças do trabalho de um só, mas com a ajuda externa do outro, amparando-
o psicologicamente, garantindo-lhe a paz para o trabalho, dividindo as
tarefas extraprofissionais, um patrimônio comum.
Sendo assim, mostra-se devido que com o falecimento de um deles o
outro cônjuge tenha garantido metade de tudo que conquistaram juntos. E
isso é meação, que, repise-se, não se confunde com a herança.
3.2 Da Ordem de Vocação Hereditária
A ordem de vocação hereditária sofreu alterações do Código Civil de
1916 para o Código Civil de 2002.
No Código Civil de 1916, o tema era abordado da seguinte maneira:
“Art. 1.603, CC/1916: A sucessão legítima defere-se na seguinte ordem: I –
aos descendentes; II – aos ascendentes; III – ao cônjuge sobrevivente; IV –
aos colaterais; V – aos Municípios, ao Distrito Federal ou à União”.
Veja que a ordem era a seguinte: em primeiro lugar, herdavam os
descendentes, sob o fulcro do princípio da solidariedade, que por sua vez
preconiza o dever de assistência mútua entre os membros da mesma
família, dando maior atenção, principalmente, à prole, que se presume
dependente.
Outro fundamento era o da afetividade. Por conseguinte, os filhos
deveriam herdar pelo grau de proximidade intensa entre estes e seus pais.
Em seguida, tinham-se como herdeiros os descendentes.
Inexistindo descendentes e ascendentes, então o cônjuge sobrevivente

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passava a herdar.
Esse dispositivo afastava o cônjuge da herança, pois alçava-o a uma
terceira categoria de herdeiros. Destarte, a pessoa que mais esteve presente
durante a vida, com a morte, é afastada da recompensa de herdar de seu
consorte. Dividiram a vida, e a morte os isolava não somente física, como
também patrimonialmente.
Em seguida, na ordem de vocação hereditária, tínhamos os colaterais.
Nesse caso, no princípio, essa classe herdava até o 10º grau, depois passou a
herdar até o 6º grau e por fim até o 4º grau, como já foi visto anteriormente.
Se faltantes todas essas classes, o patrimônio do de cujus ia para o
Município, seguido do Distrito Federal e por último pela União.
Com o advento do novo Código Civil, a ordem de vocação no Código
Civil passou a ser a disposta no art. 1.829, in litteris: “I – aos descendentes,
em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o
falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória
de bens (art. 1.640 parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial,
o autor da herança não houver deixado bens particulares; II – aos
ascendentes, em concorrência com o cônjuge; III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais”.
Posto isto, far-se-á a análise deste novo dispositivo.
3.3 Meação e Herança do Cônjuge Sobrevivente
3.3.1 Considerações introdutórias
A grande alteração referente ao direito sucessório do cônjuge situa-se
no sentido de que, agora, passa a herdar em concorrência com os
descendentes e ascendentes, sem prejuízo de sua meação.
Ressalte-se: o cônjuge também assume o papel de herdeiro necessário.
Até 1977, o regime de bens legal no Brasil era o da comunhão
universal. Por este regime, o cônjuge, com a dissolução da sociedade
conjugal, recebia metade de todo o patrimônio do casal, ou seja, os bens
adquiridos antes ou durante a constância do casamento. Estava, portanto,
suficientemente garantido na divisão dos bens.
Em 1977, sobreveio a Lei do Divórcio, e com ela o regime legal passa a
ser o da comunhão parcial de bens. Por esse regime, o cônjuge sobrevivente,
com a morte de seu consorte, mearia apenas nos aquestos e os bens

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adquiridos antes do casamento seriam entregues aos herdeiros.


Caso o de cujus não tivesse adquirido nada ou quase nada durante o
casamento, o cônjuge sobrevivente ficaria totalmente alijado do patrimônio
do falecido.
Por conta disto, o legislador de 2002 conferiu ao cônjuge sobrevivente
o direito de concorrer com os descendentes e, na sua falta, com os
ascendentes. É neste desiderato a Mensagem nº 160, ao Congresso Nacional,
que traz a exposição dos motivos do Código Civil de 2002:
“Seria, com efeito, injustificado passar do regime da comunhão
universal, que importa a comunicação de todos os bens presentes e
futuros dos cônjuges, para o regime da comunhão parcial, sem se
atribuir ao cônjuge supérstite o direito de concorrer com
descendentes e ascendentes. Para tal fim, passou o cônjuge a ser
considerado herdeiro necessário, com todas as cautelas e
limitações compreensíveis em questão tão delicada e relevante, a
qual comporta diversas hipóteses que exigiram tratamento legal
distinto” (texto retirado do livro de GUSTAVO RENE NICOLAU
(Direito Civil – Sucessões, 2005, p.79)).
Em linhas gerais, pretendeu-se que o cônjuge sobrevivente herdasse
onde não fosse meeiro. E para isso, o primeiro requisito exigido é
exatamente o cônjuge ser casado. Por consequência, fica afastado o cônjuge
separado judicialmente e o separado de fato há mais de dois anos, salvo se
provar que a vida em comum se tornou insuportável não por sua culpa,
conquanto essa prova se mostre impossível, senão diabólica, pois a outra
parte não poderá contraditar, uma vez que é o de cujus.
O requisito seguinte situa-se no campo dos regimes de bens. E o
artigo supracitado dispõe que não poderá herdar o cônjuge casado no
regime de comunhão universal e separação obrigatória. Veja-se.
3.3.2 Regime de comunhão universal
Nessa modalidade de regime, os cônjuges têm antes do casamento
cada um seu patrimônio pessoal, particular. E com o casamento, os cônjuges
tornar-se-ão automaticamente meeiros dos bens presentes e futuros do seu
consorte.
Resumidamente: o que era do cônjuge antes de se casar passa a ser de
ambos ao se casarem.

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Segundo NICOLAU (2005, p.80), “como já visto, a premissa do


legislador de 2002 foi conceder direito à herança para os casos em que a
meação não existia ou – caso existisse – não fosse suficiente para conceder
estabilidade e segurança à viúva”.
Portanto, a intenção da lei foi garantir herança para os cônjuges que
não tivessem direito à meação. E haja vista que os casados sob o regime da
comunhã universal já possuem a meação da totalidade dos bens do falecido,
não há que se falar de herança.
Neste passo, se o cônjuge falecido deixou descendentes ou
ascendentes, o cônjuge sobrevivente terá direito apenas à meação. No
entanto, não se perca de vista as lições de NEVES (2006, p.67):
“Como se vê, não se confundem as qualidades de meeiro e
herdeiro. O cônjuge sobrevivente, de acordo com as circunstâncias,
pode ser apenas meeiro (se o regime for o da comunhão universal
e o de cujus tiver deixado descendentes), meeiro e herdeiro (se o
regime for o da comunhão universal ou parcial e o morto não tiver
deixado descendentes). Por fim, é possível que o cônjuge
sobrevivente não tenha direito à meação nem à herança, quando,
por exemplo, o regime for o da separação legal e o morto tiver
deixado descendentes.”
Veja, então, que mesmo no regime de comunhão universal é possível
o cônjuge sobrevivente herdar. E isso ocorre quando o de cujus não deixou
descendentes nem ascendentes. Nesse caso, o cônjuge supérstite meará e
herdará.
3.3.3 Regime de separação obrigatória de bens
No art. 1.829, I, do CC, quando o legislador se refere ao regime de
separação obrigatória, prevê-o no art. 1.640, parágrafo único. E isso foi um
equívoco de redação, já que o citado regime de bens tem previsão no art.
1.641 do Código Civil.
Vale expô-lo:
“Art. 1.641, CC. É obrigatório o regime da separação de bens no
casamento:
I – das pessoas que o contraírem com inobservância das causas
suspensivas da celebração do casamento;
II – da pessoa maior de sessenta anos;

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III – de todos os que dependerem, para casar, de suprimento


judicial.”
O inciso I claramente busca evitar a confusão patrimonial. Assim,
enquanto um viúvo não fizer partilha dos bens da esposa falecida, somente
poderá casar-se pelo regime de separação de bens. O mesmo se diga em
relação ao divorciado que ainda não realizou a partilha dos bens do
primeiro casamento.
A nosso ver, essa regra se justifica a fim de preservar o patrimônio
dos herdeiros que podem ser prejudicados pelo novo casamento do viúvo.
Vale o mesmo em relação à preservação do patrimônio do divorciado, que
poderá ser prejudicado pelas novas núpcias do seu ex-cônjuge caso não
tenha havido prévia partilha de bens.
Porém, é no mínimo questionável a regra dos incisos II e III. A mens
legis dessa restrição é a proteção dos jovens e dos idosos, e pretende evitar
que pessoas inspiradas apenas pelo interesse econômico venham a convolar
núpcias com aquelas.
Deste modo, quem quer casar após os 60 (sessenta) anos tem
subtraída de forma injustificável, aleatória e discriminatória a plenitude de
sua capacidade para eleger o regime de bens que lhe aprouver.
Absurdamente, é imposto o regime da separação legal de bens, que gera a
total incomunicabilidade para o passado e para o futuro10.
Por isso, quer-nos parecer que deva ser reavivada a Súmula 377 do
Supremo, que prevê: No regime de separação legal de bens, comunicam-se os
adquiridos na constância do casamento, “por desforço comum”.
Por conta dessa Súmula, parte da jurisprudência entende que o
cônjuge supérstite terá o direito à meação mesmo no caso do casamento sob
o regime de separação obrigatória, para evitar-se o locupletamento de um
em detrimento de outro.
No entanto, é preciso esclarecer que a Súmula 377 do STF foi elabora
sob a égide do Código Civil de 1916, que no seu art. 259 preconizava que
embora o regime não seja o da comunhão de bens, prevalecerão, no silêncio do
contrato, os princípios dela, quanto à comunicação dos adquiridos na constância do
casamento.
Ocorre que com o advento do Código Civil de 2002 essa disposição

10 DIAS, Maria Berenice. Amor não tem idade. CD-ROM, Magister.

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não foi reproduzida. Portanto, em tese, a Súmula teria perdido força. Neste
sentido EUCLIDES DE OLIVEIRA (2005, p.100):
“Com o advento do novo Código Civil, deixou de ser
reproduzida a norma do art. 259 do Código anterior, que dava
sustento à interpretação de comunicação dos aquestos no regime
da separação obrigatória de bens e servia de fundamento à própria
Súmula 377. Significa que, nesse regime estipulado por lei, por ser
obviamente de separação, lugar não haverá para comunicação dos
bens que venham a ser adquiridos pelos cônjuges no curso do
casamento.”
Cientes da injustiça da medida, NELSON NERY JR. e ROSA MARIA DE
ANDRADE NERY (2003, p.805) fazem pontual sugestão:
“De fato, a solução do CC, 1.829, I, não se coaduna com a
finalidade institucional do regime jurídico da separação de bens no
casamento. Manifestações da doutrina e do público em geral
evidenciam, entretanto, que a vontade da lei não corresponderia à
vontade geral com relação, principalmente, à condição de herdeiro
dos casados sob o regime da separação convencional de bens.
Destarte, fazemos sugestão para que a norma possa ser reformada,
no sentido de excluir-se do CC, 1.829, I, a expressão ‘obrigatória’,
bem como a remissão equivocada ao CC, 1.640, parágrafo único.
[...] Essa solução é de lege ferenda, porquanto de lege lata não há
como escapar-se da interpretação restritiva da expressão
‘separação obrigatória de bens’.”
A nosso sentir, a posição acima pode ser inclusive mais radicalizada, e
concordamos com o posicionamento de GUSTAVO TEPEDINO11. Para ele, a
Súmula não se aplicaria nas hipóteses do art. 1.641, I e II. Isto porque as
causas que impõem a aplicação da separação obrigatória são transitórias e
podem ser superadas a qualquer momento. Deste modo, se o menor de
idade se casa, ao atingir a maioridade cessou a imposição do regime de
separação; o mesmo se diga em relação ao viúvo que não fez a partilha dos
bens da ex-cônjuge falecida. Se fizer, igualmente cessa o motivo da
separação obrigatória.
E nestes casos, haja vista a possibilidade da modificação do regime de

11 Controvérsias sobre regimes de bens no novo Código Civil. Revista Brasileira de Direito de Família e
Sucessões, 02/08.

