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Marc Augé, Não-Lugares, Introdução a uma antropologia da Sobremodernidade.

Lisboa: 90 Graus Editora, 2005, 101 pp. ISBN 972-8964-02-1

Alexandre Duarte*

“Não seria hoje nos lugares superpovoados onde se cruzavam ignorando-se

milhares de itinerários individuais que subsistia qualquer coisa do encanto incerto dos

terrenos vagos, dos baldios e dos estaleiros, dos cais de gare e das salas de espera

onde os passos se perdem, de todos os lugares de acaso e de encontro onde se pode

experimentar fugidiamente a possibilidade mantida da aventura, a impressão de que

bastará “ver o que aí vem”?” (p.8).

É ainda no prólogo deste livro que Marc Augé, antropólogo francês e autor de

uma vasta e consagrada obra, levanta o véu do tema e nos situa na temática de análise

que explora nas páginas seguintes: os “não-lugares”.

Com acutilância, objectividade e uma linha fluida de raciocínio, este livro

começa por abordar a própria essência de estudo da antropologia, questionando a sua

real capacidade, tal como a conhecemos hoje, de analisar e interpretar a sociedade

actual: “(...) as instituições, os modos de agrupamento (de trabalho, de ócios, de

residência), os modos de circulação específicos do mundo contemporâneo serão

passíveis de um olhar antropológico?” (p. 14)

Nesse sentido, Augé propõe uma antropologia do próximo, uma antropologia

da contemporaneidade, ou melhor, da sobremodernidade, com deslocação da

discussão do método para o objecto.

**
Professor Assistente da Escola Superior de Marketing e Publicidade do IADE, Investigador da UNIDCOM, unidade de I&D e
Doutorando em Ciências da Comunicação na Universidade do Minho. (ale@kanguru.pt)
O objecto de estudo, outrora longínquo, distante e exótico, converge agora,

numa nova postura de observação e análise, para terrenos mais próximos e familiares.

“É o próprio mundo contemporâneo que, em razão das suas transformações

aceleradas, reclama o olhar antropológico, quer dizer, uma reflexão renovada e

metódica sobre a categoria da alteridade.” (p. 24)

Por forma a dar corpo a esta mudança de perspectiva, Augé cria o conceito de

sobremodernidade, afastando-se da pós-modernidade (muito utilizada nomeadamente

pelos antropólogos norte-americanos), assumindo assim a sua ideia de continuidade

temporal, de evolução, ao contrário do conceito de ruptura que o sentido do prefixo

“pós” sempre implica. Uma evolução acelerada, sem dúvida, mas contínua.

Esta noção de tempo, de aceleração dos acontecimentos, da sobreposição de

factos, da avalanche de informações é a primeira das 3 figuras de excessos que

caracterizam a sobremodernidade. As restantes duas são o excesso de espaço e o

excesso de individualismo.

Por excesso de tempo referimo-nos quer à percepção do mesmo, quer à forma

como o usamos, como dispomos dele. Concretizada na aceleração da história, que

“nos corre atrás dos calcanhares” (p.26) devido à superabundância factual, à

interdependência de informações do chamado “sistema-mundo”, e à urgência do

novo, do seguinte, do próximo, a categoria tempo ganha um novo olhar: “Mal temos

tempo de envelhecer um pouco, e eis que o nosso passado se torna história, que a

nossa história individual pertence à história.” (p. 26)

Esta primeira figura de excesso que caracteriza a sobremodernidade - o tempo

- é tanto mais pertinente quando percebemos que a dificuldade de o pensar, decorrente

da hiperabundância de acontecimentos do mundo contemporâneo, é que nos cria esta

necessidade de dar sentido ao presente, em função da derrocada da ideia de progresso,


frustrada pelas guerras, genocídios, intolerância, violência, etc. “O que é novo não é

que o mundo não tenha, ou tenha pouco, ou menos, sentido, é antes que

experimentemos explícita e intensamente a necessidade quotidiana de lhe dar um: dar

um sentido ao mundo.” (p. 28) Hoje, em função desta aceleração, em que o ontem já é

História, onde tudo é acontecimento e que, por haver tantos, já nada o é, deixa de

fazer sentido tentar organizar o mundo a partir da categoria tempo.

