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KANT, FOUCAULT E A ANTROPOLOGIA PRAGMÁTICA

Kant, Foucault and Pragmatic Anthropology

DIOGO SARDINHA
COLÉGIO INTERNACIONAL DE FILOSOFIA, PARIS
diogo.pt@hotmail.com

Abstract: In this article we address Foucault’s interpretation of Kant’s anthropology as a whole, i.e. beyond
Anthropology from a Pragmatic Point of View (1798). I expose Foucault’s three most important thesis, which
concern firstly the faithfulness of this book to the critical work that preceded it; secondly, the need of reading the
Introduction to the Logic and the Opus postumum in order to draw crucial aspects of Kant’s anthropology; and
thirdly, the importance of reviving a critical gesture (which he identifies with Nietzsche), so as to demystify the
pretensions of the post-kantian anthropological discourse. This way the difference between Foucault and
Heidegger on the one side, and Foucault and Sartre on the other side, becomes clear: against the latter he adopts
an anti-humanist perspective, and unlike the former he uses the Opus postumum (which for historical reasons
Heidegger almost ignored) to distinguish false anthropology from Kant’s anthropology.

Key words: Kant. Heidegger. Sartre. Foucault. Anthropology.

Resumo: Neste texto analisamos a leitura que Foucault fez da antropologia kantiana no seu conjunto, isto é, para
além da Antropologia de um ponto de vista pragmático (1798). As três teses foucaultianas mais importantes são,
primeiro, a da fidelidade deste livro à obra crítica que o precedeu; segundo, a da necessidade de ler a Introdução
da Lógica e o Opus postumum para penetrar aspetos essenciais da antropologia de Kant; terceiro, a da
importância de retomar um certo gesto crítico (que Foucault identifica com Nietzsche), para desmistificar as
pretensões do discurso antropológico pós-kantiano. Neste percurso, torna-se nítido o modo como Foucault se
distingue tanto de Heidegger quanto de Sartre: se se opõe a este por via do anti-humanismo teórico, também se
diferencia de Heidegger pela forma como se serve do Opus postumum, que Heidegger praticamente ignorou.

Palavras-chave: Kant. Heidegger. Sartre. Foucault. Antropologia.

Gênese e estrutura da Antropologia de Kant,1 texto redigido por Foucault em 1960-


1961, mas publicado apenas em 2008, trata de três problemas principais: primeiro, o do lugar
que ocupa a Antropologia de um ponto de vista pragmático (APP) no conjunto da obra
kantiana; segundo, o das diferentes concepções que Kant se faz do problema do humano;
terceiro, o de como julgar, à luz do kantismo, o destino que posteriormente este problema

1 Tal é o título escolhido pelos tradutores brasileiros, Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail, para o
texto de Foucault dado ao prelo em Paris, pela editora Vrin, sob a designação de Introduction à l’Anthropologie
de Kant. Por norma, as referências feitas à tradução encontram-se assinaladas no corpo do texto com simples
indicação do número da página.
Kant e-Prints. Campinas, Série 2, v. 6, n. 2, p. 43 - 58, jul.- dez., 2011
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conheceu na filosofia. A cada um destes itens corresponde uma tese, que pode ser resumida da
forma seguinte: primeiro, a APP é estruturada internamente por uma fidelidade estrita aos
princípios trazidos à luz pela empresa crítica que lhe antecedeu, e é orientada pela pesquisa
que conduzirá a dois textos que lhe sucedem e nos quais o problema do humano volta a ser
abordado – a Introdução da Lógica (1800) e o Opus postumum. Segunda tese: cada um dos
três livros mencionados distingue-se dos outros pela forma como encara o problema do
homem. Terceira e última tese: a modernidade pós-kantiana fica marcada por um
esquecimento da lição crítica que limita as pretensões do conhecimento, sendo Nietzsche o
único autor de relevo que desmistifica as pretensões das novas antropologias filosóficas e que,
ao fazê-lo, retoma o gesto crítico de Kant. Como se vê, a ambição do escrito de Foucault é
quase desmesurada, o que explica em parte a decisão do seu autor em não a publicar. Sabemos
também que a banca examinadora desta tese complementar de doutorado compreendeu as
dificuldades do projeto em si mesmo e, por conseguinte, as do modo como ele se encontrava
realizado em Gênese e estrutura, aconselhando Foucault a não dá-la ao prelo. Se tais razões
explicam o estatuto frágil deste livro, elas não reduzem, porém, o interesse que ele tem para
compreendermos o que foi, no seu tempo, a recepção da antropologia kantiana em França,
nem para voltar, sobre novas bases, a dimensões importantes do problema antropológico.
As diferentes teses de Foucault serão aqui detalhadas por etapas. Depois de abordar
num primeiro momento o aspeto da fidelidade da APP ao conjunto da Crítica, centrar-nos-
emos, em um segundo momento, nas relações que ligam a APP aos textos mais tardios já
mencionados. Em terceiro lugar, explicaremos em que medida Foucault faz o elogio de Kant e
como esta posição se distingue das assumidas por correntes de pensamento suas
contemporâneas, entre elas a ontologia fundamental de Heidegger e o humanismo teórico de
Sartre. Em conclusão, insistiremos sobre as referências a Nietzsche no âmbito da censura feita
ao que Foucault chama «falsa antropologia» e veremos a inflexão que, a partir daí, ele
imprime à tradição antropológica de que somos herdeiros.

