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FR. MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA O CONTEXTO DO FALSO D. SEBASTIAO DE MADRIGAL Por Joao Francisco Marques Faculdade de Letras do Porto Abstract The most renown of the false D. Sebastians, in wrn of whom the intrigue denominated «Pasteleiro de Madrigal» was plotted, invol- ved a monk of the Order of Augustinian Hermits, Friar Miguel dos Santos, preacher and royal confessor, who devised the plot; an ex- -soldier of the 'Tércios”, Gabriel Espinosa, the «pasteleiro» (pasiry= -maker); and a recluse at the Augustinian Convent of Madrigal de las Altas Torres, illegitimate daughter of John of Austria, the hero of Lepanto, bastard son of Charles V and half-brother of Philip Il The episode, which would have a tragic conclusion, with the exe- cution by hanging of the Friar and the impostor, at the Plaza Mayor de Madrid, is part of Portugal's patriotic struggle against the dynastic union, in defence of the rights of the pretender to the throne, D. Antonio, Prior of Crato, and of the resistance of the Spanish opposers to the policies of Philip If and of the European monarchs enemies of the House of Austria, HA quatro séculos, mais precisamente a 19 de Outubro de 1595, foi enforcado na Plaza Mayor de Madrid 0 portugués Fr. Miguel dos Santos, da ordem dos eremitas de Santo Agostinho, por haver pre- 32, REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS tendido levar a cabo uma conjura de inspiragio sebastianista, desti- nada a colocar D. Anténio, 0 prior do Crato, no trono. A trama da intriga, paciente e ardilosamente congeminada, consta de um volu- moso processo conservado no arquivo de Simancas, ¢ mereceu jé 0 interesse da historiografia nacional ¢ estrangeira!. Se, porém, em suas linhas essenciais a objectividade factual parece haver sido res- peitada, nao se tem ressaltado, como importaria, 0 contexto sécio- religioso, politico e mental que permite compreender essa fruste empresa conspiratéria. De repudiar ser aplicar-Ihe qualquer redutor critério moralista, como 0 utilizado por Camilo que viu 0 episédio do falso D. Sebastido de Madrigal por lentes anacrénicas. A conduta do religioso agostinho remeteu-a ironicamente, esvaziando-lhe o alcance patridtico, para um desacreditado cédigo ético que pautaria essas denominadas «virtudes antigas»?. Parece-nos, pois, merecer releitura o dramatico evento, a luz dos elementos documentais cons- tantes das aludidas reconstituigdes historiograficas, de relacionagoes contextuais ntes no que, fundadamente, se vai publicando sobre o reinado de Filipe II e, sobretudo, das importantes contribuigdes inéditas do investigador agostinho, Fr. Carlos Alonso, para o conhe- cimento da ordem em Portugal, no decurso dos séculos XVI e XVII. Exceptuada a informacao biografica acerca de Fr. Miguel dos Santos ou de Todos os Santos, centrada na ocorréncia de que lhe | Archivo General de Simancas, Seccién del Estado, legajos 172 ¢ 173. Com base neste processo judicidrio, encontra-se na obra de Miguel d’ANTAS, que foi Conse- Iheiro da Legagéo da Representacio Diplomtica de Portugal em Franga, Les Faux Dom Sebastien, Paris, Librairie Auguste Durand, 1866, um estudo historiogrifico con- sagrado ao célebre caso. A sua traducao, impressa sem data, mas a situar-se na década de 1980, tem por titulo: Os falsos D. Sebastido, introdugao e notas de Sales Loureiro, Odivelas, edigées Heuris. Servimo-nos desta versio portuguesa de Maria de Fatima Boavida, preenchendo 0 episédio todo 0 «Livro Terceiro - Gabriel de Espinosa, 0 Pasteleiro de Madrigal», pp. 97-152. Utilizou a mesma fonte histérica a investigadora norte-americana Mary Elisabeth BROOKS em: A King for Portugal. The Madrigal Conspiracy 1594-1595, Wisconsin, University Press, 1964. Trata-se de um trabalho de indiscutivel mérito que considera a conjura em referéncia uma tentativa destinada a por, no trono de Portugal, D. Anténio, Prior do Crato. ? Camilo Castelo BRANCO, As virtudes antigas ou a freira que fazia chagas e 0 frade que fazia reis, 3 edicao, conforme a 1* e Gnica revista pelo autor, Lisboa Parcearia Anténio Maria Pereira, 1920, pp. 83-89 € 117-136. O autor deve-se ter socor- rido dos trabalhos, que cita em nota da p. 90, de Miguel d’ ANTAS e J.T. (José TOR- RES), «Rei ou Impostor», in Arquivo Pittoresco, vol. { (1857-1858), p. 146, 154, 170, 178, 190 ¢ 197, que constitui uma crénica romanceada de Gabriel de Espinosa, 0 pa teleito de Madrigal. > No processo inquisitorial de Fr. Valentim da Luz, 0 nome religioso de Fr. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 333 adveio 0 trégico fim, a mengao do autor do Alphabetum Agostinia- num! eas escassas referéncias dispersas de cronistas € estudiosos acerca de agostinianos portugueses coevos®, deve-se a seu irmio de habito e contemporineo, D. Fr. Agostinho de Jesus ou de Castro, que morreu Arcebispo de Braga (1588-1609), um breve, mas pre- cioso, memorial do inditoso frade, a que se « pode com razio dar credito»®, Redigido na cidade primaz, a 6 de Maio de 1591, 0 depoente da-o por «bem nascido e de pais nobres», sem mescla de sangue judeu ou mouro, cujos avés paternos eram espanhéis, origindrios de ‘Xerez de los Cavalleros e de Sevilha, que entroncavam na estirpe do grdo-capitiio Gongalo Fernandez de Cordoba. Por haver, em duelo, dado a morte a um primo coirmao, tivera 0 avé paterno de se homi- ziar em Portugal, acolhendo-se ao ent&éo Couto de Odemira, na Provincia do Algarve, onde o Conde desta vila «mui honradamente» © recebeu, pois assim constava de uma relagio havida como fide- digna. E, se pouco tempo ali viveu, foi quanto bastou para deixar dois descendentes: 0 primogénito que se finaria em Africa, no de- sastre em que perdeu a vida Luis Figueira, quando servia uma comenda; o segundo, Diogo Fernandes Arjono, ficou na terra, a tra- tar da fazenda que o pai comprara, «conhecido e estimado sempre por quem era, com cavalos e criados, posto que com bem differente fortuna da de seus antepassados», vindo a casar-se com Inés Alvares de Campos, «huma molher honrada de gente limpia»’. Foram estes os pais de Fr. Miguel dos Santos que nasceu em Odemira cerca de 1537 ou 1538 e, ao entrar moco na vida religiosa, trazia j4 uma solida preparacdo humanista, a ponto de os superiores, Miguel aparece como sendo Fr. Miguel de Todolos Santos. Cf. J. S. Da Silva DIAS. Erasmismo e a Inquisi¢do em Portugal. O Processo de Fr. Valentim da Luz, Coi Universidade de Coimbra, 1975, p. 192. 4 Thomas de HERRERA, Alphaberum Augustinianwn, Il, Madrid, 1644, pp. 88-89, Agradeco a Fr, Carlos Alonso, director do arquivo do Institutum Historicum Ordinis Sancti Augustini, de Roma, toda a colaborago gentilmente dada através de ele- mentos bibliograficos fornecidos ¢ informagdes arquivisticas. 5 Ver: Memorial de Pero Roiz Soares., leitura ¢ revisio de M. Lopes de Almeida, Coimbra, Universidade de Coimbra, 195, pp. 104-105; J. S. Da S. DIAS, Op. cit. Em (3), p. 8 e passim. © Cf. Carlos ALONSO, OSA, «Documentacfon inédita sobre Fr. Agustin de Jesiis, 0.8.A. Arzobispo de Braga (1588-1609)», in Analecta Augustiniana, XXXIV, Romae, 1971, pp. 126-128. 7 [bidem, p. 126. oO bra, 334 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS novigo ainda, o fazerem leitor de latim, incumbéncia que manteve até frequentar filosofia, com tanto proveito que se lhe contaram «muitos bons discipulos»®. Durante o noviciado, no mosteiro lisbo- nense de N*. Sr*. da Graga, teve por mestre o malogrado Fr. Valentim da Luz, com quem sempre manteve cordial relagao, que viria a ser teleixado e queimado, no auto da fé de 10 de Maio de 1562, sob a acusacao de defender heresias de teor luterano®. Conforme depoi- mento de Fr. Miguel ao Santo Oficio, chegara, de facto, a dizer-lhe, vindo certa vez a Lisboa proveniente de Tavira onde entio residia, m conversa no Convento de Graga onde aquele professara, a 25 de Maio de 1554!°, que julgava de nao o achar professo para aconse- Iha-lo a que nao desse esse passo!!. E, estranhando-lhe o confrade de «como seria possivel pertencer a ordem sem professar», respon- dera Fr. Valentim que poderia pronunciar os votos canénicos, mas nao com intuito de se obrigar, pois «era melhor servir a Deus sem obrigagées e com liberdade, que com obrigagées de votos»!2, Estava certo, confessa Fr. Miguel dos Santos por ocasiiio do seu testemu- nho ao Tribunal da Inquisi¢ao, que no momento no se havia aper- cebido da gravidade do assunto. Apenas se recordou do que, na altura, Ihe insinuara, quando o soube preso nos cArceres inquisito- tiais, apressando-se entdo a comunicé-lo a Fr. Luis de Montoya, pro- teformador da ordem em Portugal, a quem «deu por escripto 0 que Ihe ouvira e assynou nele»!3. Nao ficaram, contudo, por aqui as declaragdes de Fr. Miguel, a pretexto deste to badalado caso, bem significativo do ambiente que se respirava nos meios pietistas onde eram discutidas importantes proposigdes doutrindrias do, evange- lismo reformista. Na verdade, o frade permitira-se acrescentar tam- bém nessa ocasido, perante a mesa do Santo Oficio, que cerca de trés anos e meio atras ouvira Fr. Valentim, no mesmo Convento da Graga, sustentar «que primeyro avyamos de rogar a Deus e depois tomar 0s santos por intercessores». O motivo da afirmagio cristo. céntrica, enfatica por certo, era porque Deus morreu por nds € nao os santos»'4, Como se detecta, infiltravam-se nos ambientes con- 8 pbid., p. 127. ° Cf. J. S. da S. DIAS, Op. cit. em (3), p. 14. '° Cf. Carlos ALONSO, «Las profesiones religiosas en la Provincia de Portugal durante el petiodo 1513-1631», in Analecta Augustiniana, XLVUL, 1985, p. 338. "Cf. J. S. da S. DIAS, Op. cit., p. 193. "2 Ibidem, "8 Ibid., 192-193, "4 Ibid., pp. 193-194. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 335 ventuais mal disfargados pontos doutrindrios do evangelismo lute- rano que Fr. Miguel dos Santos persiste em comprovar ao referir, de continuo, que ainda o escutara dizer «algumas vezes que Ihe parecya bem que a Sagrada Escriptura que todos a lessem e entendessem»!, E logo se apressa a acentuar nao serem estas opinides tinicas, pois Ihe aconteceu ouvir, em Coimbra, 0 catedratico agostinho, Fr. Francisco de Cristo!® mencionar, sem referir 0 nome, que um frade dominicano repetia o mesmo que Fr. Valentim da Luz, comentando, «acerca de humas imagens que estavam pintadas em huma parede, que | que era aquilo e que avya de escrever hum livro contra aquilo»!”, Pronunciando-se sobre a sua capacidade intelectual e exemplar conduta, 0 Metropolita Primaz declara: «De sua vida, costumes, letras e sufficiencia posso dar melhor testemunho que ninguem por- que fomos ambos novicos professos!® e sacerdotes quasi no mesmo tempo e estivemos na casa da provagao de Lisboa juntos seis anos € entramos ambos ¢ acabamos 0 mesmo curso d’ artes e ouvimos jun- tos seis anos de Teologia na Universidade de Coimbra»!®, como consta alias do respectivo registo de matriculas”°, tendo a ordenagao sacerdotal ocorrido por 1560, 4 volta dos 23 anos. E tal era a ascen- déncia intelectual que Ihe reconheciam que D. Agostinho de Jesus atesta que, «assi nas artes como na Theologia», levava sempre muita 5 pbid., p. 194. 16 Jhid. Fr. Francisco de Cristo leccionou (1566-1586)Teologia na Universidade de Coimbra. Ver: Diogo Barbosa MACHADO, Biblioteca Lusitana, Il, Coimbra, Atlantida Editora, 1966, pp. 133-134; Friedich STEGMULLER, Filosofia e Teologia nas Universidades de Coimbra e Evora no século XVI, Coimbra, Faculdade de Letras! Mnstituto de Estudos Filoséficos, 1959, pp. 17-18. 17 Cf. J. S. da, DIAS, p. 194. '8 D, Agostinho de Jesus, filho de D. Fernando de Castro e D. Maria de Ayala, moradores em Lisboa, professou a 7.04.1555. Cf. Carlos ALONSO, loc. cit. em (10), p. 338. 19 Cf, Carlos ALONSO, loc. cit. em (6), p. 127. Conforme as Constituigdes da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, seguidas na I* metade do século XVI, pre- ceituavam (ver: Constitutiones O. E. S. A., Romae 1551, cap. 37), a formagao acadé- mica de seus escolares compreendia a frequéncia de 3 anos de gramitica, 3 de filoso- fia e 5 de teologia. Cf. Armando de Jesus MARQUES, Frei Sebastidio Toscano na con- Juntura religiosa da sua época, separata da «Revista Portuguesa de Histéria», Coimbra, 1. VII (1963), p. 9. © Consta do Arquivo da Universidade de Coimbra, Fac. de Teologia, que pro- vou cursar trés cursos em Teologia, de 10 meses cada, a partir de 1.10.1560 até 31.05.1563, e de 1.10.1563 a Maio de 1564, oito meses. Agradeco a gentileza desta informagio a0 Dr. Julio Ramos, arquivista desta Instituicdo. Ver ainda: A.U.C., Conselhos, 1586-1592, vol. Il: «Conselho-Mor sobre ep. Fr. Miguel», fls. 106-107. 336 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS vantagem a todos os seus condiscipulos, «a ponto de os superiores © fazerem «logo leitor de um curso d’artes, 0 qual leo com grande aplauso ¢ ostentacdo»?!, durante sete anos. No capitulo provincial dos agostinhos, reunido no convento de Vila Vicosa em 12 de maio de 1566, no 4°. domingo depois da Pascoa, foi eleito subprior do conimbricense Colégio da Graga, de que era pregador e confessor22, No entretanto, presidiu a «conclusdes» ¢ outros actos académicos, no Ambito do magistério que exercia na comunidade conventual23, Esperava-se que fizesse carreira de docente universitario, como fora intento primeiro de seus superiores para «seguir as escolas», a fim de vir a ser «grande leitor e oppositor na Theologia»™4. A ida para a corte foi consequéncia do invulgar talento revelado no ministério do Piilpito e do grande nome por todo o reino em pouco tempo» cobrado «de bom letrado, de muito avantejado pregador e de mais partes», entendendo seus prelados que pela pregagao «podia servir mais a Deus € mais honrar a ordem»25, Reinava, na altura, D. Sebastiio que instou para deixar o Colégio de Coimbra e aceitar o mtinus de pregador régio, como 0 foi seu, da rainha vitiva D. Catarina e do cardeal D. Henrique e de sua irma, a Infanta D. Maria, «aos quais principes servio muito annos, exercendo-o com inteiro aplauso de quantos o escutaram em todo o reino ¢ com grande crédito ¢ nome de sua congregacdo, agradada por reconhecer que nisso ganhava a Ordem mais honra que em levar cadciras na Universidade»?®, A decisio tomou-a Fr. Agostinho de Jesus, «sendo Provincial», pois o era de facto desde 7 de Maio de 1570, quando saiu cleito por dois anos no capitulo de Vila Vigosa2’, ao sentir-se forgado, como confessou, «a tira-lo das escolas e levalo ao convento de Lisboa para pregar a El Rey D. Sebastiion?8, De continuo, também de D. Catarina que viu, no capitulo de 1572, reu- nido em Torres Vedras, que elegeu Provincial o justamente célebre Fr. Sebastiao Toscano”, alcangar deferimento um pedido feito pela 21 Cf. Carlos ALONSO, loc. cit. em (6), p. 127. ® Cf, D. GUTIERREZ, OSA, «La Provincia de Portugal en los aos 1546- -1566», in Archivo Agustiniano, 66 (1982), p. 37 23.Cf. Arquivo da Universidade de Coimbra, cit. em (20). 24 Cf. Carlos ALONSO, loc. cit. em (6), p. 127 25 thidem. 2 Thidem. 27 fhidem 28 Ibidem. ?° Cf, Carlos ALONSO, foc. cit. em (10), p. 339. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 337 rainha «velha» a solicité-lo «por seu pregador para consolagao de sua alma», vindo a ser «to aceito a esta senhora que, além de muitos merces que em sua vida lhe fez, € por seu respeito a muitos, em seu testamento Ihe deixou sessenta mil reis de tena enquanto vivesse»*, ‘Ao escrever de Compostela, em 26 de Julho de 1573, o Geral, Tadeu de Perusa (1570-1581), em virtude destas fungées, dé-lhe por com- panheiro Fr. Jorge da Ressureigo e confere a qualquer sacerdote, que escolher, jurisdicdo para o ouvir de confissao*!. Como pregador régio € confessor, minus que andavam associados, aparece, em 18 de Junho de 1573, mencionado nos registos da ordem*?. Em capitulos provinciais de sua religio, anotou Fr. Agostinho de Jesus, sustentou «conclusées de Theologia, ¢ outras presidio com grande louvor e opi- nido de letras, e com tener muita abilidade», o que comprova a fama de muito «studioso e douto», de que sempre gozou*’. Com efeito, no reconhecimento da exemplar virtude e piedade de que notoriamente deu provas desde a entrada na ordem, sendo tido sempre «dos prela- dos como dos subditos por religioso de vida inculpavel» e de «tanta gravidade, autoridade © modestia em seu modo de proceder, que muito ante tempo, sem aver sido prior de nenhum convento (cousa nunca vista na Ordem), foi de comum consentimento cleito Provincial», a 23 de Maio de 1574, no capitulo reunido em Evora, rendendo Fr. Sebastido Toscano, a quem sucedeu*>. A 15 de Outubro desse mesmo ano, o referido Geral dos agostinhos escreve a Fr. Miguel dos Santos, ordenando-Ihe, a rogo de D. Catarina, que sus- pendesse a visita que, no reino, andava a fazer pelas casas da ordem € regressasse a Lisboa, deixando-se ai permanecer*®. Na altura, con- cede-lhe permissao para colocar no Colégio de N*. S*. da Graga da Universidade de Coimbra um seu sobrinho, ao que se deduz, para frequentar os estudos superiores, como Ihe proibe admitir Fr. Eduardo de S. Jodo para pregador, certamente em virtude de razdes morais ou doutrinarias*’. 30 Cf, Carlos ALONSO, loc. cit. em (6), p. 127 31 Arch. Gen. Aug., fondo Dd., vol. 34, fol. 60r. Ver «Carta autégrafa» em apéndice. 32.Cf, Thomas de HERRERA, Op. cit., em (4), p. 88. 33.Cf. Carlos ALONSO, loc. cit. Em (6), pp. 127-128. 34 thidem, p. 127 35 Cf. B.N. L,, F. G., cod. 745 ~ «Memorial das Miss6es dos Religiosos Agosti- nnhos na fndia, de Fr. Ant6nio Morais», in Anténio da Silva REGO, Documentagéo para a Histéria do Padroado Portugués do Oriente, fndia, vol. 12° (1572-1582), Lisboa, Agencia Geral do Ultramar, 1948, p. 117. 