A segunda figura de excesso refere-se ao espaço. Paradoxalmente, este

excesso constitui-se pelo encolhimento do mundo, que provocou alterações da escala

a nível planetário através da concentração urbana, das migrações populacionais e da

produção de não-lugares – “instalações necessárias à circulação acelerada de pessoas

e bens (vias rápidas, nós de acesso, aeroportos)” (p.32). Estas constantes

transformações espaciais - a mobilidade de pessoas, bens, serviços, informações,

imagens, etc. a uma velocidade quase instantânea - dão-nos uma sensação de

omnipresença e fazem-nos sentir implicados em tudo e com tudo, mesmo nos lugares

mais longínquos e remotos. A este propósito, e retomando o pensamento de Harold

Innis quando afirmou que as noções de tempo e espaço estavam a ser alteradas pela

urgência da comunicação (Innis, cit. em Santos, 2001:76), o autor adverte: “O mundo

da sobremodernidade não tem as medidas exactas daquele em que cremos viver,

porque vivemos num mundo que ainda não aprendemos a olhar. Temos de reaprender

a pensar o espaço.” (p. 34)

Finalmente, o indivíduo, que se crê e sente o centro do mundo, muito por

culpa do enfraquecimento das referências colectivas, ou “da erosão dos pontos de

referência do Eu” (Lipovetsky, 1989:156), assume-se ele mesmo numa espécie de

auto-referência para interpretar as informações que lhe chegam, gerando um

individualismo exacerbado, porém esvaziado de identidade. Este “carácter singular da


produção de sentido é veiculado quer por todo um aparelho publicitário - que fala do

corpo, dos sentidos, da frescura de viver – e toda uma linguagem política, que toma

por eixo as liberdades individuais.” (p. 35)

O segundo capítulo do livro é dedicado à definição do “lugar antropológico”,

um espaço gerador de identidade, fomentador de relações interpessoais e que se move

num tempo e espaço estritamente definidos. Mais do que um encontro do antropólogo

com o nativo, este lugar, enquanto espaço antropológico, é como uma segunda

natureza deste. É no lugar antropológico que os nativos residem, trabalham,

produzem, enfim, vivem e dele guardam as suas fronteiras, o seu espaço. Esse local

foi escolhido pelos seus antepassados, é o lugar para os seus descendentes e portanto,

um espaço a ser defendido. “O espaço antropológico é simultaneamente princípio de

sentido para os que o habitam e princípio de inteligibilidade para aquele que o

observa.” (p. 46). O lugar antropológico define-se pois como identitário, relacional e

histórico.

Identitário na medida em que o local de nascimento, de residência, a

intimidade do lar, das coisas que consideramos nossas são como que uma inscrição

gravada no solo que compõe a nossa identidade individual.

Relacional no sentido em que as referências compartilhadas são assumidas

enquanto marcos designativos das fronteiras entre nós e os outros ao colocar cada

elemento num determinado lugar, distribuído numa relação de coexistência com os

demais e numa configuração definida de posições que marcam definitivamente as

relações entre ambos os lados, o cá e o lá, o nós e os outros.

E por fim histórico, uma vez que os habitantes do lugar antropológico vivem

na história, não a fazem, escapando dessa forma “à história como ciência” (p. 48). Ou

seja, ao viverem nele, reconhecem-lhe pontos de referência que não necessariamente


são objectos de conhecimento. O lugar que os antepassados construíram, pleno de

referências, está nos antípodas dos “lugares de memória”, reconstruído tantas vezes de

forma quase teatral, recuperando monumentos e fachadas ou outras tradições “para

turista ver” provocando nos habitantes mais antigos “alguns sorrisos perplexos, ao

projectar na distância os lugares onde acreditavam ter vivido dia após dia enquanto

hoje os convidam a olhar como um pedaço de história.” (p. 49)

Esta perda de sentido da continuidade histórica (Sennett, 1988) traduz-se

naquilo a que Lipovetsky apelidou de narcisismo por medida (1989), onde o indivíduo

vive cada vez mais para si próprio, sem se preocupar quer com as tradições quer com

a posteridade, e onde o sentido histórico sofre a mesma deserção de valores que as

instituições sociais.