Fidelidade da Antropologia de um ponto de vista pragmático à Crítica e mudança de


perspectiva entre elas

O primeiro objetivo importante do escrito de Foucault consiste em mostrar que a APP


permanece fiel aos princípios da Crítica e mesmo a completa, o que o leva a examinar casos
concretos do que considera ser a correspondência entre ambas as empresas. Um destes casos é
o das relações entre o Gemüt (que Foucault traduz como esprit) e o Geist (ou principe

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spirituel). Este último, escreve Kant, é o princípio que anima o espírito por meio de ideias
(p. 52; ver APP, p. 246). O fato que este princípio vivificador aja por meio de ideias parece
importante, pois regressando ao sentido da palavra ideia na Crítica da razão pura, Foucault
insiste que, «liberada de seu uso transcendental e das ilusões que ele não pode deixar de fazer
nascer, a ideia tem seu sentido na plenitude da experiência: [...] ela não desvela num
movimento “ostensivo” a natureza das coisas, mas indica, de antemão, como investigar esta
natureza; enfim, indicando que o acesso ao extremo do universo está além do horizonte do
conhecimento, ela compromete a razão empírica na seriedade de um labor infinito.» (p. 54,
modif.) Se por um lado a Crítica limita a faculdade de julgar e impede que ela transgrida «os
limites do único terreno onde o entendimento puro tenha a permissão de desempenhar o seu
papel» (Crítica da razão pura, A296/B 352), por outro lado ela deixa que a ideia, «contanto
que receba da própria experiência seu domínio de aplicação», faça «entrar o espírito na
mobilidade do infinito, conferindo-lhe, incessantemente, “movimento para ir mais longe”
[...].» (p. 54.) Segundo Foucault, um mecanismo semelhante opera no campo antropológico:
aqui, a função do Geist é vivificar o Gemüt, isto é «fazer nascer, na passividade do Gemüt,
que é a da determinação empírica, o movimento fervilhante das ideias [...].» (p. 55.) Ele
conclui assim que «o Gemüt não é simplesmente “o que ele é”, mas “o que ele faz de si
mesmo”. E não é este, precisamente, o campo que a Antropologia define para a sua
investigação?», pergunta. (P. 55.) Estruturada desta forma, a APP respeita a Crítica e
prolonga-a.
A expressão na qual Foucault melhor resume esta relação é a de «repetição
antropológico-crítica» (p. 73). A APP, escreve, repete a Crítica «no negativo» (p. 64), ou seja,
ela aclara o que antes se encontrava na penumbra e, fazendo isso, mostra o que na Crítica
passava despercebido. Um outro exemplo para determinar como é feita esta repetição, e que
tem para Foucault uma grande importância, é o dos laços entre a razão e a loucura. Se a
primeira é central para as três Críticas, a segunda é decisiva para a APP. Como ele escreve, «a
longa análise das deficiências e das doenças do espírito dá seqüência a um breve parágrafo
sobre a razão; basta ver a importância crescente que vão assumindo as considerações sobre a
patologia mental, desde as notas e os projetos até o texto, bem desenvolvido, de 1798, para
compreender que estas reflexões sobre a negatividade estavam na linha de força da pesquisa
antropológica.» (p. 61.) Vemos assim que esta pesquisa inverte completamente o ângulo a
partir do qual eram analisadas as condições da faculdade de conhecimento. No que respeita ao
tratamento dado à razão e à desrazão, Gênese e estrutura expõe os laços e tensões entre estas
da forma seguinte: «À Crítica, representando a investigação do que há de condicionante na

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atividade fundadora, a Antropologia responde com o inventário do que pode haver de não-
fundado no condicionado. Na região antropológica não há síntese que não seja ameaçada: o
domínio da experiência está como que escavado por dentro por perigos que não são da ordem
da superação arbitrária, mas do desmoronamento sobre si. A experiência possível define, em
seu círculo limitado, tanto o campo da verdade quanto o campo da perda da verdade.» (p. 61)
Iluminando este último por uma análise das deficiências e das doenças da alma em relação
com a faculdade de conhecimento, a APP (como num espelho) simultaneamente reproduz,
prolonga e inverte o exame da razão e de seus usos tal como as Críticas o tinham realizado.
Uma vez estudados o exercício da razão e as possibilidades de perda desta, é a imagem da
própria razão que aparece enfim integralmente.
A leitura realizada sob este ângulo garante a harmonia entre a Crítica repetida e a APP
que repete, conduzindo ao mesmo tempo à ideia de que entre estes dois empreendimentos
existe uma mudança de perspectiva. Diferentes trechos permitem evidenciar isso, entre eles
aquele em que Foucault declara explicitamente (não sem exagerar) que «a Antropologia nada
disse de diferente daquilo que é dito na Crítica; e basta percorrer o texto de 1798 para
constatar que ele recobre exatamente o domínio da empresa crítica.» (p. 73.) Mais ainda, ele
reafirma no final da sua pesquisa que a APP se encontra «duplamente submetida à Crítica:
enquanto conhecimento, às condições que ela fixa e ao domínio de experiência que ela
determina; enquanto exploração da finitude, às suas formas primeiras e não superáveis que a
Crítica manifesta.» (p. 106.) Trata-se pois de uma dupla submissão que, segundo Foucault, é
um testemunho de fidelidade dado à obra anterior.