36 Arch. Gen. Aug, fondo Dd. 36, fol. 16r. 31 foidem, 338 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Expirado 0 tempo do Provincialato, aparece referido numa demtincia a Inquisigao feita, a 13 de Abril de 1577, por Fr. Cristovao da Cruz, pregador agostinho do mosteiro lisbonense da Graga, em que era ré Ana Monteiro, confessada de Fr. Tomé de Jesus, 0 qual, encontrando-se, a 11 desse més, na cela do prior, Fr. Francisco da Ressurreicdo, afirmaria, como Fr. Miguel dos Santos the dissera ter ouvido e lho repetira diante de outro confrade e orador, Fr. Pedro de Santo Agostinho, «que alguns que estavam no Purgatério nao esta- vam certos de sua salvagao», e isso mesmo «achara em hum dow. tor». O asserto soava, com efeito, a heresia, deduzira 0 religioso, ao ouvir Fr. Miguel ler num livro, em sua cela, no dia seguinte, «huma Proposigam que contradizia a que & dita Ana Moreira, mulher de um tal Lourengo de Caceres», escutara ao falar com ela em sua casa: «que avia muitos no Purgat6rio que nam tinham certeza de ir ao Ceo, porque viviam tam libramente que a sua frieza os nam fazia certos de ir a0 Ceo estando no Purgatério»’8. O que, a propésito, importard, no entanto, sublinhar € constituir 0 incidente um teste- munho inequivoco da vigilancia apertada que, por temor da algada Punitiva do Santo Oficio, se respirava, e pour cause, no interior das comunidades conventuais??. Consciente das responsabilidades que tinha como pregador régio, mtinus exercido com inteiro aplauso da Corte, Fr. Miguel dos Santos nao hesitou erguer corajosamente a voz, na igreja de seu convento da Graga, contra a «Jornada de Africa», na azifama dos Preparativos para a fatal expedicio”. Ser4, porém, motivo de estra- nheza que, apesar da aura disfrutada «de bom letrado de muito avan- tajado pregador e de mais partes», nenhum sermao impresso e Manuscrito, ou até qualquer outra obra, se Ihe conhegam*!, Com efeito, a oragao fiinebre que pronunciou nos Jerénimos, a 19 de Setembro de 1578, nas exéquias de D. Sebastido, nao é 0 dado a estampa, trés séculos depois, com seu nome’. Pertence esta, na ver- 38Cf J. S. da S. DIAS, Op. cit., em (3), pp. 292-293. Anténio BAIAO, «Histéria da Inquisigao em Portugal ¢ Brasil», in Archivo Historico Portuguez, VII (1910), p.416, °° Foram abundantes, neste periodo, as dentincias de pregadores ao Santo Oficio, feitas por religiosos confrades, como se mostrar, em trabalho a publicar, com indic: do de circunstancias de tempo € lugar, delatores, acusados e motivos, Ver Jojo Francisco MARQUES, A Parenética Portuguesa ¢ a Dominagéo Filipina, Porto, INIC/Centro de Hist6ria da Universidade, 1986, nota IX, pp. 321-322 4! Ver Camilo Castelo BRANCO, Op. cit. em (2), pp. 90-116. Ver J. . MARQUES, Op. cit., pp. 32-36, FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 339 dade, como ja foi em definitivo demonstrado, ao célebre jesuita Luis Alvares que a teria proferido, talvez ainda em Agosto, na igreja de S. Roque, mal se confirmara oficialmente a morte do rei, e, por certo, na altura em que as demais casas da Companhia de Jesus sufragavam a alma do inditoso monarca‘?. Aescolha do orador para subir ao ptilpito do Mosteiro de Santa Maria de Belém, nos solenes offcios funerais promovidos pela Conte, recafu no agostinho Fr. Miguel dos Santos, pregador régio e prior do Convento da Graga da capital, cargo este para que fora escolhido no capitulo da ordem, reunido em 11 de Maio Ultimo neste mesmo mosteiro, em que Fr. Sebastido Toscano fora reeleito Provincial pela segunda vez 4, Nao se desempenhou, todavia, da honrosa como delicada miso, sem deixar de contribuir para aden- sar a atmosfera de incredulidade, sobre a morte do vencido de Alcacer-Quibir, a arreigar-se fundamente em certas franjas das eli- tes e nas camadas populares*5. De facto, protagonizado pelo refe- tido frade, correu fama um incidente que nos permite entrever 0 despontar de um movimento sebastianista que nao se limitava a crer na sobrevivéncia do rei, julgado momentaneamente escondido, € na sua reaparigdo, mas procurava actuar, embora sob a maxima discri- go. Segundo refere 0 Memorial de Pero Roiz Soares, como eco da versio espalhada na época, e Fr. Miguel confessou no interrogat6rio que D. Rodrigo de Santilhana, Alcaide de Valladolid, the fez na pri- so, em Outubro de 1594“, alguém altamente colocado, antes que subisse ao pulpito, lhe dissera «em segredo que atentasse como pre- gava que el Rey dom Sebastiao era vivo e estava no dito Mostr®. e 0 avia de ouvir o que fez ao dito pregador ir perguntar a elRey dom Anrique se 0 sermao que avia de fazer em bellem se avia de ser de vivo ou de morto porque Ihe andavao as orelhas com entrepetes delRey ser vivo», tendo-Ihe este respondido que «fosse do que tinha estudado»47, Factores varios, como se sabe, abriram conjunturalmente a Filipe Il a possibilidade de efectivar uma politica voltada para 0 oci- dente atlantico, no embate decisivo travado com as poténcias da 43 1D., ibidem, pp. 37-38 ¢ 320-321, nota VIL. 44Cf, Arch. Gen. Aug., fondo Aa, 48/1, fol. 298r.; Antonio MORAIS, oc. cit. in (35), p. 195. 451D., ibidem, pp. 37-38 e 320-321, nota VIII. 46 Cf, Miguel d'ANTAS, p. 201 e M. E. BROOKS, p. 107, obras citadas em (1). 47.Cf. Memorial de Pero Roiz Soares, cit em (5), pp. 104-105. 340 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Europa, em estratégia conducente ao império do mundo. Por isso, o pretexto da sucesso dindstica para a uniao a Portugal, logo propi- ciada pelo melindroso impasse e débil satide do Cardeal-Rei, D. Henrique, conjugava-se também com uma situagdo econémica favo- ravel aberta pela superacdo das crises financeiras até ai registadas, em particular a bancarrota de 1575, e pelo emprego do merciirio no tratamento da prata peruana*’. Tais circunstancialismos proporcio- navam assim A coroa espanhola disponibilidades monetérias para uma politica deliberadamente imperialista*®. Este stibito desafogo financeiro, que permitia a Filipe II uma maior liberdade de movi- mentos, estaria na base dessa dramatica mudanga da sua politica, pois de defensiva e prudente passou a revestir-se de um cariz agres- sivo, claramente visivel na atitude diplomatica e de forga evidencia- das no caso portugués. Por outro lado, ao certificar-se da morte de D. Sebastiao, enviou para a Corte de Lisboa 0 sagacissimo Cristovao de Moura com expressa incumbéncia de tudo ir aplanando em ordem 4 anexagao do trono luso®. Elo essencial na concretizacao deste objectivo, veio o fidalgo para Portugal, a fim de desenvolver uma actividade destinada a manobrar, sem escripulos, pessoas e grupos influentes, servindo-se da intimidagao, persuasao, alicia- mento e suborno, sempre debaixo da directa dependéncia do sobe- rano castelhano que Ihe colocou ao dispor aprecivel porcdo de metal argénteo?!. Traumatizada pela catastrofe de Aledcer-Quibir, a nagdo acu- sava a fragilidade de uma estrutura financeira assente na dependén- cia da prata espanhola do novo mundo, necessdria para manter o sempre deficitario comércio de luxo com o Oriente, sentindo-se cada vez mais que a prosperidade de Lisboa estava ligada a de Sevilha**. Gerido com desacerto e esgotado pela sangria dos resga- tes que vieram agravar os efeitos do avultadissimo dispéndio e gido pela fatidica jornada, 0 estado resvalava para a bancarrota. Por isso, diversamente motivados, os corpos sociais € as instituigdes 48 Cf. John H. ELLIOT, La Espana Imperial, trad. cast., Barcelona, editorial Vicens-Vives, 1974, p. 294. * Cf. J. MARQUES, Op. cit, em (40), pp. 38-39 °° Ver: Memorial de Pero Roiz Soarez, p. 104; Queiroz, VELLOSO, vol. | - 0 Reinado do Cardeal D. Henrique. A Perda da Independéncia, Lisboa, Empresa nal de Publicidade, 1953, p. 59 e s.; Alfonso DANVILLA, Filipe Il y la Suces Portugal, Madrid, Espasa-Calpe, 1956, pp. 5-25. S'Cf. J. H. ELLIOT, Op cit,, p. 295. Cf. ID, ibidem, p. 294. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA Bal comegaram a reagir de harmonia com os seus interesses © ao sabor dos aliciamentos. Alids, era na via da corrupgdo que insistiam junto de Filipe II os seus mais préximos conselheiros, agentes diplomati- cos € simpatizantes portugueses. Rapida e radicalmente a nacao par- tidarizou-se, desde a nobreza de estirpe ao alto clero, das ordens religiosas aos eclesidsticos seculares, da burguesia a plebe mesteiral, das universidades aos municfpios. Ciente de que no jogo politico importa tanto atrair adeptos como neutralizar inimigos, ¢ com insis- téncia avisado da oposigao que Ihe era feita, no confessiondrio e no pulpito, por numerosos e bem credenciados membros do clero regu- lar, Filipe II tenta afast4-los da contenda sobre a sucesso do reino, actuando junto do Papa, do Cardeal-Rei, dos Bispos, dos Gerais e Provinciais das congregacdes conventuais®?. Foram trés anos de crescente alteracdo publica. A principio, a confrontagdo revestia-se de todo um aparato de apaixonada disputa politica com os mais directos pretendentes ao trono a mobilizar os meios de que dispunham. Assim, enquanto a duquesa de Braganga, D. Catarina, ciosa de seus direitos nao cessa de reivindicar para si a coroa, 0 Prior do Crato pressiona a Santa Sé para declarar a sua filia- cao legitima®4. Nesse sentido, teré o ultimo incumbido Fr. Miguel dos Santos de redigir em latim para se apresentar em Roma a peti- ao necessaria®>, De resto, como seu confessor, conselheiro e confi- 53. papa reinante era Gregério XIII. Sobre a pressio de Filipe I, em Roma, para evitar o casamento de D. Henrique, ver: Queitoz VELLOSO, Op. cit., pp. 93-129. Em carta de 17 de Novembro de 1578, D. Juan de Zuiiga pedia a0 Rei para actuar junto do Pontffice, a fim de ordenar ao Geral dos Jesuitas que proibisse aos confrades portu- gueses emiscuirem-se na politica. Ver Mario BRANDAO, Alguns docunentos rela vas a 1580, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1943, pp. 24-26. Tentativa alids coroada de éxito. Ver Queiroz VELOSO, Op. cit., p. 120. Acerca dos direitos de cada pretendente ao trono portugués, podem consultar- se entre outros: Hipélito RAPOSO, «Direitos e doutores na sucessio filipinan, in Brotéria, XXVU (1938), pp. 5-17, 147-159; Joaquim Verfssimo SERRAO: Os Juristas de Franca e a crise dindstica portuguesa, Coimbra, 1958, separata do «Boletim, da Faculdade de Direito», XXXIV; «Fontes de Direito para a Hist6ria da Sucessio de Portugal» (1580), in Boletim da Faculdade de Direito, XXXV (1960), Coimbra, pp. 92- -229; Historia de Portugal, vol. Ill - «O século de ouro», Lisboa, Editorial Verbo, 1978, pp. 80-83. Cf. M. E, BROOKS, Op. cit., p. 54. Refere Queitoz VELLOSO (Op. cit., pp. 29-212, 223-224) que Fr. Miguel dos Santos (e ndo Anjos como escreveu, a p. 212, por equivoca leitura da fonte histérica) era prior do convento da Graga, em Lisboa, quando redigiu em éptimo latim uma carta de D. Ant6nio dirigida ao papa Gregério XIII, em 1579, a pedir-lhe que retirasse ao Cardeal D. Henrique a faculdade concedida pelo Breve para ser juiz da causa da legitimidade do nascimento do sobrinho. Pode ver-se 342 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS dente assistiu-Ihe neste tempo revolto de forma a poder afirmar, aquando do processo no caso de Madrigal, que conhecia intimos segredos através desse estreito contacto com o pretendente™, A medida que se esfumava a hipétese do casamento de D. Henrique, a quem ja de perto a morte rondava, ¢ demasiadamente descoberta se tornava a politica de influéncias de Filipe II, um largo sector da Igreja nao se deixou intimidar, desafiando, com destemor, pressdes € ameagas, sobretudo no pilpito, onde se denunciava o perigo imi- nente de uma intervengao castelhana5’. No inicio da Quaresma de 1579, Cristovéo de Moura nao hesitava em colocar espias nos tem- plos de Lisboa para vigiar os pregadores que poderiam causar muito dano a causa filipina, se «aplicasem su doctrina a sus malas inten- ciones»*8, E, em carta, relata ao amo como interveio junto do Cardeal-Rei que acabara por mandar o seu capelao-mor repreender um frade agostinho por, no préprio convento, numa quinta-feira daquele tempo littirgico, se ter excedido em referéncias desfavord- veis as pretensdes espanholas®*. Comunicava ainda haver-se quei- xado, com mais razio, de outro sobre quem importava também actuar, recomendando como interessaria exigir dos provinciais que agissem com energia neste particular. Por sua vez, o duque de Ossuna, embaixador castelhano na corte portuguesa, ao escrever ao nesta mesma obra, a pp. 214-244, uma pertinente exposigao sobre o assunto. Nao cre- mos, porém, como quer BROOKS (Op. cit., p. 54), que 0 religioso tivesse ido a Roma tratar do melindroso problema, embora seja de admitir que escrevesse ao confrade Fr. Manuel da Conceigao (1547-1624), provincial de 1592-94 (ver A. Silva REGO, Op. cit. em (35), p. 195), para acompanhar junto da Santa Sé, onde na altura se encontrava (ver Diogo Barbosa MACHADO, Op. cit. em (16), p. 225), os tramites da graca impetrada. Este trade agostinho, sobrinho de Diogo de Paiva de Andrade ¢ Fr. Tomé de Jesus, apa- rece mencionado no processo de Fr. Miguel [ver M. E. BROOKS, Op. cit. em (1), p. 79}, numa referéncia confusa, mas de forma a insinuar que entre os dois houvesse uma certa cumplicidade no apoio ao Prior do Crato, cuja raiz talvez, viesse deste con- lacto. °° Cf. Historia de Gabriel de Espinosa, Pastelero en Madrigal, que fingio ser El Rey Don Sebastian y asimismo la de Fray Miguel de los Santos, en el aito de 1595 impresso em Xerez, por Juan Anténio Tarazona, 1683, p. 7. Este folheto de 55 p., and- nimo mas cuja autoria tem sido atribuida ao jesuita Fernando de Lacerda, reflecte 0 conhecimento do contetido informative do processo judicial em referencia. *7 Queiroz VELOSO, 0 interregno dos Governadores e o breve reinado de D. Ant6nio, Lisboa, Academia Portuguesa da Hist6ria, 1953, p. 216. 58 Cf. Miguel SALVA y Pedro Sainz de BARANDA, Coleccion de Documentos Ineditos para la Historia de Espaiia, VI, Madrid, 1845, p. 260. °°Cf. ID, ibidem, pp. 260-261 ID, ibidem, p. 253. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 343 secretério de estado Anténio Pérez, a 10 de Abril de 1579, diz-lhe, apreensivo, que «las intenciones de los predicatores andan mui mal descubiertas», sem que D. Henrique se decidisse castigé-los com a severidade desejada®!. O falecimento do decrépito monarca, a 31 de Janeiro de 1580, remete para os governadores designados a deliberagao que nao ousara tomar. E, enquanto espreita a oportunidade de intervir, Filipe Tl escreve-lhes para que o declarassem rei, enquanto alicia os gran- des senhores e intimida as populagées raianas®. O historiador Fran- chi-Connestagio refere que em Elvas, a 25 de Margo, ao pregar na festa da Anunciagao, 0 dominicano Fr. Vicente da Fonseca, mais tarde arcebispo de Goa, estando a populagio dividida em duas fac- g6es, «volvendo persuader la ubidienza del Ré no fu dal popolo udito volontieri»®, De aceitar que por detras desta atitude houvesse o tra- balho de mentalizagao de pregadores que falavam da resisténcia ao castelhano como se de uma cruzada tratasse. Acontece mesmo que um religioso de Lisboa, no fim de um patriético sermao, chegou a dizer: «Quem morrer nesta guerra santa vai direito para 0 céu!»®, Por sua vez, em carta a Filipe II datada de Almeirim, a 9 de Maio, Cristovao de Moura comunica-lhe que anda atrds do arcebispo lisbo- nense para mandar pelo Santo Oficio castigar 0 eclesidstico, embora ficasse em diivida de que 0 fizesse «com medo do Povo e aos dois pretendentes»®. Sentindo perigar a liberdade da patria, ultimo dos castigos insinuados no célebre sermao pronunciado na capital apés a derrota de Alcdcer-Quibir, 0 jesuita Luis Alvares, tido como o S. Paulo do seu tempo, no piilpito da Sé de Evora, a 12 de Maio, quinta- feira da Ascensio, apela com a sua costumada violéncia verbal para que se enfrentasse pela forga o invasor®. Na altura, Fr. Miguel dos Santos era de novo o provincial dos agostinhos, designado no capi- tulo reunido no colégio de Coimbra, a 24 de Abril de 1580, 3°. Domingo depois da Pascoa, para substituir Fr. Sebastido Toscano”, SLID, ibidem, p. 326. ©2.Cf, Queiroz VELLOSO; Op. cit., em (57), p. 49. © Cf. Geronimo de FRANCHI-CONESTAGGIO, Dell Unione del Reyno di Portugatlo alla Corona de Castiglia, Genova, 1585, fls. 127-128. Cf. Queiroz VELLOSO, Op. cit., p. 76. © CE ID. Ibidem 6 Cf. J. F MARQUES, Op. cit., p. 76. 61 Cf, «Memorial dos Religiosos Agostinhos na India de Fr. Ant6nio Morais», in A. S. REGO, Op. cit. em (35), p. 177. 344 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS confirmado pelo Geral a 11 de Julho®, e, no entender de D. Fr. Agostinho de Jesus, sé-lo-ia «todas as vezes que Ihe couvera entrar no mesmo officio conforme as constituigdes da mesma Ordem, segundo era honrado e estimado de todos 0s religiosos da provincia por suas muitas partes e bom governo, se della se nao fora», Nao lograria, porém, terminar 0 biénio, para que fora eleito. Instalado no Convento da Graga, iria ter papel privilegiado nos acontecimentos politico-militares que, 4 invasio de Portugal por Filipe II, se suce- deram, sofrendo «muitos grandes trabalhos e prisdes»??, Em 18 de Julho, a noticia da rendicao de Elvas as tropas caste- Ihanas e a ameaga de ataque a Olivenca e Campo Maior chegam a Santarém onde, no dia imediato, apés a missa do Espirito Santo e a prédica do Bispo da Guarda, é D. Anténio aclamado rei’). Inicia-se a resisténcia armada ao invasor, a qual com pouco podia contar para além do apoio voluntarioso do baixo clero e dos patriotas inconfor- mados, a quem nio passara despercebida a bastardia do Prior do Crato que era mais uma curiosa similitude com o Mestre de Avis, a quem era comparado”?, Sabe-se como ao chegar a Lisboa, na tarde de 23 de Junho, pode ainda D. Anténio beneficiar da ac¢o dos pre- gadores que diariamente a maneira de lausperene, em «todas as Igrejas por ordem huas quantas cada dia», exortavam que «todos fossem com animo peleijar e morrer por defensao da patria» na qua- lidade de «cristaos e verdadeiros portugueses»”3. A divisio, porém, campeava entre 0s religiosos, ¢ no proprio convento da Graga, em que Fr. Miguel dos Santos residia, um frade ao verberar as violén- cias cometidas contra os soldados castelhanos, dado serem cristdos como os portugueses, foi tomado por traidor. Levado preso para a Camara, obrigaram-no a retratar-se, 0 que fez, alegando ignordncia no que dissera’4. O embate decisivo deu-se, contudo, em Alcantara, a 25 de Agosto, ¢ o inevitavel, face & desproporgdo de forgas, acon- teceu. Vencido, o Prior do Crato retirou, quatro dias apés, para © Cf. Thomas HERRERA, Op. cit. em (4), p. 88. © Cf, Carlos ALONSO, loc. cit., em (6), p. 127. 7 Cf, «Memorial... de Fr. Anténio Morais», in A. $. REGO, Op. cit. em (35), p. 195. T Ver Memorial de Pero Roiz Soares, p. 165; Joaquim Verissimo SERRAO, O Reinado de D. Antonio Prior do Crato (1580-1582), 1, Coimbra, 1956, pp. 12-17. 71D, ibidem, p. 156. Sempre D. Anténio se considerou prudentemente, ao longo deste perfodo agitado, «defensor do reino», como fizera 0 Mestre de Avis, em 1383. BCE. Memorial de Pero Roiz Soares, pp. 168-169. 74Cf, Ibidem, p. 175 e J. F. MARQUES, Op. cit., nota XII, p. 324. FREI MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 345, Santarém, subindo em direccfo ao norte, onde a sua causa dispunha de grandes simpatias entre as camadas populares, os curas de almas e os religiosos conventuais. Pelas Beiras, Entre-Douro-e-Minho € ‘Tras-os-Montes, clérigos e frades mendicantes desafogavam nos ptil- pitos e pracas o seu patriotismo, a ponto do general Sancho de Avila, em carta datada do Porto, a 6 de Janeiro de 1581, escrever a Filipe II: «y bien creo se debe de entender que por aqui, si tenemos la tierra, que los animos son mas en aparencia de S. M.»