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ima cangao livre do romantismo emancips torio”, nas palavras do préprio autor, este ensaio de volteios abissais celebra os dois séculos da Critica da raziio pura de Kant e deixa a marca de Peter Sloterdijk: na filosofia contemporinea. Critica da razdo ctnica € uma ode a um novo humanismo que busca suas rafzes na Grécia Antiga ¢ no Esclarecimento, arcabougo de ita de Nietzsche, ¢ uma releirura “pela esquerda” dae perfaz um acerto de contas com o século XIX das Luzes e de Marx. Desbanca a Teoria Critica de Horkheimer @ Adorno. e desabrocha em Heidegger. Sloterdijlc retoma o escdmnio subversivo de Didgenes, 0 Cinico, e o mescla com o racionalismo de cunho ilumi- nista para conferir os diversos cinismos da vida moderna que nos acometem, desvortinando © mau humor dos redencionismos revolucionsrios de inspiragdo mar xxista, E, claro, traz nova reflex sobre a galvanizagio nacional-socialista. O resultado é um admirével com- péndio onde se fundem tecalibragem filosdfica, andlise histérica, argiicia sociolégica, histéria da cultura e das ideias, 0 todo exemplificado com multiplas “excursies” a0 mundo real —a Republica de Weimar, Liebknechte Rosa Luxemburgo, o dadaismo, as artes © literatura dos anos 1920, as guerras mundiais, o mundo das finangas. Em tom irreverente com notével mestria da lingua (cle nao deixa de reverenciar a prosa lirico-filoséfica de Albert Camus), Sloverdi nodlasta e por vezes espontaneista do cinismo enquanto jk nos oferece uma releitura ico- instrumento critico da modernidade. Peter Sloterdijk critica da razado cinica tradugao Marco Casanova Paulo Soethe Pedro Costa Rego Mauricio Mendonga Cardozo Ricardo Hiendimayer Fogio Ubedade ‘Titulo original: Kritik dev cynischen Vernunft Copyright @ Suhtkamp Verlag Frankfurt am Main 1983 Copyright @ Edicora Estagio Liberdade, 2012, para esta tradugio Revisio da mradiyéo Marco Casanova Preparagao de texto Rodrigo Peeronio Reviséo ‘Thiago Blumenthal Eeditores asistentes Fabio Bonillo ¢ Paula Nogueira Digitalizaséo de imagens. Antonio Kel Compesizéo B.D. Miranda Imagem de apa Lyonel Beininger: Dumas com raio de luz II, 1944. Latinstock | © Albright-Knox Art Gallery/ Corbis Editeres Angel Bojadsen c Edilberto E Verra ‘Todas as notas sfo do autor, exceto quando indicado com N.T.¢ N.E. A TRADUGAO DESTE LIVRO CONTOU COM APOTO po INStITUTO GOETHE, QUE E FINANCIADO PELO MinisT aio Das RELAGOES EXTERIORES DA ALEMANITA CIP-ARASIL.. CATALOGAGAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, R) S646 Slotcrdijk, Peter. 1947: Critica da razio cinica ¢ Peter Sloterdijk tadugic de Marco ‘Casanova, Paulo Soethe, Mauricio Mendonga Cardozo, Pedro Costa Rego Ricardo Hiendlmayer ~ So Paulo : Bxagio Liberdade, 2012. 720p. ‘Tradlugao de: Krisk der zynischen Yernunit Indice ISBN 978-85-7448-209-5 1. Cinismes. 2, Filosofia. I. Tieulo, 12.2378 CDD: 183.4 cpu: 17 Todos os direitos reservados & Editora Estagao Liberdade Ltda. ‘Rua Dona Elisa, 116 | 01155-030 | Sao Paulo-SP Tels (11) 3661 2881 | Fax: (11) 3825 4239 wwwestacaoliberdade.com.br Sumario Prefacio PRIMEIRA PARTE lise: cinco consideragdes prévias Cinismo: crepasculo da falsa conscigncia Esclarecimento como didlogo — Critica & ideologia como prosseguimento do didlogo fracassado por outros meios Os oito desmascaramentos — Revisto critica I. Critica da revelacao I. Critica da iluséo religiosa IIT. Critica da iluséo metafisica TV. Critica a superestrucura idealista V, Critica da ilusio moral VIL. Crftica da transparéncia VIL. Critica da ilusio natural VILL. Critica da ilusio privada Depois dos desmascaramentos: creptisculo cinico. Esbogos para a autorrevogacio do éthos do Esclarecimento T. Obstrucao esclarecida do Esclarecimento I]. Rupturas do Esclarecimento 1A vefragde temporal 2. A rupwura parsiddria 3. ruptura setorial 4A muptura das inteligéncias IIL A lembranga de portas semiabertas TV. Blegia marxista: Althusser e a “ruptura” em Marx V. Sentimento vital 4 meia-luz Em busca da insoléncia perdida 1.A filosofia grega da insoléncia: kynismos TI. Mijar contra o vento idealista III. Neo-fynismos burgués: as artes IV. O cinismo como insoléncia que trocou de lado V. Teoria do agente duplo VI. Histéria social insolente VII. Encamacao on cisio 29 3l 38 53 53 57 68 7. 