A Antropologia de um ponto de vista pragmático interpretada à luz do Opus postumum

Uma vez considerado este primeiro movimento do texto, podemos passar à segunda
fase, na qual trata-se de argumentar que a Introdução da Lógica e o Opus postumum operam
uma transformação no percurso kantiano, antes de mais por consagrarem a pergunta «o que é
o homem?» como interrogação filosófica soberana. Note-se em margem que, não se
contentando com a divisão corrente entre dois períodos da obra kantiana, um pré-crítico e
outro crítico, Foucault introduz a ideia de uma terceira fase, prioritariamente identificada com
estes dois textos tardios, o segundo dos quais consiste aliás em um vasto conjunto de notas
sem homogeneidade real, algumas delas cativando bastante a atenção de Foucault. Nestes dois
últimos textos, Foucault lê então o esforço de Kant para, como diz, transitar «do a priori ao
fundamental, do pensamento crítico à filosofia transcendental.» (p. 108.) Em relação a eles,

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APP seria «aquilo emque se anunciava a passagem» do primeiro ao último. Ora, é importante
assinalar aqui a maneira pela qual, deste modo, Foucault altera o movimento do seu próprio
texto, pois logo após haver mostrado o parentesco entre a Crítica e a APP, ele subordina esta a
algo exterior tanto às Críticas quanto à própria APP. Tudo acontece como se a derradeira
razão de ser deste livro se encontrasse em outro lugar, precisamente em escritos mais tardios,
tese de pesadas consequências que ele formula nos seguintes termos: «Entretanto, o sentido
desta repetição fundamental não deve ser solicitado, nem à palavra repetida, nem à linguagem
que repete: mas àquilo em cuja direção se encaminha esta repetição. Isto é, à exposição desta
estrutura ternária de que trata o Opus postumum e que caracteriza o Inbegriff des Daseins:
fonte, extensão, limite.» (p. 73.)2 Mais adiante, ele insiste: «a repetição antropológico-crítica
não se assenta sobre si mesma nem sobre a Crítica. Assenta-se sobre uma reflexão
fundamental [...].» (p. 93). Vemos então que a tese da repetição antropológico-crítica é apenas
uma parte da solução do problema que consiste em cernir o papel da APP no seio da obra do
autor. Com efeito, para lá desta repetição existe o objetivo geral que ela serve e que é o de
uma filosofia transcendental. Neste estádio derradeiro do percurso de Kant, a Crítica
desvanece-se ainda mais do que ela já tinha se esbatido na APP, pois a Crítica, como Foucault
não se cansa de lembrar, não é um fim em si mesmo, mas desempenha um papel propedêutico
à verdadeira filosofia (p. 18, 60, 64 e 76). Ora, se a APP repete a Crítica por novos meios que
são os seus, isto significa que ela mesma é também uma propedêutica, um momento de
preparação, fazendo com que ela não contenha mais em si mesma o seu sentido, mas que este
só se torne perceptível a partir do que chegará mais tarde. Simultaneamente, se a Crítica e a
APP são pesquisas com vista a um estudo de outra ordem, ambas terão um dia de ceder seus
lugares a uma nova forma de reflexão, que não será mais crítica no sentido estrito, nem
antropológico-pragmática.
Mais ainda, a derradeira fase do pensamento kantiano não é preparada apenas pela
Crítica e aAPP; ela o é também pela Introdução da Lógica. Esta partilha com a APP o fato de
chamar a atenção para o problema antropológico, na medida em que retoma as interrogações
anteriormente inscritas na Crítica da razão pura (o que posso saber? o que devo fazer? o que
me é permitido esperar? – A 804-805/B 832-833) para acrescentar-lhes uma quarta, «o que é o
homem?». Foucault comenta este acréscimo da maneira seguinte: a «tríplice questão que se

2 Do Opus postumum, Foucault faz sobretudo referência a fragmentos extraídos das páginas 22-39 do vol. 21 da
edição da Academia. Para um estudo detalhado das relações entre os fragmentos do Opus postumum e a questão
do homem em Kant, tratadas de uma perspectiva foucaultiana (notadamente sobre a relação entre o homem, o
mundo e Deus), ver o artigo de César Candiotto, «Michel Foucault e o problema da antropologia», Revista
Philosophica, Valparaíso, vol. 29, 2006, p. 183-197, especialmente a seção intitulada «A questão antropológica
no último Kant»: www.philosophica.ucv.cl/Phil%2029%20-%20art%2007.pdf (consultado em 31/12/2011)