/5. Vindo de Viana em fuga, D. Anténio esconde-se em Vitorino das Donas, no mosteiro das beneditinas de S. Salvador, e, a seguir, em Landim, Famalicao, no dos cénegos regrantes de Santo Agostinho, sem que jamais alguém tentasse entrega-lo ou os castelhanos Ihe langassem as maos”6, E neste contexto que se deve situar, por mais verosimil, a refe- réncia, no processo de Fr. Miguel dos Santos, ao médico portugués, por certo partidario do Prior do Crato ¢ talvez cristao-novo, Joao Mendes Pacheco, que conhecia dos tempos da Universidade ¢ 0 encontrara uma vez em Madrid, na igreja de S. Filipe, mas j4 entio no exilio””, Citado a comparecer perante 0 alcaide de Valladolid, D. Rodrigo de Santilhana, confessa, a 14 de Janeiro de 1595, ter vindo a Madrigal, a instancia de Fr. Miguel, para reconhecer D. Sebastiao no homem que na altura Ihe mostraram e agora sabia ser um paste- leiro’®. O incriminado confirma, também, 0 episédio consigo ocor- rido, referido por Fr. Miguel na instrugao do processo. De facto, a pedido de D. Francisca Calvo, vitiva do fidalgo Cristovao de Tavora, morto em Alcdcer-Quibir, fora, alguns meses apés a batalha, tratar um «grande personagem», ferido numa perna, escondido na serra do Carneiro, entre o Porto e Guimaraes”. Querendo conservar 0 ano- 75.f, «Carta de Sancho d’ Avila a Zayas» (6.01.1581), in SALVA Y BARANDA. Op. cit., em (58), vol. XXXI, p. 242. 76 Cf, J. Verissimo SERRAO Op. cit. em (71), p. 190. 7 A. G. S., Estado, legajo 172, in M. D'ANTAS, Op. cit. em (1), p. 113. 7 CE. Ibidem, p. 114. 7 Cf. fhidem, p. 113-114 e 120-121. Cristovo de Tévora (1545-1578) era filho do embaixador Lourengo Pires de Tavora e D. Catarina de Tavora. Senhor do Morgado da Caparica foi estribeiro, camareiro-mor e valido predilecto de D. Sebastido que adu- lou com servilismo. Acompanhou a Africa o jovem Rei, mas em Alcdcer-Quibir com ele sucumbiu, sendo-lhe de uma dedicaco extrema, e a cujo Conselho pertencia. No entanto, nio é exacto que o tivesse instigado a fatidica jornada. Casou com D. Francisca de Calvo, filha do rico e gentil-homem genovés Anténio Calvo, que, enviuvando, pas- sou a segundass ntipcias com D. Pedro de Castelo Branco. Cf. Anténio Caetano de SOUSA, Historia Genealégica da Casa Real Portuguesa, t. XI, Coimbra, Atlantida, 346 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS nimato, nunca este, durante os ito dias que permaneceu junto dele, retirou uma espécie de éculos de tafet4 negro que em parte The encobria os tracos do rosto que, por isso, os nao pode distinguir®®. O Dr. Pacheco estivera na fatidica batalha e, ao tempo do inqué- Tito, residia em Lisboa, donde viera a Valladolid para depor’!. A ten- tativa de Fr. Miguel dos Santos em confundir a justiga espanhola, manipulando epis6dios passados e pessoas ainda vivas, com possibi- lidades de manobra para se conseguir inocentar, parece evidente. Na trama que congeminara, era natural que entrasse 0 arguido, partida- tio encoberto, que teria tratado D. Antonio num lugarejo ermo da serra do Carneiro, quando andava foragido pelo norte de Portugal, & espera do embarque para Franga, ocorrido em 10 de Maio de 158122, Livraria Editora, 1953, p. 48; Queiroz VELOSO: Op. cit. em (50), 19, 52, 82, D. Sebastido, 1554-1578, Lisboa, Empresa Nacional de Publicidade, 19453, p. 51, 19 ¢ passim. Nas abas da cordilheira do Margo fica incrustada a serra do Cameiro ea fre~ guesia do mesmo nome, a duas léguas de Amarante, entdo pertencente a comarca de Guimaraes. O P. Antonio Carvalho da COSTA (cf., Corografia Portuguesa, t. 1, Braga, 18682, p. 125). diz que Id tivera origem a familia de Martim Cameiro, monteiro-mor de D. Jodo II, sediada no Porto. E natural que nao s6 houvesse na localidade e imedia- ‘$0es partidérios de D. Anténio, como alguma casa mais abastada capaz de Ihe fornecer abrigo, © que daria maior verosimilhanca as diligéncias de D. Francisca de Calvo no envio do médico e & forma como recebeu as novas que este, Jodo Mendes Pacheco, Ihe trouxe. ®°Cf. M. DANTAS, Op. cit., p. 114. Sabe-se que D. Anténio sofreu «duas roins feridas na cabega»durante 0 combate travado em Alcantara, a 25 de Agosto de 1580. Ver ms. «Da entrada do Duque d’Alva c6 exercito neste Reino (...)», B. N. L.. FG. 8570, in J. V. SERRAO, Op. cit. em (71), p. 504. Pode ter acontecido que rumo até a0 norte, nas escaramucas ocorridas, fosse também atingido numa perna, de maneira a ins- pirar cuidados médicos. Recorde-se que, na carta de Anténio de Brito Pimentel 20 embaixador de Inglaterra, datada de Saint-Maur, a 17 de Novembro de 1580 (cf. J. V. SERRAO, Op. cit., p. 580), se diz, em dado passo, que «chegou a cojnbra jitou E foi dormir a tentugall e daj a mdtemor donde Esteve poucos dias cdvalecedo das feridas E descasando do caminho». Compreensivel, pois, a indicagZio de que o doente se encon- trasse com 0 rosto coberto por uns «grandes éculos de tafetd negro», ocultando os feri- mentos na cabega em fase de cicatrizagao, que importaria disfarcar para ndo ser reco- nhecido. O incidente liga-se com o boato da errancia de um D. Sebastido escondido & espera do momento propicio para se manifestar. A vinda do Dr. Pacheco a Madrigal para confirmar as semelhancas do pasteleiro com o inditoso monarca funcionava na montagem da intriga em ordem ao convencimento de D. Ana, embora com a elastici- dade suficiente, como veio a suceder, para explicar a intervencao da maneira que melhor conviesse. Ver M. d’ANTAS, ibidem, p. 114. SCE. Ibidem, p 113. ®2Escreveu D. Joao de CASTRO: «Enquanto andou escondido, foram grandes as guardas & cuidado que poseram nos portos de mar & nas arrayas: prometendo ElRey Filipe grandes merces a quem 0 descobrisse, ou entregasse: E com grandes penas & FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 347 Por outro lado, o frade agostinho, confessor e conselheiro do Prior do Crato, com ele esteve na aclamagio feita na Camara de Lisboa e, obviamente, se envolveu na luta armada, aquando do ataque caste- Ihano a capital®, Ganha assim plena coeréncia essoutra mengao, no processo, ao seu primeiro encontro com Gabriel Espinosa e as razées de cumplicidade que os uniu®+, Na verdade, sendo numero- sos 0S Saques e incéndios de casas e conventos, perpetrados em Lisboa pelo exército invasor do Duque de Alba*®, fidvel se torna o testemunho do pasteleiro de Madrigal, veterano dos tércios espa~ nhéis nas campanhas da Flandres, Alemanha e Italia que Ihe pro- porcionariam, por certo, o dominio rudimentar dos idiomas francés e germinico, é o ensejo de uma existéncia aventureira propicia a facanhas galas geradores de bastardos*®, Aceitavel sera, pois, que chefiasse um grupo de soldados decididos a incendiar 0 Convento da Graga, ¢ viesse a ceder aos rogos de Fr. Miguel para nao cometer o desacato. Outras vezes, porém, a situagio invertia-se e combatentes espanhéis ficavam a mercé dos portugueses*7. Adquire desta forma contornos verosimeis 0 depoimento de Juan Roderos, criado ao ser- vigo de D. Ana de Austria, que declarou ter ouvido Espinosa relatar quanto reciprocamente devia ao religioso, que Ihe salvara a vida na guerra de Portugal, motivo para essa ulterior aproximagao e intimi- dade88. Quando, anos depois, Fr. Miguel dos Santos 0 viu casual- mente em Valladolid ou, com premeditagdo, o atrafu a Madrigal conde passou a exercer a profissao de pasteleiro, logo 0 plano da con- castigos, aos que o encobrissem, E favorecessem. Todavia sendo tam grandes as pro- messas & tam grandes as ameagas: ndo ouve nenhu de milhares que 0 viram, & conhe- ceram: que o malsinasse, & entregasse: sem terem de ver co proveito, nem co medo. E. mais sendo a mor parte delles, gente pobrissima & a infima do povo». Tratado dos Portugueses de Veneza ou Ternario (...), Patis, 1623, cit. Por J. Verissimo SERRAO, in Op. cit. em (71), pp. 517-518 ¢ 222. 83 Ver: Camilo Castelo BRANCO, Op. cit. em (2), p. 117 ¢ Queiroz VELOSO, Op. cit. em (50), p. 29. _ ECE.A. G. S.,legajo, 172, testemunho de Juan Roderos, servidor de D. Ana de Austria, in Miguel d°ANTAS, Op. cit., p. 119. Fr. Miguel dos Santos declarou pruden- temente que s6 conhecera Espinosa em Madrigal, ocultando assim parte da verdade. CE. ibidem, pp. 101 € 119. 85 Ver: Memorial de Pero Roiz Soares, pp. 179-184; B. N. L., F. G., ms. 8570, in RRAO, Op. cit. em (71), pp. 507-508. 86 Ver A. G. S., legajos 172 e 173, in Miguel d’ANTAS, Op. cit., pp. 107, 119- 121, 126, 127, € 147. 87Cf, Memorial de Pero Roiz Soares, pp. 177-179 € ms. cit. em (80), p. 503. 88 AG. S., legaio 172, in Miguel d’ANTAS, Op. cit., p. 119. JN. 348 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS jura antonista, que Ihe andava a revolver a imaginagao de patriota inconformado ¢ idealista, ganhou encorajante exequibilidade, apesar do fragil esteio em que assentava. Se os aproximava uma reciproca divida de gratidio, o passado de Gabriel Espinosa, de nascimento nebuloso ¢ de militar andarilho com um toque de picaro, permitia-lhe a exploragdo desejada para montar a conjura. A idade a cupidez deste levaram-no a aceitar a proposta de Fr. Miguel, deixando-se ali- ciar para uma trama arriscada, de duvidoso éxito, mais utépica que realista, mas capaz de Ihe trazer proveitos materiais nunca imagina- dos. Agia 0 religioso agostinho por patriotismo, sincero nos fins e nada escupuloso nos meios, que a tanto 0 obcecava a aversiio nacio- nalista a Castela e o impelia a lutar pela restauragiio da independén- cia da monarquia lusa, como a meméria colectiva o incitava®?. O fracasso da resisténcia armada de D. Anténio arrastara con- sigo dramaticamente os mais activos de seus fiéis partidarios entre 08 quais se contavam nao poucos membros do clero regular. Em arta de 19 de Setembro de 1580 para Gabriel Zayas, secretario de Filipe Il, 0 Duque de Alba comunicava que em breve receberia a lista desses frades™. Por sua vez, 0 legado papal, Cardeal Ridrio, mandara publicar uma «carta monitéria», datada de Elvas a 11 de Fevereiro de 1581, em que advertia haverem agido contra os sagra- dos cAnones e incorrido em excomunhao maior os clérigos conven- tuais ¢ seculares que «sem temor de Deos & em grave dano, & perigo de suas almas, @ escandalo de muytos deste Reyno de Portugal, & dos Algarves, saindo-se de seus mosteiros, 2 igrejas, tomardo armas € mytos delles com deixar seu habito regular assistirdo nas guerras, & perturbagdis deste Reyno em favor de Dom Anténio Prior do Crato, @ indagora andio vagabundos, & alguns (estando nos seus conventos) assistem, & acompanhao ao dito Dom Anténio, dando- Ihe ajuda, & favor, com que as ditas guerras, & perturbagdis podem perseverar, & ir por diante»?!, A atmosfera confusa vivida em Lisboa, por altura da entrada do exército castelhano, pormenorizada por Fr. Luis de Granada, vigario geral autoritate apostolica da provincia dominicana, ficou registada em sua correspondéncia, em carta de 23 de Novembro de ® Ct. Historia de Gabriel Espinosa, Op. cit, em (56), cap. XII, p. 41 23°C. Coleccién de documentos ineditos, cit. em (58), vol. XXXVI, p. 49. °! Transcrita em Jayme Constantino de Freitas MONIS, Corpo Diplomético Portuguez, t. XU, Lisboa, 1907, pp. 1-2; J. F. MARQUES, Op. cit. em (40), nota XV, p. 325. FREI MIGUEL DOS SANTOS F A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 349 1580°2. Dirigida ao secretério Zayas, delata 0 religioso a accao desenvolvida por Fr.Luis de Sotto Maior, catedratico coimbrao de Sagrada Escritura, sem diivida paralela & tomada por frades respon- sAveis de outras ordens como 0 agostinho Fr. Migue! dos Santos, para quem a liberdade da patria era uma causa sagrada®?. Apontando © confrade como o paradigma do «espiritu de mentira» que se apos- sara de muitos tedlogos ¢ pregadores portugueses, refere Fr. Luts de Granada ter ele, na presenca de D. Anténio e seu exército, ousado afirmar, no ptilpito de Santa Maria de Belém, que «so pena de pecado mortal estaban todos obligados a tomar las armas por él, ale- gando para ello que si estaban obligados los hijos & volver por sus padres, mucho mis lo estaban 4 volver por su patria»; e que «pellear contra castelhanos era pelear contra luteranos». Mais: fora até de opinifio que a ordem do Nuincio, a proibir os religiosos de se pro- nunciarem sobre a matéria da sucesso do reino, «rio obligaba, por- que era contra el derecho natural que os hombres tienen de defen- der su patria», parecer que a todos se apegavam™4. Daqui se seguia, acrescentava ainda Fr. Luis de Granada, que, «conforme a esta doc- trina los confesores enviaban los penitentes 4 comungar, no haciendo caso deste odio: y lo que no menos declara el poder deste enemigo, es que los confesores de todas las Ordenes que iban 4 con- fesar los soldados del campo de Don Antonio los absolvian sin tener ojos para ver que todos estaban en pecado mortal, pues iban pelear em guerra notoriamente injusta: y este mismo espiritu hizo creer y afirmar 4 muchos letrados que los sacerdotes que pelearon y mata- ron en esta guerra no quedaron irregulares»®°. A hora era, pois, de perturbagio e divisdo extremas, de sorte que, se alguém mantivesse prudente siléncio e nao auxiliasse a causa antonista, logo arrostava com a infamia de castelhano e traidor. Em circular de 28 de Janeiro de 1581, dirigida aos priores, mestres e pregadores gerais e demais religiosos da provincia domi- nicana, 0 mesmo Fr. Luis de Granada denuncia a conduta reprova- vel de quatro destacados religiosos do partido de D. Antonio que °2 Carta autégrafa no Archive General de Simancas, Estado, legajo 419, f. 22. apud Justo CUERVO, Obras de Fray Luis de Granada, t. XIV, Madrid, Imprenta de la Viuda e Higa de Gémez de Fuentenebra, 1906, pp. 464-466, transcrita em J. F. MAR- QUES, Op. cit., doc. I, pp. 403-405. 93 Ibidem, p. 404. °4 Ibidem. % thidem, p. 405. 350 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS haviam incorrido no crime de lesae majestatis e na pena de exco- munhio, excedendo em culpa, a todos, Fr. Luis de Sotto Mayor, por sua autoridade ¢ letras, pois se atrevera a dogmatizar «en publico o en secreto y andava siempre en compaiia del sobredicho, y entraba en todos sus consejos, de los cuales redundaron todos los males», Alias, por «indigno», jé havia sido afastado da cdtedra, mediante alvaré de 26 de Setembro de 1580, como de resto acontecera ao agostiniano catedratico de Teologia de Coimbra, Fr. Agostinho da Trindade, também por idénticos motivos e mais por aconselhar o Prior do Crato em coisas de guerra, tomar armas e trazé-las publi- camente, fazer guarda as portas e muros de Lisboa e meter-se em muitas coisas impréprias do habito religioso ¢ mtinus sagrado com grande escandalo do povo e mau exemplo, de que seguiram nume- Tosos danos, procedimento pernicioso ao régio servico e bem comum do reino?”, Entrado em Portugal, nao recuou Filipe II em aplicar a religio- sos de grande notoriedade severas medidas punitivas. Na verdade, se no édito afixado na porta do Convento de Tomar, vila onde entrara a 16 de Marco de 1581 para presidir as cortes e ser jurado rei, 0 monarca castelhano indulta «aquellos que en las alteragiones passa- das movidos por temor ou injustas razones 0 esperangas hizieron algunas cosas contra su servigo», exclui do perdao geral varios mem- bros ilustres do clero regular®®, Entre os mais, nomeiam-se o jer6- nimo Fr. Heitor Pinto, com residéncia fixa no convento de S. Marcos, © dominicano Fr. Ant6nio de Sena, o franciscano Fr. Diogo Carlos, o carmelita Fr, Estevio do Carmo, 0 trino Fr, Simao de Portugal, filho do Conde de Vimioso, e Fr. Miguel dos Santos que devia ter-se con- servado em N*. S*, da Graga no exercicio do provincialato”, % Ibidem, p. 406. Transcrigao desta «carta admonitéria», in pp. 405-406, °7 Cf, «CXXXII (26 de Setembro de 1580) Alvara de Felipe II, demitindo o Dr. Fr. Luis de Sottomaior, e «CXXXIII (26 de Setembro de 1580) Alvaré de Felipe II, demitindo © Dr. Fr. Agostinho da Trindade», in Mario BRANDAO, Coimbra e D. Ant6nio rei de Portugal, M1, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1945, pp. 145-147. Ver referéncia & guarda das portas da cidade por frades da confianga do Prior do Crato em ms, 8570 do F. G. da B. N. L. citado em (80), p. 499. °8 Sugestiio do vereador Jorge Seco na pratica que proferiu, aquando da entrada de Filipe If em Tomar. Cf. J. V. SERRAO, Op. cit. em (71), doc. LXVIII, pp. 587-588. Ver Queiroz VELLOSO, «O Interregno dos Governadores», in Histéria de Portugal. dir. Damiao Peres, V, Barcelos, Portucalense Editora, 1933, p. 237 % Ver esta carta de perdio, na integra, in Alguns documentos relativos a 1580, Coimbra, Arquivo da Universidade, 1943, pp. 48-53. Na transcrigio Ié-se Miguel dos FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 351 O inconformismo dos patriotas era, no entanto, patente. A expressd-lo, consumada a anexacao, dird o grande pregador agosti- nho, Fr. Sebastiao Toscano, falecido em 1583, ao estigmatizar com desassombro no pitilpito da Sé a venalidade de tantos que trairam a honra de Portugal: «quereis saber quem desbaratou estes de quem tantas faganhas estam escritas vengeos mea folha de papel com hii sinal ao que uedes aqui que Ihes boutou por terra uedes aqui a forca de m* folha de papell em branco con hi sinal ao pee a forca que teve»!00_ E, embora Fr. Luis de Sotto Mayor veja ser-lhe restituida a catedra, por indulto de 10 de Setembro de 1582!!, 0 franciscano Fr. Diogo Carlos, tio de D. Anténio!, e 0 dominicano Fr. Anténio de Sena!3 exilam-se em Franga, onde se Ihes juntard o trino Fr. Luis Soares, tedlogo, orador e catedratico, fugido do carcere de Santa- Anjos, quando, na verdade, é Fr. Miguel dos Santos, lapso idéntico ao cometido por Queiroz VELLOSO. Ver supra nota 55. 100. Cf. Memorial de Pero Roiz Soares, p. 180. Este sermao € posterior aos acon- tecimentos de Alcantara (25.08.1580) talvez anterior ao édito do Cardeal Ridrio (11.02.1581) que proibia, sob excomunhao ipso facto incurrenda, tratar do piilpito qualquer assunto tocante & situagdo politica do reino de Portugal. Cf. J. F. MARQUES, Op. cit., p. 58, n. 120. Sobre a morte de Fr. Sebastido Toscano, ocorrida em 1583, ver Armando de Jesus MARQUES, Frei Sebastido Toscano na conjuntura religiosa da sua época, Separata da «Revista Portuguesa de Hist6ria», t. VII (Coimbra 1963), p. 37. 10! Manuel Augusto RODRIGUES, A Caitedra de Sagrada Escritura na Univer- sidade de Coimbra. Primeiro Século (1537-1630), Coimbra, Faculdade de Letras, Instituto de Estudos Histéricos, pp. 189-192. 102 Ft, Diogo Carlos, natural de Lisboa, franciscano, leitor de artes no convento de Santarém, acompanhou numa assisténcia constante D. Antnio de quem era conse- Iheito. Perseguido por Filipe Il pregador eloquente, deixou na Universidade de Paris fama de grande tedlogo e orador, € nessa cidade redigiria o testamento de D. Ant6nio, em 1595, (ver nota 106), vindo a falecer, em 1603, no convento de S. Francisco dessa cidade, onde foi sepultado. Ver: Femando da SOLEDADE, Histéria Serafica, t. V, Lisboa, Oficina de Ant6nio Pedrozo Galram, 1721, pp. 293-294; Barbosa MACHADO, Op. cit., 1 (1965), p. 642; J. V. SERRAO, Op. cit.em (71), p. 30 n. 96, 191, 391, 406 € 407 n, 173. E geralmente dado como tipo mateno de D. Anténio. Porém, Camilo Castelo BRANCO (ver D. Luiz de Portugal, neto do Prior do Crato, pp. 112-115) atri- bui a sua filiagio a Francisco Carlos e Clara Gomes, filha de Pero Gomes que residia em Evora, por 1554, ¢ era irma de Violante Gomes, a Pelicana, mae do Prior do Crato, rebento ilegitimo do Infante D. Luis, pelo que seria seu primo germano. Cf. Queiroz, VELLOSO, Op. cit. em (50), pp. 221-222, n. 7. 