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Neo-Realismo Português:
a inversão do vector cultural metrópole–colónia

Numa entrevista concedida a Cremilda de Araújo Medina em 1982, ao ser inquirido sobre a
possível existência de um interesse mútuo de brasileiros e portugueses pela literatura do país-
irmão, o escritor lusitano Fernando Namora mostrou-se ao mesmo tempo céptico e enfático.
Reconheceu que, no presente século, os portugueses sabem muito pouco do que é produzido por
autores brasileiros e, igualmente, raros são aqueles que, em nosso país, têm conhecimento dos
‘novos’ autores portugueses – a estas alturas, já nem tão novos assim. Afora a mais que honrosa
exceção que é a genialidade de Fernando Pessoa, qual o autor português do século 20 que
encontra ampla ressonância entre nossos leitores? (E não me refiro exclusivamente ao ‘grande
público’, mas também a uma intelectualidade supostamente esclarecida). Talvez a única fuga à
regra seja mesmo o fenômeno José Saramago, lido muito mais por modismo, via Prêmio Nobel,
que pelo reconhecimento da (incontestável) qualidade de sua escrita.
Lamentável, pois, é perceber que a literatura portuguesa, para a grande maioria de nós,
brasileiros, termina nas primeiras décadas deste século, tendo o supra-Camões e seus heterônimos
como marco final. Quanto ao período ulterior, o ensimesmamento de nossos meios literários –
ou, o que é pior, seu curvamento ao imperialismo cultural norte-americano – nos cerceou o
direito de assistir a toda uma nova onda criativa gerada em Portugal. Tal situação impediu a
brasilidade de acompanhar autores cujas raízes estéticas, inclusive, estão na antiga colônia – mais
precisamente aqui mesmo em nossa terra, o Nordeste.
A referência que faço é ao que se convencionou chamar – com pouca propriedade, diga-se
de passagem – de Regionalismo de 30, o grupo literário composto por autores como Rachel de
Queiroz, Jorge Amado, José Lins do Rego… Como se verá, a leitura de obras desta geração, em
fins do entre-guerras em Portugal, foi ampla e serviu de fonte inspiradora para o surgimento de
uma nova proposta estética neste país ibérico: o Neo-Realismo.