76 85 92 100 121 121 129 130 133 133 134 136 139 149 153 153 156 161 164 168 71 175 VIII. Psicopolitica da sociedade esquizoide 7 IX. Felicidade desfagada 182 X. Meditacao sobre a bomba 187 ‘SEGUNDA PARTE Cinismo no processo do mundo 195 I. Segao principal fisionémica 197 ‘A. Sobre a psicossomitica do espitite do tempo 199 1, Lingua para fora 201 2. Boea retorcida em sorriso malicioso 203 3. Boca amarga, fechada 204 4, Boca, as gargalhadas, eseancarada 204 5. Boca serena, em siléncio 205 6. Os olhos ¢ 0 olhar 206 7. Scies 208 8. Bundas 209 9. Peida 213 10. Merda, dejeto 214 11. Orgaos genitais 215 B. Gabinete dos cinicos 218 1, Didgenes de Sinope: Homem-cao, fildsofo, inttil 219 2, Luciano, o zombeteiro ou A critica troca de lado 236 3. Mefistéfeles ou O espirivo que sempre nega ea vontade de saber 243 4. O Grande Inquisidor ou O homem de Estado cristao como. cacador de Jesus ¢ o nascimento da doutrina das instituicbes a partir do espirito do cinismo 253 5. O impessoal ou O mais real sujeito do cinismo difuso moderno 270 IL. Secao principal fenomenoldgica 291 A, Os cinismos cardinais 293 1. O cinismo militar 296 2. O cinismo de Estado ¢ 0 cinismo do predominio 310 3. O cinismo sexual 338 4, O cinismo médico 359 5. O cinismo religioso 372 6. O cinismo do saber 387 B. Os cinismos secundirios 403 1. Minima Amoralia — Confissio, chiste, crime 403 2, Escola da arbitrariedade — Cinismo da informagio, imprensa All 3, Cinismo da troca... ou a dureza da vida 422 IIL. Segao principal légica 439 A. Empiria negra — O Esclarecimento como organizagio de um saber polémico 441 1. Saber bélico ¢ espionagem 444 2. Policia ¢ dtica da luta de classes 451 3. Sexualidade: o inimigo encontra-se dentro-abaixo 456 4. Medicina e suspeigao corporal 460 5. O nada ¢ a metafisica da autoconservacao nua ¢ rua 465 6. Espionagem da natureza, Logica de artilharia e metalurgia politica 469 B, Polémica transcendental, Meditagées heraclitcanas 478 1, Polémica contra 0 id ou pensar 0 diabo 483 2, Metapolémica para a fundamentacao das dialéticas europelas ‘entre polémica ¢ ritmica 492 __ IV. Segio principal histérica 5 O sintoma de Weimar. Modelos de conscigncia da modernidade , alema 513 . Cristalizagio weimariana, Tiansi¢ao de um tempo da meméria para a historia 517 2. Caotologia dadaista. Cinismos semanticos 522 Excurso 1: O crepiisculo do blefe 535 Excurso 2: Os caes do gelo. Sobre a psicanilise do cinieo 539 3. A repiiblica do faz de conta. Cinismos politicos Tz a luta prossegue 546 4. O front 0 nada. Cinismes politicos Il: dialética populista ¢ dissolucao do front 551 5. Mortos sem testamento. Cinismes politicos IT: preocupagées com os timulos de guerra no interior vazio 557 w Conspiradores e simuladores. Cinismos politicos IV: mentalidade como desinibicao 563 Excurso 3; © cio sanguinasio racional. Uma clegia social-demoerata 569. . Despersonalizacao ¢ alienagao. Cinismos funcionalistas | Jinismos 8, Préteses — Do espitito da técnica. fancionalistas Il Excurso 4: O quarto império — ances do terceiro Excurso 5: Provética total ¢ surrealismo técnico icas ¢ auséncia de dor yo . Algodiccia politica, Cosmologias 10, Pedindo um Napoleae que venha de dentro. Cinismos politicos V: treino para homens de fatos LL. A “hora lucida”. Grandes confissées de uma consciéncia dividida 12. A tepblica alma dos vigaristas. Sobre a historia natural da ilusao Excurso 6: O cou Excurso 7: Andlise espectral da burrice Excurso 8: Atores ¢ personagens ‘smo politico. Politizasao da mentira 13. Opa — estamos nés vivos? Cinismos nco-objetivos ¢ historias da vida dificil Excurso 9: Cinismo dos meios de comunicacio e treinamento na arbitrariedade Excurso 10: Gense no hovel 14. Crepusculo pés-coito. Cinismo sexual ¢ histérias de um 15. As duplas resolugées de Weimar ou a objetividade em relacao 4 morte Epilogo. O choque pleural. Sobre 0 atquétipo do riso de Weimar Gonoluséo. A caminho de uma critica da razao subjetiva Referéncia bibliogrdfica © agracecimentes Crédito das ilustragdes 574 585 599 603 606 617 626 633 640 646 649 653 680 690 695 713 71S Prefacio Toque os cambares ¢ néo tema E beije a vivandeina! Esra é toda a citncia, Este é dos livras a mais profundo sentido. Heinrich Heine, Dourrina A grande falls as cebecas alemas consiste no fato de elas nao terem nenhum sentide para a ironia, para 0 cinismao, (para o grotesco, para o despreco e 0 exdrnio. Otto Flake, Tewro-francts, 