195 Sobre as relagdes entre D. Anténio ¢ Fr. Ant6nio de Sena, que faleceu no con- vento dominicano de Nantes, nos primeiros meses de 1585, ver: J. M. Cruz PONTES, «Ant6nio de Sena: um portugués na historia do Tomismo», in Congreso Histérico de Guimaraes ¢ sua Colegiada. Actas, vol. 1V (Guimaraes 1981), pp. 83-108; Barbosa MACHADO, Op. cit., 1, pp. 384-387; J. V. Setrio, Op. cit. em (71), p. 2118, n. 170. 352, REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS rém!*, Sorte diferente, porém, tiveram Fr. Heitor Pinto que se viu desterrado para 0 mosteiro de N*. S*. de Isla, junto de Toledo!5, ¢ Fr. Miguel dos Santos conduzido para Madrid e enclausurado num mosteiro da ordem!°, Entretanto, no capitulo provincial, celebrado a 27 de Maio, domingo «infra Ascensionis» de 1582, sob a presidéncia do defini- dor mais velho safdo do anterior, Fr. Francisco de Cristo, decano da Faculdade de Teologia da Universidade de Coimbra, foi eleito, por um biénio, o sucessor de Fr. Miguel, como era norma!®”, A escolha recaju em Fr. Agostinho de Jesus, entretanto chegado da Alemanha, que mais tarde sucederia a D. Joo de Meneses, na sé bracarense!8. 4 Fr, Luis Soares, O. S. T., captivo em Alcdcer-Quibir, veio a ser encarcerado & ordem do Duque de Alba no forte de S. Julio, mas escapou-se para Franca onde che- gou em Novembro de 1582. Cronista-mor de D. Anténio, redigiu as cartas em latim dirigidas por este principe aos papas Gregério XV e Sisto V. Faleceu, em 1591, em Londres ¢ foi af sepultado na ermida catdlica. Ver: Barbosa MACHADO, Op. cit., II, 1966, p. 141; Matos SEQUEIRA, O Carmo e a Trindade, 1, Lisboa, Camara Municipal, 1939, pp. 356-359; J. V. SERRAO, Op. cit. em (71), p. XXXVII, n. 58, 30, n. 96 e 213, n. 143; J. E MARQUES, Op. cit. em (40), pp. 334- 105 Cf, Edward GLASER, «lntroduccién», in Fray Hector Pinto, Imagem de la vida Cristiana, Barcelona, Juan Flores Editor, 1967, pp. 22-2. 106 Hostil ao monarca espanhol, referindo-se-Ihe, disse um anénimo: «por averlo mostrado com mucha demasia en la guerra de Portugal, le avia mandado elRey nues- tro sefior Don Felipe Segundo traer preso 4 Castilla, metido en un coche, con Alcabu- ceros de guarda». Cf. Histéria de Gabriel Espinosa, cit. em (56), p. 7. D. Ant6nio recorda-o na carta que escreveu a Gregério XII, lamentando o desterro a que foi sujeito: «Quid dicam de fratre Micaele 4 Santis Ordinis Heremitarum D. Augustini Provinciale et concionatore praestantissimo Reginaeque a publicis conciononibus in exilium etiam misso», Camilo Castelo BRANCO, Op. cit. em (2), p. 118. J. V. SERRAO (cf. Op. cit., p. 71) refere que nao encontrou exemplar algum desta carta que Camilo refere ser rarissima, mas de que o Visconde de Azevedo possufa uma cépia sem data. Fr. Miguel dos Santos juntamente com Fr. Luis de Sottomaior so mencionados no tes- tamento de D. Anténio, feito em Paris, por mao de Fr. Diogo Carlos (ver nota 102), em. que o principe declara «por que pela experiéncia que tenho da m. ta virtude e pruden- cia de cadahum deles, estou certo, que com o seu conselho e parecer cessario alguas duvidas, que sobre alguns pontos deste meu testam.to se poderao offerecer», Cf. Pedro Batalha REIS, «Numaria d'El-Rei D. Ant6nio, Décimo oitavo rei de Portugal, 0 idolo do povon, in Anais. Ciclo da Restauragao de Portugal, XI, Lisboa, Academia Portu- guesa da Historia, 1946, p. 486. 'T Cf. A. U. Coimbra, «Actas dos Capitulos Provinciais da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho», Doc. do Colégio de N*, S*. da Graca, Caixa I, N°. 6, f1. 1 18 Cf. Ibidem e Anténio MORAIS, in Op. cit, em (35), p. 195. Sobre Fr. Agostinho de Jesus (=Castro), arcebispo de Braga, nascido em Lisboa, a 16.10.1557 & falecido em Braga a 21.11.1609, ver: Rodrigo da CUNHA, Historia Eclesiastica dos Arcebispos de Braga, I1, Braga, Manuel Cardozo Impressor, 1635, pp. 400-420; Barbosa FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 7 Para o lugar de Fr. Miguel dos Santos, por direito definidor con- forme as constituigées ordenavam, em razdo do seu passado pr6- ximo ¢ por se encontrar ausente, foi escrutinado Fr. Edigio da Apresentaciio, catedratico conimbricense de teologia!. Fr. Anténio de Morais, vigrio provincial da congregacio de Goa, cronista das missGes dos agostinhos no oriente portugués e seu irmio de habito, ao sublinhar-Ihe o perfil de religioso de «grandes partes ¢ abalisado no ptilpito», fadado ainda para maiores dignidades, se 0 «justo juizo de Deus» assim 0 houvesse ordenado, salientou quanto Fr. Miguel dos Santos sempre fora «notavelmente afavel e brando no seu governo»!!®, Querendo enveredar pelo apaziguamento interno € ata- Ihar as tenses sofridas no seio das comunidades conventuais, divi- didas por dios, rancores e diferendos profundos, a assembleia capi- tular tomou por unanimidade algumas medidas. Assim, sob o pre- texto do servico de Deus e quietacao das almas, ficavam isentos das sangGes previstas nas disposigdes do Geral Tadeu de Perusa, podendo retomar o lugar que por direito Thes pertencia na religiio, apenas descontado o tempo em que andaram fora da obediéncia claustral, todos quantos haviam deposto o habito!!!. Restituia-se a voz activa aos que dela se viram privados pelos visitadores, dado 0 muito prejufzo causado a provincia em virtude do «pouco tento que algiis tiverdo no falar e fazer outros excessos contra 0 servigo de sua magestade ¢ honra», como impréprios do habito, na esperanga de virem a ter melhor conduta no futuro; de contrario, se ousassem des- mandar-se e «fazer ou falar cousa contra aquietagao deste Reino e servico delRey N Senhor ser&o castigados com outras penas mais graves ao arbitrio do padre provincial»!!?. Advertiam-se os visitadores, sob severas sangGes, para nao admitirem, em suas visi- tacdes, dali para diante, culpas antigas, j4 apreciadas e julgadas, a fim de se «atalhar odios dalguns homens pouco tementes a MACHADO, Op. cit. em (55), pp. 61-63; Fortunato de ALMEIDA, Histéria da Igreja em Portugal. I, Porto-Lisboa, Livraria Civilizagao Editora, 1968, p. 601; José Augusto FERREIRA, Fasios Episcopaes da Igreja Primacial de Braga (Sec. Il-Sec. XX), Braga, Edi¢do da Mitra Bracarense, 1932, pp. 72-108 19 Cf A. U. C., Actas cit, em (107), fl. 1. Sobre Fr, Egidio da Apresentacio (1539-1622), ver: Barbosa MACHADO, Op. cit. em (102), I, pp. 747-749; Friedich STEGMULLER, Op. cit., em (16) , pp. 18-20. NO Cf. Ant6nio de MORAIS, in loc. cit. em (35), p. 114. NICE A. ULC, «Actas», cit, em (107), £4 "2. Cf. Ibidem. 354 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Deus»'!5. Mais rigorosas, contudo, foram as ameagas do arcebispo de Braga, D. Joao Afonso de Meneses, cominadas na proviso de 20 de Dezembro de 1582, que, reservando para si a absolvicao de «todas e quaisquer pessoas assi regulares como seculares de qual- quer grao, condigao e profissio que sejam assi religiosos mendican- tes, como nam mendicantes», puniam quem quer que: 1°. — atentasse directa ou indirectamente contra os interesses de Filipe II; 2°. - defendesse os direitos de D. Anténio, por bastardo, tirano e susten- taculo de gente sediciosa e inimiga da religiao crista; 3°, — acolhesse ou auxiliasse, «em mosteiros, quintas, casas ou igrejas» ao Prior do Crato e seus sequazes; 4°. — comunicasse Por escrito ou oralmente com ele ou alguém que militasse em seu favor; 5°. — fornecesse transporte naval para a fuga de pessoas implicadas em tais delitos ou para levar auxilio material ao Pretendente foragido!'4, O vencido de Alcantara era, pois, perseguido sem tréguas ¢ Procurava-se, com 0 auxilio das autoridades religiosas, neutralizar a actividade de seus Partidarios, alias na execugao da vontade de Filipe IT que em carta de 20 de Abril de 1581, datada de Tomar, nomeadamente recomen- dava: «Habreis podido entender cuan de veras deseo que se busque D. Ant6nio pues de hallarse depende ya el entero sossiego de este reino»!!5. A repressio foi violenta na capital e provincia, atingindo mesmo foros de barbarie, em que a lascfvia e rapina desmedidas se traduziam em estrupos de gente indefesa, raptos, roubos e extorsdes que envolviam militares responsdveis, como o préprio Sancho d@’Avila ¢ a soldadesca veterana da Flandres, Alemanha e Itdlia!!®, Crescia, por isso, a atmosfera de frustragdo ¢ revolta, respondendo as populages com retaliagdes. Sensiveis aos boatos mistificadores da realidade, solidarizavam-se com os partiddrios de D. Antonio que se aproveitavam da crenga no regresso de D, Sebastiao espalhada por visiondrios e eremitas, aventureiros e regressados de Africa. A forma como o rei desaparecera em combate e a confusa versio do reconhe- cimento do seu caddver davam aso 8 difusio de narrativas fantasis- tas, contrarias 4 desejada serenidade e resignacio dos espiritos!!7. "3.Cf, Ibidem, fls. 10-11 "SCE, BN. de Lisboa, tes. 11193 A., in J. . MARQUES, Op. cit. em (7), pp. 70-71 e 408-410 onde vem transcrito na integra, US Cf. Collecién de Documentos Ineditos, cit. em (56), vol. XXXIV, p. 249. "6 Ver: J. V. SERRAO, Op. cit. em (71), pp. 179-193, "17 Sobre 0 boato do rei disfargado e escondido por vergonha da derrota, ver FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 355 No intuito de contribuir decisivamente para desencorajar tantos rumores, Filipe II decide a trasladagao dos ossos do malogrado monarca e f4-los tumular no Mosteiro de Belém, com o cerimonial que a circunstancia requeria!!8. Manteve-se, porém, a psicose sebas- tica que tanto havia impressionado 0 nincio papal Mons. Sauli, enviado a Lisboa para apresentar condoléncias, logo apés a tragédia de Alcdcer-Quibir, a ponto de comunicar a Roma que nao s6 no povo mas em muitos homens de jutzo existia a presungao de que D. Sebastido vivia, estava escondido em Portugal e andava compa- nhado de Cristovdo de Tavora, seu favorito, ¢ depressa se deveria descobrir!!®. Tudo isto passava pela inspiragdo dos conventos, com colabora¢do ou abusivo aproveitamento do clero secular, reflectindo © clima de mentalidade pseudo-mistica e patriética dominante em no poucos de seus membros!?9. O primeiro afloramento, a chamar ptiblica atengdo, corporizou- se na pessoa de um eremitéo esmoler, oriundo de Alcobaga, egresso carmelita que, nas errancias pelo pais, vendia tergos que aprendeu a confeccionar em Lisboa antes de entrar em religiao, até se fixar no Iugarejo de Albuquerque, em plena fronteira castelhana!?!. Protegido pela vitiva de um combatente de Alcdcer-Quibir, acaba denunciado pelo cura da paréquia e fixa-se em Penamacor com dois ciimplices: um, que se dizia Bispo da Guarda, irmao do Conde de Vimioso; e outro, D. Cristovdo de Tavora, favorito de D. Sebastiaio, por quem ele préprio se fazia passar com 0 assentimento de nume- rosos crédulos!??, Descoberto 0 embuste, acabou por ser preso e tor- turado no vice-reinado do Cardeal Alberto'??, A ambiguidade das respostas, no julgamento a que o sujeitaram, levou-o as galés, onde Queiroz VELLOSO, Op. cit. em (79), pp. 403-406. Nos depoimentos de Fr. Miguel, no decurso dos interrogatérios, ha referéncia a convicgao difundida de que D. Sebastiao se encontrava vivo. Cf. Miguel d’ANTAS, Op. cit., p. 101. Em carta de D. Ana a Felipe Il, de 20 de Novembro de 1594 (A. G. S., Estado, legajo 172), ela diz: «tendo razoes para acreditar que D. Sebastido, meu primo, nao tinha morrido, e que percorria 0 mundo como peregrino, perturbada com a sua desgraga, fiz algumas oracdes com a intengo de pedir a Deus que me ilumine sobre este caso». Cf. Ibidem, p. 111 M8 Cf, Memorial de Pero Roiz Soares, p. 208. "19 Citado por José de CASTRO, D. Sebastido e D. Henrique, Lisboa, Unido Grafica, 1942, p. 288, 120 Ver J. F. MARQUES, Op. cir. em (40), pp. 90-91 21 Cf, Miguel d’ANTAS, Op. cit. em (1), p. 83. "2, Ibidem, p. 85. '23 Cf, Ibidein, pp. 85-86. 356 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS cumpriu pena, enquanto os ctimplices eram enforcados!24. Encontrava-se, em 1588, numa galera entre os navios partidos de Lisboa para se incorporarem na Invencivel Armada, tendo logrado refugiar-se em Franga, juntando-se aos exilados figis a D. Anténio por quem era auxiliado!25, De ascendéncia humilde ~ 0 pai fora canteiro na Ilha Terceira surge, um ano volvido, novo impostor, Mateus Alvares, que se instalara, junto de Obidos, havendo frequentado o mosteiro da Serra de Sintra que deixou!?®, Eremita na Ericeira, o rigor da vida que se acreditava levar atraiu 4 sua volta gente humilde e abastada!27, A aura de maravilhoso cristo que soube tecer em redor de sua pessoa despertou no povo a crenga de que era D. Scbastiao encoberto, a per- correr penitente 0 mundo para cumprir a pena que, pela derrota de Alcacer-Quibir, a si proprio impusera!?8. Por certos tragos que Ihe podiam dar vaga semelhanca com 0 inditoso monarca, cresceu a fé dos numerosos adeptos, entre os quais se distinguia um fogoso par- tidario do Prior do Crato e fidagal inimigo do dominio castelhano que Ihe ofereceu a filha em casamento, acabando por fazé-la coroar como rainha!?°, Pretendeu Mateus Alvares aliciar para a impostura D. Diogo de Sousa, almirante da esquadra da jornada de Africa, de modo a dar credibilidade a trama, acabando por espalhar proclama- ¢6es pelo pais!3°, Reunindo um grupo de exaltados, projectava estar "4 Cf, Ibidem, p. 86. "25 Cf. Ibidem, p. 87. "6 Cf. Ibidem, p. 88. Hé equivoco nesta identificagao, pois segundo Carvalho da COSTA Op. cit. em (79), Il, p. 62, $6 existe na drea de Obidos, meia Iégua para nas- cente, 0 convento de S. Miguel dos frades arrabidos, fundado em 1569, pelo Cardeal Infante D. Henrique. "27 Cf. Ihidem, p. 89, 228 Cf, Ibidem. 329 Cf. tbidem, pp. 89-90. 180 Cf, Miguel d’ANTAS, Op. cit., pp. 90-91. D. Diogo de Sousa, filho de Francisco de Sousa, da casa de Beringel, e de D. Joana de Noronha, nascido por 1519, foi capitdo de Sofala, na costa indiana, donde regressou em 1558. Nao teria sido, porém, governador da India por influéncia do valido Cristovdo de Tavora, pois este levaria D, Sebastido a nomear para 0 cargo 0 avé, Rui Lourengo de Tavora. Em 1578, foi comandante da armada que rumou para Africa e aguardou, em Larache, a expedi- ¢40 a Alcdcer-Quibir, por ordem régia. Mantendo-se em Arzila nos dias de Agosto, recolheu os poucos combatentes que lograram escapar da catéstrofe. Foi assim que se originou o rumor de que D. Sebastidio sobreviveu e, disfargado, se ocultou na armada de Diogo de Sousa. Manteve 0 fidalgo uma posigao neutral na crise de 1580 e Filipe II nomeou-0 para o conselho de estado. Fazia parte dos responsaveis pela defesa de Lisboa, em 1589, aquando do ataque inglés. Era natural que vivesse ainda em 1594. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA i em Lisboa no dia de S. Jodo para, a coberto dos festejos populares, fazer-se aclamar como D. Sebastiao por fim regressado!?!. Confessaria, durante 0 processo que as justigas Ihe moveram, ser sua intengéio contar ao povo a verdade, remetendo-Ihe a liberdade de aceita-la!3*. Condenado 4 forca, a 14 de Junho de 1585, morreria esquartejado — pena infligida aos réus por crime de lesa magestade —, 0$ apoiantes acabariam perseguidos com extremo requinte e a a sem poder reagir, dado o ambiente de terror e ameaga criado!*5, Goradas estas iniciativas voluntaristas, ficava na memoria colectiva a marca de uma inconformada resisténcia antonista contra a unido dindstica sob a capa do sebastianismo. Outro foco de oposi¢ao politica anti-filipina gera-se, a coberto de manifestagdes pseudo-misticas. Foi 0 caso da célebre monja de Lisboa, prioresa do Mosteiro da Anunciada, Soror Maria da Visitagdo, que chegou a iludir o proprio monarca e Fr. Luis de Granada, que acreditaram na sinceridade da falsa estigmatizada!*4. Filha de D. Francisco Lobo, embaixador de D. Joao III na corte de Carlos V, e D. Branca de Meneses, entrou em 1562 para 0 convento, sendo orfa de onze anos!35. A 7 de Margo de 1584, apareceu diante da comunidade com estigmas visiveis, semelhantes 4s chagas de Cristo, tendo-se logo espalhado a noticia do prodigio dentro ¢ fora do Reino, até A longinqua India, mercé das numerosas gracas sobre- naturais por sua intercessao atribuidas e das reliquias que dela cir- culavam!36, Acorriam de toda a parte peregrinos para vé-la. O pré- prio vice-rei, Cardeal Alberto, enviava relatdrios para Filipe II e 0 Papa Gregorio XIII, convicto de sua intercessao em males indivi- duais e ptblicos, apesar do confessor da religiosa conjecturar pru- dentemente ser 0 fenémeno obra diabélica!37. Os patriotas inimigos do dominio filipino aproveitavam-se das visées que a monja dizia haver, tendentes a alimentar a crenga de que D. Sebastiao era vivo, a fim de encorajar as correntes pro-brigantina e antonista!38. Com Ver: Antnio Caetano de SOUSA, Op. cit. em (79), t. XH, p. I, 1954, pp. 126-12 Queiroz VELLOSO, Op. cit. em (50), pp. 10-11 131. Cf, Miguel d’ANTAS, Op. cit., p. 94. "Ct, Ibidem. 133. Cf, Ibidem, pp. 94-95. 14 Cf. J. F, MARQUES, Op. cit. em (40), p. 332. 155. Cf Ihidem 156 Cf, Ibidemn, '87 Cf, Ihidem. 8 Cf, fide, pp. 332-333 358 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS este procedimento, Soror Maria da Visitagao ousava infringir as rigorosas disposigdes do Geral da ordem dominicana, Xisto Fabri, que determinavam nao Ihe fosse consentido escrever cartas que tra- tassem de matéria politica, sendo em favor do Rei catélico!3®, O processo inquisitorial, que acabou por Ihe ser movido, findou a 6 de Dezembro de 1588, com pesada condenagio da ré, reduzida ao siléncio ¢ ostracismo!, Mas, se a monja nao mostrou capacidade ou nao teve ensejo de encabegar um movimento capaz de minar 0 governo filipino, tentaram os partiddrios de D. Anténio, a coberto do sebastianismo, de explorar em proveito da causa o crédito de santi- dade e profetismo de que ela gozava!4!. Sempre pormenorizada e oportunamente informado, Filipe II ordenou, como alids acontecia em emergéncias afins, uma actuaco firme nos conventos de maneira a cortar cerce as veleidades dos opositores '42, Os fiéis ao Prior do Crato acabaram por ser mais de perto vigiados e com zelo perseguidos. O reputado superior do convento do Carmo, Fr. Ant6nio Caldeirao, foi preso, tal como a fidalga D. Ana de Aragio, € nao poucos chamados a Madrid sob variados disfarces!43, E neste contexto factual sociologicamente fradesco, em clima mental sebéstico ¢, ainda, do grave revez sofrido pela Invencivel Armada e na sequéncia do fracassado ataque das forgas navais anto- nistas 4 orla costeira dos arredores de Lisboa, que Fr. Miguel dos Santos principia a arquitectar o plano da conjura pratidtica que criard sérias apreensdes ao governo castelhano!