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sobrepõe e, até certo ponto, comanda a organização do pensamento crítico encontra-se no
começo da Lógica, mas afetada por uma modificação decisiva. Uma quarta questão aparece: o
que é o homem? – que não faz seqüência às três primeiras senão para retomá-las em uma
referência que envolve todas elas: pois todas devem reportar-se a esta, assim como devem ser
remetidas, à antropologia, a metafísica, a moral e a religião.» (p. 65, modif.) Quer isto dizer
que o livro de 1798 não trata do homem nos mesmos termos que a Introdução da Lógica, o
que Foucault reconhece. Assim, ele escreve:«a Antropologia tal como a conhecemos não se
oferece em nenhum momento como a resposta à quarta pergunta, nem mesmo como a mais
ampla exploração empírica desta mesma questão; mas [...] esta só é colocada bem mais tarde
ainda, do exterior da Antropologia, e em uma perspectiva que não lhe pertence propriamente,
no momento em que se totaliza no pensamento kantiano a organização do Philosophieren, isto
é, na Lógica e no Opus postumum.» (p. 67.) Foucault está por conseguinte inteiramente
consciente da diferença de horizontes no interior dos quais se movem duas antropologias
kantianas distintas: a primeira é pragmática, ao passo que a segunda é (para guardarmos a
palavra que acabamos de citar) «totalizante», pois abarca em seu seio as disciplinas que
respondem às três primeiras perguntas. Assim sendo, o agenciamento interrogativo proposto
na Introdução da Lógica não é mais, para Foucault, do que um estádio preparatório do que
advirá em seguida; ou, como ele diz: «a referência da Lógica a uma antropologia que
reconduziria para si toda interrogação filosófica parece ser, no pensamento kantiano, apenas
um episódio. Episódio entre uma antropologia que não aspira a uma tal universalidade de
sentido e uma filosofia transcendental que conduz a interrogação sobre o homem a um nível
bem mais radical. Este episódio era estruturalmente necessário: seu caráter passageiro estava
ligado à passagem que ele assegurava.» (p. 77.) Por outras palavras, o was ist der Mensch? da
Lógica não teria assumido para Kant a importância que por vezes se lhe atribui: ele teria
apenas sido investido de um valor estratégico, e se dissipado logo após. Eis como, na
argumentação de Foucault, a Introdução da Lógica desempenha o papel de termo intermédio
que, pelo modo como formula o problema do homem, autoriza a passagem da APP a uma
antropologia que toma em conta as regiões epistemológica, moral e religiosa.
É nestas condições que ele anuncia sua decisão hermenêutica estonteante. Num só
parágrafo conciso, declara: «Será à luz das respostas dadas nestes textos [i.e. na Lógica e no
Opus postumum] ao Was ist der Mensch? que tentaremos compreender, em um caminho de
retorno, o que quer dizer a Antropologia.» (p. 67.) De repente, a estratégia de Foucault torna-
se límpida: ele quer penetrar o sentido da APP a partir de uma luz exterior, e mesmo posterior.
Duas perguntas não podem então deixar de ser feitas: primeiro, em que medida esta forma de

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iluminar o problema não envolve a APP numa luz artificial que, mais do que mostrá-la em si
mesma e no que ela é, nos fornece dela uma imagem deformada? E depois, até que ponto são
comparáveis textos nos quais o problema do homem sofre transformações aparentemente tão
fortes? Estas duas interrogações estão intimamente associadas, pois cada um dos escritos
(APP, Lógica e Opus postumum) encara o homem de forma distinta, o que em princípio
dificulta toda aproximação entre eles.
Foucault é o primeiro a chamar a atenção para a diversidade de formas de encarar o
problema do humano. Um fragmento do Opus postumum permite-lhe notadamente assinalar a
originalidade desta última fase do pensamento de Kant; é aquele que incide sobre o «sistema
da filosofia transcendental em três seções: Deus, o mundo, universum e eu mesmo o homem
enquanto ser moral» (Kant, OP, vol. 21, p. 27). Estas palavras significam, segundo Foucault,
que a concepção do homem como «medius terminus» entre Deus e o mundo (p. 67-68), faz
deste volume uma resposta à «questão “o que é o homem?” [porém esta resposta]está ligada,
desde o princípio, a uma interrogação sobre Deus e sobre o mundo; desenvolve-se
inteiramente neste nível como se jamais tivesse pertencido a este domínio singular que é a
antropologia.» (P77.) Deste ponto de vista, os fragmentos da obra póstuma de Kant
concernentes ao humano não são nem uma sequência dada ao projeto pragmático, nem uma
realização da antropologia anunciada pela Lógica (visto que Kant não raciocina mais aqui na
base de uma relação com as três disciplinas da metafísica, da moral e da religião). Já antes
disso, o projeto pragmático não se confundia com a interrogação acerca do homem formulada
na Lógica. Ora, tais diferenças de planos não lhe parecem suficientemente radicais para o
impedir de pô-los em conexão. No Opus postumum, escreve, Kant tenta responder à pergunta
«o que é o homem?» «como se uma antropologia só se tornasse possível (uma possibilidade
fundamental e não somente pragmática) do ponto de vista de uma Crítica acabada e já
conduzida à realização de uma filosofia transcendental.» (p. 77.) Assim, o Opus postumum é
interpretado como contendo uma (talvez mesmo: como consistindo numa) terceira espécie de
antropologia, que não é nem a da APP, nem a da Lógica. Ligando os três livros para lá das
inflexões que cada um deles introduz, são estas três discursos antropológicos que Foucault
põe em relação.
Para resumir o que precede, digamos que a Gênese e estrutura, bem que colocando a
APP como charneira do problema antropológico em Kant, desliza constantemente deste livro
de um lado para a Crítica, recuando no tempo, e de outro lado para a Lógica e o Opus
postumum, avançando no tempo. Decidido a buscar neste derradeiro e tênue momento da
pesquisa kantiana a verdade da APP, talvez seja afinal o sentido desta que ele acaba não