1912 Hi um século a flosofia est morrendo. No entanto, ela nao consegue morret porquc sua tarefa nao foi cumprida. Assim, sua despedida precisa se delongar de maneira allitiva. Onde nao pereceu em meio a uma mera ad- inistracao do pensamento, ela se arrasta por af em uma agonia cintilante, ‘na qual Ihe vem a cabeca aquilo que esqueceu de dizer durante sua vida. Em face do fim, ela quetia se vornar sincera ¢ revelar seu tiltimo segredo. E confessa: os grandes temas nio passaram de subterfiigios ¢ meias- sverdades. Estes belos passcios vaos — Deus, universo, teoria, praxis, su- jeito, objeto, corpo, espitito, sentido, nada — no significa nada. Sao bstantivos para os jovens, para os outsiders, para clérigos ¢ sociélogos. “Palavras, palavras — substantivos. Flas s6 precisam abrir as asas ‘e milénios caem em seu voo.” (Gottfried Benn, Epilog und byrisches Ich [Epilogo ¢ 0 eu lirico]) A Ultima filosofia disposca a realizar uma confissio trata de algo ‘desse género na rubrica histérica — juntamente com os pecados da juventude. Seu tempo passou. Em nosso pensamento, nao ha mais ne- “ohuma chispa do desenvolvimento dos conceitos e dos éxtases da com- preenséo. Nés somos esclarecidos, nds somos apaticos. Nao se fala mais de um amor a sabedoria. Nao hé nenhum saber mais, do qual se pudesse ser amigo (phito:). Aquilo que sabemos, nao chegamos 4 ideia de amé- Jo, mas nos perguntamos como € que conseguimos conviver com cle "sem nos pettificarmos. O que é exposto aqui sob um titulo que faz aluséo a grandes tradi- ‘¢6es é uma meditagio sobre a sentenga “saber ¢ poder”. Foi cla que no i Critica pa RaZAO CINICA século XIX se tomou o caveiro da filosofia. Fla resume a filosofia ¢ a0 mesmo tempo sua primeira confissio, com a qual comega a sua agonia se- cular. Com ela termina a tradicéo de um saber que, como seu nome indica, era uma teoria erética — amor & verdade ¢ verdade do amor. Do cadaver da filosofia descendem no século XIX as cigncias modernas ¢ as teorias do poder — como politologia, como teoria das luras de classe, como tec- nocracia, como vitalismo — em cada figura armada até os dentes. “Saber ¢ poder.” Essa sentenga coloca seu foco por tris da politizagio inevirivel do pensamento, Quem a enuncia, revela, por tim lado, a verdade. Todavia, ao exprimi-la, quer alcangar ao mesmo tempo mais do que a verdade: ele quer intervir no jogo do poder. No mesmo momento em que Nietzsche comecou a iluminar em toda e qualquer vontade de saber uma vontade de poder, 2 antiga social-democracia alema conclamou seus membros a participar da competi¢ae pelo saber, que é poder. Onde as inreleocées de Nietzsche queriam ser “perigosas”, frias desprovidas de ilusSes, a social-democracia se arrogava pragmdtica — e razia 4 tona uma alegria cultural pequeno-burguesa. Os dois falavam de poder: Nictsche, na medida em que minava vitalisticamente o idealismo burgués; a social-democracia, na medida em que procurava conquista, por meio da “formacao”, uma articulagio com as oportunidades de poder da burguesia. Niewsche ensinava j4 um realismo, que deveria facilitar as geragécs burguesas © pequeno-burguesas uma despedida dos disparates idealistas, que obstrufama vontade de poder; 2 social-democtacia aspirava a uma participacao em um ide- alismo que até entdo tinha portado em sia promessa do poder. Em Niewsche, a burguesia pode estudar os refinamentos e as grosserias inteligentes de uma vontade de poder que perdera todos os ideais, quando 0 movimento des ttabalhadores olhou obliquamente para um idealismo, que se mostrava ainda mais adequado para a sua ingéntza vontade de poder. Por volta de 1900, a ala radical dos homens de esquerda tinha acolhido 0 cinismo senhorial correto. A competigio entre a consciéncia cinico-de- fensiva dos antigos detentores do poder ¢ a consciéncia utdépico-ofensiva dos novos detentores de poder criou 0 drama politico-moral do século XX. Na cortida pela consciéncia mais rigida dos faros duros, 0 diabo e o bel- zebu instruiram-se mutuamente, A partir da concorréncia das consciéncias surgi o lusco-fusco caracterfstico do presente — o estar mutuamence 2 imilacao das oposigdes, a modernizacao do en- espreita das idealogias, a ass godo — em suma, aquela situacao que coloca 0 filésofo no vazio, situacao essa na qual mentirosos chamam mentirosos de mentirosos. Prerdcio Nés farejamos