#4, Exclufdo do per- dao geral, decretado por Filipe II antes de regressar a Espanha em Fevereiro de 1583, 0 religioso foi coagido a seguir para Madrid e, ao que parece, af lhe fixaram residéncia no convento dos eremitas agos- tinianos calgados!4>. Em amargurada e comovente carta, para ser entregue em mio pelo Provincial de Castela, por quem pede Ihe seja remetida a resposta, enderegada ao novo Geral, Fr. Espiritu Anguisola de Vicenza (1582-1586), a pretexto de o saudar e apre- sentar votos do melhor governo, Fr. Miguel dos Santos escreve de '89CE, dbidem, p. 331. CE ibidem, p. 331 'S! Ver a opinido do historiador dominicano Alvaro Huerga contréria a de Fr. Augustin Salucio que conheceu a religiosa e que defende haver existide «en fondo de toda aquella milagreria un fin politico y anticastellano». Cf. Ibidem, p. 333. "Cf. Ibidem. '3.Cf. Ibidem. 4.04, thidem, pp. 102-105. "45 Ver supra nota 99. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA Valladolid, a 25 de Dezembro de 1583, queixando-se de que a roda da fortuna haja afectado a sua comunicagao com a Curia generalicia no periodo conturbado ultimamente vivido. Com efeito, os tumultos e discérdias ocorridos em Portugal na altura em que pela segunda vez fora investido no provincialato, o forgaram a nao poder silenciar © amor A patria, nem Ihe permitiram suportar a iniquidade dos tem- pos ¢ as caltinias dos homens. Aconteceu, por isso, ter incorrido na ira do Rei Cat6lico e ser levado compulsivamente para Castela, acompanhado de religiosos exemplares, de sua e outras ordens con- ventuais. Foram os primeiros momentos deste exilio cheios de des- gragas ¢ dificuldades, mas por mercé régia, decorrido precisamente um ano de reclusdo, viu-se restituido a liberdade, com a condigao de nao poder regressar patria, sem especial permissao do monarca. Em todo este tempo, foi-lhe proibido escrever e enviar cartas, motivo por s6 agora Ihe apresentar as merecidas congratulagées Proscrito, acabou por ser '48. B credf- vel, por isso, que, sabendo-o em Madrid, Gabriel de Espinosa 0 pro- curasse em S. Filipe, conversando sobre 0 que Ihes acontecera de seguida aos dramaticos acontecimentos da ocupagao de Lisboa onde se haviam entreajudado. Mesmo que se ndo leve em consideragao 0 enorme exagero, alids de intencional significado, do pasteleiro cuja gratidao pelo frade o faria dizer que nao descansaria enquanto o ni sentasse no sdlio papal!?, tais encontros, motivados por necessi- dade de auxilio ou mera vontade de reatar 0 antigo conhecimento, revelar-se-iam cruciais para a impostura que o religioso agostinho ousaria conceber, mau grado as evidentes fragilidades sociais e psi- colégicas do futuro ctimplice. A presenca de Espinosa na capital madrilena, por essa altura, é revelada no depoimento do cozinheiro 48/1, fol. 297r-298r (autégrafa). Agradeco a Fr. Carlos Alonso a gentileza da comuni- cago da cépia desta carta. 470 templo foi construido de 1546 a 1549 e benzido em 1553. As «gradas ou mentidero» de S. Filipe ficaram célebres no séc. XVII. No sec. XIX 0 convento acabou por ser demolido e, no local, surgiu um solar — «suntuosas casas del senior corderom Ver Anténio Bonel CORREA, Iglesias Madrilefias dlel Siglo XVI, Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas / Instituto «Diego Velasquez, 19842, pp. 54-55. 148 Cf. Memorial de Pero Roiz Soares, p. 310. 149 Cf, Miguel d’ANTAS, Op. cit., p. 119. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIKO DINASTICA 361 do Conde de Nieba, em Valladolid, perante 0 alcaide Martim Hernandez Portocarrero ao proceder, em Novembro de 1594, & veri- ficago da identidade de um preso suspeito de roubo de jdias valio- sas}, Declara, com efeito, o denunciante que cerca de seis anos atrds, servindo em Madrid, na casa do Marqués de Almazan, atare- fado com um banquete, recorrera aos préstimos de um ajudante de cozinha, de nome Gabriel de Espinosa, pasteleiro de profissdio, que deparara no passado més de Setembro, casualmente, ao cruzar uma rua de Valladolid onde, reconhecendo-se, vieram & fala. Mostrou-lhe entio as jéias que confessou haver recebido de uma religiosa de Madrigal com quem tencionava casar!5!, Como consta do proceso, em S. Filipe se encontrara também 0 frade com o referido médico Joao Mendes Pacheco, simpatizante de D. Ant6nio, que the relataria pormenores do estado de Portugal e da resisténcia patridtica!>?. Outra presenga respeitava ao homem de negécios do Conde de Redondo, que 0 procurou varias vezes nas idas a Madrid, e poderia bem ser recoveiro do licenciado Anténio da Fonseca, filho de um comerciante de Lisboa, testemunha citada no processo, ¢ ambos da 6rbita do Prior do Crato!53, Conhecia-o Fr. Miguel e escreviam-se, chegando a pedir-Ihe para comprar linho e sedas chinesas!**, Tratar- se-ia de mercadorias em melhores condigées obtidas em Portugal ou até, em tltima andlise, de dadivas que permitiriam ao religioso pre- sentear personagens da corte no intuito de ir movendo o rei a bene- voléncia, sob garantia de fidelidade, como viria a suceder!®°. Desta altura, é também a nomeagio de Fr. Miguel dos Santos para vigério do mosteiro as agostinhas de Santa Maria la Real, em Madrigal, e confessor de D. Ana, filha ilegitima de D. Joao de ‘Austria, 0 famoso cabo de guerra € irmao bastardo do monarca!5®, Na verdade, remonta a fins 1590 ou principios do ano seguinte ~ ja entio em fungdes e por certo a residir no convento dos eremitas de Santo Agostinho, de Valladolid ou no de Madrigal de las Altas Torres onde mortera Fr, Lufs de Leén!*7 (ver fig. 2, em apéndice) — um IS0Cf.A. G, S., legajo, 172, in Ibidem, p. 117. 151 Cf, Miguel d’ANTAS, Op. cit., pp. 117-118. 182 Cf, Ihidem, p. 113, Ver supra nota 80. 153 4. G, S., legajo 173, f. 267, in Ibidem, p. 149. 154 Cf. Ibidem, 155 Sobre este uso a que recorriam os religiosos, ver infra nota 185. 156Cf. Memorial de Pero Roiz Soares, p. 310; Miguel d’ ANTAS, Op. cit. p. 100. 157 Havia em Madrigal um convento de eremitas de Santo Agostinho, fundado no 362 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Tequerimento por si dirigido & Universidade de Coimbra. Apreciado na reuniao do conselho-maior sob a presidéncia do reitor D. Fernaio Meneses de Mascarenhas, com a presenga dos lentes das «cadeiras grandes» entre os quais se contavam o agostinho Fr. Egidio da Apresentacio titular da de Escoto, solicitava Fr. Miguel dos Santos a aprovacdo para poder «pregar e ensinar 0 evangelho» em conformi- dade com as determinagoes conciliares!58, Privado até ao momento de exercer 0 ministério do piilpito, tornava-se indispensdvel provar que Possuia os requisitos canénicos para obter a necessdria autorizagao, hierarquica. Discutido o assunto, apesar dos presentes 0 conhecerem © poderem abonar-Ihe a preparacao, méritos e qualidades, no se con- sideraram competentes para despachar-lhe a peticdo!5, Pertencia esse direito, por tratar-se de um regular, ao seu superior religioso. como alids se havia verificado em caso anilogo, respeitante a0 Bispo do Porto dessa altura, limitando-se o conselho a ordenar que se passasse um certificado de suficiéncia!®°, Fica-se, desta forma, com a dtivida, Se a magna assembleia se curvou ao imperativo da lei ou se teré recor. tido a esse subterfiigio juridico por nao querer emiscuir-se numa situagdo que envolvia um passado politico nao de todo clarificado e ser ainda de recente data o desfecho condenatério da Freira da Anunciagdo, de conotagao patriética anti-filipina!®!, Na nomeagiio século XV, onde faleceu, a 23.08.1591. com sessenta e quatro anos, quando era pro- vincial da ordem, o famoso Fr. Luis de Leon, O mosteiro de Santa Maria la Real. mais Propriamente de N*, $*. de la Piedad (ou de Gracia), era 0 das religiosas agostinhas onde esteve D, Ana de Austria, Cf. T. Sobrino, «Avila», in Diccionario de Historia Eclesiastica de Espana, dit. por Q. Aldea Vaquero, I, Madrid, Instituto Enrique Florez, 1972, pp. 158-159. Perto, em Medina del Campo, existia outro da mesma congregagao moniistica do ramo masculino em que foi mestre de novigos (1526-1535) Fr. Luis de Montéia (1497-1569) que morreu em Lisboa, no convento da Graga. Tendo exercido 0 Priorado de 1535-1542, era este bem conhecido de Fr. Miguel dos Santos que para Medina chegou a ser transferido no decurso do processo. Cf. J. M. del ESTAl, ibidem, III (1973), p. 1736 'SCI.A, U. C. fl, 106: 0 documento, a que nos referimos, jd citado em (20), res- peita ao texto da acta da sesso do Conselho Maior da Universidade, de 17 de Maio de 1591, em que foi discutido o mencionado requerimento. 'S9 Cf. Ibidem, fl. 106. PCE. tbidem, f1. 107. Na altura, era bispo do Porto, o franciscano D. Fr. Marcos de Lisboa (1511-1591), que foi aluno do colégio universitério de S. Boaventura, em Coimbra, ¢ escolhido para a Sé portuense por Filipe II, em 1581, tendo dado novas constituigdes a0 bispado de harmonia com os decretos tridentinos. Faleceu a 3 de Setembro de 1591. Cf. Fortunato de ALMEIDA, Op. cit. em (108), Il, p. 649 161 Q processo inquisitorial instaurado & religiosa terminou com o desmascara- mento da fraude, a 6 de Dezembro de 1588 e pesada condenagiio da ré. FREI MIGUEL DOS SANTOS ‘A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 363 para 0 cargo, sem dtivida com a aprovacao do provincial dos agosti- nhos, deve ter sido de importancia o parecer abonatério, altamente clogioso, da idoneidade moral e intelectual de Fr. Miguel dos Santos, dirigido ao proprio rei e atras referido, subscrito a 6 de Margo de 1591, pelo arcebispo bracarense, D. Agostinho de Jesus, seu confrade ¢ condiscipulo, abrindo-Ihe caminho a plena reabilitacao e, quigd, em prazo curto, ao fim do exilio!®2. Se o despacho régio mostra nao Ihe haverem os anos de ostracismo afectado o prestigio que suas letras e virtudes haviam grangeado, poderosas teriam sido as pressdes ¢ de admitir serd que a do proprio Geral nao haja faltado!©3. O gesto mag- nanimo de Filipe II nao era, porém, desinteressado ao beneficiar um notério opositor, a quem importava captivar a confianga. Madrigal de las Altas Torres, lugar de Castela-a-Velha, em terras da grande comarca de La Morafia na provincia de Avila, centrada no quadrilétero de Arévalo, Medina del Campo, Catalaiedra ¢ Pefiaranda de Bracamontes, no acesso a Valladolid, situava-se, desde épocas re- cuadas, num corredor de infiltragdo e presenga portuguesa (ver mapa, fig. | em apéndice). Zamora, Toro ¢ Tordesilhas ficam-Ihe no percurso, assentes num espaco com vivos testemunhos hist6ricos, religiosos € civis, reflexo de um assiduo ¢ confluente contacto luso, leonés e caste- Ihano, Em Valladolid distante 98 quilémetros estacionava a corte, onde acorriam frades e fidalgos, homens de negécios e viajantes, burocratas e peticionarios de gragas régias. Correios e soldados circulavam nas veredas montanhosas ou nas ladeiras do Douro que une em bem com- prido curso os dois reinos. Constitui-a, definindo-lhe a estrutura, um. fecinto muralhado, tinico em Espanha. A configuragio é a de um cit- culo perfeito com mais de dois mil ¢ quinhentos metros de perimetro muralhado, sugerindo 0 desenho de uma cidade ut6pica do imagind- tio renascentista!®4, Erguida no meio de uma planicie ¢ aberta a todos os ventos, por entre «Ruinas perdidas em campo / que lecho de mal que antes de hombres», na evocagao de Miguel de Unamuno, avis tam-se de longe as torredes das igrejas, palacetes e passos das fortifi- cagdes, em cujas «Altas Torres», na poética espressio do Arcipreste de Hita, se podia ver 0 préprio diabo garbosamente poderoso!®. '2Ver p. Len. 6. 16 Memorial de Pero Roiz Soares, p. 310. 164 Cf. Jacinto de a Vega CARNICE! [RO e Nuria Gonzales HERNANDEZ, Madrigal de las Altas Torres, Valladolid, Ambito Ediciones, 1996, p. 42. 165 1p, Ibidem, p. 14; Jose Jimenez LOZANO, Madrigal de las Altas Torres. Monasterio de Nuestra Senora de Gracia, Leon, Editora, sid, p. 3. 364 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS O mosteiro feminino de Nuestra Sefiora de Gracia havia sido Jaum palacio de lazer ~ oasis de écio ~ para a corte. quando D. Joao TI de Castela recebera Madrigal como heranga de sua mie D. Catarina que o mandara erguer!® (yer fig. 3, em apéndice). Cidade, palacio e mosteiro estao cheios de tecordagGes nobilitantes e lusas. D. Isabel de Portugal, segunda mulher daquele rei, com ele se casou na igreja local de S. Nicolau de Bari e tornaram crista a filha, D. Isabel a Catélica, em sua pia baptismal!5?, No mosteiro, morreu com sete anos um rebento de Carlos V, entio noviga, e D. Barbara de Piramos, irma de D. Joao de Austria e uma D. Ana Maria Juana Ambrosia Vicente de Austria, filha de um outro D. Joao de Austria, itmiio de Carlos II", af abadessa. Ao Monasterio de Nuestra Sefiora de Gracia doou o monarca portugués D. Jodo Huma arroba de canela e cravo, na época um verdadeiro presente régio!®. Para sempre, porém, o destino marcou com outro evento a meméria de Madrigal de las Altas Torres de fatidica e sangrenta mancha que o poema de Unamuno assim evoca: Dom Sebastian el Encubierto, el rey del misterio, el Quijote de Portugal, y ay pastelero! venias quién sabe de donde. Madrigal de las Alias Torres, ruinas perdidas em lecho, ya seco, de liénaga enorme! 166 bidem, pp. 3-4, 'S71D., Ibidem, p. 3. ‘SID, Ibid., p. 10. Eo retrato desta abadessa que se encontra hoje suspenso na parede de uma das salas. 18 Ihid., p. 14. "OCF. J. V, CARNICEIRO e N. G. HERNANDEZ, Op. cit., em (164), p. 15. Tem © poeta Jorge de SENA (1919-1978), em «Conhego o sal...€ outros poemas» [Lisbon 1978] uma composigao Madrigal de Las Alias Torres, datada de 12/12/1912, que reza assim: Crescew agui Catélica Isabel vivew agui a amante de Sebastido unt dos falsos melhor que 0 verdadeiro ‘morreu aqui Frey Luis de Léon («Como famos dizendo...» — reatow na cdtedva aonde a Inguisigdo cortava uns anas antes) 4s torres altas nao existem jd nem madrigais se cantam nestas ruas frances FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 365 Por vontade régia fora l4 colocada D. Ana de Austria — mulher de singular beleza e bastarda de D. Joao, falecido em 1 de Outubro de 1578 com 33 anos, vitima da intriga que o secretério Anténio Pérez destilara no animo soberano, entdo_arrependido pela atitude tomada para com 0 irmao que estimava!7!. A Infanta era um dos rebentos das conhecidas aventuras galantes do célebre general!”?. Filipe II que a tomara sob tutela, menos por obrigag4o do que para controle politico, decidira proporcionar-Ihe conforto material de harmonia com a sua prosdpia — atitude, de resto, banal na sociedade do tempo!?3, Encaminhou-a 0 monarca, autoritariamente, aos seis anos de idade, para vida religiosa onde, sem vocagao, acabaria por professar, a.12 de Novembro de 1589, no provincialato de Fr. Pedro de Rojas, sendo soror Mariana de Argunanes, prioresa do mosteiro A freira perguntei onde era que aprincesa nna convento escondia 0 anante pressuposto o rei que se esfumava de Encolhido. Corou voltou-me as costas ~ wm segredo sinda hoje ao fim de quatro sécules. Cf, Poesia — III, Lisboa, Edigdes, 70, 1989, pp. 220-221, € a «nota» da p. 260-261 171 1D, Joao de Austria (1545-1578), cujo primeiro nome foi Jerénimo, era filho ilegitimo de Carlos V, nascido de seus amores com Barbara Plumberg de Ratisbona (Alemanha), lavadeira ou cantora de profissiio. Confiado aos cuidados de um fidalgo devotado a0 imperador, D. Luis Mendes Quijada ¢ sua mulher D. Magdalena de Veloa, passou pela Universidade de Alcali de Henares. Rejeitou seguir a carreira eclesidstica, a que Filipe I] o destinava, e trocou-a pela militar, sendo incumbido da seguranga do litoral mediterrfnico. Ternou-se num famoso cabo de guerra, celebrizado pela vitéria de Lepanto (1571) contra os turcos otomanos e pelas campanhas nos Paises-Baixos. Caluniado pelo secretdrio de estado Anténio Perez junto de Filipe If, j4 no chegou a ler a carta em que o irmio The manifestava a sua solicitude, quando se estinguiu vitima de tio, a que nao resistiu 0 corpo delibitado pela dureza das campanhas militares € os excessos venéreos. Cf. Ivan COULAS, Philippe HH, Paris, Librairie Arthéme Fayard, 1992, pp. 383-384,¢ passim. Sobre a intriga de AntOnio Perez: Ibidem, 346-348 ¢ Queiroz VELLOSO, Op. cit. em (50), pp. 299-302. 172.1. Ana de Austria (1568-1630), era filha de uma parente da princesa de Eboli, ‘Ana Mendoza de la Cerda, esposa de Ruy Gomez da Silva e muito ligada ao Mosteiro de N*. S*, de Gracia, chamada Maria de Mendoza, que foi seduzida, na festa dos-Reis de 1567, por D. Joao de Austria que confiou a crianga em segredo a educagio de D. Magdalena de Ulloa, sua antiga tutora. Conhece-se outra irma de D. Ana, nascida em Italia, de nome Joana, filha de Diana Falanga, de Sorrento, educada pela Duquesa de Parma, sua tia, que a casou com Butero, principe siciliano, Hé ainda um filho vario de D. Jovio de Austria, varias vezes mencionado no processo judiciario, e uma terceira filha de que se ndo conhece o nome nem amie. Morreu D. Ana em Fevereiro de 1630, reclusa, em Avila, num convento. Ver: Miguel 4’ ANTAS, Op. cit., pp. 100, 103, 109, 119, 144 ¢ 146; Ivan COULAS, Op. cit., pp. 262 € 328. 173 Cf, Miguel d’ANTAS, Op. cit., p. 103. 366 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS de Nuestra Seftora de Gracia, quem com a noviga firmaram a res- pectiva acta, ao tempo em que Fr. Gregério Elparensi Petrochini (1587-1591) era o Geral da ordem dos eremitas agostinianos!74, Ag dirigit-the a consciéncia, como seu confessor, Fr. Miguel dos Santos descobriu-the a revolta face A forcada clausura. Inconformada por Ihe haverem vedado a existéncia cortesi de dama com 0 estatuto a que seu alto nascimento Ihe dava direito, sonhava com um destino bem diferente!”5, Foi desta disposigao de espirito que o frade agos- tinho, experiente conhecedor de almas, se aproveitou para afeigoar abusivamente a vontade da confessada ao seu projecto patridtico, numa condendvel violagio das suas obrigacdes de ministro sagrado. Porém, homem do seu tempo e inconformado perante 0 dominio estrangeiro, a que sua patria fora sujeita por violéncia, afiguravam- -se-lhe licitos por essa razio todos os expedientes destinados a liberté-la. Se, como tedlogo, sabia que os fins nao justificam os Meios, a vista das justificagées ¢ atitudes assumidas por tantos reli. giosos de provada ciéncia e vida exemplar, na crise de 1580, 0 envolvimento para que arrastara D. Ana teria compreensiveis ate- nuantes morais!7°. Os riscos que a faria correr seriam cobertos pela nobreza da causa, e as eventuais contrariedades ¢ males a suportar acabariam de sobejo recompensados. A mentalizagio no. foro intimo, a que a religiosa foi sujeita, deduz-se dos seus depoimentos no processo. Durante quatro anos, na expressio da prépria, fez-lhe Fr. Miguel a cabega, explorando uma credulidade que a Clausura facilitava, pois apenas contactava com o director espiritual e 0 cfr- culo controlado de seus servidores!77, A actuagdo dolosa do confes sor residiu na manipulagao da boa fé da fidalga, levando-a a crer que os direitos de Filipe, se nao eram extorquidos, cessavam com 0 apa- recimento de D. Sebastiiio que finalmente ressurgira a retomar o governo do reino!’8. Gabriel de Espinosa era 0 rei encoberto que, a seu tempo, se daria a conhecer e a desposaria, pois assim Deus 0 revelara ao director de consciéncia!”9, Para estruturar a impostura, 0 "4 Cf. Firmo Zurdo MANSO e Ester del Cerro CALVO, Madrigal de Altas Torres. Recuerdos para una histéria, Madrigal, Editorial IMAD, 1996, p. 122, n° 111 "5 fhidem, pp. 104 € 139. "76 Cf. supra texto entre as notas 40 ¢ 51, onde se referiu a forma como pensa- vam e agiam os frades patriotas ante a anexagao de Portugal executada por Filipe IL "7 Cf. Miguel d'ANTAS, Op. cit., pp. 115, 138-139. "7S Ver: carta de 20.11.1594, de D. Ana para Espinosa, ibidem, p. 110 ¢ carta de D, Ana para Filipe Il, a 18.07.1595, ibidem, p. 140. 