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explorando inteiramente. Tal como fizera com a Lógica, também o livro de 1798 fica
parcialmente reduzido a uma etapa na caminhada para aquilo que o transcende e de onde ele
recebe o seu significado último, o que aliás, Gênese e estrutura assume sem ambigüidade,
quando afirma que a APP é «somente o momento transitório, mas necessário da repetição» da
Crítica (p. 93). Claro que esta escolha interpretativa não pode deixar de ser problemática, e o
simples fato que a APP não trata de problemas que ganharão forma apenas mais tarde deveria
ter bastado para dissuadir Foucault de rebatê-la sobre um Opus postumum que não parece ter
com ela qualquer relação imediata. Porém, não foi isso que aconteceu, de tal forma que somos
autorizados a ver na démarche foucaultiana uma espécie de releitura teleológica da APP,
leitura segundo a qual a verdade deste livro se encontra num termo que, sendo-lhe exterior, a
conduz de antemão e secretamente.
Por todas estas razões, Foucault teria sido mais rigoroso se tivesse intitulado seu
ensaio Introdução à filosofia de Kant de um ponto de vista antropológico. Seria assim
explicitamente assumido o ensejo de reler esta filosofia como constituída em parte por uma
sucessão de discursos que são escalas do pensamento na sua descoberta do humano. O relevo
que Foucault dá ao problema explica porquê ele insiste tanto na concomitância da reflexão e
do ensino kantianos: como escreve, «o fato de que durante 25 anos Kant tenha ensinado
antropologia deve-se, sem dúvida, a algo diverso das exigências de sua vida universitária; esta
obstinação está ligada à própria estrutura do problema kantiano [...].» (p. 107). Nesta
perspectiva, o problema do humano concerne toda a empresa do filósofo, porém de uma
forma singular: ele, que talvez seja permanente, nunca se apresenta afinal como fundamental,
isto é, como problema instaurador de um plano sobre o qual tudo o mais repousaria. É
precisamente o que Foucault escreve em conclusão: «Pode-se dizer que o movimento crítico
se desprendeu da estrutura antropológica: ao mesmo tempo porque esta o delineava do
exterior e porque ela só adquiria valor libertando-se dela, voltando-se contra ela e deste modo
fundando-a.» (p. 107) Em outras palavras, se é o problema do homem que suscita a empresa
crítica, esta deve autonomizar-se tanto face a ele quanto face a um conhecimento empírico,
procurando as regras e limites às quais obedecem o pensamento e a ação. Este estudo, bem
que suscitado pelo problema do humano, não toma por objeto o humano na sua empiricidade,
mas antes na sua transcendentalidade. No final, é à partir do transcendental e da mediação por
ele instaurada que a filosofia pode aceder ao humano e discorrer sobre ele, e não visando
imediatamente aquilo que o homem é, nem colocando o homem na base de uma construção
filosófica.

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O elogio feito a Kant e a singularidade de Foucault face a Heidegger e Sartre

Examinemos agora brevemente o que diz Gênese e estrutura a propósito do


esquecimento da lição crítica. A estratégia transcendental kantiana recebe, neste livro, um
elogio explícito, como o prova o fato que Foucault a inscreve do lado da antropologia que
convém, contra a ilusão provocada por outros discursos, tanto contemporâneos de Kant
(Schmid, Hufeland, Ith) quanto posteriores. Como ele diz, «haveria uma falsa antropologia – e
a conhecemos demasiado bem: é aquela que tentaria deslocar em direção a um começo, em
direção a um arcaísmo de fato ou de direito as estruturas do a priori. A Antropologia de Kant
nos dá outra lição: repetir o a priori da Crítica no originário, isto é, em uma dimensão
verdadeiramente temporal.» (p. 82-83). O caminho fica assim aberto para a censura e a
desmontagem do que Foucault considera serem as falsas antropologias, um trabalho que ele
prolonga em termos propriamente anti-humanistas: «em nome daquilo que é, isto é, do que
deve ser, segundo sua essência a antropologia no todo do campo filosófico, é preciso recusar
todas estas “antropologias filosóficas” que se oferecem como acesso natural ao fundamental;
e todas estas filosofias cujo ponto de partida e cujo horizonte concreto são definidos por uma
certa reflexão antropológica sobre o homem.» (p. 108.)
Convém ouvir aqui um eco da crítica que Jean Hyppolite, orientador das pesquisas de
Foucault sobre Kant, dirigiu a Sartre no início dos anos 1950, sobretudo as formuladas no seu
artigo intitulado «A psicanálise existencial em Jean-Paul Sartre» (Hyppolite 1991).3 Este texto
opõe a moral, a antropologia e o humanismo respetivamente à filosofia, à ontologia e à
especulação, identificando a conjunção dos três primeiros termos com Sartre, e a dos três
últimos com Heidegger. Entre estes, Hyppolite não esconde sua preferência por «Heidegger,
muito provavelmente o maior filósofo contemporâneo» (Hyppolite 1991, p. 786), o mesmo
que «quis ultrapassar toda a antropologia», e cujo objetivo era a ontologia. Completamente
diferente era o objetivo de Sartre, fazer «a descrição da condição humana como tal».
(Hyppolite 1991, p. 780). Por conseguinte, Foucault não foi o primeiro a censurar as «falsas
antropologias» em voga na França do seu tempo, mas segue nisto as pisadas do seu
orientador.
Mais ainda, e bem que ele não faça referência a Heidegger em Gênese e estrutura, o
autor alemão está bem presente como pano de fundo. Por exemplo, o recurso ao esquema da

3 Este manuscrito não situado e não datado foi muito provavelmente escrito em 1951 ou pouco depois, visto que
o autor se refere pelo menos duas vezes à «última peça de Sartre, O Diabo e o bom Deus» (p. 781 e 789),
representada pela primeira vez em Junho de 1951, em Paris (Sartre 1951, p. 7).