uma segunda atualidade de Nietzsche, depois que a primeira onda, a onda fascista de Nietzsche, baixou. Uma vez mais fica claro como a civilizagae ocidental vestiu' o seu costume cristéo. Depois das décadas de reconstrugio € depois das utopias ¢ “alternativas”, tudo se da como se um ela ingénuo repentinamente tivesse se perdido, Cards- uofes séo produzidas, novos valores encontram uma forte pausa, assim como todos os analgésicos: novos valores tém pernas curtas. Conster- nasao, proximidade entze os cidadaos, manutengao da paz, qualidade de vida, consciéncia da responsabilidade, caréter benéfico para 0 meio ambiente — estas coisas néo correm bem. £ possivel esperar. O cinismo jd estd a espreita nos bastidores — até que o palavreado passe e as coi- sas tomem o seu curso. Em verdade, nossa modernidade monétona sabe “pensat” inteiramente “de maneira histérica”, mas vem hé muito tempo colocando em diivida se vive em uma histéria plenamente dotada de sen- tido. “Nenhuma necessidade de uma histéria do mundo”. O eterno retorno do mesmo, o pensamento subversive de Nietzsche — cosmologicamente insustentivel, mas frutifero em termos de morfologia cultural — toca em uma nova penettagio de temas kynikoi', que tinham se desdobrado pela tiltima vez na era imperial romana, um pouco também no Renascimento, ¢ alcangado af a vida consciente. O mesmo: este ¢ 0 sinal de que uma vida sébria, orientada pelo prazer, est batendo a porta, uma vida que tem de aprender a contar com os dados. Estar preparado para tudo — isto nos torna invulneravelmente inteligentes. Vida, apesar da histéria; redugao existencial; falsa sociabilizagéo; ironia em relacdo & politicas desconfianga em relagdo aos “projetos”. Uma cultura neopaga que 1, Outer sevale da palavra Kjismus quando trata do cinismo filosético antigos€ utiliza a forma Zit mau (cinomto), ais corrence ex alernéa, paradcsignaro fendmen do cinismo modem. Para repr. duzicessa distincio, aedigio espanhola utilizou o neologisme qicinisme para distingui-lo de cinirme, (Optamos por manter a grafia gegs as ocor ris referentesdaccpyzoantiga¢adlotamos, para outra acepcao, 0 termo correntedo portuguts, cnt Esta eamisém foia open da edigéo norte-americana, traduzida e orgasizads por Michael Eldret!e Andreas Huyssen. O terme alemndo Zions, clio, denota2 mudanca de petspectiva do conceico na modernidade, em relagio tradigao cinica antiga, dos dyniho:. Como Sloterd jk prapoe, hé um momento da histétia em que fynisrmase transforma em cinisymo, ou sea, a critica “ttoca de lado” ss0 quer dizer: a critica “assume a ligica dos senhores! ‘A poténcia fyniéédo mundo ancigo se transforma, em sua versio moderna, em cinismo, Porcanto, 6 termo sino @ seus derivados referem-s, nesta taducfo, ap conceit usual {A prafia grega designa a forma origindria do termo em grego € a sua significacio ne Ambivo do pensamento antigo, té a sua vitagem, demarcada por Sloterdijk. Tal viragem, porém, ‘a mamutengio de manifestagées dynitar. Afinal, na concepgso do autor, a modetnidade ¢ espe- Galmente marcada por uma ambivaléncia essencial, cujo eixo de estrururagio é uma dinimi cinicatynike, (NE ;muiker, em alemio, 13 Carfrica Da RAZzAO CiNICA 4 nao acredita em uma vida depois da morte precisa procurar, por isso, uma vida antes da morte. A autodesignacéo decisiva de Nietzsche, com frequéncia desconside- rada, € ade um “cinico”; com isso, ao lado de Marx, ele se wansformou no mais notdvel pensador do século. No “cinismo” de Nietzsche se apre- senta uma telagio modificada com o “dizer a verdade”: trata-se de uma relagao de estratégia ¢ titica, de suspeita ¢ desinibico, de pragmatismo € instrumentalismo: tudo isso sob © controle de um eu politico que pensa de inicio ¢ em tiltima instancia em si mesmo, que internamente manobra € externamente se encouraga. O violento impulso antirracionalista nos paises ocidentais reage a um estado espiritual, no qual todo pensamento sc tornou estratégia; ele mani- festa ndusea diante de uma decerminada forma de autoconservacio. Essa nojo é um sobressaltar-se senstvel ante 0 sopro frie de uma realidade na qual saber é poder e poder, saber, Ao escrever, pensei em leitores, desejei- ine leitores, que experimentam as coisas assim; para eles, 0 livro poderia ter alguma coisa a dizer. A antiga social-democracia tinha anunciado o lema “saber € poder” como uma