179 Thidem, p. 139. FREI MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 367 frade recorreu a inverdades e subtilezas, conforme as circunstancias iam exigindo, a fim de que fossem criveis e convincentes os teste- munhos. Houve, no fundo, todo um trabalho imaginativo em ordem a exequibilidade da trama que, no entanto, dependia de um variado mimero de factores e pessoas que era necessdrio ralacionar cocren- temente em seus contextos em ordem & aceitagao Ultima de D. ‘Anténio, como rei de Portugal. No retiro de Madrigal, sobrava tempo para amadurecer 0 projecto e congeminar estratégias, que beneficiariam dos ensinamentos colhidos nas tentativas fracassadas de Penamacor ¢ Ericeira, bem como nos titeis contactos e informa- Ges que a estadia em Madrid Ihe haviam proporcionado. A sensibi- lizagdo de D. Ana de Austria, que de resto nunca inspirara confianga ao Provincial agostinho de Valladolid, & causa portuguesa foi ainda facilitada pelo seu idealismo ingénuo que a fazia acreditar, alids como a tantos em seu tempo, nessa enorme teia de tradigdes ¢ ditos messianicos e proféticos que, aplicados a D. Sebastiao, corriam sobre o encoberto peninsular!®°. Fr. Miguel dos Santos nao recuava mesmo em revelar ter sido contemplado com visdes do rei «escon- dido» e lhe forneceria c6pias dessa literatura sebstianista que conhe- cia A saciedade!8!, E tudo leva a crer que, falta de melhor, tendo- © encontrado em Madrid ou Valladolid, haja atraido Gabriel Espinosa a Madrigal e 0 encorajasse a exercer ai a profissao de pas- teleiro, enquanto ultimava o plano!®?, O anonimato do nascimento, elemento a explorar, encontrava-se assegurado pelo facto deo impostor haver sido enjeitado as portas de uma igreja de Toledo!®. A idade que acusava, cerca de 60 anos, disfargados pela pintura do cabelo!*4, condiria com o tempo em que servira nos exércitos de D. Joao de Austria, como confessara a D. Ana, a quem, para se insi- nuar, oferecera um relicdrio pela porteira do Convento, presente entio vulgar a pessoas de estirpe'5, O alistamento nos tércios 480 Phidem, p. 138. 181 fhidem, pp. 101, 138-139. 182 Fixou-se Espinosa primeiro em Medina del Campo, a 3 Iéguas de Madrigal, e, depois, aqui. Antes estivera em Ocaita. Cf. ibidem, pp. 100-101, 118-119, 126, Fr. Miguel dos Santos, no interrogatério a que 0 sujeitou D. Juan de Llano, sustentou que conhecera o pasteleiro em Junho de 1594. Cf. ibidem, p. 123. 183.Cf. Historia de Gabriel Espinosa, cit. em (56), p. 44; Miguel d’ANTAS, pp. 123 e 147. 184 Cf, Ibidem, p. 122. No interrogatério de 17.02.1595, anos. Cf, Ibidem, p. 123, 185 Cf, Ibidem, pp. 121.123. O presentear. na época, pessoas régias e de posigo confessard que tinha 53 368 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS rodara-o em insoléncias e atrevimentos, € 0 exercicio da profissio, a de tecelo de veludos e depois de pasteleiro, proporcionara-lhe contactos e relagSes sociais capazes de Ihe polit maneiras ¢ fazé-lo desempenhar situagdes nos cendrios que se lhe exigissem!®6, De Testo, seus filhos bastardos acabavam por serem funcionais na trama arquitectada. Assim aconteceu, por exemplo, quando se pretendeu descobrir nas feigdes da filha ainda crianga tragos dos Austrias, quer ainda ao reservar-se para o filho o papel de irmao da religiosa que sta, crédula, esperava ansiosamente conhecer!®?, Eram dois elos frageis, mas intencionais, a D. Sebastido e a D. Joao de Austria, ten- tados para a insisténcia no casamento e no abandono do con- vento!®8. As letras, os dotes oratérios e a experiencia cortesi de Fr. Miguel dos Santos estavam presentes nas cartas de Espinosa para D. Ana e nos coléquios que mantinham!®?, Apenas a aprendizagem se social com objectos religiosos ¢ pegas de origem asidtica pode constatar-se, v. g., nas seguintes referéncias: O frade agostinho, acima mencionado, Fr. Sebastidio Toscano, escreve de Lisboa, a 7.10.1545, ao Geral da Ordem, Seripando, e aproveita para dizer. the que recebeu da mie as prometidas porcelanas orientais - «vasa indica» ~ que Ihe Prometera ¢ ird enviar, de que a melhor é de cor branca decorada com trés serpentes de Ouro, indo mais duas juntas numa caixa, uma branca por dentro e dourada por fora, ¢ a Outra inteiramente pintada pelo interior ¢ exterior, devendo também receber do porta- dor uma arroba de agticar da Ilha da Madeira. E, se reconhece a modéstia da oferta, Promete que a préxima ser de maior valia, Na missiva de 5.08.1547, 0 superior agra. deceu-lhe 0 envio das faiangas ¢ demais dadivas; e, na de 15.01.1549, remetida através do Bispo do Porto, regressado de Trento, incumbe-o de entregar, em seu nome, 2 tai nha D. Catarina a imagem de S. Jodo Baptista que Ihe prometera. Em carta de 20.03.1562, Toscano acusa haver recebido as que lhe foram remetidas de Trento, a 13 de Fevereiro, e agradece-Ihe «las imagines de Nuestro Seftor lesu Christo», j4 recebi- das. Cf, Armando de J. Jesus MARQUES, Loc. cit. em (100), pp. 12, 17 386 Cf. Miguel d’ANTAS. Op. cit., pp. 152, 123, 126. 87 Caso da filha Clara Eugénia, nascida no Potto, baptizada talvez na freguesia de Ne. S*. da Viet6ria, a 2 de Outubro de 1592, cuja mae, Inés Cid, era uma servical de Orense amante de Espinosa que a conhecera em Portugal e 9 acompanhava em suas errancias. Camilo explorou novelisticamente este incidente em «A filha do pasteleiro de Madrigal», in Op. cit. em (2), pp. 139-158, com ligeira referéncia a p. 134-135. A crianga, que passava por ser muito bonita, cativou as boas gracas da religiosa que se preparava para se encarregar de educé-la, tendo Filipe II chegdtlo a mostrar-se interessado em obter Pormenorizadas informagdes sobre sua identidade. Cf. Miguel d’ANTAS, Op. cit., pp. 101, 102, 116, 123, 127, 132. O preso as ordens do Arcebispo de Evora, que se decla- rava rebento natural de D. Joao de Austria e da Duquesa de Niza, seria também filho de Espinosa e surgia no plano de Fr. Miguel dos Santos como hipétese de passar por irmao de D. Ana, a quem prometiam apresenté-lo. O inguiridor Santillana chega a convencer- ~se que era mesmo descendent do pasteleiro. Cf. ibidem, pp. 109, 120, 139, 141-142, 147. '88 Cf, Ibidem, pp. 119-120, 139. "8° Cf. Ibidem, pp. 102, 115-116, 122-123. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 369 mostrara insuficiente ¢ a intriga planeada bastante complexa para os ciimplices de que langara mao. O passado prestigiante, sem macula na virtude e de aceitacdo generalizada no exercicio das altas fungbes desempenhadas até 2 ida para a exilio, punha Fr. Miguel a coberto de suspeitas incriminatérias, ao menos entre os portugueses que 0 conheciam. Por isso, as acusagées de envolvimento na lamentivel trama do pasteleiro de Madrigal mais nao seriam do que caliinias de religiosos castelhanos, dofdos de inveja pelo desempenho do hon- roso cargo que o rei Ihe confiara. Isto mesmo Fr. Aleixo de Meneses, entio frade graciano, confidencia ao tio, o arcebispo de Braga, D. Agostinho de Jesus, na volta de Espanha, onde fora em desloca a corte, a pedido régio. De facto, em carta de Lisboa, datada de 16 de Novembro de 1594, enderegada ao parente, pedindo-lhe o pare- cer sobre 0 convite de Filipe II para Arcebispo de Goa por desejar monarca consertar a [ndia e alevantar a prelazia goesa, pondo-a «em pessoa de sangue, letras e authoridade, que se Ihe pudesse cometer ho governo daquelle Estado a ter certos pontos ainda sobelo viso- rein, escrevia: «De Fr. Miguel ia V.S. 14 sabré a borasca que agora levou, da qual nao temos recado estar ja livre, postoque muito mais dezasombrado ho negocio, que foi mandado el rei prender a elle ¢ a seu companheiro e a Dona Ana, sua sobrinha, dentro do mosteiro. Quanto a mim s%o emvejas de castellanos delle estar ali»!99_ Nao alcanga Fr. Aleixo de Meneses por que «ho Padre que ve isto, ¢ sobre tudo deixase ficar». E, na continuagao do seu comentario, des- cortina-se que rumores da trama circulavam de ha tempos, a ponto de se ter avistado com ele, por certo no Verio quando se deslocou a corte madrilena, e o ter persuadido «mil vezes a se vir», afastando- “se do lugar suspeito, para o que o ajudaria «ld nisso muito se elle quizera e com muita honra sua». Apercebeu-se Fr. Aleixo do alcance politico do enredo, pois entendeu «certos pensamentos», em que evitou se entremeter de os estorvar, embora de tao audases consigo se riu deles, «conforme os modos, por onde corrido». Augura, entao, que, a menos que «Deus ho livre desto e alumie do que deve fazer a0 adiante,... se se elle deixar estar, os castelhanos nao do de des- cansar até ho nao derru(m)bar de tudo»'?!, As coisas, porém, eram bem mais complicadas que Fr. Aleixo de Meneses imaginava ¢ j4 190 Cf, Carlos ALONSO, «Eleccion y consagracion de Alejo de Meneses, OSA, ‘como Arzobispo de Goa (1594-1595)», in Anacleta Augustiniana, XLIX (1986), pp. 117-118, 126 191 fhidem, pp. 120-121 370 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS muito enredada se encontrava a teia da conjura que Fr Miguel tecera, movido por seu arreigado Patriotismo, a ponto de buscar no importavam que meios, conquanto conduzissem & libertagiio da patria. © contexto histérico em que se moviam em Portugal os parti- darios de D. Anténio, associados a sebastianistas, e no exilio o acompanhavam ¢ apoiavam na Franga e Inglaterra, nagdes que utili- zavam 0 pretendente conforme os seus interesses € estratégias poli- licas, foi aproveitado, de resto, por Fr. Miguel, a fim de organizar a conjura!??. A circunstancia de dispor de dinheiro para esse fim e as Caras compremetedoras queimadas quando soube da prisio de Gabriel de Espinosa e, sobretudo, certos dados revelados durante a instrugao do processo Permitem concluir que algo ja ultrapassava bastante mais a simples fase de congeminagio a ganhar corpo fora da mente do frade'®*. As personagens que foi delatando no decurso dos interrogatérios, algumas deficientemente identificadas ¢ mesmo falecidas, pertenciam aos circulos que bem conhecia. Eram pistas nebulosas que, na pratica, ipenas se revelavam titeis para retardar a incriminagao. Raras foram as que, com excepeao das freiras e cria- dos adestrictos ao servigo de D. Ana de Austria, se encontravam concretamente comprometidas na trama. E este um dos aspectos que maior curiosidade desperta na releitura do processo. Atente-se, a principiar, nos religiosos da ordem. O provincial dos agostinhos de Castela, de quem hierarquicamente dependia, Fr. Gabriel de Goldaraz, (1592-1595), sem diivida por confidéncias de Fr. Miguel ao corrente da intriga, procurando, sob 0 aparente intuito de afastar a suspeigao desprestigiante para a congregacao e as con- Sequéncias que teriam para si ¢ outros confrades quaisquer revela. g6es comprometedoras dos réus, logo contestou a legalidade da Jurisdicao civil em julgar matérias de foro eclesidstico!9, E, quando 0 alcaide do crime da chancelaria de Valladolid se justifica com o direito que Ihe assiste de investigar um delito de lesa-magestade, 0 tos Ck: 4: B. MARQUES, Op. cit, em (40), pp. 104-105, 334-335, nota XXVI '°3 Cf, Miguel d’ANTAS, Op. cit., p. 100 n, 2, 101, 127-132, 149-150, Nao Parece de aceitar, por contraditéria com a enumeracao dos dados recolhidos na leitura do processo e expostos pelo préprio Miguel d’ANTAS, a sua opinizo conelusiva (cf. p. 151) de que se tratava de simples projectos, que a tortura tivera o condao de transfor mar em factos consumados.!™ Cf. 4. G. S., legajo 172, in Miguel d’ANTAS, pp. 107, 125; M, E. BROOKS, Op. cit. em (1), p. 55. "5 Ct. BROOKS, pp. 56, 58 FREI MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 311 Provincial denuncia os atropelos canénicos j4 cometidos ¢ apela para o Nincio, a fim do religioso incriminado ser inguirido por um juiz eclesidstico com mandato apostélico!. No entrementes, um conventual do mosteiro agostiniano de Valladolid, fntimo de Goldaraz, domiciliado na cidade e cujo nome parece denunciar ori- gem portuguesa, Fr. Antonio de Sousa, eloquente orador, tenta defender a atitude do superior e dar cobertura a Fr. Miguel dos Santos!9®, Além de pregar contra a prisdo de Gabriel Espinosa, opu~ sera-se abertamente contra a politica da corte madrilena na Flandres!97, Teria mesmo sido ele o autor das cartas anénimas que constam do proceso, redigidas para minimizar a culpa dos presos evitar ou adiar a tortura a que seriam sujeitos, tal a gravidade da dentincia, donde poderia também resultar alguma confisséo porven- tura para 0 Provincial molesta!®. Sempre invocando a aplicacio da legislagao canénica, reconhecida pelo poder civil, Fr. Gabriel Gol- daraz que ja havia conseguido a nomeagao régia do protonotirio apostélico, Juan Lhano de Valdez, como juiz de instrugao, procura dificultar-Ihe a acgdo, 4 semelhanga do que com o Alcaide Santi- Thana'®9 fizera. Tenha-se em conta, no entanto, 0 pormenor de, na altura, do Provincial ser contestado por outros confrades de Castela que se queixaram ao Geral, Fr. Andrea Securani de Fivizzano (1592- 1598), considerando-o incurso em pena de excomunhio por rebelde a autoridade do superior maior e 4 papal. A ajuda, porém, de Fr. Tuan de Benavente, agostinho do convento de Valladolid e inimigo do Provincial — hostilidade a atribuir aos diferendos internos entao correntes nas comunidades monisticas ~, coloca Valdez na posse de informagoes prestimosas”°!. Assim, em Dezembro de 1594, comu- nicou-lhe que Goldaraz fora transferido, anos atras, de algures de Navarra por simpatia para com a causa francesa, Na altura, a luta acesa entre liguistas € cat6licos, estes apoiados por Filipe II contra Henrique IV, que era instigado pelo conhecido Anténio Perez e 196 Ver: ID., Ibidem, p. 75; Miguel 4’ ANTAS, Op. cit., p. 125. 197 Cf. A. G. S., legajo 173, f1. 129, in BROOKS, p. 74. 198 Cf. fhidem, f1. 244-246, in Miguel d’ANTAS, p. 125; BROOKS, p. 74. 199 Cf. A. G, S., legajo 172, fl. 26, in BROOKS, p. 75; Miguel d’ ANTAS, p. 107. 200 Cf, Quirino FERNANDEZ, OSA, «El Vicario General de Indias. Una con- troversia jurisdiccional entre el general Andrea Securani de Fivizzano (1592-1598) y el Provincial de Castilla Fray Gabriel de Goldaraz, (1592-1595)», in Anacleta Augusti- niana, XLI (1978), p. 26. 201 Cf, BROOKS, p. 75. CfA. G. S., legajo 173, f1. 129, in Ibidem, p. 74. 372 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS pelos exilados portugueses em Franga, sequazes de D. Anténio, tor- na a acusagao de Benavente*® verosimil. Recorde-se que Fr. Gabriel Goldaraz ao tempo em que fora provincial dos agostinhos de Castela, havia recebido Fr. Miguel dos Santos ¢ o mantinha em sua comunidade aquando da nomeagio para vigario do convento de Madrigal c confessor de D. Ana de Austria?4, Associava Fr. Juan de Benavente a accdo de Goldaraz a de Fr. Antonio de Sousa, frade do Convento de Valladolid, ¢ acusava ambos de difundirem informagoes, deturpadas sobre a inquiricao judicial25, No pilpito, a fogosidade de Fr. Anténio, que saira em defesa de Fr. Miguel, era temida, pois ninguém em sua provincia possuia audécia suficiente para «levantar uma comunidade>?°, Note-se que era perigoso para 0 poder civil abrir conflituosidades com 0 religioso que intervinha frontalmente na politica com a justificagdo de ser a causa de Deus que assim 0 impunha. Agira, pois, com prudéncia 0 alcaide D. Rodrigo de Santilhana em nao querer imiscuir-se em paixdes e rancores de fra- des, aos quais, se com severidade critica as intromissdes no secular, ndo molesta, pois alheia-se de investigar a ligagio de Goldaraz ¢ seus amigos 4 causa de Henrique de Navarra, como se imporia?°7, Desde janeiro de 1595, Madrid arrastava a guerra com Henri- que IV que, sem disfarce, apoiava a causa do Prior do Crato, enquanto Filipe II acompanhava directamente o desenrolar do pro- cesso de Madrigal, em estreita colaboragio com o secretério de estado Idiaquez e Cristovaio de Moura, interessados em deslindar os comprometimentos das individualidades Portuguesas que Fr. Miguel dos Santos tanto denunciava como desmentia2®. Se & certo que as pessoas delatadas pelo religioso pertenciam ao contexto da Tesistén- cia antonista ao monarca castelhano, no espaco luso, verificava-se, no entanto, que umas haviam falecido, algumas encontravam-se no exilio, outras retomado a vida conventual. Nem era facil provar que 293 Anténio Pérez saiu de Saragoga a 11.11.1591 ¢, a 24 deste més, acolhe-se em Pau a protecgio de Catarina de Bourbon, irma de Henrique IV, a cujo exército se junta, Depois dirige-se & corte de Isabel de Inglaterra, a quem aconselha a atacar a Espana, enviando uma expedigao contra as costas andalusas. Cf. Ivan COULAS, Op. cit. em (171), pp. $42, 545, 204 Cf. M. E. BROOKS, Op. cit., p. 74. Segundo Benavente, no caso de Madrigal deviam andar também conivéncias de Goldaraz e Henrique LV. 205 Cf, Ibidem, p. 74, 206 Cf, Ibidem, 207 Cf, Ibidem, 208 Cf. Miguel d’ANTAS, Op. cit., p. 131 FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 373 mesmo as passiveis de serem incriminadas tivessem sido abordadas ¢ se houvessem comprometido a entrar na conjura, até porque Fr. Miguel dos Santos apressara-se a destruir, mal soube da prisio de Espinosa, toda a correspondéncia em sua posse”, Do Duque de Aveiro, do Conde de Redondo e de D. Rodrigo de Lencastre, parente da casa de Braganga, tornava-se possivel, desde 1580, rastrear os passos2!®. © conde de Santa Cruz, D. Francisco Mascarenhas, fora um dos cinco governadores nomeados por Filipe II, por indicagao de Cristovio de Moura; Martim de Alarcao encontrava-se em Madrid; D. Rodrigo de Noronha presidia 8 Camara de Lisboa; Alvaro de Medeiros Bercadas residia em Evora; Jorge de Albuquerque estava em Goa; Anténio de Melo e Castro, conde de Monsanto e comba- tente de Alcacer-Quibir, vira D. Sebastiao de tal forma coberto de feridas e prestes a definhar-se que pedira a Fr. Miguel para desistir de to absurdo plano2!!, Na mengio a religiosos da ordem dos eremi- 209 Cf. [bidem, p. 100, n. 2, 121 210.0 Duque de Aveiro era D. Alvaro de Lencastre, primo coirmio de D. Jorge de Lencastre, filho de D. Afonso de Lencastre, parente da casa de Braganga. ncontrou-se, parece que casualmente, na batalha de Alcantara e doi dado, por essa razio, como partidario do Prior do Crato. Esteve na corte de Madrid, para defender os seus direitos a0 ducado, ¢ Filipe II mostrou-se-lhe benigno na concessio de mercés. Faleceu em 13 de Setembro de 1626, Cf. Anténio Caetano de SOUSA, Op. cit., t. XI (1953), em (79), pp. 53-63. D. Luis Coutinho era 0 quarto conde de Redondo, casado com D. Mécia de Meneses, filha de D. Aleixo de Meneses, aio de D. Sebastiao. Presente em Alcdcer-Quibir, conseguiu evadir-se do captiveiro na cidade de Marrocos e com dificuldade chegou a Tanger, regressando daf a Portugal. Faleceu a 3.06.1598. Cf. Ibidem, t. XII, P, 1(1953), p. 226; Queiroz VELLOSO, Op. cit. em (50), p. 37. D. Rodrigo de Lencastre, filho de D. Alvaro Coutinho, alcaide-mor de Pinhel, ¢ D. ‘Antonia de Lencastre, adoptou 0 apelido da mae. Era coirméo do duque de Braganga e parente proximo da duquesa D. Catarina, pois eram ambos netos de dois irmaos, D. Jaime e D. Denis de Potugal. Residia em Madrid e, por isso, exercia como que uma pro- curadoria dos duques de Braganga, ocupando-se de varias negociacdes junto de Felipe Il. Consumada a perda da independéncia, pertenceu ao Conselho de Estado, falecendo solteiro em 1599, Cf. Queiroz VELLOSO, Op. cit., pp. 399-400. 