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repetição antropológico-crítica lembra a derradeira seção, intitulada «Fundamentação da
metafísica numa repetição», de Kant e o problema da metafísica, publicado por Heidegger em
1929. Vemos assim que seria preciso, para bem apreendermos o que está em jogo na
interpretação foucaultiana, levar em conta as disputas filosóficas alemãs sobre a antropologia,
tal como elas decorreram por um lado entre Max Scheler (1915, 1928) e Heidegger (1929,
p. 109-110), e por outro lado entre este e Cassirer, em Davos, no mesmo ano de 1929. Tudo
isto era já bem conhecido em França, devido ao trabalho de pessoas como Georges Gurvitch,
que desde 1930 propõe ao público um livro intitulado As Tendências atuais da filosofia
alemã: Husserl, Scheler, Lask, Hartmann, Heidegger (Gurvitch 1930). No âmago desta
história encontra-se Kant, tornado objeto de leituras incompatíveis, e é neste âmago que
Gênese e estrutura mergulha suas raízes.
Devemos, no entanto, nos acautelar contra toda a confusão entre as posições de
Foucault e Heidegger, pois seria empobrecedor e errôneo reconduzir a originalidade do
primeiro ao que sabemos do segundo. Para evitar este caminho, importa voltar ao estatuto
atribuído ao Opus postumum, e à leitura teleológica acima descrita, na medida em que eles
afastam definitivamente Gênese e estrutura da influência heideggeriana. Um dos comentários
mais detalhados e rigorosos já publicados sobre o livro de Foucault (Dávila e Gros 1998)
insiste precisamente nesta relação, estabelecendo em diversos pontos conexões entre Gênese e
estrutura e dois textos heideggerianos publicados em 1929, o já referido Kant e o problema
da metafísica e A Essência do fundamento (Vom Wesen des Grundes). O primeiro fato que os
autores sublinham é a ausência de referências explícitas de Gênese e estrutura a Heidegger,
silêncio para o qual apresentam duas razões possíveis (Dávila e Gros 1998, p. 13): primeiro,
«Foucault teria se deixado convencer pela evidência que dava a proximidade da leitura
heideggeriana sobre Kant, parecendo-lhe ser claro que tal leitura constituía a verdade mesma
do pensamento de Kant»; e, segunda razão, a mais importante para os autores, «a leitura de
Heidegger [...] apresentava-secomo uma repetição do kantismo em sua integridade; isto é,
como uma leitura que levava a obra de Kant ao reencontro de sua verdade mais autêntica, que
a levava a exprimir finalmente o seu projeto decisivo.» Qual seria a originalidade de Foucault
à vista da pujante interpretação heideggeriana de Kant? Ela residiria, mais uma vez segundo
os autores, na intenção de Foucault de mostrar que a passagem ao projeto decisivo de Kant
«não se elabora na lição de Heidegger, mas é elaborada pelo próprio Kant no Opus
postumum». Daqui, concluem que «é mantendo-se mais na proximidade do próprio Kant [do
que na de Heidegger] que Foucault retoma as teses de Heidegger.» Esta via hermenêutica e a
forma de exprimi-la, ainda que não me pareça errônea, também não me parece marcar com a

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firmeza necessária a originalidade, e, por conseguinte, o interesse da reconstituição
empreendida por Foucault. Ao ler a interpretação elaborada por Jorge Dávila e Frédéric Gros,
podemos ter o sentimento que ela mostra mais um «Foucault leitor de Heidegger» do que um
«Foucault leitor de Kant», ou em todo o caso a segunda possibilidade concorre fortemente
com a primeira. Pelo meu lado, e sem querer diminuir em nada a influência de Heidegger
sobre Gênese e estrutura, tentarei explorar um outro caminho, que não é o de uma retoma das
teses deste por via de uma proximidade maior com Kant, mas antes a de um afastamento de
Foucault em relação às conclusões de Heidegger. Assim, partilho com Jorge Dávila e Frédéric
Gros o destaque que é preciso dar ao Opus postumum, ao qual Foucault recorre de maneira
crucial e que Heidegger quase ignora, porém considero que este recurso de Foucault é o que
distingue os dois filósofos e é, por conseguinte, o ponto que importa frisar.4
O uso foucaultiano do Opus postumum, que contrasta com a pouca atenção que lhe é
dada por Heidegger, justifica-se por motivos históricos e bibliográficos. A publicação dos dois
volumes da edição da Academia, transcrevendo pela primeira vez de forma quase integral
estes manuscritos, data de 1936-1938, sendo por conseguinte posterior à publicação de Kant e
o problema da metafísica. É verdade que no momento em que redige este livro, Heidegger
conhece a versão publicada por Erich Adickes em 1922, Kants Opus postumum, dargestellt
und beurteilt, mas apenas lhe faz uma referência (Heidegger 1929, p. 33, n. 42), o que de resto
é consentâneo com a prática da época: como explica o editor do Opus postumum na edição
Cambridge, Eckart Förster, a publicação do manuscrito na edição da Academia «nas vésperas
da Segunda guerra mundial» fez com que «um tempo muito considerável» tenha passado «até
que os primeiros estudos mais importantes baseados nesta edição foram dados ao prelo.
Apenas na segunda metade do século XX, parece, o texto de Kant começou atraindo a atenção
filosófica que poderia esperar-se, com traduções sendo publicadas em francês (1950 e 1986),
italiano (1963) e espanhol (1983).» (Förster 1993, p. XV.) Ora, Gênese e estrutura pertence já