receita praticamente recional, Nao tinha muita coisa em mente com isso, Sabia apenas que precisaria aprender algo correto para té-lo melhor mais tarde, Uma crenga pequeno-burguesa ma escola tinlia ditado a sentenga. Essa crenga hoje se encontra em deterioragio, Somente junto aos nossos jovens médicos cinicos, uma clara linha de estudo conduz ainda ao padrio de vida clevado. Quase todos os outros vivem com 0 tisco de aprenderem no vazio. Quem nio busca o poder também aio vai querer seu saber, seus armamen- tos do saber; e quem recusa os dois jd nao € mais secretamente sequer um. cidadao desta civilizacao. Inimeros homens no estéo mais prontos a acte- ditar que se precisaria primeiro “aprender algo”, para télo algum dia mais tarde melhor. Neles, acredito, cresce uma intuicio que no kymismos antigo se mostrava como uma certeza: seria preciso primeiro em algum momento as coisas serem melhores para poder aprender algo racional. A socializacao por meio de instrugao, tal como acontece aqui em nossa terta, € 0 embru- tecimento a priori, segundo o qual quase nenhum aprendizado oferece mais a perspectiva de que vais coisas em algum momento se tornariam melhores. A inversao da relacio entre vida ¢ aprendizado fica no ari 0 fim da crenga na educagio, o fim da escoléstica europeia. Isso que € igualmente sinistro tanto para conservadores quanto para pragméticos, tanto para voyeurs do ocaso quanto para pessoas bem-intencionadas, No findo, nenhum homem acredita Prerdcio S rind ich dar Unaect wks O neo-*cinico” Nietzsche, pensacor da ambivaléncia, Critica Da Razio cinica 16 mais no aprendizado como modo de resolucao dos “problemas” de amanha. Muito mais provavel, quase certamente, é 0 contririo: que ele os desencadeie. Por que uma “critica da razdo cinica”? Como cu me desculpo ante a objecao de ter escrito um livro grosso, em tempos nos quais livros mais finos jd sto experimentados como presungao? Distingamos, como € pré prio, ensejo de raza ¢ de motivacao. O ensejo Comemorou-se em 1981 0 ducentésimo aniversirio da publicacao da Critica da razéo pura de Immanuel Kant — uma data histérica mun- dial. Jamais deve ter havido um jubileu no qual as coisas transcorreram de mancira tio seca quanto neste. Trata-se de uma dara festiva sébria, os eruditos ficam entre si. Seiscentos pesquisadores da obra de Kant, reunidos em Mogtincia: isto nao gera nenhuma reunito carnavalesea, quando muito flamulas sem fim. Util seria uma fantasia: imaginar 0 que aconteceria se o festejado aparecesse em pessoa entre os contem- pordneos... Nao sao tristes essas festas nas quais os convidados esperam secretamente que 0 comemorado possa ser impedido de vir, pois aqne- les que se reportam a cle acabariam ficando envergonhados caso ele apatecesse? Como é que nos encontrarfamos diante do olhar penetran- temente humano do fildsofo? Quem setia capaz de dara Kant uma visio panorimica da hist6ria a partir de 1795, ano no qual o filésofo tinha publicado 0 seu escrito A paz perpémad: Quem teria nervos para informé-lo sobre o estado do Esclare- cimento — a saida do homem da “menoridade por sua propria culpa’? Quem seria suficientemente frivolo para lhe explicar as teses marxistas de Feuerbach? Imagino que o bom humor de Kant nos ajudatia a sair da patalisia. Mal ou bem, cle era um homem do século XVIIL, um século no qual mesmo os racionalistas ndo eram to rigidos quanto os que o séo hoje se fazem passar por descontraidos. Quase ninguém se ocupou com Kant sem tocar no enigma de sua fisionomia. Com a regra de ouro romana mens sana in corpore sano, nao se compreende sua apaténcia. Se ¢ pertinente dizer que 0 “espirito” procura o corpo adequado, entio no caso de Kant o espirivo precisa ter sido um es- pitite que sabia encontrar prazer em ironias fisiondmicas ¢ em paradoxos psicossomdticos — um espirito que, em um pequeno corpo seco, inseriu Presicio uma grande alma, sob costas curvadas, um caminhar ereto, ¢ em um animo hipocondriacamente compulsiyo, um humor sociével, tranquilo e cordial, como se feito para ser esfregado no nariz dos posteriores venera- dotes do vital e do atlético. O enigma fisiondmico de Kant s6 muito tangencialmente se desvenda em sua pessoa: ele se resolve melhor em sua posi¢ao histérico-espizitual ¢ histérivo-sensfvel. A era do Esclarecimento impele a dialética pata frente, do entendimento ¢ a