211 Yer Miguel d'ANTAS, Op. cit., p. 128; M. E. BROOKS, Op. cit., p. 78. D. Francisco de Mascarenhas serviu na india e era capitdio de ginetes quando acompanhou D. Sebastiao a Africa, ficando captive em Aleécer-Quibir, tendo conseguido obter 0 resgate como plebeu. Na crise dindstica, embora se encontrasse na defesa de Setubal na altura de prevengio contra um ataque espanhol, mostrou-se depois disposto a servir Filipe Ile, em 1581, partiu como vice-rei para a India. Em 3.10.1593, 0 soberano fili- pino fé-lo conde de Santa Cruz, vindo a ser um dos cinco governadores deixados a substituir 0 Cardeal Alberto, quando partiu de Portugal. Morreu a 4 de Setembro de 1607. CF. Ant6nio Caetano de SOUSA, Op. cit. em (79), t. XH, P. 1 (1953), pp. 232-233; Queiroz VELLOSO, Op. cit., pp. 35, 148. D, Rodrigo de Noronha, cativo em Aledcer- -Quibir, logrow o resgate como plebeu. Cf. Ibidem, p. 36. Anténio de Melo, alcaide-mor 374, REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS tas de Santo Agostinho, o frade incriminado delatara a Fr. Manuel da Conceigao, eleito provincial em 19 de Abril para o biénio de 1592 a 94, Fr. Anténio de Santa Maria, tio do Duque de Aveiro, nomeado visitador no capitulo de 1584 © em 1588 definidor22, Do Processo conclui-se que este, ao deslocar-se a Madrid, servia de portador de missivas para partidérios do Prior do Crato com o encargo de as entregar em Lisboa a Fr. Alvaro de Jesus, procurador geral da ordem, incumbido por sua vez de lev4-las a0 comerciante Manuel Tavares que as faria chegar a D. Antonio e aos destinatarios indicados*!5, Em confissdo, ao depois retratada por falsa, Fr. Miguel dos Santos, a propésito do fantasiado encontro que, em 1594, sob disfarce D. Antonio, acompanhado pelo seu tio Fr. Diogo Carlos ¢ por um dominicano (Fr. José Teixeira) com ele houvera em Madrigal, declarou que o Prior do Crato Ihe dissera ter vindo de Inglaterra e andado pela Beira, durante dois meses, a visitar parti- darios e angariar recursos, alojando-se na casa de curas c abades afectos & causa?! A propésito, o pretendente mencionaria também a sua ligagdo com os comerciantes de Lisboa, Manuel Tavares e Antonio Fonseca, pai do licenciado do mesmo nome, e homens de de Elvas, foi um dos cento e vinte cativos nobres que cairam em poder de Mulei Almede, mas conseguiu ser resgatado como plebeu. Cf. Queiroz VELOSO, Op. cit. p. 35. Jorge Albuquerque deve ser 0 capitao de Malaca que casou a filha, D. Mécia Henriques de Albuquerque, com D. Francisco de Faro, senhor de Vimeiro, cujo fitho. D. Jorge de Faro, morreu em Aledcer-Quibir. Cf. Ant6nio Caetano de Sousa, Op. cit (IX (1951), p. 332. 2 » legajo, 173, fl. 18, in M. e. BROOKS, Op. cit., p. 79; A. ULC, Actas da 0. E. S.A.,cit. em (107), fs. 12, 28, A. da Silva REGO, Op. cit. em (35). pp. 195-196 Fr, Manuel da Conceicao (1547-1624), nasceu em Lisboa e a sua ascendéncia entroncava nos condes da Feira, sendo sobrinho do teslogo Diogo de Paiva de Andrade € do escritor mistico Fr. Tomé de Jesus, da ordem agostiniana em que ele também veio & professar. em 6,03.1563. Ensinou em Roma e foi pregador de Filipe Il Ill. Faleceu no convento de N* $* de Penha de Franga, nos arredores de Lisboa, Cf. Barbosa MACHADO, Op. cit. em (55), III, pp. 224-225. Fr. Anténio de Santa Maria, nome teli_ sioso de D. Jorge de Lencastre, era fitho natural do Duque de Coimbra e tio do duque de Aveiro, D. Alvaro de Lencasire, parente da casa de Braganea, Professou na ordem dlos eremitas de Santo Agostinho, tendo sido cleito provincial em Coimbra, por dois anos meio, em 1596. Filipe I! nomeou-o bispo de Leiria de cuja diocese tomou posse 8 30.04.1616, tendo 0 monarca, que 0 conhecia das estadias na corte, encontrado em Lisboa, aquando da sua visita a Portugal em 1619. Tinha fama de muito caritativo, Faleceu a 10.05.1623. Cf. Ant6nio Caetano de SOUSA, Op. cit. em (79), t. XI (1953), 54; Fortunato de ALMEIDA, Op. cit. em (108), vol. Il, p. 635. 'S Cf. BROOKS, ibidem; Miguel d° ANTAS, Op. cit., p. 129. 214 Cf, Ibidem, p. 150, FREI MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 375 negécio do Porto?!5, Esta referéncia corresponde, com efeito, & simpatia das camadas sociais que aderiram 2 causa antonista, dis- tribufdas pelo pais, mas concentradas em particular na Beira, Capital e Norte. O contexto da resisténcia patridtica era exacto, € verdadeiro 0 activismo de seus agentes. Sabe-se que foi por pressao de D. Anténio que Henrique IV se decidira dar-Ihe 0 auxilio neces- sdrio 4 malograda expedicio a Lisboa, em 1589, na sequéncia do fracasso da Invencivel Armada, tendo 0 Prior do Crato solicitado, entio, a ajuda dos apoiantes devotados?!®. O proprio Filipe II, compreensivelmente empenhado em des- cobrir a rede de partidarios de D. Anténio ¢ impelido pelas delagdes de Fr. Miguel dos Santos, mandou o conde de Portalegre, D. Jodo da Silva, que, com o Arcebispo de Lisboa D. Miguel de Castro, D. Francisco de Mascarenhas, conde de Santa Cruz, D. Duarte de Castelo Branco, conde de Sabugal, e Cristovao de Moura, sucedeu ao governo do Cardeal Alberto, averiguar 0 paradciro dos denuncia- dos, a fim de envid-los a Madrid para averiguagdes”!”. Perante a relutancia de seus pares, em virtude da extradi¢ao violar os direitos soberanos do reino que a interditava, o governador respondeu que uns eram desconhecidos e outros falecidos?!*. Apenas fez conduzir sob prisdio & corte madrilena 0 licenciado Antonio da Fonseca € Francisco Gomes, homem de negécios do conde de Redondo". A teia da conjura estaria, pois, ao que parece, j4 montada ¢ com hip6- teses de se ir tornando eficiente e até talvez decisiva no momento proprio. Em Franga, encontravam-se, junto de D. Anténio, seu tio materno, o franciscano Fr. Diogo Carlos, que podia estabelecer entendimentos com seus irmios de hdbito sensiveis 4 causa anto- nisia22°, Ao agostiniano e ex-catedratico coimbrao, Fr. Agostinho da Trindade, juntavam-se, por sua vez, os combativos dominicanos Fr. José Teixeira, polemista e poligrafo, ¢ Fr. Estevao Sampaio que morte do Prior do Crato, ocorrida em Paris a 26 de Agosto de 1595, militard em favor de outro célebre falso D. Sebastido,o calabrés 215 Cf, Ibidem, p. 129. 216 Cf. Ivan COULAS, Op. cit., pp. 502-503. 217 Cf, Miguel d’ ANTAS, Op. cit., p. 131 218 Cf, Ibidem. 219 Cf, Thidem, p. 149. 220 Fy, Diogo Carlos morreu em Paris em 1603. Cf. Barbosa MACHADO, Op. cit, em (102), 1. p. 642. 376 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Marco Tilio Catizone”2!. Alias, contou este ainda com o apoio do alcobacense Fr. Cristovio da Anunciacao, exilado em Itilia, e, sobretudo, com a inspiragao de D. Jodo de Castro, neto do famoso vice-rei da India, verdadeiro te6rico e 0 mais acabado mentor do sebastianismo militante222, O episédio do pasteleiro de Madrigal apaixonou obviamente a opiniao publica dos dois reinos, to sensivel aos enredos novelescos, sobretudo quando se dizia serem tocados por artes diabdlicas?23_ Seria pois natural que, fomentada por pressdo das autoridades, se activasse a espionagem e redobrasse a vigiliincia sobre os viandan- tes. Acaba, assim, por ser compreensivel que fossem com frequéncia presos para averiguagdes, como suspeitos, frades ¢ seculares que em Espanha viajavam. Ao atravessarem os Povoados e pernoitarem nas estalagens, traidos por indagagées ou evidentes sinais de forasteiros, alguns viriam a cair nas malhas das autoridades locais. Foi o caso de dois frades detidos pelo corregedor de Olmedo: um Francisco Montenegro, eremitao galego, e Bernardo del Rio que se confessaria francés e agente de Antonio Perez, empenhado, por reciproco inte- Tesse, na causa de Prior do Crato, a quem servia de correio nas liga- gdes com Portugal, centradas, por certo, num Manuel Mendes, comerciante lisbonense?*4. Q Conde de Portalegre informara Madrid de que ninguém o conseguira identificar?25, Tudo, porém, leva a crer que se tratasse de Manuel Tavares, referido acima**®, $6 que a névoa calculadamente provocada por Fr. Miguel dos Santos nas repetidas 21 Cf. Miguel d'ANTAS, Op. cit, p. 158. Fr. Agastinho da Trindade que deve ter deixado de ensinar em Toulouse Por volta de 1597, ainda era vivo a 22 de Maio do ano seguinte, Cr. J. V. SERRAO, Les Portugais @” Université de Toulouse (XII-XVI), Paris, Fundation Calouste Gulbenkian / Centro Cultural, 19870, pp. 106-107, Fr. José Teixeira, dominicano, grande poligrafo ¢ companheiro do Prior do Crato, morreu em 1620. Cf. Barbosa MACHADO, Op. cit., II (1966), pp. 904-907. Fr. Esteviio Sampaio, de um ramo de bastardos da familia dos Sampaios, religioso dominicano ¢ partidério de D. Ant6nio, foi mandado encarcerar por Filipe II, mas conseguiu escapar-se para Franca em 1582. De Paris, esteve a seguir no convento de Nantes, onde se encontrava no Verio de 1587, tendo acompanhado a armada de auxilio ao Prior do Crato, a volta de dois anos depois, no ataque a Lisboa. De novo em Franga, instalou-se em Bordeaux em 1594, aparecendo, em 1599, professor de teologia em Toulouse, Cl. 1. V, SERRAO, ibidem, pp. 109-112 22° Cf, Miguel d’ANTAS, Op. cit., p. 157. 3 Cf. Ibidem, + Cf, Ibidem, p, 133. 25 Cf. Ibidem, p. 133 n. 2. °° Cf. Ibidem, pp. 129-130. FREI MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 377 declaragdes que fazia, onde o verdadeiro, o falso e 0 contraditério se imbricavam, exigiria averiguagées, arduas ¢ demoradas, que os inte~ ressados no processo desistiam de prosseguir, por importar ultimé Jo, castigando os culpados j4 reconhe idos2?. Conduzido sob pri- sao, Bernardo del Rio teve ardis de langar a correspondéncia com- prometedora no rio Alba, ao atravessar a ponte de Salamanca?’ Sem corpo de delito e, por isso, liberto de provas para ser incrimi- nado, acabou por sair em Jiberdade®. O incidente, contudo, inse- tindo-se neste processo de comunicar a distancia, tio utilizado no tempo, deve enquadrar-se no contexto dos politicos que se encon- travam exilados, em solo francés. Do lado espanhol, dominava Anténio Pérez que escapara 4 morte mercé da intervengao de D. Diogo Heredia, a cujo grupo pertencia o trinitério francés, Bernard Riviere, talvez a verdadeira identidade desse Bernardo del Rio, que em Saragoga arrancara 0 ex-secretério de Filipe TI das justigas, da Inquisigio durante o motim popular provocado para o efeito™. Ligado 2 faccdo de Henrique de Navarra, € também & do Prior do Crato, na frente comum contra 0 monarca castelhano, nao supreende que Riviere se prestasse a este tipo de servico entre os sequazes de D. Anténio, em Portugal no exilio”*!. Recorde-se que se desterra- ram para Franga religiosos trinos, excluidos do perdao geral conce- dido em Tomar, como Fr. Lufs Soares, gerando-se entre confrades aproximagées ¢ solidariedades, imperadas por comprometimentos politicos?2. De resto, este clima de rigorosa vigilancia em Espanha, para se detectar a rede de cimplices implicados no caso de Madrigal, conduzia a descoberta de comparsas onde menos se espe- raria. Aconteceu, por exemplo, que uma simples querela judicidria levon ao carcere Manuel Gongalves, recoveiro de profissdo, que vivia deste servigo de correio”3, Apanhado em Julho de 1595 em terra castelhana, era portador de cartas para Filipe 11, Infanta Clara Eugénia e D. Ana de Austria pertencentes a um preso de Evora, 227 Cf, Ibidem, p. 150. 8 CE. Ibidem, p. 133 29 Cf. Ibidem, p. 134. 230. Cf, Ihidem, p. 133; Ivan COULAS, Op. cit. em (171). pp. 535-542. 231 Todo 0 contexto politico-militar (1589-1594) desta luta entre Henrique IV & Filipe If que jogava a defesa dos seus direitos & coroa francesa, ver para além de outros: Ivan COULAS, Op. cit., pp. 510-564. 232 ge g trino Fr. Lus Soares morre em 1591, outros falecem para além do ano da execugao de Fr. Miguel dos Santos. Ver, supra, nota 102. 283Cf, Miguel d’ ANTAS, Op. cit., p- 140. 378 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS encarcerado as ordens do Arcebispo, que se dizia bastardo de D. Joao, pai da ré?54, Nesta altura da instrugao do processo, o incidente S6 poderd remeter-se a uma montagem arquitectada por partidérios eborenses do Prior do Crato, como Bercadas235. Conhecedores da estratégia concebida por Fr. Miguel dos Santos em que se planeava um encontro entre D. Ana e 0 suposto irmio, que Ihe seria apresen- tado por Espinosa, poderiam haver recorrido a semelhante expe- diente, a fim de adensar a confusao e retardar o desfecho do inqué- Tito judicial’, No fundo, tudo isto mostra que a trama do frade agostinho, desencadeada em Madrigal, dispunha, contrariamente ao que se tem dito, de uma rectaguarda colaborante que no recuava em ‘ar todos os recursos ao seu alcance. A Tealidade tomava assim forte colaboracdo novelesca, excitando o imagindrio colectivo, a reflectir-se nas abundantes versdes orais © escritas que, ao tempo, circulavam. Hi, ainda, ao ler-se o processo mesmo s6 através dos mencio- nados tratamentos historiograficos, aspectos judicidrios que mere- cem atengao, De facto, serd de assinalar ver que se protesta com resultado contra os atropelos cometidos em desfavor dos acusados, reclamando 0 cumprimento da jurisprudéncia vigente. Fé-lo 0 pro- vincial dos agostinhos Fr. Gabriel de Goldaraz, que denuncia a tor- ura infligida aos eclesiasticos e a violagdo da clausura das religio- Sas, exigindo que a condugio do processo seja entregue a um clérigo jurisconsulto*’. $6 nao conseguiu impedir que 0 protonotario Llano Valdez molestasse lascivamente certas monjas e as amedrontasse para nao o revelarem?*8. Por outro lado, os pares do Conde de Portalegre, se acabam por consentir que os inculpados Francisco Gomes ¢ Anténio Fonseca se desloquem a Madrid, procuram asse- gurar que partam apenas para interrogatérios ¢ nao como extradita- dos para serem julgados, pois se trataria de uma violagao de direitos Soberanos da nagdo portuguesa, que Filipe Il em Tomar jurara res- 24CP fhidem, pp. 140-141 25.4. G.S., legajo 173, fl. 18. in M. E BROOKS, Op. cit., p. 79. 36 As cartas mencionadas, como as remetidas do carcere pelo preso que se dizia lnm de D. Ana, segundo Miguel d’ANTAS (ef. Op. cit. pp. 141-142), podiam set eseritas Por tlm portugués seu companheito de presidio. Mas também, ¢ talver com rong fosimillianga, poderiam ser forjadas e entregues, sem controle daquele. direc, tamente por antonistas eborenses. 237 4. G. S., legajo 172, f1. 20, in M. E. BROOKS, Op. cit., p. 79. 258 Cf. Miguel d’ANTAS, Op. cit., pp. 137-138. FREI MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIO DINASTICA 379 peitar2#,O0 enforcamento de Fr. Miguel dos Santos segue, no entanto, a legalidade. De facto, a senten¢a de morte contra eclesids- ticos sé era executada depois dos réus serem degredados ao estado laical, com suspensio de todos os poderes ministeriais sagrados, prerrogativas e privilégios de qualquer género ¢ origem, a fim do réu poder ser entregue ao brago secular2#”, Assim aconteceu. Este acto feve lugar na igreja de S. Martin, do mosteiro beneditino de Madrid, sendo em seguida arrastado num cesto, com pregdes pelas ruas da cidade, até o suspenderem na forea erguida na Plaza Mayor onde ficava o templo de S. Filipe do convento dos eremitas de Santo Agostinho, em que residiu?"!. Antes, porém, segundo uma anotacio aposta num manuscrito portugues, com noticias sobre Fr. Miguel dos Santos, 0 religioso tera confessado as culpas «contra sy com dor dos tromentos que Ihe davao, dos quais depois de sentenciado & morte, confecandose com o P. Fr. Sebastiam Brixiano, da Ordem de S. Francisco, 0 nao quis absolver sem primeiro se desdezir, como se desdize»?42, Morreu, com dignidade, em 19 de Outubro de 1595, no provincialato de Fr. Pedro Manrique € no governo do Geral, Andrea Securani de Fivizanno, tendo presenciado a execugio uma grande multidio de gente. Esquartejaram-no por ser réu do crime de lesa-magestade, pena aplicada aos conspitadores confessos e j4 sofrida por Gabriel Espi- nosa, seu cimplice’4, Decepada a cabeca, levaram-na para Ma- drigal onde foi exposta durante dez, horas com nao menor ajunta- mento de povo, frente ao Mosteiro das Agostinhas palco dos delitos 239 Cf. Ibidem, p. 149. 249 Cf. Memorial de Pero Roiz Soares, cit. em (5), p. 312: Histéria de Gabriel Espinosa. cit. em (56), pp. 51-54. 241'Cf, [bidem, p. 312; Miguel d'ANTAS, Op. cit., p. 150. A igreja de S. Martinho, cuja fachada actual data do séc. XVIII, era também a da parSquia do mesmo nome, sendo uma das mais antigas de Madrid, situada num bairro perto de Alcazar e, por isso, centro de devogao de grande parte das pessoas ligadas ao palicio real, O tem- plo foi abjecto de obras no decurso do séc. XVII, de que sobressai, pela sua importan- ‘ia, as efectuadas na capela-mor, com o acréscimo de novos altares. Cf. Virginia Tovar MARTIN, Arguitectura Madrileiia del S. XVI (datos para su estudio), Madnd, Insituto de Estudios Madrilefios, 1983, pp. 246-247, 282 Cf, Bibl.da Ajuda, ms. 50-V-30, fol. 31-32. Ver também Ivonne da Cunha Rego, «Misceldnea curiosa de sucessos varios», in Feiticeiros, Profetas e Visiondrios, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1981, pp. 181-183, 28 Ver: Memorial de Pero Roiz Soares, p. 312; Miguel d’ ANTAS, Op. cit.. pp. 150-151 244 Cf. Miguel d°ANTAS, Op. cit., p. 148, 380 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Por que fora justigado*45. D. Ana mereceu castigo mais brando que © de alguns de seus servigais condenados as galés*4, A filha de D. Joao de Austria foi transferida para outro mosteiro, 0 de N= S*. da Graga, em Avila, privada de voz activa e sujeita a duras Peniténcias corporais e espirituais, com sorte semelhante 4 que coubera a Soror Maria da Visitagdo, a falsa estigmatizada do convente da Anunciada?47, Nio obstante 0 tardio tratamento piiblico do processo, o caso teve larga difusio na Peninsula, sobretudo oralmente e nas cartas enviadas de Madrid, Madrigal, Medina del Campo e Valladolid, lugares por onde 0 evento se repartira248, 0 Precioso repositério de informagoes coevas, que € 0 Memorial de Pero Roiz Soares, comtém uma breve versio do epis6dio em que se tende a aligeirar as culpas de Fr. Miguel dos Santos no trégico acontecimento®®». Para a men- talidade religiosa da época, a actuagao do frade fora obra do demd, nio que, sob disfarce e astticia, 0 convenceu a ver no pasteleiro 0 rei D. Sebastido, persuadindo-o com sinais de muitas coisas que s6 ele conhecia, por haver privado e confessado 0 inditoso monarca, ¢ por apenas assim se explicar semelhante Proceder em pessoa de tantas virtudes e altos cargos?