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bens (art. 1.639, § 2º), cessado o motivo que impunha a separação


obrigatória, os cônjuges poderiam a qualquer momento pleitear a alteração
do regime. Se não o fizeram, é porque aceitaram que permanecessem sob tal
regime.
Porém, ao maior de 60 (sessenta) anos não é dada essa oportunidade,
posto que, por óbvio, sempre vai ter mais de 60 (sessenta) anos e por
conseguinte a restrição legal será perene. Deste modo, para TEPEDINO, “a
limitação da vontade, em razão da idade, longe de se constituir precaução,
se constitui em verdadeira sanção”.
Como lembra MARIA BERENICE DIAS, amor não tem idade. E, assim, se
um maior de 60 (sessenta) anos casar-se, conquanto lhe seja aplicável o
regime da separação obrigatória de bens, por princípio geral de direito
impeditivo do locupletamento há de se aplicar a Súmula 377 do STF,
impondo-se a comunicação dos aquestos.
3.3.4 Regime de comunhão parcial de bens com ausência de bens
particulares
Por fim, a parte final do art. 1.829, I, do CC, que dispõe sobre a
hipótese de o casamento ter se realizado sob o regime de comunhão parcial
de bens e o autor da herança não ter deixado bens particulares.
Pelo regime de comunhão parcial de bens, formar-se-ão três espécies de
patrimônio: o patrimônio próprio do marido, o patrimônio próprio da
mulher e o patrimônio formado pelos bens comuns, que serão aqueles
adquiridos na constância do casamento (aquestos).
Com a dissolução da sociedade conjugal pela morte, o cônjuge
supérstite irá mear em relação aos bens adquiridos na constância do
casamento (bens comuns).
Diante desse direito de meação que lhe é conferido, o legislador
presumiu estar o cônjuge supérstite já garantido. Via de consequência,
determinou que este não herdará se o falecido deixou apenas bens comuns,
posto que já contará com a meação.
Se o falecido tiver bens comuns (os adquiridos na constância do
casamento e que entram na comunhão) e bens particulares (os que não
entram na comunhão), o cônjuge sobrevivente meará os aquestos e herdará
parte dos bens particulares, em concorrência com os descendentes ou
ascendentes.

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Na hipótese em apreço, uma vez que existirão apenas bens comuns, o


cônjuge sobrevivente será meramente meeiro.
3.3.5 Regime de comunhão parcial de bens com bens particulares do de
cujus
Como se viu, no regime de comunhão parcial de bens ter-se-á a
formação de três massas patrimoniais: bens particulares do marido; bens
particulares da esposa; massa patrimonial formada pelos aquestos.
Com o falecimento de um dos cônjuges, o sobrevivente meará sobre
os aquestos e herdará sobre os bens particulares em concorrência com os
descendentes ou ascendentes.
Veja que a sistemática é simples: o cônjuge sobrevivente meará em
relação aos bens que na realidade já lhe pertenciam, mas que dividia com o
de cujus, formando verdadeiro condomínio. E herdará em relação aos bens
particulares deixados pelo autor da herança, pois é herdeiro necessário.
Entretanto, existirão peculiaridades se além do cônjuge supérstite
houver descendentes e ascendentes.
3.3.6 Regime de comunhão parcial de bens: concorrência entre cônjuge
e descendentes
Caso o falecido tivesse descendentes, nos termos do art. 1.829, I, do
Código Civil, serão seus herdeiros, em concorrência, o cônjuge e estes
descendentes.
Ademais, caberá ao cônjuge sobrevivente quinhão igual ao dos
descedentes que herdarem por cabeça. Por conta disto, caso haja a esposa
sobrevivente e dois filhos, a herança será divida em três partes.
Se houver esposa sobrevivente, um filho que herda por nome próprio
e três netos que herdam por representação de filho pré-morto, a cota parte
da esposa manter-se-á em 1/3, posto que a reserva da cota se faz em relação
aos que herdam por cabeça, e não por estirpe.
Conforme o Conselho da Justiça Federal, Enunciado 270, o art. 1.829,
inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o direito de concorrência com os
descendentes do autor da herança quando casados no regime da separação
convencional de bens ou, se casados nos regimes da comunhão parcial ou
participação final nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares,
hipóteses em que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens

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comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os descendentes.


Em tempo, em qualquer hipótese, a cota do cônjuge sobrevivente não
será inferior à quarta parte da herança, se for ascendente (pai, mãe, avô,
avó) dos herdeiros com que concorrer.
Assim, imagine-se uma mulher que tenha morrido, deixando marido
vivo e 6 (seis) filhos deste casamento, bem como bens particulares não
passíveis de meação. Ao homem caberá ¼ da herança, posto ser cônjuge
sobrevivente ascendente dos demais herdeiros. Os outros 1/3 da herança
serão divididos em 6 (seis) partes, cada uma devida a cada um dos filhos.
Caso os descendentes não sejam igualmente descendentes do cônjuge
sobrevivente, a este caberá apenas uma parte idêntica ao que couber aos
demais herdeiros (CC, art. 1.832).
A lacuna legislativa diz respeito quando o cônjuge sobrevivente for
ascendente de alguns descendentes do falecido, e não de outros. Em outras
palavras: morto o pai, deixa esposa, que é mãe de 2 (dois) filhos seus, e
outros três filhos que não são descendentes da esposa. Caberá a esta, neste
caso, a reserva de ¼ do patrimônio, uma vez que há, na hipótese,
descendentes seus e outros não?
Duas posições se firmaram: uma que parte da premissa de uma
interpretação restritiva, conferindo ao cônjuge apenas uma parte idêntica;
outra, proposta pelo IBDFAM – Instituto Brasileiro de Direito de Família,
que prevê que nesta hipótese o cônjuge teria direito à reserva de ¼ do
patrimônio.
3.3.7 Concorrência: cônjuge x ascendente
Assim determina o art. 1.836 do Código Civil, in litteris: “Na falta de
descendentes, são chamados à sucessão os ascendentes, em concorrência
com o cônjuge sobrevivente”.
Nessa hipótese de concorrência, não temos restrições e requisitos a
serem preenchidos. Simplesmente haverá concorrência entre cônjuge e
ascendente, desde que não haja descendentes e seja qual for o regime de
bem, havendo ou não bens próprios ou bens comuns.
A atenção deve ser dada no aspecto das quotas. Neste passo, havendo
pai e mãe, caberá ao cônjuge supérstite 1/3 da universalidade da herança. Já
se os ascendentes forem avô ou avó, as duas avós ou avôs, ou ainda
somente o pai ou somente a mãe, a eles caberá ½ da herança, ficando a outra

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metade com o cônjuge sobrevivente. Essa é a redação do art. 1.837 do


Código Civil: “Concorrendo com ascendente em primeiro grau, ao cônjuge
tocará um terço da herança; caber-lhe-á a metade desta se houver um só
ascendente, ou se maior for aquele grau”.
Há ainda a hipótese de não haver descendentes e ascendentes. Nesse
caso, ocorrerá a destinação de toda a herança para o cônjuge supérstite12.
3.3.8 Regime de separação convencional de bens
Quanto ao regime da separação convencional de bens, haja vista sua
própria natureza, é característico a não comunicação de qualquer tipo de
bem, seja próprio ou adquirido na constância do casamento. Não restaria
qualquer margem à discussão.
Ocorre que, como já foi dito, o legislador, ao elaborar o art. 1.829, I, do
CC, pretendeu assegurar ao cônjuge supérstite direito de herança quando
este não tivesse uma meação garantidora de uma vida digna, ou quando
sequer tivesse direito a ela.
É o que ocorre no regime de separação convencional de bens, uma
vez que o cônjuge sobrevivente não meará.
Diante disso, editou-se o outrora igualmente citado Enunciado nº 270,
do Conselho de Justiça Federal, na III Jornada de Direito Civil:
“O art. 1.829, inc. I, só assegura ao cônjuge sobrevivente o
direito de concorrência com os descendentes do autor da herança
quando casados no regime da separação convencional de bens ou,
se casados nos regimes da comunhão parcial ou participação final
nos aquestos, o falecido possuísse bens particulares, hipóteses em
que a concorrência se restringe a tais bens, devendo os bens
comuns (meação) ser partilhados exclusivamente entre os
descendentes.”13
A mais respeitada doutrina brasileira segue, na maioria, esse
entendimento.

12 Se se seguisse a ordem de vocação hereditária, passar-se-ia a analisar os colaterais. Ocorre que o


presente trabalho se limita a explanar sobre os direitos sucessórios do cônjuge e em seguida do
companheiro, traçando as diferenças entre eles; e a sucessão do colateral somente ocorrerá se não
existirem os descendentes, ascendentes e o nosso foco de estudo: cônjuge e companheiro. Sendo
assim, além de pouco frequente, a sucessão colateral refoge ao nosso estudo.
13 Disponível em: <http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf>. Acesso em: 03 dez.

2009.

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Deste modo, no regime de separação convencional de bens, o cônjuge


sobrevivente será herdeiro.
3.4 Quadro 01 – Quotas do Cônjuge em Todas as Possibilidades de
Concorrência
QUOTAS
Cônjuge concorrendo com até três Quinhão igual (1/3 para cada).
descendentes comuns:
Cônjuge concorrendo com mais de ¼ para o cônjuge e 75% dividem-se
três descendentes comuns: entre os descendentes.
Cônjuge concorrendo com mais de Quinhão igual para todos, cai o piso de
três descendentes exclusivos: herança de ¼ para o cônjuge.
Hipótese híbrida: Há divergências quanto ao piso de ¼.
Predomina a não concessão de ¼.
Cônjuge concorrendo com 1/3 para cada.
ascendentes – pai e mãe:
Cônjuge concorrendo com ½ para cada.
ascendentes – pai ou mãe:

4 – DA SUCESSÃO LEGÍTIMA DO COMPANHEIRO NO CÓDIGO CIVIL DE


2002
4.1 Considerações Gerais
Tem-se a união estável como uma das formas de entidade familiar
reconhecida pela Constituição Federal de 1988.
Ocorre que esse reconhecimento conferido pelo ordenamento jurídico
não é suficiente para garantir uma igualdade material entre a união estável
e o casamento, que é a forma mais tradicional de constituição de sociedade
conjugal até então.
Não obstante, ainda há resquícios de cerceamento de direitos e
comportamentos latentemente preconceituosos em relação àqueles que
vivem em união estável. Isso ocorre, por exemplo, quando o casal vai até
uma repartição pública ou privada e precisa para ser atendido preencher
uma ficha de dados. Nesta ficha, se já previamente pronta, certamente não
aparecerá como opção de estado civil a expressão amigado, amasiado ou
companheiro. Mas há com toda certeza a opção casado.

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Diante dessa celeuma é que surgiu a questão se é possível o


reconhecimento de um estado civil de pessoas que vivem em união estável.
Nesse ponto, surgiram aqueles entendimentos no sentido de que
existe sim um estado civil para tais pessoas, já que a união estável gera
efeitos jurídicos até mesmo em relação a terceiros.
No entanto, há também parte da doutrina que entende que a união
estável não gera estado civil nenhum, e por dois motivos: primeiro, porque
não há previsão legal nesse sentido; e segundo, porque a união estável não é
objeto de registro, ou seja, de uma formalidade, por isso há quem sustente
que aquele que é casado pode provar seu estado civil através da sua
certidão de casamento, mas aquele que vive em união estável não tem como
provar seu estado civil. A dificuldade se estende até mesmo para
comprovar o início da união estável.
Essa falta de reconhecimento concreto da própria sociedade civil
refletiu de maneira direta no tratamento legal dado pelo Código Civil de
2002 ao companheiro no aspecto da sucessão legítima.
Nesta lei, o companheiro não titulariza a condição de herdeiro
necessário. Sendo assim, se o companheiro falecido deixar testamento
dispondo todo o seu patrimônio na integralidade a quem pretender, o outro
companheiro será totalmente excluído da sucessão. Por consignar, essa
hipótese é absolutamente impossível na sucessão do cônjuge.
Nas palavras de DIAS (2005, p.134):
“A inclusão do cônjuge, mas não do companheiro, como
herdeiro necessário tem levado a questionamentos sobre a
constitucionalidade de tal diferenciação, que não constava na
legislação pretérita e nem é desejada por ninguém.”
Há argumentos quanto à potencial inconstitucionalidade dessa regra,
já que aqui não foi alcançada a igualdade material e sequer a igualdade
formal entre cônjuges e companheiros, pois a própria lei os trata de maneira
distinta, sem qualquer critério justificador para esse tratamento desigual,
uma vez que ambos viveram em comunhão de vidas até que o evento morte
os separasse.
Por que então o tratamento desigual? Será que a Constituição
avançou, mas a sociedade na verdade continua a prejulgar pessoas que
vivem juntas sem legalizar a união nos moldes tradicionais?
Ora, se a Constituição reconhece a união estável e quer sua conversão

