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Dizem que a linguagem universal é o amor ou a música. Mentira. É a solidão.

Clara se revirava
na cama como fritura no óleo quente. Estava frio e chovia lá fora mas mesmo assim o sono não
vinha. Logo hoje que precisava acordar cedo para faxinar a casa dos outros. Sentiu raiva, muita
raiva daquela primeira dama que matou o filho da empregada. — Presidente filho da puta,
pensou quase em voz alta, tudo culpa dele. O telefone ao lado chamava para mais uma
espiadela nas redes sociais. Não queria mais, estava cansada daquela linha do tempo surreal.
Seu estomago revirava, azia talvez. Tinha comido outro x-tudo ao invés de jantar. Era a terceira
vez na semana que pedia lanche. Ah, foda-se a vida já perdeu qualquer sentido mesmo.

Tirou as meias dos pés que roçaram no lençol limpo. Os pelos das suas costas se eriçaram e ela
lembrou das noites voluptuosas em que seu ex fazia massagem nas suas costas depois do sexo
e do seu cheiro de água pós banho de maracujá. Como ficou tão só em tão pouco tempo? Se
perguntava e se revirava na cama. Frigideira da noite em claro. Olhos abertos iluminando o
teto que fazia chuaaa nas telhas de amianto. O vento na janela e o gato que dormia sossegado
no outro canto do quarto escuro. Ela era o centro do mundo. O centro da solidão era suas
mãos que desciam a calcinha puída, a outra no bico do peito rejeitando os vídeos
pornográficos. Não, não era exatamente tesão. Era só para passar o tempo. Alguma diversão.

Acabou rápido. Agora sim estava excitada. Seu sangue latino circulava rápido pelo seu corpo.
Seu coração no clitóris pulsava lentamente como uma bateria de cool jazz e bossa nova.
Poderia mamar dez agora mas apenas se virou novamente e pegou o celular instintivamente.
Rede social. Queria alguém para conversar sobre qualquer coisa. Ninguém que ela conhecia
online. Tantos amigos e ninguém disponível para conversa. Porque é tão difícil viver na era
moderna? A linha do tempo descia com o passar de seu polegar enquanto sentia a vida passar
como a chuva que molhava o asfalto lá fora fazendo correntezas que entupiam os bueiros na
boca da noite.

Levantou de súbito. Seus pés macios a levaram até o banheiro tocando o chão gelado. Mijou e
limpou com papel higiênico dupla face. Coisa de adulto sentir orgulho do papel higiênico. Coisa
de gente madura apertar duas vezes o spray de bom ar depois de dar descarga mesmo que
não tenha mais ninguém em casa. Mesmo que seja só você e o gato que te esnoba todo o
tempo que não está com fome. — To acostumada mesmo, pensou enquanto colocava ração
para o felino que comia sentado de tanta preguiça. Mentira. Não estava não. Ninguém se
acostuma com a solidão. Nem eu, nem você, nem o gato. Ninguém é feliz apenas com a mão. E
depois as conversas? E depois as brigas? E depois o reconciliamento? Porque ele foi embora
mesmo? Sei, lá fazia tanto tempo, ou parecia fazer. Não queria lembrar e eu não pude pegar
essa lembrança dela. Eu também não quis pra falar a verdade. Isso também me deixava quase
triste. Saber que no fundo no fundo estávamos todos procurando a mesma coisa. Procurando
sentido nas cinzas das horas. Desculpa Bandeira, meu cigarro acabou e agora eu preciso roubar
alguma coisa de alguém já que não posso mais soprar minha vida pela janela do quarto
enquanto escrevo alguma história que reflita minha própria solidão. Sou um gerador de lero
lero enquanto ouço uma bossa, atrás da porta um bolero.

Volto ao universo simulado de Clara e ao seu quarto escuro e chuvoso. Ela sim é feliz. Mais do
que eu talvez. Ainda tem seus cigarros para lhe acompanhar. Ainda tem seus múltiplos
orgasmos para se aliviar. Deitou novamente na panela antiaderente e fria que ela chamava de
cama. Uma última olhadinha na rede com a luz azul que lhe roubava o sono em troca de
ansiedade, raiva e revolta contra o caos social. Aquilo não lhe fazia bem. Ela sabia. Até o gato
sabia mas não deixava de ver e saber das notícias e das opiniões que não fariam diferença
nenhuma na manhã seguinte quando tivesse que levantar e pegar o ônibus para ir limpar a
casa da classe média no centro da cidade. Então porque insistia? Queria conhecer alguém ou
algo que lhe impulsionasse na vida. Na verdade, Clara queria era uma noite de sexo pesado e
sem presa. E conversar. E ser conversada. E ser conquistada palmo a palmo. Mas estava só
naquela noite que não terminava nunca e seus pensamentos tanto quantos os meus não
paravam. Giravam e giravam em volta do que poderia ter sido. Do que poderia ter acontecido.
É o caos, é o caos. É-O-CAOS. E de todas as possibilidades porque fomos escolher logo essa?
Não sei, só sei que foi assim e cá estou pensando no que ela pensa até onde ela me permite.
Até onde eu me permito e sei de sua alma feminina no meu peito que também dorme sem
camisa na noite veloz roubando as rimas do poeta que um dia eu li na adolescência e nunca
mais esqueci. Roubando toda a beleza dos amores que nunca vivi.

A mente de Clara cansa da solidão e de funcionar a cem por cento quando deveria estar quieta
e silenciosa. Sem perceber a voz em sua cabeça vai ficando cada vez mais longe mais longe até
que as lembranças da vida e simulações de tudo que poderia ter acontecido se confundem no
fundo de seu inconsciente. Seu corpo nu da cintura para baixo começa a esquentar enrolada
na coberta. Sua respiração, agora pesada como o sexo que imaginou horas antes deixava seu
corpo delgado relaxado e imóvel finalmente. Tudo escuro no quarto. Até que para dormir não
é ruim estar só. Não, mentira. Todo dia eu também acordo e pergunto: meu amor, onde está
você?

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