4 Sem poder alongar-me sobre o assunto, creio que a importância de separar Foucault de Heidegger (e quantos
leitores se consagram a enfatizar no primeiro, marcas da presença do segundo!) é de pelo menos três graus. O
primeiro, menos importante em termos estritamente conceptuais, é política: sabemos o quanto os dois pensadores
estão longe um do outro em seus engajamentos na vida coletiva. O segundo, filosoficamente mais relevante, é de
natureza metodológica: se é certo que a obra de um pensador não pode ser avaliada sem uma comparação com as
ideias daqueles que o antecederam, também é verdade que nunca compreenderemos o que faz a sua grandeza se,
a todo o momento, não nos esforçarmos para revelar aquilo que o singulariza, em detrimento daquilo que partilha
com outros. O terceiro grau que, este sim, é capital, concerne tanto o conteúdo de ambas as obras quanto o
horizonte no qual elas se deslocam: se Heidegger permanecerá sempre um pensador que lamenta o esquecimento
(do ser) e lastima a perda (da autenticidade), dedicando-se a uma pesquisa das origens, Foucault é indiferente a
estas categorias, quando não lhe acontece opor-se a elas abertamente. Deste ponto de vista, Deleuze tem razão
em escrever: «Daí a importância da declaração de Foucault quando diz que Heidegger sempre o fascinou, mas
que só podia entendê-lo por Nietzsche, com Nietzsche (e não o inverso). Heidegger é a possibilidade de
Nietzsche, mas não o inverso, e Nietzsche não esperou pela sua própria possibilidade.» (Deleuze 1986, p. 120-
121.)

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a este novo mundo da recepção dos derradeiros escritos kantianos: se a pouca importância que
Heidegger atribui ao Opus postumum é a mesma de seus contemporâneos, ao invés Foucault
beneficia da primeira tradução francesa que, embora muito parcial, é dada ao prelo em 1950
por Jean Gibelin, na editora Vrin. Mais ainda, é interessante constatar que este volume de
apenas 200 páginas (trata-se portanto, de uma seleção, e não da tradução integral dos volumes
da Academia) contém nas primeiras 29 a quase integralidade das passagens citadas por
Foucault (que, porém, nunca faz referência a Gibelin). Assim, entre o original alemão e a
tradução francesa, Foucault dispõe de um duplo instrumento precioso que lhe permite
distanciar-se sutilmente da Fundamentalontologie e retomar por outras vias a démarche
kantiana. Em outras palavras, as razões históricas e bibliográficas que permitem a Foucault
escrever Gênese e estrutura num mundo diferente daquele que viu nascer Kant e o problema
da metafísica, transformam-se em razões filosóficas que justificam não apenas a novidade do
discurso foucaultiano, mas também seu interesse para nós hoje. Voltarei a este assunto em
conclusão.
Agora, de que modo exatamente ele se serve desta ferramenta? A resposta está patente
na interpretação que propõe da quarta pergunta da Introdução da Lógica. Lembremos que a
recondução das três primeiras perguntas à quarta era encarada por Heidegger, no final do
Kantbuch, como uma razão maior para recusar a antropologia, o livro se concluindo assim por
uma suspensão da antropologia filosófica (§37-38) e mesmo pelo descarte desta em proveito
de uma ontologia fundamental. Ao invés, Gênese e estrutura prossegue sobre uma via
propriamente antropológica, para a qual ela encontra esta nova saída que é o Opus postumum.
Com efeito, à primeira vista Foucault parece subscrever simplesmente a leitura heideggeriana,
notadamente quando afirma que «os valores insidiosos da questão Was ist der Mensch? são
responsáveis por este campo homogêneo, desestruturado, indefinidamente reversível» (p. 110)
daquilo que chama a ilusão antropológica. Não foi realmente Heidegger quem insistiu na
autonomização histórica da antropologia e na importância efetiva por ela adquirida, a tal
ponto que de um objeto filosófico de primeira importância, ela acabou se tornando numa
«tendência fundamental da postura do homem para consigo mesmo e no todo do ente»?
(Heidegger 1929, p. 209.) Mas este também não é um traço típico de Heidegger, que neste
aspecto não se distingue de seu adversário Cassirer, o qual em sua Filosofia do Iluminismo
considera que, na modernidade, «cada vez mais a lógica, a moral e a teologia parecem diluir-
se [...] em simples antropologia.» (Cassirer 1932, p. 155.) Foucault, como sabemos, não foge
a esta linha. Porém, o que em Gênese e estrutura parece ser uma repreensão feita a Kant e à
sua pergunta «o que é o homem?» é, na verdade, uma dupla homenagem ao filósofo pois,