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em casamento facilitada, não se justificaria a norma infraconstitucional,


mesmo que o Código Civil, promover tratamento desigual entre as
entidades familiares casamento e união estável.
4.2 Direito Sucessório do Companheiro
Em linhas gerais, o modelo sucessório do companheiro leva à
formação de três patrimônios distintos: o patrimônio formado pelos bens
particulares do companheiro; o patrimônio formado pelos bens particulares
da companheira; e um terceiro patrimônio, formado pelos bens comuns
conquistados onerosamente na constância da união estável.
O companheiro sobrevivente fica excluído de herdar os bens
particulares do falecido, uma vez que não é contemplado como herdeiro
necessário pelo Código Civil de 2002.
Cabe-lhe, contudo, mear e herdar concomitantemente o conjunto de
bens comuns conquistados onerosamente durante a constância da união
estável.
Note-se que a regra citada nos capítulos anteriores de que “onde mear
não irá herdar” não se aplica na união estável. Conforme leciona NICOLAU
(2005, p.101):
“Quando a hipótese era de casamento, foi visto que a base de
cálculo (entenda-se: a massa patrimonial em que o cônjuge concorreria
com descendentes) constituía-se justamente de bens particulares do
de cujus, visto que nos bens comuns o supérstite já havia feito a sua
meação.”
Pode-se constatar que quanto ao companheiro ocorre exatamente o
oposto: este meará e herdará os bens adquiridos onerosamente na
constância da união estável.
No entanto, quanto aos bens particulares deixados pelo de cujus, estes
serão transmitidos aos seus herdeiros legítimos.
Surge então a questão: para efeitos sucessórios, será melhor casar-se?
E a resposta é: depende. Vejam-se os exemplos.
Imagine-se que os companheiros constituíram uma união estável com
muitos bens próprios e no decorrer da união adquiriram apenas uma casa,
ou um automóvel. Neste caso, seria melhor terem se casado, pois ao
estabelecerem uma união estável a sucessão recairá apenas sobre essa única
casa ou automóvel, ficando o grande número de bens comuns para os

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herdeiros legítimos.
Mas se constituíram essa união praticamente sem nenhum patrimônio
e no decorrer da constância adquiram onerosamente a grande maioria dos
bens que possuem, nesse caso o companheiro supérstite herdará mais do
que se fosse casado com o de cujus. Isso ocorre porque o companheiro irá
herdar onde mear quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância
da união.
São escassas as disposições feitas aos companheiros no Código Civil
de 2002. E uma dessas disposições prevê as quotas quando houver
concorrência entre o companheiro sobrevivente e os demais herdeiros
legítimos do de cujus. Lê-se no art. 1.790:
“Art. 1.790. A companheira ou o companheiro participará da
sucessão do outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na
vigência da união estável, nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota
equivalente à que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança,
tocar-lhe-á a metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a
um terço da herança;
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade
da herança.”
Como decorrência deste artigo, analisar-se-ão as situações de
concorrência que sujeita o companheiro na órbita do Código Civil de 2002.
4.3 Companheiro Concorrendo com Descendentes Comuns
Nesse caso específico, o companheiro sobrevivente herdará, vale
dizer, “terá direito a uma quota equivalente à que por lei for atribuída ao filho”,
quanto aos bens adquiridos onerosamente na constância da união estável.
Isso significa que terá direito a herdar a mesma quota que o herdeiro
comum igualmente herdará. E vale lembrar, essa herança recairá sobre a
outra metade do patrimônio onde o companheiro já meou, que é
exatamente os bens adquiridos onerosamente na constância da união
estável.
Caberá ainda aos herdeiros legítimos herdarem sozinhos em relação

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aos bens particulares deixados pelo de cujus.


O que se tem de relevante nesse inciso é justamente a diferença do
tratamento atribuído ao companheiro em relação ao cônjuge. Isto porque o
companheiro não tem direito ao mínimo de ¼ da herança que é assegurado
ao cônjuge justamente pelo art. 1.832 do Código Civil.
Esse mínimo assegurado pelo Código Civil ao cônjuge é bem
explicado por NICOLAU (2005, p.89):
“(...) concorrendo com descendentes comuns (a saber,
concorrendo ao mesmo tempo com descendentes que sejam ao
mesmo tempo do de cujus e da viúva), o art. 1.832 preserva o que
denominei de ‘piso da herança’. É o mínimo de ¼ da herança
garantido ao cônjuge. Isso significa que, havendo mais de três
descendentes, e sendo todos comuns, no mínimo a quarta parte
ficará para o cônjuge e o restante divide-se entre os descendentes
comuns.”
Nas palavras de OLIVEIRA (2005, p.113):
“Em aplicação prática desse dispositivo, tem-se que a herança
será partilhada por cabeça, entre os descendentes e o cônjuge. O
valor cabível para o descendente será também devido ao cônjuge.
A operação é singela, quando existente não mais de três
descendentes filhos, bastando que se faça a divisão pelo número
de filhos mais o cônjuge. Se houver um filho, receberá metade da
herança, e o cônjuge terá a outra metade. Sendo dois os filhos
herdeiros, divide-se a herança por três, incluindo o cônjuge. Na
hipótese de três filhos, mais o cônjuge, partilha-se por quatro a
herança, tocando uma quarta parte a cada um.
Complica-se o cálculo da quota devida ao cônjuge sobrevivo no
caso de haver mais de três filhos, diante da reserva legal de quarto
da herança ao cônjuge, desde que seja também ascendente dos
herdeiros com quem concorrer.”
Veja-se que a finalidade precípua do dispositivo foi privilegiar e
proteger o cônjuge sobrevivente. Finalidade esta não despendida ao
companheiro.
Outra questão que se mostra importante é quanto à expressão filhos
comuns utilizada pelo legislador. A importância é explicada, já que da
expressão deriva a dúvida: o legislador restringiu a concorrência apenas em

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relação a filhos comuns ou em relação a qualquer descendente comum,


como netos, bisnetos, etc.? Ou aos outros descendentes comuns aplicaremos
o art. 1.790, III, do CC, que disciplina os “outros parentes sucessíveis”?
A posição mais acertada é aquela que defende que a expressão filhos
comuns deve ser entendida como descendentes comuns, isso com a aplicação
de uma interpretação extensiva, já que o legislador disse menos do que
queria dizer. Isso é confirmado, logo em seguida, pela disposição do art.
1.790, II, do CC, que utiliza adequadamente a expressão descendente, assim
como uma forma de coadunar com o inciso II, o inciso I também deve ser
entendido como descendentes.
Além disso, é nítido que o legislador pretendeu regular a
concorrência do companheiro com os seus descendentes comuns; assim, além
da interpretação extensiva, há de se aplicar também a interpretação
teleológica.
FRANCISCO J. CAHALI elaborou sobre a questão um enunciado na III
Jornada de Direito Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal,
ocorrida nos dias 1º, 02 e 03 de dezembro de 2004. Eis o Enunciado nº 266:
“Aplica-se o inciso I do art. 1.790 também na hipótese de
concorrência do companheiro sobrevivente com outros
descendentes comuns e não apenas na concorrência com filhos
comuns” (Disponível em:
<http://daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IIIJornada.pdf>.
Acesso em: 20 out. 2009, às 10h49min).
Ao finalizar-se, tem-se que o companheiro concorre com os
descendentes do falecido, com direito a uma quota idêntica a cada um
deles, sem lhe ser reservado o mínimo de ¼.
4.4 Companheiro Concorrendo com Descendentes Exclusivos do Autor
da Herança
Nesse caso, o companheiro foi mais desprivilegiado ainda. Isso
porque terá direito à metade do que cada um dos descendentes herdar.
O cálculo nessa situação específica se dá da seguinte maneira:
• Companheiro sobrevivente = 1x.
• Descendentes do autor da herança = 2x.
• Total da herança ¸ descendentes + companheiro.

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• O resultado da equação acima deve ser empregado de acordo


com 1x ou 2x a depender se se trata de companheiro ou
descendente.
Vejamos um exemplo hipotético.
O autor da herança deixa um patrimônio de R$ 500.000,00. Deixa uma
companheira e dois descendentes exclusivos. Assim teremos:
1ª etapa: R$ 500.000,00 (total da herança).
2ª etapa:
• Companheira = 1x.
• Descendente 1 = 2x.
• Descendente 2 = 2x.
3ª etapa: R$ 500.000,00 ¸ 5x (soma da companheira equivalente a 1x e
aos descendentes equivalente a 2x cada um deles).
4ª etapa: x = R$ 100.000,00
5ª etapa: A companheira terá direito a R$ 100.000,00 (1x) e cada
descendente a R$ 200.000,00 (2x).
Trata-se do raciocínio embasado por SILVIO VENOSA (2003, p.121):
“Atribui-se, portanto, peso 1 à porção do companheiro e peso 2 à do filho
do falecido ou falecida para ser efetuada a divisão na partilha”.
4.5 Hipótese Híbrida de Descendentes
Eventualmente, o companheiro falecido detém filhos da sua união
estável e outros que não são da mesma companheira. Ter-se-á, in casu, a
hipótese híbrida de filiação e um imbróglio jurídico justamente porque há
omissão legislativa para solucionar a questão.
Destarte, surgiram duas teorias: a primeira seria aplicar o inciso I do
art. 1.790 do CC, e conceder a todos os herdeiros indistintamente o mesmo
tratamento, cabendo, portanto, ao companheiro sobrevivente “uma quota
equivalente à que por lei for atribuída ao filho”.
Esta é a tese de SILVIO VENOSA (2003, p.121), para quem, “se houver
filhos com o do de cujus e filhos somente deste concorrendo à herança, a
solução é dividi-la igualitariamente, incluindo o companheiro ou
companheira”.
Na mesma linha de pensamento de SILVIO VENOSA estão FRANCISCO

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JOSÉ CAHALI, GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA, ROLF MADALENO e


CAIO MÁRIO DA SILVA PEREIRA14.
A segunda possibilidade seria a aplicação do inciso II do também art.
1.790 do CC, e considerar o companheiro concorrendo como se fosse apenas
descendente do autor da herança, tocando-lhe “a metade do que couber a cada
um daqueles”.
Nesse sentido, OLIVEIRA (2005, p.171):
“Em face da diversidade de posicionamentos por omissão e
dubiedade da norma legal, penso que a interpretação mais
consentânea e que poderá vingar no tumulto interpretativo da
disposição em comento será a de atribuir ao companheiro quota
igual à dos descendentes apenas quando seja ascendente de todos
os habilitados na herança. Na situação inversa, subsistindo filhos
de outra origem, ainda que concorrendo com filhos em comum
entre o autor da herança e o companheiro, a este tocaria somente a
metade de cada quota hereditária.”
Comungam com esta opinião ZENO VELOSO e SEBASTIÃO AMORIM.
Há ainda quem entenda que se deve aplicar nesse caso o art. 1.790, III,
do CC, conferindo 1/3 da herança ao companheiro, pois o referido
dispositivo trata da situação de este concorrer com outro parente sucessível.
Seria a linha de pensamento de MARIO ROBERTO CARVALHO DE FARIA.
Contudo, parece ser voz isolada.
4.6 Concorrência com Outros Parentes Sucessíveis
Parentes sucessíveis seriam os colaterais até o 4º grau. Nessa hipótese,
aplica-se o art. 1.790, III, do CC, que disciplina que quando o companheiro
concorrer com outros parentes sucessíveis terá direito a 1/3 dos bens
adquiridos onerosamente na constância do relacionamento, sem prejuízo da
meação.
Deste modo, se o falecido deixar companheira e pais vivos, cada qual
herdará 1/3 da parte do de cujus, assegurando-se a meação da companheira.
No entanto, os bens particulares são exclusivos dos pais.

14 Dado retirado do artigo: “Controvérsias na sucessão do cônjuge e do convivente – Uma proposta


de harmonização do sistema, de MARIO LUIZ DELGADO. Disponível em:
<http://www.jfpb.gov.br/esmafe/Pdf_Doutrina/Controv%C3%A9rsias%20na%20sucess%C3%
A3o%20do%20conjuge-M%C3%A1rio%20Delgado.pdf>.

