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A LUA DO ADVOGADO ‘Lembro-me de que no fundo da noite alguns astroscintilavam ainda. Uma talhada de lua, tosca @ imprecisa, dir-se-ia ter sido colocada ali, precisamente naquele ponto, por um aprendiz de carpinteiro. Um S. José garoto, sem jeito milagres. A minha alegria, possessa da sua propria express&o, requeria a beleza serena de uma noite diferente. Mais profunda, mals azul, mais vast: a vastidéo salpicada de blandiclas, de gorelos segregados, de rumores téo antigos como a rimeira Brisa, t arto que um galo desfraldou bandeiras metélicas, que outro galo respondeu, Inconfidente, altivo, preciso. Os cocurutos da montanha préxima beberam o sépido cristalino, sinfénico das notas, e gritaram de além. tava bébado, embriagava-me aquele luar imper- _ feito @ solto. Apesar de tudo tico."Eu tinha vontade de ajoelhar. Quando sal de casa, nascia a madrugada na noite por acabar, quase no fim, Néemia sorriu um ‘sorriso novo (cheirava a fronteiras sem sentido, violadas, a paises atingidos) olhou-me, os olhos cheios desse sorriso conseguido, Noémia perguntou-me «e agora?», eu sorria como Noémia, primitivo como a inocéncia do instinto; quando sal de casa (eu chamo casa a sombra insciente do embondeiro junto de que nos deitémos) levava na epiderme moga das maos um mundo de intimidade e despudor, um contacto de angistia hilare, feito de arrepios e de gritos paridos na garganta faminta de amor duma mulher conseguida. Eu néo sou bérbaro. Tenho do meu lado o sentido da natureza das coisas. Nequela tarde garota ainda, aconteceu-me isso sternidade eu voucontar, eu quero ser compreendido. Quando meses depois, o juiz faloue disse ‘0 réu», quando ojulz disse I ume levantel @o procurador me chamou assassino @ n&o sel que mais, néo houve no tribunal ninguém que compreendesse que nem sempre um homemque mata 6 assassino. Juro, senhores, que gostava de juntar a estas linhas o meu retrato. Porque isto 6 um protesto e eu nao tenho cara de assassino. Um rogto como os dos outros homens, rosto ¢ boca e. olhos como os dos outros homens, e também um coragéo igual aos dos outros homens, igual aos de todos os outros homens quando vivem uma noite como aquela. O “procurador lamentou no. haver no nosso pals pena de morte, eu sorria, calhou sorrir naquela altura, berrou o procurador para Informar a essisténcla do esgarperverso, criminoso, do meu sorrieo bestial. Mas eu sorria confrangido, lamentava o meu sorriso a infelicidade do procurador, (ows how de todos quantos no conheceram horas como ag minhas. Mas isto vem depois. Eu'sou quase . * ++ analfabeto, por cefto j@ repararam que todes as palavras que escrevi no principio desta coisa foram as usadas pelo meu advogado quando da descri¢éo da noite do crime. Porque a lua era até bem bonita, uma lua inteira, nada de talhadas e carpinteiros, de galos e de coisas. / Euconhecia Noémia hé multo tempo. Vi-a pela primeira vez a salda da igreja e comecei logo a ~gostar dela, assim a modos de paixéo, com forga, como costumam os homens gostar das mulheres. Mais uma saida, encontrel-a depois no futebol de quinta-feira, outro domingo, engasguel-me eo principio, ela disse que sim, que eu devia ser franco como um rochedo. Depois ‘comparou-me ainda ’a um rio (isto mais tarde) que ei tinha a impetuosidade dos grandes rios. S6 costumavamos dar beijos & noitinha. No quintal havia uma drvore e uma gazela. A rags, Fo¢ava-se nas nossas pernas. Uma vezele até confundiuo rogardagazelacom linha e disse «isso n&o... isso néo». Ri como perdido. Depois veio aquela coisa momento chato de n La falei aos pais dela, que sim ‘senhor, que eu era honesto e bom rapaz, ela esperava-me cé fora, no quintal. Abragémo-nos. O resto, os senhores sabem como 6, horas a fio, seguidinhas, ela «tenho mais uma renda, a nossa mesinha-de-cabeceira, a festa, a boda», eu ouvia-a alegre, respondia, disse-Ihe muites vezes que 8 felicidade de um homem esté no verdadeiro amor. Faltava um més para o casamento. Ah! -Carago, posso dizer sem mentir que me comoviem os trapos que ela compraya todos os dias imate ‘sempre. Uma vez, & tardinha, aquela hora em que nds costumavamos dar beijos, « franco como 6 rochedo e impetuoso como o rlo. Alua ja tinha nascldo, a tal talhada de que felava O.advogado. Eu disse-Ihe néo sei quantas