™, Em referéncia ao Processo, sublinha que 86 «tormentos crueis» levaram o réu a declarar haver sido conivente com a «maranha», a fim de compartilhar — insinuando-o de forma confusa ~ da extorsiio (mobil da trama?), das ricas jéias de D. Ana. deixadas por seu pai e entregues a Espinosa”*!. Se delatara «dois homens de Lisboa», apenas os culpara para evitar a tortura, mas ino- centou-os mais tarde quando, em Madrid, fora com os mesmos aca- reado. Destituido das ordens sacras, em ceriménia presidida por um arcebispo de Itilia, que no é nomeado, despiram-lhe o habito ¢ ves. tiram-no de «pano tozado Preto», sendo entregue as justigas secula- res. Quatro dias depois saiu a enforcar com pregdo acusatério de ter incorrido «contra regem masgestatis» € em outros numerosos « inconfessados delitos. As «muitas cartas e muito auténticas» escri- fas de Madrid diziam que «morreu 0 mais douto e avisadon que Jamais viram morrer, sendo que palavra alguma das muitas que pro- 32 Cf Memorial de Pero Roiz Soares, p. 312 6 Cf. Miguel d’ANTAS, Op. cit, pp. 144, 146. 27 Cf. Ibidem, p. 146. 8 Cf, Memorial de Pero Roiz Soares, p. 312. 2°Cf, Ibidem, pp. 310-312. 29CF. thidem, pp. 310-311 1C£. tbidem, 310. FREI MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 381 nunciou deixava de ser sélida doutrina para os ouvintes, como para a salvacdo da sua alma, em tudo mostrando « morrer sem culpa». E certo, remata 0 memorialista, que 0 mais pequeno erro cometido se tornava nele grave em face da confianga em si depositada pelo rei, falando-se até de um bispado que tinha para Ihe dar?5?. ‘A relacdo andnima castelhana, publicada quasi um século depois*®, reflecte nitido contacto com 0 processo ou circunstan- ciado escrito nele baseado, pois transcreve na integra uma carta comprometedora de Fr. Miguel dos Santos, a Ginica que seria encon- trada na devassa & casa de Espinosa pelo alcaide Santilhana?4. O autor do folheto respeita a tessitura factual j4 conhecida e mostra que 0 religioso foi o responsivel pelo sucedido. Reconhece, no entanto, que fora dotado de «grandes prendas, y los de mayor auto- ridad que avia en todo Portugal», partidario de D. Ant6nio, «a quien queria y de quien era querido entrafiablemente», e, por sua conduta contra Filipe I em 1580, preso e levado para Castela™?. Arrepen- dido, conseguiu atrair as boas gragas do monarca que 0 nomeou vigario do Mosteiro de Madrigal. O enredo tecido a volta de D. Ana de Austria com o pasteleiro € narrado em suas peripécias mais sig- ? Cf, Ibidem, 312 283 Ver Op. cit. em (56), brochura de 55 p. in 4°. Conhecemos 2 exemplares: 0 da B. N.L., da imprensa de Alonso del Riego, de Valladolid, impressor de la Universidad 0 da B. P. M. do Porto, impresso em Xerez, por Juan Antonio Tarazona, no ano de 1683, que utilizamos. Ambos tém 55 paginas. Ver edigdes da Histéria de Gabriel de Espinosa, sendo a que se conhece por mais antiga a impressa em Cadiz, em 1595, n° 4" (Ticknor), in Antonio PALAU y DULCET, Manual del Librero Hispano Americano, N (E-F, 77721-96039), Barcelona, Livraria Palau, 2* ed. 1951, p. 142. De referir, a versio narrativa «El Pastelero de Madrigal o El Rey fingido» que, na seccaio Estudios Histéricos foi publicada por José QUEVEDO, in Museo de las Familias. Lecturas Agradables é Instructivas, II (25.01. ¢ 25.02.1845), Il (25.03., 25.04. e 25.05.1845), pp. 27-35, 55-59, 91-96, 105-110, em VIII capitulos. Em nota da p. 27, diz-se: «Los hechos que en esta historia se refieren, estan tomados de un manuscrito que se conserva en la Biblioteca del Escorial, escrito 4 principios del siglo XVII por um, padre de la compafiia de Jesus, que se hallo presente «i la muerte del fingido rey». Este jesufta conheceu e, por certo, serviu-se do volumoso processo do Arquivo de Simancas, men- cionado supra, nota 1. Entre a literatura castelhana inspirada neste caso, ser4 de men- cionar © romance histérico de Manuel Fernandez y GONZALEZ (1812-1888), E/ Pastelero de Madrigal, publicado em 1862, reeditado por Editora Arthax, Madrid, 1988, Sabemos que ainda em 1996 se encontrava a trabalhar sobre 0 assunto, num estudo de minuciosa investigagao, D. Fernando Fernandes Blanco, bem como da exis- téncia da Asociacion Cultural «Pastelero de Madrigal» 254 Cf, Ibidem, pp. 3-4. A carta é datada de 6.10.1594. 285 Cf, Ibidem, p. 7 382 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS nificativas, pormenorizando-se as ligagdes do Teligioso com D. Scbastido © episédios sebastianistas do dominio publico apés a catdstrofe de Alcdcer-Quibir, de forma a demonstrar como podia arquitectar a impostura e industriar © cimplice256, Gabriel de Espi- Nosa surge como um enjeitado exposto em Toledo, & porta de uma igreja, que andara muitos anos fora de Espanha, fugido a algada da justiga que o procurara Por uma morte, e antes de pasteleiro havia Sido j «texador de terciopeles»257, Referindo-se a0 mébil de suas maquinag6es, sublinha ter Fr. Miguel dos Santos agido por amor 4 patria, pois «el nunca avia podido trajar que su Nacion y Reyno estuviesse en poder de quien estaba»?°8, Por isso, langara mao de diversos expedientes para entregd-lo a D. Antonio, «buscando dife. rentes trazas, y un hombre astuto, y Sagaz, que supiesse fingir el Rey Don Sebastian», para depois ser assassinado em segredo eo Prior do Crato nao tivesse dificuldade em se conservar no trono2®. Acerca de Sentenga comenta que Fr. Miguel nao conseguiu defender-se, sendo condenado por ter agido contra seu rei natural ¢, como religioso, cometido «graves, y enormes delitos»260, Duas versdes, afinal, ideologicamente marcadas pelos meios onde surgiram, acusando a portuguesa uma nitida acentuagiio patrid- tica. A utilizacio do imaginario sebastianista, do rei escondido ¢ errante 4 espera do momento para recuperar 0 trono, era um provi- dencial recurso que até poderia resultar, se credivel e habilmente explorado, tendo em conta os contextos coevos onde se moviam os Partidérios antonistas, inconformados com a usurpacdo filipina. O teor da narrativa castelhana, literariamente elaborada, é um escrito de coloragdo apologética, tendente a mostrar a insdnia crimi- nosa da empresa do religioso agostinho e a legitimidade da actuacao de Filipe IL, incontestado herdeiro do trono portugues e, por conse. guinte, «rei natural». Soa, assim, 0 panfleto a circunstanciada ver- Sio oficial da conjura. A culpabilidade de Fr. Miguel dos Santos é- Ihe, por inteiro, imputada ¢ os ctimplices meros titeres, embora com niveis diferentes de gravidade, assumindo a pena maxima a dimen. sao de um castigo exemplar cominado pelo direito para o crime de lesa-majestade. O comparsa Gabriel de Espinosa, peca-chave da Ch. dbidem, p. 30, 37 Cf Ibidem, p. 44, 2°8Cf. Ibidem, p. 41 259 Cf. dbidem, 200 CE. thidem, p. 53. FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 383 intriga, se bem que vitima do aliciamento do frade, colaborara cons- cientemente na conjura. As circunstancias agravantes tornam-se Sbvias pela qualidade moral ¢ intelectual da pessoa do réu e pelo abuso sacrilego do ministério sagrado. Note-se que a confissdo ¢ direcgdo espiritual, ao serem desta forma manipuladas, permitem- -nos avaliar a importancia de que se revestiam para influenciar a vida colectiva, sobretudo em perfodos de crise. Ha, todavia, ate- nuantes que, por hipocrisia ¢ imperativo politico, sio tendenciosa- mente, silenciados. O patriotismo, segundo a mentalidade da época, apoiado numa moral teolégica mais permissiva para este género de sentimentos, justificava até 0 martirio e assegurava a salvagao eterna26!, A razio de estado que perfilhavam monarcas catélicos como Filipe II, na sua concepgio absolutista do poder — o rei apenas era responsivel perante Deus e a sua consciéncia —, legitimava a eli- minagio violenta dos que se Ihes opunham?®. No servigo de Deus tudo, desta forma, poderia caber. Qualquer meio, sem excepgio, acabaria por ser justificado pelos fins que se visavam. De resto, no governo dos seus reinos, o monarca filipino sempre agira desse modo2®3, se nao com plena aprovacio ao menos com tolerante aquiescéncia de seus tedlogos e confessores, entre os quais pontifi- cou Fr. Diego de Chaves”, variio de reconhecidas letras ¢ virtudes. 261 Ver supra, p. da nota 64. 262 Na carta de Cristovao de Moura a Filipe HJ, a propésito da prisao, ordenada pelo soberano, do secretirio de estado, Ant6nio Pérez, de quem era amigo, reflectindo © pensar do tempo com que se identificava, recomenda-o & «mucha cristiandad» do monarca que «ha Hegado hacer esta demonstracion a pristio para escusar mayores dafios» e que disso saberd tirar «grandes bienes d semejanza de nuestro Sefior d quien VM. representa en la tierra». Cf. Queiroz, VELOSO, Op. cit. em (50), p. 305. 263 Pertenceu & junta presidida pelo cardeal de Toledo, D. Gaspar Queiroga, para estudar e dar um parecer a Filipe IT sobre quanto respeitasse sucessiio de Portugal, inclusivé acerca da liceidade de se invadir um reino cristo sem ferir a moral ¢ a jus- tiga, ndo correndo 0 risco de onerar a sua consciéncia. Cf. Queiroz VELLOSO, Op. cit em (48), p. 39; J. F. MARQUES, Op. cit. em (40), p. 59. No caso de Ant6nio Pérez, Fr. Diogo de Chaves, entao de 80 anos, aconselha 0 soberano a executi-lo, pelo meio que se Ihe afigurasse mais facil, bem como a condenar & pena capital todos os participan- tes no motim de Saragoga, o que constituia uma violagao dos privilégios aragoneses em matéria de Tiberdades juridicas. Cf. Ivan COULAS, Op. cit, em (171), pp. 539-541 261 Fr, Diego de Chaves (1507-1592), dominicano, professor de Santiago de Compostela ¢ Salamanca, tedlogo de Trento, foi em 1578 escolhido por Filipe II para seu confessor, sendo também de seu filho, o principe D. Carlos, ¢ ja antes do imperador Carlos Ve sua mulher, D. Isabel de Portugal. Cf, M. Gutiérrez SEMPRUN, «Confesores dominicos de los reys de Espanha (1218-1740)», in Diccionario de Historia Eclesiastica de Espaiia, | (1972), cit. em (157), p. 601; R. HERNANDEZ, ibidem, Il, p. 674. 384 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS Por isso, nao surpreende que no leito da morte se atormentasse ape- has com as prevaricagdes cometidas no dominio da sensualidade2§5. No fundo, de forma afim procedeu Fr. Miguel dos Santos na sua luta patridtica contra a unido dindstica cujos contextos epocais, em seu Processo emergentes ora apontados, emprestam plena coeréncia. A ambiguidade Iatente nesta trama urdida com a prudéncia possivel, foi um dado que se intentou ressaltar na releitura feita. Todos os Contornos objectivos do episédio antonista do falso D. Sebastidio de Madrigal, que se procuraram estruturalmente situar em sua teia his- orica, permitem confirmar que a conjura congeminada por Fr. Miguel dos Santos encontrava-se, Por certo, em adiantado desenvol- vimento, quando foi descoberta, e seria de molde a trazer a Filipe II sérias preocupagées?®, E, se é forgoso reconhecer ter redondado numa tentativa gorada, esta trgica ocorréncia constituiu, sem dtivida, mais um contributo para alimentar a causa autonomista que, décadas depois, ir4 conduzir a restauragio da independéncia patria, usurpada por uma intervengao tirdnica, como era geral convicgao dos portugueses ¢ assim ficou assinalada em sua meméria colec- ae 265 Cf, Ivan COULAS, Op. cit. pp. 591-593, 206 Cf, Miguel d’ ANTAS, Op. cit., p. 152. Através do desenrolar de todo 0 Ppro- Cesso, seguindo as exposigdes de Miguel d’ Antas M. B. Brooks, é not6ria a preoct Pagio de Filipe Il em acompanhar os interrogat6rios, como se ve, pela correspondén, fia trocada com os magistrados, nomeadamente na obtengao de informacdes sobre a ita de Espinosa e partidétios de D. Ant6nio, porventura implicados na conjura, apro- vando mesmo 0 recurso & tortura. Cf. Miguel d’ANTAS, Op. cit, p. 102 n. 6. 130, 146 Note- se ainda que a paz com a Franca s6 foi estabelecida com o tratado de Vervins em 1598. Nos mares, a Inglaterra fazia a guerra de corso contra as frotas das indias ¢ ata. cava as costas espanholas, sobretudo as andaluzas. °5T Ver J. F. MARQUES, A Parenética Portuguesa ¢ a Restauragao, 1640-1668. 4 revolta e a mentalidade, vol. Ml, Porto, INIC / Centro de Histéria da Universidade, 1989, sobretudo o cap. IX, pp. 31-83. FRE] MIGUEL DOS SANTOS EA LUTA CONTRA A UNIAO DINASTICA 385 DICE Carta del P. Miguel de los Sanctos, OSA, al Prior general de ta orden, Espiritu Anguisciola o Espiritu Vicemtino. Valladolid, 25 de diciembre de 1583 Patri amplissimo et Reverendissimo Magistro Spititui Vincentino, ordini Eremitarum Sancti Augustini priori generali dignissimo, frater Michael de Sanctis, Lusitanus, salutem. Post gravissimum dolorem illum quem de amantissimi Patris nostri Magistri ‘Thaddaei indignissima abdicatione percepi, Pater amplissime, nulla maioris gaudii maiorisque laetitiae causa mihi potuit accidere, quam quod tu, Pater optime, in illius locum suffectus et promotus, ad Augustinianae nostrae familie singulare decus et ornamentum fueris, ‘Adeo sane ut, moerorem illum priori conceptum nuntio, posteriori hoc tam laeto tamque felici penitus obiecisse mihi viderer. Intuebar nimirum nos, post tanti Patris iac- turam, divina tandem ope et beneficio talem nactos fuisse Spiritum, qui cum Dei Optimi Maximi afflatu, in corpus hoc mysticum nostrae reipublicae inspiratus et mis- sus fuerit, non poterit non corpus ipsum totum vita spirituali et vi quadam coclesti vivum atque vegetum reddere: ita sane ut si semper ordo Augustinianus noster, sub rel quis prioribus generalibus mirifice floruit, cum nunc tua sanctissima atque sapienti sima moderatione longe clariorem et illustruiorem futurum esse non dubitemus. Foelix, igitur, faustaque sit, Pater amplissime, tua ista promotio, iustissima illa quidem et multis nominibus valde promerita, multosque et laetos vivas anos, ad Dei Optimi Maximi gloriam, ordinis ornamentum et filiorum tuorum omnium solamen aique salutem. Quod vero in mea hae erga Rev.mam Paternitatem Tuam voluntate et observan- tia litteris declaranda tandiu hactenus immoratus fuerim, fecit adversa quaedam for- tuna, mihi etsi aliis nominibus valde infesta, hoc certe maxime. Nam, cum in turbis illis, atque dissensionibus, proximis hisci annis in Lusitania excitatis, ego, qui provincialis, munus tune temporis sustinebam, vix potuissem vel ob vim naturae caritatem patriae cohibere, vel ob iniquitatem temporis improborum hominum calumniam subterfugere. 386 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS In regis Philippi Catholici indignationem incurri. Ex quo evenit ut me, officio abdicatum, in hac regna Castellae, una cum multis utriusque ordinis viris gravissimis relegatum transmiserit. Quo in exilio aliquot perpensis calamitatibus et aegritudinibus, hhune tandem, post exactum in reclusione integrum annum, comperta rerum veritate, iam a regia benignitate pristinae libertati restitutus sum; ea tamen conditione, ut in Patriam redite nisi speciali ciusdem Regiae Maiestatis facultate, minime possim. Toto vero hoc superiori tempore interdictum mihi regia authoritate fuerat literas aut recipere aut scribere, idque causae furit quominus ullas ad Paternitatem Tuam Rev.mam dare potuerim. Porro ea ipsa tempestas effecit ut cum totas hasce meas litte- ‘as gratulatorias tantummodo esse cuperem, practermittere tamen non possim quin pos- tulatoriae etiam aliqua ex parte sint. Ego, namque, Pater amplissime, patria eiectus, quamvis in hac. provincia Castellae a Patribus eiusdem provinciae honorifice admodum et humaniter tractatus fuerim, itaque apud illos manere mihi non fuit dubium. Multis tamen retro abhine annis Romam videre et istorum Apostolorum sacra limina invisere supra modum optavi Modo vero, ut subinde Paternitati Tuae Rev.mae manus ac pedes desoculari liceat, idip. sum multo vehementius exopto, Neque vero mihi est animus tam cito in Lusitaniam. Temeare, nam nonnnullis de causis id mihi non expedit. ‘Quare a Paternitate Tua Rev.ma summis atque supplicibus precibus contendo et peto ut facultatem mihi mitere dignetur, qua duo haec capita expresse ac distincte continean (ur: nimirum, ut cum mihi a Regia Majestate libera concessa fuerit in patriam redeundi facultas (quam propedie concessum iri non dubito), possim ipse nihilominus utrumque malim eligere, reverti scilicet in patriam aut in provincia Castellae vel etiam in Bethica provincia manere, neque inferior ullus hanc mihi optionem valeat impedire meque Patemnitas Tua Rev.ma Patribus eius provinciae in qua manere eligero commendatum velit. Cum enim trigesimo iam in Ordinem annum excedam, et seme! atque iterum, licet indignus, provineialis munus obierim, necnon prior fuerim Olyssimponensis con. ventus, atque in collegio nostro Conymbricensi artium et sacrae theologiae praetéctor (sic), consentaneum rationi vestrae, ut meae, si non dignitatis, at saltem quietis et tran- quillitatis, aliqua ratio hebeatur. Posterius vero praedictae facultatis caput sit: ut per Paternitatem Tuam Rev.mam mihi liceat Romam cum religionis tum invisendae atque aliquiendi Paternitatem Tuam causa, quod mihi commodius visum fuerit, proficisci Hac proculdubio Patemitatis Tuae Rev.mae erga me benignitate fiet, ut exilii mei molestiam aequanimis feram, et, qui a tuo Olyssiponensi adventu Paternitati Tuae Rev.mae sum valde devinctus, posthac longe deditior ac devinetior sim futurus, datu. Tusque operam ne collocati in me beneficii Paternitas Tua Rev.ma aliquando poeniteat. Litteras porro ipsas, si Paternitas Tua Rev.ma ad manus Ven. Provincialis huius provinciae Castellae deferti iusserit, ille mihi tcadendas curabit Bene in Domino valeat Paternitas Tua Rev.ma vivatque felix et incolumis Deo primum, deinde tibi, atque tandem Ordini nostro. Datum in conventu nostro Vallisoleti, die Decembris XXV, anno Domini M. D. LXXIII (sic, sed revera M. D, LXXXII). Paternitatis Tuae Rev.mae humilis servus in Domino Frater Michael de Sanctis. (Direccién, al dorso): Patri amplissimo ac Rev.mo Magistro Spiritui Vincentino, ‘otius Ordinis Eremitarum Sancti Augustini priori generali dignissimo. Romae. (Anotacién. de otra mano): Fr. Michael de Sanctis, Lusitanus, Vallisoleti. AGA (= Arch. Gen. OSA), fondo Aa, vol. 48/1, fol. 297r-298r (autégrafa), FREI MIGUEL DOS SANTOS E A LUTA CONTRA A UNIKO DINASTICA 387 FIG. 1 ~ Madrigal de las Altas Torres localizada sobre 0 mapa da Peninsula Ibérica inserto no Atlas do Escorial (séc. XVI). 388 REVISTA DA FACULDADE DE LETRAS FIG. 2 — Madrigal de las Altas Torres ~ Convento dos Agostinhos, fora das muralhas, com a cidade ao fundo. Foto do Autor, LA FIG. 3 - Madrigal de las Altas Torres - Claustro do Monasteiro de Nuestra Seftora de Gracia (de monjas Agostinhas). Foto do Autor.

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