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Agora, imagine-se que o de cujus não tem pais, mas sim um parente
mais remoto, como, por exemplo, um tio-avô sem qualquer contato
próximo. Esse mesmo tio-avô ficará com 2/3 da herança restando 1/3 para
o companheiro sobrevivente.
E a situação se agrava ainda mais se o falecido deixou somente bens
particulares, hipótese que somente o parente distante herdará em prejuízo
ao companheiro de uma vida.
4.7 Ausência de Qualquer Parente Sucessível
Trata-se da hipótese prevista no art. 1.790, IV, do CC, que disciplina
que em não havendo parentes sucessíveis o companheiro ficará com a
totalidade da herança.
Ocorre que a letra fria da lei poderia levar a uma situação de extrema
injustiça no caso de o de cujus deixar somente bens particulares, hipótese
esta onde o companheiro sobrevivente não herdaria nada, conferindo-se o
patrimônio ao município.
Em razão dessa patente injustiça, a doutrina tende a aplicar o art.
1.844 do CC, que prevê:
“Art. 1.844. Não sobrevivendo cônjuge, ou companheiro, nem
parente algum sucessível, ou tendo eles renunciado a herança, esta
se devolve ao Município ou ao Distrito Federal, se localizada nas
respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em
território federal.”
Isso significa que o Município ou o Distrito Federal somente ficaria
com a herança se não sobrevier o cônjuge ou companheiro.
A nosso ver, estreme de dúvida ser correta essa aplicação.
4.8 Panorama do Art. 1.790 do Código Civil
O art. 1.790 está inserido nas disposições atinentes à união estável.
Logo, sequer teve capítulo próprio ou no mínimo inserido nas mesmas
disposições relativas aos demais herdeiros.
Note-se o tratamento diferenciado, incluisive quanto à localidade
tópica das disposições.
E quando se comparam a sucessão do cônjuge e a do companheiro,
resumidamente aposta no quadro abaixo, percebe-se ineludivelmente que o

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cônjuge é flagrantemente privilegiado.


Por conta disto, foramularam-se algumas considerações de
inconstitucionalidade oriundas de juízes da Vara de Família do interior de
São Paulo, em um encontro realizado pela Corregedoria-Geral de Justiça do
Tribunal de Justiça de São Paulo, em conjunto com a Associação de
Magistrados de São Paulo, no ano de 2006, in verbis:
“49. O art. 1.790 do Código Civil, ao tratar de forma
diferenciada a sucessão legítima do companheiro em relação ao
cônjuge, incide em inconstitucionalidade, pois a Constituição não
permite diferenciação entre famílias assentadas no casamento e na
união estável, nos aspectos em que são idênticas, que são os
vínculos de afeto, solidariedade e respeito, vínculos norteadores
da sucessão legítima.
50. Ante a inconstitucionalidade do art. 1.790, a sucessão do
companheiro deve observar a mesma disciplina da sucessão
legítima do cônjuge, com os mesmos direitos e limitações, de modo
que o companheiro, na concorrência com descendentes, herda nos
bens particulares, não nos quais tem meação.
51. O companheiro sobrevivente, não mencionado nos arts.
1.845 e 1.850 do Código Civil, é herdeiro necessário, seja porque
não pode ser tratado diferentemente do cônjuge, seja porque, na
concorrência com descendentes e ascendentes, herda
necessariamente, sendo incongruente que, tornando-se o único
herdeiro, possa ficar desprotegido.
52. Se admitida a constitucionalidade do art. 1.790 do Código
Civil, o companheiro sobrevivente terá direito à totalidade da
herança deixada pelo outro, na falta de parentes sucessíveis,
conforme o previsto no inciso IV, sem a limitação indicada na
cabeça do artigo” (Disponível em:
<http://www.conjur.com.br/2006-nov-
26/veja_enunciados_formulados_varas_familia?pagina=3>.
Acesso em: 19 out. 2009, às 22h27min).
Fazemos coro integral a esta posição.

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4.9 Quadro 2 – Possibilidades de Concorrência do Companheiro no


Código Civil de 2002
DESCEN- DESCEND. DESCEND. OUTROS AUSÊNCIA DE CÔNJUGE
DENTES EXCLUSIVOS HÍBRIDOS PARENTES PARENTES SOBREVI-
COMUNS DO AUTOR (Art. 1.790, I, SUCESSÍVEIS SUCESSÍVEIS VENTE
(Art. 1.790, DA HERANÇA II, CC) (Art. 1.790, III, (Art. 1.790, IV,
I, CC) (Art. 1.790, II, CC) CC)
CC)
COMPA- Terá Terá direito à Há Terá direito a 1/3 Terá direito à Herdará os
NHEIRO direito à metade do que divergência da herança. totalidade da bens
quota couber a cada quanto à herança. adquiridos
equiva- descendente aplicação do onerosamen-
lente do exclusivo. inciso I ou te na
filho. inciso II. constância da
união.
Ficando os
anteriores ao
ex-cônjuge.
PONTOS - O compa- Desprivilégio Omissão Surgimento de Aplicação ou Surge a
POLÊ- nheiro não do companheiro legislativa. situação de não do art. questão de
MICOS tem X Proteção aos injustiça quando o 1.844 do CC, ser moral ou
proteção descendentes. de cujus somente que prevê que o não o ex-
ao mínimo deixar bens Município e o cônjuge
de ¼ da particulares e na DF somente herdar os
herança hipótese de o ficarão com os bens
garantido companheiro bens na adquiridos
ao cônjuge. herdar somente ausência do com o esforço
- Inade- 1/3 quando há companheiro conjunto do
quação da parentes ou cônjuge, em companheiro.
expressão distantes. relação aos bens
“filhos particulares.
comuns”.

5 – DIREITO REAL DE HABITAÇÃO E USUFRUTO VIDUAL


5.1 Direito Real de Habitação: Considerações Gerais
O direito real de habitação teve origem no Direito Romano e pode ser
bem explicado pela seguinte frase: uti potest frui non potest, que, em linhas
gerais, gera ao seu titular o direito de habitação sobre o bem e não os plenos
direitos de propriedade. Nesse sentido, GOMES expõe que (1999, p.309): “(...)
o uso e a habitação constituem usufrutos em miniatura”.
Deste modo, o direito real de habitação é o direito de moradia
garantido ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, sem
prejuízo de sua participação na herança, desde que seja o único imóvel
residencial do casal.
Trata-se de um direito personalíssimo invocável somente pelo
cônjuge supérstite, garantindo-lhe a moradia especificamente em relação ao
imóvel que era residência do casal enquanto estava vivo o de cujus. É o que

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defende OLIVEIRA (2005, p.136):


“Na formalização da partilha dos bens aos herdeiros há de
constar cláusula referente ao direito de habitação do cônjuge.
Levando-se a registro o formal de partilha, aquele direito constará
também do fólio registrário, para publicidade com relação a
terceiros. Mas não se trata de formalidade essencial à validade do
ato, uma vez que o caráter legal do direito de habitação dá-lhe
sustento ainda mesmo quando não tenha constado esse direito dos
termos da partilha.”
Vê-se, pois, que a garantia do direito real de habitação prescinde de
formalidades, sendo certo, contudo, que o cônjuge pode renunciar ao direito
real de habitação nos autos do inventário ou por escritura pública, sem
prejuízo de sua participação na herança.
5.2 Da Exclusividade do Imóvel Residencial
O direito real de habitação apresenta como requisito para sua
concessão a indispensabilidade de ser único o imóvel para fins de
residência, a teor do art. 1.831 do Código Civil, que prevê:
“Art. 1.831. Ao cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o
regime de bens, será assegurado, sem prejuízo da participação que
lhe caiba na herança, o direito real de habitação relativamente ao
imóvel destinado à residência da família, desde que seja o único
daquela natureza a inventariar.”
Essa redação leva a situações inusitadas de exclusão do direito real de
habitação. Por exemplo, se o de cujus dispõe na sucessão testamentária de
todos os imóveis, remanescendo à parte legítima apenas créditos, bens
móveis, bens imóveis de natureza não residencial ou qualquer outro valor.
Nesta hipótese, haja vista não existir na parte legítima imóveis residenciais,
o cônjuge sobrevivente não terá direito real de habitação.
Ou, por exemplo, quando o de cujus deixar dez casas de aluguel,
hipótese em que o cônjuge sobrevivente meará em todas, mas não terá
assegurada a habitação em nenhuma dessas casas.
É claro que meará em todos os imóveis residenciais, mas não terá a
segurança de garantir a sua moradia em um específico.
Assim, defendemos a aplicação de uma interpretação teleológica, no
sentido de manter o direito real de habitação mesmo havendo mais de um
imóvel. Nesse sentido, OLIVEIRA (2005, p.137):

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“Outro aspecto a merecer crítica diz com a ressalva do art. 1.831


(a repisar quanto constava do Código revogado, no art. 1.611, § 2º),
no sentido de limitar o direito real de habitação ao fato de o imóvel
residencial ser ‘o único daquela natureza a inventariar’. Trata-se de
restrição incompreensível na medida em que, se o casal possuía
duas ou mais residências (como na hipótese de casa de veraneio),
evidente se afigura que o direito de habitação, antes ampliado,
deveria manter-se, deixando à livre escolha da viúva a
permanência neste ou naquele prédio residencial.”
Digna de aplauso a solução declinada pelo referido autor de, em vez
de negar o direito real de habitação nesses casos, garantir que continuasse
habitando um dos imóveis ou garantir que passe a morar em outro prédio
com as mesmas condições de conforto que antes gozava.
Trata-se de interpretação que foca o valor social e a dignidade que a
moradia proporciona à pessoa.
Por fim, o Código Civil de 2002 não previu a hipótese de direito de
habitação ao filho portador de deficiência e impossibilitado para o trabalho,
antes previsto no art. 1.611, § 3º, do Código Civil de 1916, introduzido
naquela legislação pela Lei 10.050/2000.
E a essa omissão fazemos uma crítica, pois é inegável o caráter social e
de dignidade atrelado a essa proteção.
5.3 Direito Real de Habitação do Companheiro
É controvertida a extensão do direito real de habitação ao
companheiro sobrevivente e remonta à Lei 9.278/96, que inicialmente o
previu.
Isso porque alegava-se que a referida lei atribuía mais direitos aos
companheiros do que aos cônjuges. E a explicação é a seguinte: o cônjuge
sofria a restrição de ter o direito real de habitação condicionado a
determinado regime de bem (Código Civil antigo). No caso, somente teria
direito de habitação aquele cônjuge que constituirá seu matrimônio sob o
regime de comunhão universal. Por óbvio, o companheiro não sofria essa
limitação, já que em relação à união estável é incompatível a atribuição de
regime de bem.
Diante disso, defendeu-se a inconstitucionalidade pautada na tese de
que não se pode atribuir mais direito ao companheiro do que ao cônjuge.
Com o advento da Lei 10.406/2002, que institui o Código Civil de

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2002, a questão não foi resolvida, haja vista o silêncio quanto ao tema.
Essa omissão é campo fértil para vários posicionamentos acerca da
revogação ou não da Lei 9.278/96 e qual fundamento a ser aplicado.
No entanto, não há como se negar o direito real de habitação aos
companheiros. Esta, por citar, é a conclusão nº 5 referente às palestras do
Curso de Direito de família e Sucessões ocorrido durante os dias 2 de junho
a 28 de julho de 2006, na Escola Paulista da Magistratura do Tribunal de
Justiça do Estado de São Paulo. Veja-se:
“Direito de habitação:
O silêncio do CC não afasta o direito de habitação do
companheiro, em vista do disposto na Lei nº 9.278/96 e pela
garantia constitucional do direito de moradia. Justificativa do
autor: o Código Civil não revogou o art. 7º, parágrafo único, da Lei
9.278/96, que assegura ao companheiro o direito real de
habitação” (Disponível em:
<http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=232>).
A contenda jurídica também gerou discussões na I Jornada de Direito
Civil, realizada pelo Conselho da Justiça Federal, onde se elaborou o
seguinte enunciado:
“O direito real de habitação deve ser estendido ao
companheiro, seja por não ter sido revogada a previsão da Lei
9.278/96, seja em razão da interpretação analógica do art. 1.831,
informada pelo art. 6º, caput, da CF/88.”15
Por conseguinte, o entendimento mais razoável é a atribuição do
direito real de habitação também ao companheiro.
5.4 Usufruto Vidual
O usufruto vidual era o instituto que garantia ao cônjuge
sobrevivente o direito de usar e fruir de ¼ dos bens do falecido caso
houvesse descendentes, e ½ se houver ascendentes, previsto no art. 1.611, §
1º, do Código Civil de 1916:
“Art. 1.611 – À falta de descendentes ou ascendentes será
deferida a sucessão ao cônjuge sobrevivente, se, ao tempo da
morte do outro, não estava dissolvida a sociedade conjugal.

15 Disponível em: <http://www.daleth.cjf.jus.br/revista/enunciados/IJornada.pdf>. Acesso em: 03


dez. 2009, às 11h03min.