sensibilidade a0 dilaceramento. © rastro de tais wen- s6es atravessa a obra de Kant. Na linguagem de suas obras centrais aparece a violéncia, que @ processo de pensamento, sobretudo em uma cabeza alein, inflige 20 senstvel. © fato de um poeta como Gottfried Benn, ele mesmo marcado pelo espirito do século da ciéncia natural ter podido reagir a tal violéncia, repreendendo o filésofo como um “estuprador do espitico”, mostra Como 0 cinismo modemo pode se colocar contra a grandeza de antigos s0- los ressonantes de intelecgses pertinentes, ou seja, de um conhecimenta que aponta para a relacio notoriamente partida entre intelecto e sensibilidade, Robert Musil, seguramente uma garantia de racionalidade mesmo para além dos limites nos quais a racionalidade se sente segura, reveve a vivéncia de uma leitura de Kant em um trecho digno de consideragio de seu O jouem Tarless, Torless tinha comprado para si logo pela manha a edicie de bolso da- qucle volume, que tinha visto com scu professor, e utilizou a primeira pausa para comecar a leitura, Mas diante de cantos parénteses © notas de pé de pagina, ndo entendia uma palavra, e quando seguia a frases cuidadosamente com 0s olhos, tucdo se passava como se uma velha mio ossuda girasse o seu cérebro em voltas de parafuso, para retird-lo de sua cabeca. Ao parar mais ou menos uma meia hora depois, esgotado, s6 tinha che- gado até a segunda pagina ¢ havia suor em sua testa. Em seguida, porém, cerrou os dentes ¢ leu ainda mais uma pégina, acé qne o intervalo chegou a0 fim. A noite, contudo, jé mio podia mais tocar no livro. Medo? ‘Nojo? — nao sabia direito. $6 uma coisa o afligia de modo arclentemente clara: 0 fato de o professor esse homem que nao parecia ser de nada, ter 0 livro completamente aberta em sua sala, como se se tratasse para ele de uma diversio discia, (pp. 84-85) A terna empiria desse esboco desperta a compreenstio para duas coisas: a fascinacao do livro ¢ a dor que ele inflige no sensive! jovem leitor. Um con- tate livre com 0 pensamento kantiano, como pensamento filoséfico puro ¢ 17 Critica pa RazAo cinica simples, nao porta em si o risco de expor a joven consciéncia a um envelhe- Cimento violento ¢ repentino? O que é eliminado da jovem vontade de sa- ber em uma filosofia que dé vertigens com os seus dsseos movimentos de aparafusagem? Aquilo que queemos saber é encontrado no fim superior do parafuso? Nao € provavel que na sua cabeca estejamos tao transtornados que nos daremos por satisfeitos com aquilo que, entio, acreditamos saber? gnificar 0 faco de homens, para os quais 0 pensamento kan- ? Eo quedeve tiano serve como um “divertimento diario”, parecerem “nao ser de nad: nenhum rastro na vida ea Significa que a filasofa néo deixa para trds ma tealidade efetiva é uma coisa ¢ a filosofia, iemediavelmenre outra? A partir do estilo do fildsofo intuimos figuras fisiondmicas, nas quais a razAo escondett aspeetos de sua esséncla, Ser “racional” significa se colocar em uma relacao particular, quase nunca feliz, com o sensivel, significa praticamente o seguinte: nao confie nos teus impulsos, no ouga 9 feu Corpo, aprenda a te controlares — comesando com a ma prépria sensibilidade. Todavia, intelecto e sensibilidade sto inseparaveis. A sudorese ce Torless depois de duas paginas da Critica da razio pura contém tanta ‘Sé racional” verdade quanto todo o kantismo, E a concebida atuacio de physi: e lags, um sobre 0 outro, que é filosofia, n5o 0 que € falado. No futuro, sé um f- sionomista poder ser um filésofo que néo mente. Un pensar fisiondmico oferece uma oportunidade para a evasio do tcino das cabecas cindidas e, Por isso, ms, Anunciar uma nova critica da razdo pura significa também Pensar em uma fisionimica filoséficas mas isso nao é 0 mesmo que temos em Adorno, nao é 0 mesmo que aparece na Teoria estésica, cla é antes uma teoria de uma consciéncia com pele ¢ cabelos (e dentes). Do modo como as coisas estéo, nao hé nenbuma razio para ui blics escrito que, por sua ocasio, por simpatia pelo autor, seja capaz de abrir um 2 pus to comemorativa. Ao contrario, hd aintes ensejo para uma festa por arco, “Nao quero dizer como as coisas estio./ Quero te mostrar como a coisa esti.” (Erich Kastner) A razdo Seo desconforto na cultura é aquile que estimula a critica, entio ne- nhum tempo seria t20 apropriado para a critica quanto o nosso. Todavie, 