Quando José Américo de Almeida, em 1928, lançou A Bagaceira, obra de estréia do


Regionalismo – num contraponto construtivo em relação aos ensinamentos oferecidos pela
Semana de 22 –, a ex-metrópole assistia aos princípios do que lá se chama de Segunda Geração
Modernista, ou Presencismo, nome gerado a partir do título da revista coimbrã Presença, à qual
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seus partícipes estavam ligados. Eram jovens autores que, influenciados por idéias de Valéry e
Proust, privilegiavam o esteticismo e o elemento idiossincrático, apostando no caminho de se
vasculhar a mente de uma aristocracia que se sentia desconfortável consigo própria e que
recorreu, na rememoração de uma infância abastada, a um escape para fugir ao mundo empírico.
Autores como Branquinho da Fonseca e João Gaspar Simões chegaram mesmo a buscar na
psicanálise, que não estava ainda plenamente estabelecida, um fermento para a composição de
novelas e romances. À época, ao passo que no Brasil as tensões da realidade eram o mote para a
prática romanesca, em Portugal, o alheamento era quase uma evidência. Digo quase porque, em
arte, qualquer manifestação é uma tomada de posição – a neutralidade é uma utopia. Engajada
toda obra é – resta ver se é reacionária ou revolucionária, tanto em relação ao quadro político
quanto ao código literário.
O fato é que o Presencismo concentrava atenções no indivíduo em sua faceta privada, num
momento que exigia, em Portugal e no mundo, uma perspectivação crítica do quadro político-
social. Se, na década de 1930, a humanidade se deparava com fatos estarrecedores tais como o
avanço do nazi-fascismo e a Guerra Civil Espanhola, Portugal, após um período turbulento de
transição da monarquia à desejada República, acabava por ver sua política desaguar no
totalitarismo salazarista, uma ditadura construída no âmbito da Universidade de Coimbra. Já que
os presencistas continuavam alheios a este inquietante quadro, um grupo de jovens portugueses
ergueu a voz o quanto pôde – a censura já se fazia presente – e deu os primeiros passos em
direção a uma literatura de luta contra toda e qualquer forma de exploração humana.
Em vários pontos do país, começaram a proliferar periódicos estudantis cuja raiz
motivadora contemplava o desejo pelo estabelecimento de uma nova estética. Foi numa destas
publicações, a revista lisboeta O Diabo, que Joaquim Namorado veiculou a designação que viria
a acompanhar o grupo nas décadas seguintes – a contragosto ou não de seus participantes –:
“Neo-Realismo”. Não indicava propriamente uma nova realidade, mas sim um novo modo de
encará-la, no qual o indivíduo era tomado como parte de um todo – a intervenção de um homem
para melhorar sua condição de vida implica a mobilização de vários outros.
Foi precisamente neste momento que entrou a inquestionável contribuição do grupo do
Nordeste brasileiro, sendo romances de Jorge Amado (Cacau, 1933; Capitães da Areia, 1937)
aqueles que gozaram de maior difusão no seio do movimento lusitano. Se a realidade era já
motivação aos jovens escritores neo-realistas, era-lhes necessária uma inspiração oriunda da arte.
Os textos russos do realismo socialista, principiado por Gorki, eram, de fato, instigantes – o
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mesmo podendo ser dito dos romances e novelas de autores norte-americanos como John
Steinbeck e Erskine Caldwell –, mas a proximidade lingüística, e mesmo cultural, dos prosadores
brasileiros de 30 fazia destes o modelo mais à mão. Que não se entenda, no entanto, modelo
como ponto de partida para a realização de cópias fiéis. Se há uma linha mestra no movimento
português, esta é, sem dúvida, a autenticidade.
Esta questão motivou, inclusive, um dos argumentos que mais insistentemente utilizaram os
presencistas contra o grupo que surgia. As acusações – manifestadas através dos periódicos – de
que os neo-realistas escreviam em brasileiro, e não em português, eram inúmeras vezes dirigidas
no intuito de apresentar os novos autores não como criadores, e sim como meros reprodutores de
uma estética originada do outro lado do oceano. Ora, a verdade é que a prosa regionalista de 30
realmente servira de inspiração ao florescimento do Neo-Realismo – não só no aspecto da
denúncia, mas até mesmo na exploração da temática rural –, porém este fato está longe de rimar
com servilismo. A realidade portuguesa, com a qual conviveram autores como Fernando Namora
(médico rural) e Soeiro Pereira Gomes (trabalhador de escritório numa fábrica de cimento), era
refratada no texto ficcional, e a adesão dos narradores às personagens que se movimentavam nos
textos passou a ser a nota dominante.
Se há um ponto em que o Neo-Realismo supera suas fontes brasileiras, este é, seguramente,
a amplitude geográfica abarcada pelas obras produzidas sob a égide do movimento. Enquanto,
no Brasil, há uma nítida ênfase no universo nordestino, em Portugal, várias são as regiões – e,
consequentemente, seus habitantes – contempladas pelas penas neo-realistas. O universo vinícola
do rio Douro é apresentado no Ciclo Port Wine (1949-1953) – série de três romances de Alves
Redol. A decadência da burguesia na Gândara é o tema de que se apropria Carlos de Oliveira
para a construção de seu Casa na Duna (1943). A vida dos mineiros – durante o fenômeno do
volframismo – é retratada por Manuel do Nascimento (Mineiros, 1944) e por Fernando Namora
(Minas de San Francisco, 1946). No Ribatejo, a vida dos “filhos dos homens que nunca foram
meninos”, trabalhadores dos telhais às margens do rio Tejo, é enfocada em Esteiros (1941), de
Soeiro Pereira Gomes, notável autor que não dispôs de tempo suficiente para dar vazão a todo o
seu talento, pois morreu com apenas 40 anos.

É bem certo que o romance inaugurador do movimento neo-realista, Gaibéus (1939), de


Alves Redol, enfatiza por demais o elemento coletivo, relegando a um plano inferior a incursão
na psique das personagens. No entanto, como reconheceu o autor 25 anos depois, no prefácio à
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edição comemorativa deste romance, havia mesmo de ser assim o nascer do movimento: com um
quê de esquematismo. Só deste modo poderia se estabelecer e chamar a atenção dos literatos do
país. A diversidade que depois pôde ser flagrada na produção neo-realista é inegável quanto às
possibilidades de desenvolvimento da estética, mesmo porque, muitos dos autores que deram os
primeiros passos nas letras no contexto do movimento, enveredaram por outros caminhos. Caso
exemplar desta condição é Vergílio Ferreira, que, após a publicação de O Caminho Fica Longe
(1943), obra nitidamente filiada ao Neo-Realismo, aposta no adensamento psíquico das figuras
que povoam seus romances ao convergir para o Existencialismo de raiz sartreana.
Até há bem pouco tempo marginalizados em seu próprio país, os autores neo-realistas
foram beneficiados por uma reabilitação planeada há uma trinca de décadas. Isto, graças a um
belo trabalho de revisão timoneado por críticos como Alexandre Pinheiro Torres, António Pedro
Pita e Carlos Reis. No Brasil, pouquíssimos foram aqueles que destinaram atenção a obras do
Neo-Realismo literário português – muitas delas marcadas pela renovação lingüística e por uma
narratividade de alto teor lírico, resultado do amor que pelas suas personagens nutriam os autores
da geração. Suponho que nós, brasileiros, nordestinos, mais que todos, deveríamos ter interesse
pela criação de autores como Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes. Não só pela qualidade de
seus escritos, mas também porque – afinal de contas – temos um quê de participação nesta
história, que, precisamente por esta razão, também é nossa.

© Antony C. Bezerra, 2000


antonycbezerra@hotmail.com

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