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§ 1º. O cônjuge viúvo, se o regime de bens do casamento não


era o da comunhão universal, terá direito, enquanto durar a
viuvez, ao usufruto da quarta parte dos bens do cônjuge falecido,
se houver filhos, deste ou do casal, e à metade, se não houver
filhos embora sobrevivam ascendentes do de cujus.”
E era disciplinado pela Lei 8.971/94, em seu art. 2º, incisos I e II. A
referida lei regulava o direito dos companheiros a alimentos e à sucessão.
Convém examinarmos com atenção:
“Art. 2º. As pessoas referidas no artigo anterior participarão da
sucessão do(a) companheiro(a) nas seguintes condições:
I – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não
constituir nova união, ao usufruto de quarta parte dos bens do de
cujus, se houver filhos ou comuns;
II – o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não
constituir nova união, ao usufruto da metade dos bens do de cujus,
se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes; (...).”
Ocorre que o novo Código Civil de 2002 não previu esse instituto.
Logo, a possibilidade de usufruto vidual está revogada em nossa legislação.
E essa corrente tem entre os defensores o respeitável SILVIO DE SALVO
VENOSA, que entende que “o art. 1.790 do novo Código Civil disciplina a forma
pela qual se estabelece o direito hereditário do companheiro ou da companheira, de
forma que os dispositivos a esse respeito na Lei 8.971/94 estão revogados”.
A omissão legislativa somada à perda da finalidade, ora alcançada
pelo direito real de habitação, implica admtir-se a atual inexistência deste
instituto no nosso sistema jurídico.
Contudo, há de se observar que aqueles que titularizam usufruto
vidual advindo antes do Código de 2002 têm direito adquirido a mantê-lo.
6 – ANÁLISE COMPARATIVA DOS DIREITOS SUCESSÓRIOS DO CÔNJUGE
FRENTE AO COMPANHEIRO
É inevitável que comparemos as duas formas de sucessão: do cônjuge
e do companheiro:
6.1 Comparativo em Relação aos Descendentes Comuns
É de fácil constatação a importância dada ao cônjuge pelo Código
Civil de 2002. Isso porque elevou-o a herdeiro necessário, que concorre com
os descendentes e ascendentes do autor da herança.

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A finalidade do legislador sempre foi garantir à prole uma proteção,


por isso a colocou em primeiro lugar na ordem de vocação. Em seguida,
pensou nos ascendentes, que são aqueles que, na maioria das vezes, passam
a maior parte da vida com o autor da herança.
E o cônjuge foi claramente protegido pelo legislador, justamente por
concorrer com pessoas consideradas beneficiárias por excelência.
O cônjuge concorre com os descendentes, desde que não tenha se
casado pelo regime de comunhão universal ou separação obrigatória de
bens.
Isso até pode parecer uma restrição, mas é justificada pelo fato de que
no regime de comunhão universal o cônjuge já ficará com metade de todo o
patrimônio do casal, portanto já tem garantido um direito sucessório
satisfatório.
Já a restrição quanto ao regime de separação obrigatória ocorre
porque o legislador teve a intenção de criar obstáculos para a transferência
de patrimônio entre os cônjuges casados sob esse regime, justamente para
impedir que seja essa a finalidade do casamento, isto é, a finalidade
patrimonial.
Já no caso do companheiro sobrevivente, quando concorre com
descendentes comuns, a herança recairá sobre os bens adquiridos
onerosamente na constância da união estável e não sobre os bens
particulares, como ocorre no casamento. E “terá direito a uma quota
equivalente à que por lei for atribuída ao filho”.
Isso significa que herdará onde já meou. Aos descendentes caberá
herdarem sozinhos nos bens particulares do de cujus.
O que temos é diferença na chamada base de cálculo16. Vale dizer: o
cônjuge herdará sobre os bens particulares do de cujus e meará sobre os
aquestos, portanto, onde herdar não irá mear. Já o companheiro herdará sobre
os aquestos, e nesse caso herdará onde meará.
Essa diferença na base de cálculo pode levar a situações inaceitáveis. É
o caso emblemático já citado no presente trabalho, em que um casal venha a
constituir união estável, sendo que o companheiro já vem para a união com
uma única casa. Com o passar dos anos, o companheiro vem a falecer e sem

16 Expressão utilizada por GUSTAVO RENE NICOLAU em sua obra Direito Civil – Sucessões. São Paulo:
Atlas, 2005, v.9.

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deixar descendentes, ascendentes e qualquer outro bem patrimonial deixará


sua viúva totalmente desamparada, pois esta apenas herdará e meará nos
aquestos, e esses não existem. E bem pior, a casa irá compor a herança
jacente, já que a companheira supérstite não tem garantido o direito real de
habitação e o usufruto vidual.
Outro aspecto relevante que denota a diferença de tratamento entre
cônjuge e companheiro é o chamado piso de herança, que se consubstancia
em ¼ da herança assegurado ao cônjuge, o que não se garante ao
companheiro.
6.2 Comparativo com Descendentes Exclusivos do Autor da Herança e
Hipótese Híbrida
Ainda pior é a situação do companheiro sobrevivente quando
concorre com descendentes exclusivos do de cujus. Isso porque o que lhe
cabe é a metade do que receberá cada descendente exclusivo.
Já no caso do cônjuge supérstite, a situação é outra. O cônjuge herdará
como se fosse um descendente com cota idêntica.
Vê-se, pois, manifesta proteção ao cônjuge.
6.3 Comparativo em Relação ao Ascendente
No caso da concorrência com ascendentes, o cônjuge terá direito a
quotas a depender com que ascendente concorre. Se concorrer com os pais
(pai e mãe) do de cujus, terá reservado 1/3 do patrimônio. Em qualquer
outra situação, ficará com ½, enquanto que a outra metade será destinada
para o ascendente.
A situação do companheiro quando concorre com os ascendentes é a
seguinte: o companheiro, fora a hipótese de descendentes, concorrerá com
outros parentes sucessíveis e, nesse caso, herdará 1/3 dos bens adquiridos
onerosamente na constância da união estável, sendo que os bens
particulares serão entregues na sua totalidade ao ascendente ou a qualquer
outro parente sucessível.
Mais uma vez o companheiro é prejudicado. Isso porque se restar
apenas um parente distante esse ficará com 2/3 do patrimônio, restando
1/3 ao companheiro, que com o de cujus dividiu sua vida.
O que não ocorre com o cônjuge, que ficará com 1/3 dos bens se
concorrer com pai e mãe e com ½ se concorrer em qualquer outra situação.

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Ademais, se não houver ascendentes, o cônjuge herdará com


exclusividade; já o companheiro, somente assistir-lhe-á o direito de
exclusividade se não houver nenhum outro parente sucessível.
6.4 Tendências
A luta pela isonomia, por vezes, é mais antiga que a própria lei. E,
neste caso, a igualdade é inobservada pela lei.
E isso ganha contornos de inconstitucionalidade, pois a própria
Constituição Federal coloca o casamento e a união estável como entidade
familiar e por isso no mesmo patamar.
Deste modo, onde há desigualdade entre cônjuges e companheiros,
haverá crassa inconstitucionalidade. Por exemplo, é nula a disposição que
determina base de cálculo17 diversa para cônjuge e para companheiro. Ambos
deveriam herdar sobre os bens particulares, como ocorre com os cônjuges, e
não apenas em relação aos aquestos, onde devem na verdade apenas mear.
Além disso, as quotas asseguradas para cada um (cônjuge e
companheiro) devem ser iguais, pois não há justificativa para diferenciação.
Outro direito que não foi garantido ao companheiro é o direito real de
habitação, também sem fundamentos para restrição.
Não se justifica, pois, tratar os iguais desigualmente! Esse
entendimento já vem sendo aplicado por alguns Tribunais, entre eles o
Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Vejamos o seguinte acórdão18:
“EMENTA: CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO.
INVENTÁRIO. DECISÃO QUE IMPEDIU A PARTICIPAÇÃO DA
COMPANHEIRA NA SUCESSÃO AO ARGUMENTO DE QUE
LHE BASTAVA A MEAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE. DIREITO À
SUCESSÃO ASSEGURADO. APLICAÇÃO ANALÓGICA DOS
ARTS. 1.829, I, E 1.725, AMBOS DO CÓDIGO CIVIL. VEDADA A
DISTINÇÃO ENTRE CÔNJUGE E COMPANHEIRA PARA FINS
SUCESSÓRIOS OPERADA PELO ART. 1.790 DO REFERIDO
DIPLOMA LEGAL. INTELIGÊNCIA DO ART. 226, § 3º, DA
CONSTITUIÇÃO FEDERAL. DECISÃO REFORMADA.
RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO” (Acórdão: Agravo de

17 Expressão utilizada por GUSTAVO RENE NICOLAU em sua obra Direito Civil – Sucessões. São Paulo:
Atlas, 2005, v.9.
18 Disponível em: <http://www.cc2002.com.br/imprimir.php?id=678&ergo=print_noticia>.

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Instrumento nº 2007.035282-1, de São José. Relator: Desemb.


Marcus Túlio Sartorato. Data da decisão: 22.07.2008. Publicação
DJSC Eletrônico nº 511, edição de 20.08.2008, p. 95).
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, no Agravo de
Instrumento nº 70020389284, admitiu a aplicação analógica do art. 1.829, I,
do CC combinado com art. 1.725, do CC ao companheiro, para que se
alcance isonomia de tratamento e impeça-se qualquer tipo de discriminação
para com aqueles que constituem união estável.
Deste modo, cremos, quaisquer tratamentos diferenciados entre
cônjuges e companheiros padecem de vício de inconstitucionalidade
material.
7 – CONSIDERAÇÕES FINAIS
A luta pela igualdade é constante desde os primórdios da
humanidade. Discriminaram-se pessoas pela cor de sua pele, pela sua
religião, pelo seu sexo e, como exposto, pessoas até mesmo pela forma com
que estabelecem seus relacionamentos.
A união estável é reconhecida como entidade familiar pela
Constituição Federal de 1988, mas esse reconhecimento não foi capaz de
extirpar a discriminação que companheiros e companheiras sofrem.
É verdade que a discriminação está adelgaçada. No entanto, não está
totalmente sepultada.
O que se busca é sugerir a inclusão do companheiro como herdeiro
necessário, o que, via de consequência, acabaria com as distinções de
tratamento e lhe garantiria uma segurança em momento tão complicado,
como a morte de um companheiro.
O reconhecimento como herdeiro necessário lhe garantirá quotas,
direito de concorrência, direito real de habitação, enfim, os memos direitos
sucessórios dos cônjuges.
É o que se espera; é o que em breve haverá!
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Legislação Brasileira. Disponível em: <www.artigonal.com/.../comparacao-entre-a-
tutela-sucessoria-dos-conjuges-e-companheiros-na-legislacao-brasileira-615740.html>.
Acesso em: 24 nov. 2009.

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DANELUZZI, Maria Helena Marques Braceiro. Aspectos polêmicos na sucessão do cônjuge
sobrevivente: de acordo com a Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002: doutrina,
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DIAS, Maria Berenice. Conversando sobre família, sucessões e o novo Código Civil. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2005.
_____. Amor não tem idade. CD-ROM, Magister.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo dicionário Aurélio da língua portuguesa. 4.ed.
Curitiba: Positivo, 2009. 2.120p.
GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direito civil: sucessões. 2.ed. São Paulo: Atlas,
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VENOSA, Silvio de Salvo. Direito civil: direito de família. 5.ed. São Paulo: Atlas, 2005, v.6.

100
O CONTRATO DE SEGURO E A RENOVADA
POLÊMICA RELACIONADA À PREMEDITAÇÃO
DO SUICÍDIO DEPOIS DA PUBLICAÇÃO DO
CÓDIGO CIVIL DE 2002 (PARECER)
L ÚCIO D ELFINO *

Ementa: Suicídio. Contrato de seguro de vida. Pertinência da


discussão sobre a premeditação do suicídio depois da vigência
do atual Código Civil. Ônus da prova. Incidência de juros de
mora e correção monetária.

Sumário: 1 – A consulta; 2 – O parecer; 2.1 O contrato de seguro


de vida e o suicídio involuntário; 2.2 O art. 798 do Código Civil e
o ônus da prova; 2.3 O direito à indenização; 2.4 Correção
monetária e juros; 3 – Resposta aos quesitos.

Resumo: Por meio deste parecer, enfrenta-se questão que se


tornou tormentosa, tanto na doutrina como na jurisprudência,
depois de publicado o Código Civil de 2002: a indenização
securitária em caso de suicídio involuntário. Defende-se a
incoerência de se aceitar interpretação fundada meramente na
literalidade do art. 798 do Código Civil, bem assim a pertinência,
ainda hoje, da discussão sobre a premeditação do suicídio para
se definir se o capital estipulado deve ou não ser pago.

Palavras-chave: Suicídio. Contrato de seguro. Premeditação.