Por oposição a estes lugares antropológicos, encontramos então os não-

-lugares, fruto da sobremodernidade, a que o 3º capítulo se dedica.

Estes não-lugares são espaços não identitários, não relacionais nem históricos,

através dos quais nos é revelado um mundo prometido à individualidade solitária, à

passagem, ao provisório e ao efémero.

Apesar do autor diferenciar a noção semântica dos vocábulos “lugar” e

“espaço” – atribuindo ao segundo uma definição mais abstracta e abrangente ao

incluir desde uma noção de extensão ou distância entre dois pontos (“existia um

espaço de um metro entre cada árvore”) até à ordem de grandeza temporal (“no

espaço de duas horas”), o seu foco não se desvia da análise dos não-lugares nestas

duas realidades distintas, mas complementares: enquanto espaços construídos com

objectivos determinados (transportes, trânsito, comércio, tempos livres, etc.) e a

relação que os indivíduos mantém com eles.


A este propósito, na linha do hiperindividualismo a que se refere Lipovetsky

(2010), o espaço do viajante solitário é citado por Augé como exemplo do arquétipo

do não-lugar:

Não é surpreendente portanto que seja entre os “viajantes” solitários,

viajantes por humor, pretexto ou ocasião, que estamos em condições de

redescobrir a evocação profética de espaços onde nem a identidade, nem a

relação, nem a história fazem verdadeiramente sentido, em que a solidão se

experimenta como superação ou esvaziamento da individualidade, em que

só o movimento das imagens deixa entrever por instantes àquele que as vê

fugir e que as olha a hipóteses de um passado e a possibilidade de um

futuro. (p.74)

O espaço do não-lugar não cria pois identidade singular nem relação, mas

antes solidão e semelhança. Aí, os indivíduos são esvaziados de personalidade e

conteúdo, se assim podemos dizer, e tornam-se semelhantes aos restantes que se

encontram na mesma situação. Com as vidas “regidas” por textos em forma de

instruções de uso (“prima a tecla X”, “proibido circular a mais de 120 Km/h”, “caixa

reservada a grávidas e portadores de crianças de colo”, etc.) o anonimato relativo que

se torna numa espécie de identidade provisória, homogénea e partilhada por todos em

iguais circunstâncias, mantém-se (ou alcança-se?) por via de “contratos” celebrados

entre os utilizadores e os não-lugares: o bilhete de transporte, o ticket da portagem, o

carrinho que empurra nas grandes catedrais de consumo, etc.


Povoados de “viajantes permanentes” ou “indivíduos em trânsito

constantemente deslocados”, os não-lugares exprimem uma nova forma de viver o

mundo, uma nova configuração social, característica desta época que se define, como

vimos, pelo excesso de acontecimentos, pela superabundância espacial e pela

individualização das referências. É neste contexto que Augé sugere à antropologia um

novo objecto: o estudo da contemporaneidade não como oposição à modernidade

perdida, mas antes nas suas contradições, complexidades e novas realidades.

E ao colocar a nu uma realidade tão actual quanto incontornável, apetece-nos

concluir o raciocínio do autor com uma provocação: se o social começa sempre pelo

indivíduo, tornar-se-á esta medida mínima, na expressão última do início de uma nova

etnologia, a da solidão?

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1/ Lipovetsy, G. (1989) A Era do Vazio, Lisboa: Relógio d’Água

2/ Lipovetsy, G. & Serroy, J. (2010) A Cultura-Mundo, Resposta a uma sociedade


desorientada, Lisboa: Edições 70

3/ Santos, J. R. d. (2001) Comunicação. Lisboa: Prefácio.

4/ Sennett, R. (1988) O Declínio do Homem Público, As titranias da intimidade, São


Paulo: Companhia das Letras

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