coisas, mordl-Ihe os ouvidos (devagarinho, jé s fiz-The aquela festa que costui zer a gazela. Recordo, lembro-me bem, qi «1880 no... isso nao» como tinha acontecido de outra vez. Ela disse apenas — aqui néo | ou estava aturdido, eu gostava dela a valer. Era sdbado. Nos sébados, quando calhava, Ni {a jantar a casa duma amiga, & Lulsa, rapariga que eu conheco bem. Merda para ‘Cisse — aqui ni ie = 7 : Eu respondi néo sei 6 qué, assim uma coisa como falta pouco, um-quase nada para nos casarmos — val dizer-|hes que jantas hoje em casa da Luisa, que dormes |é. Isto sucedeu, eu nao era o primeiro a fazer uma coisa assim, o casamento estava proximo, eu gostava dela. Quando veio ter comigo trazia um vestido azul. Alua do advogado, que nasceucom © © pdrdo sol, alumiou-nos o caminho depois de termos deixado pera trés as Ultimas luzes daquela_ cidade pequenina. {pio falamos um bocado, depois néo dissemos ile, senhores! S6 conhego duas coisas assim téo quer- =O mat eo céu. Porque eu conheco omar, estive muitos dias no mar depois de sairdaminha terra. Digo, para os que o nao conhecem, gue sabe melhor a liberdade do seu azul caiado de ondas brancas que todo aquele tamanhao. ‘Quando parémos debaixo do embondelro (fui au que escalhi aquele sitio) estivemos um bocado a_ chacace! | bem dentro dos olhos, feb bragos ergueram-se de novo, alongaram, cresceram, ‘com peito. Sim sen! 1a mulher 6 qualquer coisa!N&o dissemos uma palavra,. falar en tompiaa liberdade. que conseguimos, que um homem consegue sempre quando a voz dos outros. O embondeiro era grande, a lua estava quase por cima do embondel- To, havia uma nuvenzita ao pé da lua. Eu 6 que nao sei falar destas coisas, nem o advogado, que é doutor, falou como devia ser, assim uma como bu senti. Eu estava chelo de noite, daquela noite enluarada, era assim coisa como feitico. O advogado disse bem, encantamento. Depois “Gehtimo-nos 608 pés,selvo saja, do embendelro, quando ela ficou nua jé néo era a Noémia, era outra coir aqual anoitendo stir. Pode existir uma igreja gem padres? Jé ouvi dizer que sim, mas a verdade 6 que eu dessas coisas nao entendo nada e para mim nao podem existir igrejas nem catedrais se nao houver padres. Tal e qual. Noémia era toda aquela coisa junta, 7 Noite, o préprio siléncio. Era até a minha bebedeira disso mesmo, o meu encanta! dizi ‘ acivouado. Depola a pmbondelro desspareceu, parecie aus nha asae, alua velo até nde, eu estava encalhado em Noémia, como um barco, Noémia era um mar, eu era um barco, estava encathado nela como um barco, dentro dela. Senhores, senhores, eu sei que ha pessoas que Ganham dinheiro a escrever livros Juro que se fosse dessas falaria disto doutra maneira, muitas folhas, até todos entenderem que Noémia era um pedago de terra por lavrar, que eu era uma semente, que a lua de hoje nem sempre 6 igual a lua de ontem,que um homem é herdi nestes momentos e que uma mulher é virgem mesmo depois disso. Tenho a certeza que quem sente assim nao 6 nunca um assassino. O juiz disse — vocé matou © juiz tinha razdo. Eu matei Noémia. A culpa foi dela, foi elaquem teve aculpa toda, Estévamos _ ainda deitados — j& que falei em barcos posso dizer que ja nao estava encalhado, que estava ancorado — quando Noémia, estipida de todo, quebrou o tal encantamento, perguntou: — Ainda casas comigo? Diabo, senhores, apesar disto eu néo fiz nada, nfo disse nada, mudo como uma estaca. Foi entéo que ela comecou a gritar, — malandro, eu ja sabia, enganaste-me, enganaste-me, estou perdida. Depois repetiu ainda: ~ Estou perdida, estou perdida. Estava mesmo. S6 para a calar, juro que foi s6 para isso, tapei-Ihe a boca com a mao. O mundo morria, senhores, eu ja nao era o mesmo homem. Eu estava triste. Com a.impressao de que era jogador, de que tinha perdido um jogo. Juero acrescentar que ‘tive medo, que nao me senti culpado, que vim logo para a cidadee que disse a um policia gordo, s6: — Eu matei. Uma morte a doig. Logo que acabei de dizer «matel» lembro-me que tremi, o homem olhou para mim, viu que era mais forte do que eu, caiu em cima de mim, apitou, apitou, eu j4 no sei mais nada. No dia seguinte o jornal falava dum policia valente que, sozinho, prendera um criminoso. Diabos me levem se percebo aiguma coisa disto. 7 CONTOS LENDAS

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