Voluntário. Boa-fé. Ativismo judicial. Ônus da prova.

* Advogado. Doutor em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Professor convidado de cursos de pós-graduação em Direito Processual Civil. Membro do
Instituto Brasileiro de Direito Processual. Membro do Instituto dos Advogados de Minas Gerais.
Membro da Academia Brasileira de Direito Processual Civil. Membro do Instituto de
Hermenêutica Jurídica. Diretor da Revista Brasileira de Direito Processual.

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Abstract: By means of this concept confronts the question that


which became distressed, as much in doctrine than in
jurisprudence, after been published at the 2002 Civil Code: the
insurance compensation in case of involuntary suicide.
Support the acceptance incoherence established accordant with
Civil Code art. 798, in association, even at the present time, of the
discussion about the premeditated or planed suicide to decide if
the amount stipulated must be paid or not.

Keywords: Suicide. Insurance policy. Premeditated. Voluntary.


Friendly. Judicial activity. Evidence.

1 – A CONSULTA
Honra-me o amigo, brilhante advogado e professor universitário Dr.
PAULO LEONARDO VILELA CARDOSO, ao apresentar-me consulta envolvendo
interesse de uma de suas clientes. Esta se viu inserida abruptamente num
trágico cenário que envolveu o suicídio de seu único filho. Ocorre que
meses atrás ao funesto acontecimento, a sociedade de advogados (estipulante),
à qual o falecido prestava serviços como estagiário, havia contratado seguro
de vida (em grupo) com a pessoa jurídica PSCDSG – intitulada doravante
simplesmente de seguradora –, e ali o inseriu na qualidade de segurado
principal. A mãe do morto – doravante denominada de cliente – é a única
beneficiária do aludido seguro. Postulada, então, administrativamente a
indenização, a seguradora, em resposta escrita, negou o pagamento.
Esclareceu que o sinistro em referência não possui cobertura técnica, pois o
suicídio deu-se nos dois primeiros anos do início de vigência do seguro.
Fundou-se, para tanto, no que dispõe o art. 798 do Código Civil atual.
Inconformada, a cliente solicitou à seguradora, também em documento
escrito, fosse reavaliada aquela decisão, assentando seu pedido nas Súmulas
nºs 61 e 105, respectivamente do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo
Tribunal Federal. Mas a negativa persistiu, agora sob a fria explicação de
que não haveria fatos novos que justificassem o reexame da primeira
análise. Não obstante, a seguradora comprometeu-se em provisionar o
pagamento da “assistência funeral”, ainda que por mera liberalidade.
Concluído o relato, foi-me solicitado responder aos seguintes
quesitos:
1 – O novo Código Civil realmente alterou o entendimento,
doutrinário e jurisprudencial, dominante de que, não sendo premeditado o

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suicídio, é devido o pagamento da indenização?


2 – Se negativa a resposta ao quesito anterior, a quem cabe o ônus da
prova de que houve premeditação no suicídio?
3 – Pela narrativa e documentos apresentados, é possível afirmar se a
cliente, única beneficiária do seguro, teria direito à indenização constante da
apólice?
4 – Considerando que a cliente tem mesmo o direito à indenização, a
partir de quando lhe são devidos a correção monetária e os juros de mora?
Recebi cópias de diversos documentos, entre eles a certidão de óbito,
o certificado individual referente ao seguro contratado, os comprovantes do
pagamento do prêmio, as solicitações formuladas à seguradora pela cliente
e as correspondentes negativas.
Bem examinados a consulta e os documentos, sinto-me à vontade
para responder aos quesitos formulados, o que faço mediante o seguinte
parecer.
2 – O PARECER
2.1 O Contrato de Seguro de Vida e o Suicídio Involuntário
De todos os fatos a mim relatados, e também pela análise dos
documentos que me foram entregues, algumas ilações são inquestionáveis:
a) o valor de eventual indenização a ser paga à beneficiária é de R$ 20.000,00
(vinte mil reais); b) vê-se, no certificado individual, indicação expressa do
início e término da vigência contratual, vale dizer, o período de 01.04.2007 a
31.03.2008; c) o prêmio era pago pontualmente e nada ficara devido à
seguradora na ocasião do suicídio; e d) o suicídio realmente se deu nos dois
primeiros anos de vigência do contrato de seguro.
A seguradora nega a pretensão da cliente (única beneficiária), e o faz
fundada no argumento de que seria indevida a indenização postulada em
decorrência da morte do segurado, haja vista que o suicídio dele se deu nos
primeiros meses de vigência do contrato de seguro. Resiste, portanto, com
alicerce no art. 798 do atual Código Civil, positivado nos seguintes termos:
“Art. 798. O beneficiário não tem direito ao capital estipulado
quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência
inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso,
observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente.
Parágrafo único. Ressalvada a hipótese prevista neste artigo, é

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nula a cláusula contratual que exclui o pagamento do capital por


suicídio do segurado.”
Resta saber se a exegese atribuída pela seguradora ao dispositivo
supra é realmente a mais adequada. Se assim for, adiante-se, cairá por terra
toda a evolução jurisprudencial sobre o assunto, a qual se encontra
atualmente sintetizada em súmulas do Supremo Tribunal Federal e do
Superior Tribunal de Justiça1.
Era mesmo sereno o entendimento de que o contrato de seguro de
vida cobre o suicídio, ressalvada a hipótese de premeditação2. Afinal, é da
própria essência do instituto a cobertura somente de fatos acidentais, alheios
à vontade do contratante. Fugiria decerto a essa lógica o pagamento pelas
seguradoras de indenização decorrente de fato causado conscientemente
pelo próprio contratante, que assim tenha agido com evidente objetivo
fraudatório. Sem contar que tal possibilidade fomentaria duplamente o
ilícito: de um lado, incentivaria indivíduos decididos a cometer suicídio a
celebrarem contratos de seguro a fim de garantir a subsistência de amigos e
familiares; de outro, alimentaria o próprio ideal de extinção da própria vida,
ato que a sociedade tão veementemente reprova3.
Basicamente, o presente parecer gira em torno da indagação: teria o
legislador realmente estabelecido um prazo – dois anos – em que as
seguradoras estariam imunes ao pagamento da indenização, ainda na
hipótese de suicídio não premeditado? Positiva a resposta, algumas
conclusões, de imediato, surgem à mente: a) o suicídio, premeditado ou
não, praticado no “prazo de carência” não seria indenizável; b) o suicídio
praticado após o “prazo de carência”, premeditado ou não, seria
indenizável; e c) perdeu sentido, completamente, a discussão sobre a

1 Estes os teores das súmulas referidas, respectivamente oriundas do Superior Tribunal de Justiça e
do Supremo Tribunal Federal: “Súmula nº 61: O seguro de vida cobre o suicídio não
premeditado”. “Súmula nº 105: Salvo se tiver havido premeditação, suicídio do segurado no
período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro.”
2 WASHINGTON DE BARROS MONTEIRO define com precisão o suicídio involuntário, além de bem

situar o entendimento doutrinário e pretoriano que vigia antes da publicação do Código Civil de
2002: “Involuntário é o suicídio praticado em razão de força irresistível, sob o impulso de
insopitável violência de ordem física ou moral, que lhe retira a natureza de ato livre,
caracterizando-se como produto de força maior. Cláusula que exclua a indenização no suicídio
involuntário é inoperante, porque contrária à própria finalidade econômica e específica do
contrato de seguro” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. Direito das
obrigações. 32.ed. São Paulo: Saraiva, 2000, v.5 (2ª parte). p.354-355).
3 ALMEIDA, J. C. Moitinho. O contrato de seguro no direito português e comparado. Lisboa: Livraria Sá da

Costa, 1971, p.383.

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ocorrência ou não de premeditação4.


Curioso é que realmente parece ter sido essa a intenção do legislador.
Numa interpretação gramatical, não é possível extrair do enunciado em exame
outro sentido que não aquele indicado pela própria seguradora ao negar a
indenização à cliente. Talvez o art. 798 represente fruto de pressões (lobismo)
exercidas no Parlamento por grupos organizados que lucram com a venda
de seguros, estratégia bem sucedida como se constata pela exatidão da
norma, e cujo propósito maior voltou-se a desbancar o entendimento
pretoriano tranquilo formado a respeito do tema.
Mas o intérprete no Estado Democrático de Direito não deve se
contentar com a literalidade da norma, e muito menos com a intenção do
legislador. Antes, há de confrontá-la com a tábua axiológica que rege a
sociedade contemporânea, questionar sua constitucionalidade e, se
necessário, imprimir-lhe sentido que se coadune com os direitos
fundamentais e princípios constitucionais. É seu dever interrogar a norma,
dela desconfiar, perquirir a sua intimidade com os valores fundamentais,
notadamente numa época em que tanto se questionam os resultados
oriundos de democracias representativas. Trata-se de um ativismo voltado a
conferir valor às normas infraconstitucionais, desvelando-lhes significados
que se harmonizem com a Carta Magna, preocupação indispensável para se
afiançar a própria legitimidade da decisão judicial5.

4Nesta linha, o entendimento de ERNESTO TZIRULNIK: “(...) a norma veio com o objetivo de pôr fim
ao debate, estabelecendo o critério de carência de dois anos para garantia do suicídio. (...) não se
discute mais de houve ou não premeditação, se foi ou não voluntário. Justifica-se este lapso
temporal pelo fato de que é inimaginável que alguém celebre contrato de seguro ‘premeditando’
o suicídio dois anos à frente” (TZIRULNIK, Ernesto; CAVALCANTI, Flávio; PIMENTEL, Ayrton. O
contrato de seguro de acordo com o Código Civil brasileiro. 2.ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003,
p.188).
5 Leciona SERGIO FERNANDO MORO que não se pode entender democracia sob uma visão

exclusivamente procedimentalista, sob pena de ser impossível a compatibilidade dela com a


jurisdição constitucional. Se a democracia for definida exclusivamente como um processo de
tomada de decisões, no qual deve ser ampla a influência da vontade popular, então a jurisdição
constitucional dificilmente poderá ser considerada instituição democrática (MORO, Sérgio
Fernando. Jurisdição constitucional como democracia. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p.115).
No mesmo rumo de entendimento, leciona JOSÉ HERVAL SAMPAIO JÚNIOR: “Entender a
democracia limitada à participação hoje universal do cidadão na escolha de seus representantes
nos Poderes Legislativo e Executivo é ir de encontro à necessidade da efetividade dos direitos e
garantias fundamentais, o que representa uma quebra de todo o movimento de
constitucionalização do Direito e minimiza a própria importância do cidadão, fazendo do
processo jurisdicional um faz-de-conta. Democracia só existe quando os direitos dos cidadãos são
cumpridos. Imaginar, por exemplo, que o direito à liberdade do cidadão em todos os sentidos não
é respeitado pelo poder público significa dizer que, nesse caso, não há que se falar em Estado

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É pertinente, neste rumo, a feliz lição de NAGIBE DE MELO JORGE


NETO:
“A sociedade pós-moderna não precisa mais da proteção contra
os arbítrios do soberano, por meio de leis aprovadas pelos
representantes do povo. Precisa, sim, de proteção contra a
instrumentalização do direito e das leis em favor dos mercados,
em favor das minorias abastadas. As leis devem guardar
compatibilidade com a Constituição, mas não uma
compatibilidade meramente formal, falamos de uma
compatibilidade ético-axiológica. Além disso, o próprio Estado
deve pautar suas condutas, deve promover políticas públicas
capazes de cumprir a pauta valorativa estabelecida pela
Constituição. Uma separação de poderes nos moldes preconizados
pelo Iluminismo não é mais capaz de responder a esses desafios
porque a lei não é mais um valor em si mesma. O ideal de
representação popular foi levado de roldão com todas as certezas
da modernidade. Hoje, a ciência política discute o poder dos
grupos de pressão econômica, a captura das agências reguladoras
e do próprio aparelho estatal pelo mercado.”6
Ainda que não se vislumbre inconstitucionalidade no art. 798 do
Código Civil, compreendê-lo friamente, apenas com foco em sua grafia,
alheio à sistematização do ordenamento jurídico, em desatenção
especialmente para com a disciplina do seguro, é andar de mãos dadas com
a injustiça. Mas não seria absurdo, de outro turno, aperceber-se que tal
dispositivo realmente atenta à Constituição, sobretudo ao direito fundamental

Democrático. Não se pode admitir – a partir da ideia de que em uma democracia deve sempre
prevalecer a vontade da maioria – que se descumpram os direitos e garantidas fundamentais do
cidadão” (SAMPAIO JÚNIOR, José Herval. Processo Constitucional. Nova Concepção de Jurisdição.
São Paulo: Método, 2008, p.92-93). Não bastam, no Estado Democrático de Direito, um adequado
procedimento e a própria participação em igualdade de condições das partes no processo para se
legitimar a decisão judicial. Por certo que a legitimidade da jurisdição e da própria tutela jurisdicional
está condicionada à observância do modelo constitucional do processo. Mas, complementarmente,
indispensável também à garantia dessa legitimação que se utilize de uma interpretação jurídica
que acomode a lei aos direitos fundamentais e aos princípios constitucionais. Insista-se nisso: é
pouco apenas aplicar a lei segundo os ditames de um procedimento adequado e participativo,
cujas decisões dele oriundas se apresentem devidamente motivadas por argumentações sólidas e
inteligíveis; igualmente necessário que essa mesma lei seja aplicada conforme uma dimensão
constitucional (legitimação pelo resultado).
6 JORGE NETO, Nagibe de Melo. O controle judicial das políticas públicas. Concretizando a democracia e

os direitos sociais fundamentais. Salvador : Editora JusPodivm, 2008, p.64.