18 nunca foi tao forte a tendéncia do impulso critico para se deixar tomar Prericio pesadas indisposicées. A tensio entre aquele que quer “criticar” ¢ lo que teria de ser criticado é to excessiva, que nosso pensamento xorna cem veres mais rabugento do que seria preciso, Nenhuma fa- lade de pensamento mantém 9 passo com 0 elemento problematico. isso, a autorrenincia da critica. Na in renga em relacio a todos os blemas reside o derradeiro pressentimento de como seria estar a altura les. Como tudo se tornou problemético, tudo se mostra por toda parte © indiferente. E preciso seguir esse rastto. Ele conduz para onde se ic falar de cinismo ¢ de “razao cinica”, Falar de cinismo significa expor um escindalo espiritual, um es ndalo moral a critica; articuladas a isso, as condigées de possibilidade escandaloso sao desenroladas. A “critica” realiza um movimento que, inicio, descartega seu interesse positivo e negativo sobre a coisa mesma, fim de se deparar, por fim, com estruturas clementares da consciéncia ral, que ganham vor “para além de bem e mal”, O tempo é cinico em ‘todos os fins: é caracteristico do tempo desenvolver o nexo entre cinismo ‘erealisino a partir das bases. O que tinha em vista Oscar Wilde, ao afir- ‘mar de modo esnobe: “Nao sou de maneira alguma cinico, s6 fago uma ‘experiéncia — isto é praticamente o mesmo”? Ou Anton Tehekhov, que declarou 0 sombrio como sendo o que ha de melhor: “Nenhum cinismo & capaz de ultrapassar a vida"? No curso das reflexdes, a ambiguidade do conceito de critica se resolve; em um primeiro momento, critica significa realizar juizos e fundamenté-los, julgas, condenar; em seguida: levar a temo uma investigagio das bases das formasées judlicativas. No entanto, caso se esteja falando da “razéo” cinica, ‘entio essa frmula se coloca de inicio totalmente sob a protesao da iron O que uma critica ainda pode realizar? O que ela ainda tem a fazer em fempos tio cansados da teoria? Escutemos primeiro a resposta de Walter Benjamin: Loucos, que lastimam a decadéncia da eritica, Pois sua hora jé passou hi muito tempo. Critica ¢ uma coisa propria ao distanciamento correto. Ela se acha em casa em um mundo no qual se depende de perspectivas ¢ prospectos € onde ainda era possivel assumir um ponto de vista. As coisas, entretanto, atacaram de maneira por demais ardente a sociedade humana, A “isencio” © “Visio livre” sie mentiras, se € que elas néo se tornaram a expressio to- talmente ingénua de uma incomperéncia cha... (Finbuhnstrasse [Via de mio sinica|, 1928/1969, p. 95). 19 Crfrica Da RazA0 cintca Em um sistema que se sente como uma coisa intermediatia entre Prisao ¢ caos, nao hé nenhum ponto de vista de descriggo, nenhuma pers- pectiva central de uma critica concludente. No mundo poliperspectivamente partido, de fato as “grandes visa- aos espiritos simples, nao aos esclare- das” pertencem em seu todo m: sidos, educados pelo dado. Nenhum aconrecimento so dé sem 0 efeito de destruir o pensamento do ponto de vista e sem dissolver morais pers- pectivistas convencionais: psicologicamente, isso implica a disperséo do cu — lireréria ¢ filosoficamente, a decadéncia da critica. Ora, mas como se explica a contradigao de que a mais importante critica a0 Renascimento feita no século XX se ligue ao nome de Walter Benjamin, um pensador que, por um lado, expds de maneira concludente que a hora da critica passou, e, por outro lado, participou com estimulos inabarcavelmente amplos da escola da Teoria Critica? E impossivel, cle tgs diz, assumir um “ponto de vista”, porque as coisas agora nos acossam. A partic do pono de vista da auséncia de pontos de vista, porém, algo que precisaria ser determinado de maneira mais detida, a critica progre- diu ¢ ganhou formas maximamente impressionantes. A partir de onde, portanto, ela fala? Com. que perspectivas? Em nome de quem? Acho que a Teoria Critica encontrou um eu provisério para a critica € um “local”, que confere suas perspectivas de uma critica verdadeiramente decisiva — um local com o qual a teoria do conhecimento tradicional no conta. Gostaria de denomins-lo 0 a priori da dor. Essa nao éa base de uma nobre critica distanciada, que chega a grandes visdes panorimicas, ‘mas uma postura de uma proximidade extrema — a micrologia. Seas coisas nos acosyam de maneira ardente, precisa suzgir uma critica que dé