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como explica, primeiramente «a questão antropológica não tem conteúdo independente;
explicitada, ela repete as três primeiras questões» (p. 76); e segundamente, a formulação
inscrita na Lógica não é mais do que um instante rapidamente ultrapassado, uma transição
requerida com vista ao acabamento da filosofia kantiana. Não é, por conseguinte, da
responsabilidade de Kant se, de um simples momento de passagem do pragmático ao
transcendental, esta interrogação sintetizadora se tornou posteriormente o eixo principal do
saber moderno.5

Conclusão

Pusemos até agora em evidência a modo como a APP pode ser articulada com a obra
de Kant no seu conjunto e, sobretudo, como ela pode ser inserida num percurso intelectual e
temporal dotado de sentido, que conduz dos textos pré-críticos até às notas póstumas. Em
paralelo com este trabalho de reconstituição da coerência do kantismo, Foucault também lê a
APP por ela mesma, isto é, independentemente dos laços que a unem a outros escritos. Nesta
matéria, o ponto mais importante é sem dúvida o destaque conferido à pergunta que
singulariza o livro e que aliás o separa, sem ambiguidade, da Lógica. Como Kant explica
desde o prefácio, «o conhecimento fisiológico do homem trata de investigar o que a natureza
faz do homem; o conhecimento pragmático, o que ele, enquanto ser de livre acção, faz, ou
pode e deve fazer de si mesmo.» (Kant, APP, p. 119.) Foucault constata este ponto, e nota que
a APP não se deixa guiar nem pelo questionamento da Lógica, nem pelo do Opus postumum,
ambos mais orientados pelo «que é o homem» e menos por «o que ele faz de si mesmo». No
entanto, ele não consegue resistir a rebater a primeira sobre o último, um processo no qual a
Lógica serve apenas de lugar de transição. Ora, raciocinando assim, ele reduz quase
inteiramente o livro de 1798 a uma problemática que não lhe convém, de tal forma que o
sentido pragmático fica parcialmente recoberto pelo sentido fundamental. Não haveria pois
aqui um mal-entendido? Daí o lugar paradoxal que Gênese e estrutura reserva à APP: por um
lado, este livro é o seu objeto primeiro e central; mas por outro, ele é desde início um objeto
destinado a desaparecer, e a ceder o lugar a um novo discurso sobre o homem, discurso que
não é nem crítico, nem pragmático, mas transcendental. Em suma, a importância da APP
reside precisamente no fato de ela não ser importante – a não ser como indício da presença
constante do problema do homem no pensamento kantiano.

5 Sabemos que Foucault rapidamente mudará e radicalizará sua posição (Sardinha 2010).

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Resta dizer que o aspecto que fica esbatido neste trabalho de Foucault será retomado
mais tarde e sobre uma outra base, até constituir um dos motores principais de toda a sua obra.
Estou-me referindo à ideia de uma investigação do que o homem, enquanto ser livre, faz, ou
pode e deve fazer de si mesmo: é por permitir-nos regressar a este ponto depois da «morte do
homem» que Gênese e estrutura merece reter nossa atenção hoje em dia – justamente porque,
ao contrário de Heidegger, Foucault não descarta esta antropologia. Claro que este programa
sofrerá pelo menos três alterações maiores: primeiro, sua figura principal não será mais «o
homem», mas «nós próprios», a diferença entre estes dois termos residindo no seguinte, que
enquanto a filosofia discorre tradicionalmente sobre o homem apreendido no horizonte do
universal, a pesquisa sobre nós mesmos se situa no quadro de particularidades sem
universalidade. É uma das conseqüências do anti-humanismo teórico. Segundo, a liberdade
ressurgirá vinte anos mais tarde, diríamos mesmo: depois de um longo esquecimento, que
marcou livros como As Palavras e as coisas, Vigiar e punir e A Vontade de saber, nos quais a
liberdade de ação de nós próprios sobre nós próprios desaparecia, primeiro em proveito das
disposições epistemológicas e, depois, dos dispositivos políticos. Só em seus derradeiros anos
de trabalho, Foucault retoma com vigor a dimensão de uma liberdade à qual ele tinha sido
sensível na sua primeira leitura de Kant (Sardinha 2005). Terceiro, enfim, o peso atribuído a
«o que fazemos» e «temos feito» de nós mesmos é de longe mais importante por Foucault do
que aquele que assume o «que devemos fazer», e que era o último elemento recenseado por
Kant no programa pragmático. Assim, trata-se muito mais em Foucault de um trabalho sobre
os fatos históricos contingentes, do que sobre as normas que deverão orientar nossas ações.
Concluindo, assim como ele inscreveu a antropologia de Kant na lista das boas antropologias,
também nós poderíamos inscrever sem receio a sua filosofia na linhagem das boas
antropologias históricas, isto é, daquelas que renunciam a saber o que é o homem, e se
interessam por aquilo que fizemos, fazemos e podemos fazer de nós mesmos enquanto seres
de livre atividade.

Bibliografia

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