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à tutela jurisdicional adequada (CF/88, art. 5º, XXXV). Afinal, vale-se a norma
infraconstitucional de um critério objetivo-temporal, estranho, salvo melhor
juízo, à proporcionalidade, fincado exclusivamente no tempo, e, de tal sorte,
cria um prazo de carência que exclui peremptoriamente o direito à
indenização pelo beneficiário do seguro quando o segurado suicidar-se nos
primeiros dois anos de vigência inicial do contrato. A norma, com toda
evidência, intenta eliminar a possibilidade de tutela jurisdicional ressarcitória
sempre que o suicídio ocorrer naqueles dois primeiros anos da contratação.
Não bastasse, o art. 798 visivelmente ignora toda a construção
doutrinária e jurisprudencial, que distingue as hipóteses de suicídio
voluntário e involuntário, elaborada anteriormente à sua vigência
justamente para imprimir justiça às decisões, e assim evitar enriquecimento
sem causa a qualquer dos contratantes. Ignora, portanto, um dos elementos
essenciais ao contrato de seguro, a saber, a própria boa-fé, e, por
conseguinte, marginaliza a importância deste ângulo de análise para se
definir se uma determinada situação fática realmente autoriza, ou não, a
concessão da indenização.
É imperativo, portanto, que a questão seja enfrentada sob um enfoque
que não se atente exclusivamente à literalidade da norma, e se preze por
uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico. Consciente de que
é essa a melhor alternativa, solução outra não há que não compreender o
dispositivo em consonância com toda aquela construção doutrinária e
pretoriana já referida, somando-se apenas uma ou outra novidade.
É essa também a impressão do jurista LEONE TRIDA SENE:
“Não acreditamos que uma norma legal, mesmo editada
validamente, tenha o condão de modificar, da noite para o dia,
todo o entendimento doutrinário e jurisprudencial firmado ao
longo de quase cem anos. O fato de se estabelecer, por meio de lei,
um prazo de carência não modifica em nada a realidade fática do
suicídio involuntário, que continua sendo produto de uma
depressão profunda ou de alienação mental, que retira do
indivíduo todo e qualquer controle sobre suas ações, o levando ao
cometimento de atos absolutamente impensados em seu estado
normal.”7

7 SENE, Leone Trida. Seguro de Pessoas. Negativas de Pagamento das Seguradoras. Curitiba: Juruá,
2006, p.171.

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Tenha-se em mente, de início, que o seguro é contrato pelo qual o


segurador se obriga, mediante o pagamento do prêmio, a garantir interesse
legítimo do segurado, relativo à pessoa ou à coisa, contra riscos
predeterminados (CC/2002, art. 757). São seus elementos essenciais: o risco,
a mutualidade e a boa-fé8.
No que diz respeito a este parecer, reforce-se a ideia, interessa mais de
perto o terceiro elemento, vale dizer, a boa-fé9, que necessariamente deve
integrar as condutas dos contratantes. Aliás, existe expressa disposição legal
em tal sentido prevista no Código Civil:
“Art. 765. O segurado e o segurador são obrigados a guardar na
conclusão e na execução do contrato a mais estrita boa-fé e
veracidade, tanto a respeito do objeto como das circunstâncias e
declarações a ele concernentes.”
É a boa-fé, portanto, critério de lealdade e ética negocial,
indispensável à variedade de negócios jurídicos, sobretudo ao contrato de
seguro em face de suas peculiaridades. Sua disciplina legal encontra-se não
apenas no Código Civil (CC/2002, art. 422), senão ainda no Código de
Defesa do Consumidor (CDC, arts. 4º, III; 6º, III e IV; 54, §§ 3º e 4º).
Ainda sobre a boa-fé como elemento indispensável ao seguro, é
valiosa a lição do já citado SÉRGIO CAVALIERI FILHO:
“Chegamos, finalmente, ao terceiro e mais importante elemento

8 Nas palavras de SÉRGIO CAVALIERI FILHO, esses três elementos essenciais do seguro representam
verdadeira trilogia, espécie de “santíssima trindade” (CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de
Responsabilidade Civil. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.418).
9 Sobre a boa-fé como elemento essencial ao contrato de seguro, confira-se a lição abalizada de
CLAUDIO LUIZ BUENO DE GODOY: “Este artigo (CC/2002, art. 765), em redação mais ampla que a
do art. 1.443 do Código anterior, mas tal qual lá já se pretendia, exige de maneira muito especial
que, no contrato de seguro, ajam as partes com probidade e lealdade. Isso porque (...) o seguro
encerra contrato essencialmente baseado na boa-fé. Lembre-se de que, no seguro, contrata-se uma
garantia contra um risco, qual seja o de acontecimentos lesivos a interesse legítimo do segurado,
mediante o pagamento de um prêmio, tudo fundamentalmente calculado com base nas
informações e declarações das partes, cuja veracidade permite uma contratação que atenda a suas
justas expectativas. É uma equação que leva em conta a probabilidade de ocorrência do evento
que será garantido, assim se impondo estrita observância à boa-fé dos contratantes, especialmente
em suas informações e declarações, para que ambos tenham sua confiança preservada na
entabulação”. E conclui o civilista: “Em rigor, o presente dispositivo repete, para o contrato de
seguro, a mesma exigência que, em geral, o Código estabeleceu, no art. 422, para todos os
contratos, ocupando-se, porém, de especificá-lo no seguro, dada sua característica intrínseca de
especial dependência da veracidade das partes para que a contratação se ostente equânime e
solidária. (...)” (GODOY, Claudio Luiz Bueno de. Código Civil Comentado. Doutrina e
Jurisprudência. In: PELUSO, Cezar (Coord.). São Paulo: Manole, 2007, p.632).

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do seguro – a boa-fé –, que é também o seu elemento jurídico.


Risco e mutualismo jamais andarão juntos sem a boa-fé. Onde não
houver boa-fé o seguro se torna impraticável. Se nos fosse possível
usar uma imagem, diríamos que a boa-fé é a alma do contrato de
seguro, o seu verdadeiro sopro de vida. E assim é em decorrência
de suas próprias características, já examinadas: se o seguro é uma
operação de massa, sempre realizada em escala comercial e
fundada no estrito equilíbrio da mutualidade; se não é possível
discutir previamente as duas cláusulas, uniformemente
estabelecidas nas condições gerais da apólice; enfim, se o seguro,
para atingir a sua finalidade social, tem que ser rápido, eficiente,
não podendo ficar na dependência de burocráticos processos de
fiscalização, nem de morosas pesquisas por parte das seguradoras,
então, a sua viabilidade depende da mais estrita boa-fé de ambas
as partes. Se cada uma não usar de veracidade, o seguro se torna
impraticável.”10
Evidentemente que ulcera a cláusula de boa-fé aquele (segurado) que
pratica o suicídio conscientemente. Age deslealmente e sua premeditação
favorece a seguradora, que fica exonerada da obrigação de indenizar o
beneficiário do contrato (CC/2002, art. 768). Insista-se que a interpretação
do art. 798 do Código Civil não pode desconsiderar a análise sobre a
premeditação do suicídio, porquanto diretamente relacionada à boa-fé,
elemento essencial ao contrato de seguro – afinal, como exalta SÉRGIO
CAVALIERI FILHO, é ela a “alma do contrato de seguro”. Com a devida vênia
àqueles que assim não pensam, advogar a impertinência de se discutir a
premeditação do suicídio posteriormente à vigência do Código Civil atual,
em apego exclusivo a um critério objetivo-temporal, é demonstrar
desconhecimento sobre os mais comezinhos princípios que assentam o
seguro, é assumir posição partidária em prol das seguradoras que não
encontra respaldo no ordenamento jurídico – muito pelo contrário, a parte
vulnerável de tal relação é o segurado (e também o beneficiado), e em
salvaguarda deles deve o intérprete nortear seu raciocínio, tendo-se em
vista que os contratos de seguro também são disciplinados pelo Código de
Defesa do Consumidor, lei assumidamente protecionista e elaborada com o
propósito de concretizar o comando constitucional que obriga o Estado a
promover a defesa do consumidor (CF/88, art. 5º, XXXII).

10 CAVALIERI FILHO, Sérgio. Programa de Responsabilidade Civil. 8.ed. São Paulo: Atlas, 2008, p.430.

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É, portanto, pertinente a discussão acerca da premeditação do


suicídio, mesmo depois da vigência do atual Código Civil, e assim pela
simples razão de que o debate encontra-se em sintonia direta com a boa-fé,
elemento essencial aos contratos de seguro. Não é suficiente, destarte, focar-
se o raciocínio apenas no critério objetivo-temporal, inserto pelo art. 798 do
Código Civil, para definir se aquele, beneficiário de seguro de vida, tem
direito ou não à indenização pelo suicídio do segurado. A atividade
cognitiva deve abranger também o critério subjetivo, vale dizer, cumpre ao
juiz examinar se efetivamente o suicídio foi voluntário e, por conseguinte, se
existiu premeditação por parte do segurado. Ambos os critérios, objetivo-
temporal (carência bienal) e subjetivo (ausência ou não de premeditação),
analisados em conjunto, é que servirão de base sólida para se definir se o
beneficiário detém mesmo direito ao capital estipulado11.
A nova regra há de ser interpretada, enfim, no sentido de que,
superados os primeiros dois anos de vigência do seguro, presume-se que o
suicídio não tenha sido voluntário. Se, todavia, ocorrer antes da
consumação do prazo, presume-se que fora, em tal caso, consciente.
Obviamente, são presunções relativas, e ambas podem ser quebradas: na
primeira hipótese, cumpre à seguradora demonstrar que o segurado
suicidou-se munido da intenção de beneficiar terceiro com o pagamento da
indenização; na derradeira, é ônus do terceiro beneficiado a prova de que o
suicídio não foi consciente, isto é, cabe-lhe demonstrar a ausência de
premeditação. O art. 798, portanto, além de estabelecer um novo critério
(objetivo-temporal), estabeleceu nova dinâmica ao ônus relativo à prova do
critério subjetivo, ora o direcionando à seguradora, ora ao beneficiário.
A exegese proposta, que já encontra respaldo em boa doutrina e
jurisprudência, afina-se com a disciplina legal do contrato de seguro,
incorpora a indispensabilidade de condutas pautadas na boa-fé por parte
daqueles que entabulam negócios jurídicos, e dribla proporcionalmente
intenções fraudulentas.
2.2 O Art. 798 do Código Civil e o Ônus da Prova
Indaga o consulente a quem cabe demonstrar a ocorrência de

11 Portanto, se comprovada a premeditação do segurado e, por conseguinte, que seu suicídio foi
consciente, elide-se a obrigação de indenizar da seguradora, naturalmente porque a hipótese se
enquadra perfeitamente como “fato exclusivo do segurado”, excludente da responsabilidade civil
– lembre-se que o art. 768 do Código Civil estabelece que o “segurado perderá o direito à garantia
se agravar intencionalmente o risco objeto do contrato”.

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premeditação em processo judicial, cujo mérito discute-se eventual direito à


indenização securitária por morte decorrente de suicídio. A resposta a este
quesito também já foi anunciada no tópico anterior. Merece, entretanto,
reforço de mais algum subsídio.
Ali se indicou a melhor exegese a ser conferida ao art. 798 do Código
Civil: superados os primeiros dois anos de vigência do seguro, presume-se
que o suicídio não fora voluntário; se, todavia, ocorrer antes da consumação
do prazo, presume-se que tenha sido voluntário. Na primeira hipótese, é da
seguradora o ônus de provar que o segurado suicidou-se imbuído da
intenção de favorecer terceiro, e assim superar a presunção que lhe é
desfavorável; na última, cumpre ao terceiro beneficiado o ônus de
demonstrar que o suicídio não foi consciente, e que, portanto, inexistiu
premeditação, evidência que quebrará a presunção que se apresenta
contrária aos seus interesses. Consoante assinalado anteriormente, o art.
798, além de instituir um novo critério (objetivo-temporal), estabeleceu nova
dinâmica ao ônus da prova no que toca ao critério subjetivo, ora
direcionando-o à seguradora, ora ao beneficiário.
A interpretação que se sugere encontra-se em sintonia com o
Enunciado 187 da III Jornada de Direito Civil, cuja elaboração coube ao
Conselho de Justiça Federal. Confira-se:
“Enunciado 187: No contrato de seguro de vida, presume-se, de
forma relativa, ser premeditado o suicídio cometido nos dois
primeiros anos de vigência da cobertura, ressalvado ao
beneficiário o ônus de demonstrar a ocorrência do chamado
‘suicídio involuntário’.”
Em conclusão, naquelas hipóteses, como a retratada no presente
parecer, em que o suicídio tenha ocorrido nos dois primeiros anos de
vigência do contrato de seguro, presume-se a voluntariedade do suicídio,
cumprindo ao beneficiário, por consequência, o ônus de provar a ausência
de premeditação, isto é, que o suicídio não foi consciente.
2.3 O Direito à Indenização
O terceiro questionamento é direcionado às particularidades fáticas
do caso concreto. Indaga o consulente se há possibilidade de afirmar se a
cliente, única beneficiária do seguro, teria direito à indenização constante da
apólice, tendo-se em vista a narrativa apresentada e os documentos
examinados.

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Salvo algum fato novo que desconheço, parece-me bastante difícil


defender premeditação no caso sob exame. Assim o é porque não foi o
falecido quem contratou o seguro de vida, e sim a sociedade de advogados
na qual exercia suas atividades. Trata-se, portanto, de contrato de seguro de
vida em grupo. Ora, não me parece adequado pensar-se em premeditação
quando não era intenção do falecido sequer contratar seguro de vida.
A própria indenização pleiteada, de outro lado, apresenta valor
irrisório. Não representa importância que trará grandes benefícios à cliente,
naturalmente por possuir vida econômica já estruturada. Conquanto
inexista valor monetário que se possa atribuir à vida, natural concluir que
alguém, disposto a eliminá-la munido de ideais espúrios, o fará unicamente
quando certo de que a contrapartida pecuniária realmente trará algum
benefício satisfatório a terceiro(s). Adequado, também por esta razão, crer
que a presunção de predeterminação não se manterá, e que, portanto, a
fatalidade realmente ocorreu por perturbações mentais (depressão, por
exemplo) que afligiam o falecido.
Outra particularidade importante é o fato de que a apólice em exame
tem vigência limitada de um ano apenas – a contratação se deu pelo período
de 01.04.2007 a 31.03.2008. Ora, advogar o entendimento do qual se vale a
seguradora para recusar o pagamento do capital estipulado à cliente é
simplesmente negar absoluta eficácia ao contrato examinado em caso de
suicídio. Se não é coerente defender a exegese extraída da literalidade do
art. 798 na generalidade dos casos concretos, tampouco o é, até por atentado
à lógica, naqueles cuja vigência contratual é inferior a dois anos. Em tais
hipóteses, ainda com maior vigor justifica-se a discussão sobre a
voluntariedade ou não do autoextermínio.
É crível, ademais, admitir-se que um estudante de direito, decidido a
suicidar-se para assegurar algum benefício a terceiro, certamente tomaria o
cuidado de ler, refletidamente, o contrato, bem assim de examinar as
orientações doutrinárias e jurisprudenciais que vêm se formando sobre o
tema depois da publicação do Código Civil de 2002. Compreenderia, por
conseguinte, os riscos de sua estratégia frustrar-se e provavelmente não se
arriscaria a perder seu mais precioso bem por nada. É bastante racional tal
conclusão; afinal, premeditação denota um agir consciente, pensado e bem
elaborado, com a antecedência necessária para se evitarem surpresas.
2.4 Correção Monetária e Juros
Definido o real alcance do art. 798 do Código Civil, bem assim o

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direito da cliente em receber o capital estipulado, cumpre estabelecer a


partir de quando devem incidir a correção monetária e os juros de mora.
Sabe-se que a correção monetária – disciplinada pela Lei nº 6.899/81 –
traduz-se num ajuste periódico de valores financeiros destinado a manter o
poder aquisitivo da moeda vigente no País, atenuando-se os efeitos de sua
desvalorização. Na seara jurisdicional, a atualização monetária é elemento
indispensável, a ser sempre considerada na prolação de sentenças
condenatórias, ainda que inexistente pedido expresso na petição inicial – é
uma das hipóteses de “pedido implícito” (CPC, art. 293). Por meio dela,
compensa-se eventual desvalorização referente à importância monetária
atribuída a título de condenação, mantém-se o poder aquisitivo do dinheiro
desvalorizado, imperativo de ordem ética e jurídica que assegura a
obtenção integral e real da reparação, e isso sem privilegiar ou punir
quaisquer das partes envolvidas12.
Creio acertada a posição daqueles que advogam a incidência da
correção monetária a partir da data da apólice e não propriamente da
morte13. Ocorrente o evento danoso, implementa-se condição suspensiva
prevista contratualmente, a qual confere ao segurado (ou beneficiário) o
direito de perceber a indenização contratada. Inerte a seguradora ainda que
notificada, não parece haver dúvida, portanto, de que a correção monetária
há de incidir desde a data da apólice, sobretudo por não representar
acréscimo à indenização, mas unicamente compensação relativa à
desvalorização sofrida pela moeda num dado período14.
Enfrente-se, agora, a questão referente aos juros de mora. Sua
finalidade é a de remunerar o retardo no pagamento de uma determinada
dívida. Esclareça-se que no caso não há se falar em termo, e assim a mora se
constitui apenas mediante interpelação judicial ou extrajudicial (CC/2002,

12 WALD, Arnoldo. Correção monetária de condenação judicial em ação de responsabilidade civil.


Revista de Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, v.104, n.26, p.133-149, out.-dez. 2001.
13 Entre outros, conferir, neste sentido, a abalizada lição de LEONE TRIDA SENE: SENE, Leone Trida.

Seguro de Pessoas. Negativas de Pagamento das Seguradoras. 2.ed. Curitiba: Juruá, 2009.
14 É elucidativo, a respeito do tema, recorte extraído da ementa de acórdão proferido pelo Superior

Tribunal de Justiça: “O termo inicial da correção monetária no caso do seguro de morte


facultativo é a partir da data da apólice e não da morte do segurado, a fim de ser garantido o
pagamento da indenização em valores monetários reais, sobretudo porque, como na hipótese, a
seguradora, quando recebeu os prêmios mensais por mais de 18 meses, fazia com que, mês a mês,
incidissem índices de correção sobre os valores pagos” (Superior Tribunal de Justiça, REsp nº
176.618/PR, 4ª Turma, Relator Ministro Cesar Asfor Rocha, julgado em 18.05.2000. Disponível em:
<http://www.stj.jus.br>. Acesso em: 01 out. 2008).

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art. 397, parágrafo único). É bem verdade que a cliente interpelou


extrajudicialmente a seguradora, e esta negou a cobertura securitária (e o
fez no prazo de 30 dias). Sem dúvida que tal negativa denota ilícito
contratual, cuja comprovação não dispensa o reconhecimento judicial de
que a inexecução contratual se deu por culpa da seguradora.
Atento às particularidades que caracterizam o caso em exame, parece-
me certo afirmar que os juros de mora serão devidos a partir da (resposta)
negativa da seguradora em pagar o capital estipulado, dirigida à cliente
depois que esta interpelou aquela extrajudicialmente (CC/2002, art. 397,
parágrafo único)15. Incidirá na condenação juros à base de 1% (um por
cento) ao mês, na forma do que estabelece o art. 406 do Código Civil e o art.
161, § 1º, do Código Tributário Nacional.
3 – RESPOSTA AOS QUESITOS
1. O novo Código Civil realmente alterou o entendimento, doutrinário e
jurisprudencial, dominante de que, não sendo premeditado o suicídio, é devido o
pagamento da indenização?

15
Adota-se, aqui, orientação doutrinária elaborada por LEONE TRIDA SENE. Confira-se sua lição:
“Segundo o estatuído no art. 397 do CC, ‘o inadimplemento de obrigação, positiva e líquida, no
seu termo, constitui de pleno direito em mora o devedor’. No caso do contrato de seguro, como
inexiste um termo previamente fixado para o cumprimento da obrigação, posto que o mesmo
depende de fato futuro e incerto, adota-se a regra do parágrafo único desse mesmo artigo, isto é,
‘não havendo termo, a mora se constitui mediante interpelação judicial ou extrajudicial’.
Judicialmente, é a citação que tem o condão de colocar em mora o segurador, contando, pois, os
juros a partir da mesma (CC, art. 405). Extrajudicialmente, configurar-se-á a mora, com a
notificação do segurador. Trata-se da denominada mora ex persona. Por óbvio, então, somente
diante do caso concreto é que será possível definir o termo inicial da contagem dos juros.
Consideremos, pois, três hipóteses: 1ª: sem ter comunicado o sinistro à seguradora, o
segurado/beneficiário propõe ação judicial de cobrança. Neste caso, a seguradora somente foi
cientificada de seu dever de cumprir o contratado, isto é, somente foi constituída em mora por
oportunidade da citação. 2ª: com o advento do sinistro, o segurado/beneficiário faz a devida
comunicação do mesmo. Dentro do prazo contratual, em regra 30 dias, a seguradora decide negar
o pagamento. Proposta a ação de cobrança, o termo inicial da contagem do prazo será a data da
negativa da seguradora, pois, com a comunicação do sinistro, nasceu a obrigação de adimplir o
seguro dentro do prazo previsto em contrato ou regulamento da Susep. Assim, com a resposta
negativa da seguradora, esta fica constituída em mora. 3ª: com o advento do sinistro, o
segurado/beneficiário faz a devida comunicação do mesmo. Depois do prazo previsto em
contrato para o cumprimento de sua obrigação, a segurador nega o pagamento da
indenização/capital segurado. Neste caso, como a seguradora ultrapassou o prazo de que
dispunha para fazer o pagamento, o termo a quo para a contagem dos juros, em caso de ação
julgada procedente, será a data limite que tinha a seguradora para adimplir o contrato. Em suma,
há de se perquirir no caso concreto quando o segurador foi constituído em mora” (SENE, Leone
Trida. Seguro de Pessoas. Negativas de Pagamento das Seguradoras. 2.ed. Curitiba : Juruá, 2009,
p.232-233).

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Resposta: Houve, sim, alguma mudança, mas, em sua essência, o


entendimento permanece idêntico: é ainda pertinente a discussão sobre a
premeditação do suicídio em processos judiciais nas quais o terceiro
beneficiado pretende obter a indenização contratada.
2. Se negativa a resposta ao quesito anterior, a quem cabe o ônus da prova de
que houve premeditação no suicídio?
Resposta: O art. 798 do Código Civil deve ser interpretado no sentido
de que, superados os primeiros dois anos de vigência do seguro, presume-se
que o suicídio não tenha sido voluntário. Se, todavia, ocorrer antes da
consumação do prazo, presume-se que fora ele consciente. Obviamente, são
presunções relativas, e ambas podem ser superadas: na primeira hipótese,
cumpre à seguradora demonstrar que o segurado suicidou-se munido da
intenção de beneficiar terceiro com o pagamento da indenização; na
derradeira, é ônus do terceiro beneficiado a prova de que o suicídio não foi
consciente, vale dizer, que não houve premeditação. O art. 798, portanto,
além de estabelecer um novo critério (objetivo-temporal), impôs renovada
dinâmica ao ônus de se provar o critério subjetivo, ora o atribuindo à
seguradora, ora ao beneficiário.
3. Pela narrativa e documentos apresentados, é possível afirmar se a cliente,
única beneficiária do seguro, teria direito à indenização constante da apólice?
Resposta: Pela análise da narrativa e dos documentos que me foram
apresentados, parece fora de dúvida o direito de a cliente perceber o
benefício indenizatório.
4. Considerando que a cliente tem mesmo o direito à indenização, a partir de
quando lhe são devidos a correção monetária e os juros de mora?
Resposta: A correção monetária é devida desde a data da apólice. Os
juros de mora, por seu turno, são devidos a partir da (resposta) negativa da
seguradora em pagar o capital estipulado, dirigida à cliente depois que esta
interpelou aquela extrajudicialmente.
É o parecer, salvo melhor juízo.

115

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