expresséo ao arder, Nao se trata aqui de uma questao de distancia correta, mas de proximidade correra. O sucesso da palavra “consternacao” cresceu a partir desse solo; ela ¢ a semente da Teoria Critica, que ganha hoje novas formas, mesmo entre pessoas que quase ndo ouviram nada sobre ela, Junto aos “perplexos”: nfo seria estimulante experimentar onde eles encontram seu padrio ctitico? De resto, no mancirismo da “perplexi- dade” rexornam também as falhas da fonte esquecida. Como a soberania das cabecas é sempre uma soberania falsa, a nova crftica se prepara para meter-se de cabega em todo o corpo, O Esclareci- mento quer ir de cima a baixo — em termos biopoliticos tanto quanto psicossomdticos. Descobrir © corpo vive como um corpo que sente 0 PReFACTO smundo significa assegurar para 0 conhecimento filosofico do mundo uma Base realista, Foi isso que a Teoria Critica tinha comegado a fazer, de ma- ncira hesitante, frequentemente ciftada ¢ de modo esretizante, escondida em todo tipo de situacées espinhosas. A Teoria Critica baseava-se na pressuposigao de que, em meio 3 “dor do mundo”, sabemos a priori algo sobre esse mundo. O que percebemos dele ordena-se em um sistema de coordenadas psicossométicas de dor © prazer. A critica é posstvel, na medida em que a dot nos diz 0 que é ‘verdadeiro e falso”, Nesse caso, a Teoria Critica levanta a pressuposicéo tanto agora como antes “elitista” de uma sensibilidade nao destruida, Isso caracteriza sua forga e sua fraqueza; é 0 que fundamenta sua verdade ¢ limita seu campo de validade. De fato, é preciso trazer a tona tal sentido elitista. Contra sua vontade, ele se aproxima da toxina da normalidade em um pais de cabegas-duras ¢ almas encouracadas. Nao se pode tentar convencer certos adversérios; hd uma universalidade da “verdad”, que se mostra como um alibi da auséncia de comprecnsio; onde a capacidade da razéo no se funda em uma automedivaco sensivel, onde nenhuma argumentardo baseada na teoria da comunicacio, por mais sélida que ela Seja, conseguird trazer a verdade dialogicamente & tona. Nesse ponto “sensivel”, a Teoria Critica se defrontou antes de tudo com os légicos dentre seus adversdtios. Com certeza, hd pensadores cujas cabecas sao tao enérgicas, Cujas estruturas nervosas sio tio enrijecidas, que todo o prin vel para eles. Teoria “sensivel” é algo suspeito. De faro, scus fundadores, Adorno em primeira linha, tinham um conceito exclusivamente restrito io da Teoria Critica precisa se mostrar como deplora- do sensfvel: a pressuposi¢ao nunca racionalizavel de uma ititabilidade psiquica extrema ¢ de uma instrugéio estética; sua estérica caminhava no limiar da nausea em relagéo a tudo ¢ a cada coisa, Quase nada do que ecorria no mundo “pratico” ficava sem Ihe causar dor ¢ quase nada era poupade da suspeita de brutalidade. Para ela, tudo escava de algum modo encadcado & “Vida falsa”, por uma relagio de cumplicidade, na qual “nao havia nada certo". Fla desconfiava sobretudo daquilo que tinha a apa- éncia de prazer ¢ se assemelhava a um acordo, entendido como engodo, recaida ¢ “falso” relaxamento. Em particular na pessoa de Adorno, era inevitdvel se comecar a pressentir 0 rastro da reacdo de scus excessos. Acncarnacao da razio, quea Teoria Crftica tinha trabalhado previamente _ com uma sensibilidade extrema, nao pode se deter nos limites em que cla havia sido encerrada pelos seus iniciadores. Os fatos de hoje em dia Critica pa nazdo cinica mostram quantos rostos podem acolher a critica a partir de uma vitali- dade corporal. Adorno estd entre os pionciros de uma critica renovada do conhe- cimento, que conta com um @ priori emocional. Em sua teoria atuam temas dotados de um espitito criptobudista. Quem sofre sem se enrijecer quem pode ouvir musica se vé claramente em alguns se- compreender: gundos projetado para 0 interior do outro lado do mundo. A certeza de © real estar efetivamente escrito com a pena da dor, da frieza e da rigidex marcou o acesso dessa flosofia ae mundo. Em verdade, ela néo acreditava senéo muito pouco na mudanga para melhor, mas nao cedia 4 centagao dese emborar e de se habituar com 0 dado. Permanecer sensivel era uma Postura por assim dizer urdpica: manter agugados os sentidos para uma felicidade que no vird, mas 4 qual nos mantemos de prontidio, nos pro- tege dos recrudescimentos mais malévolo: Em termos politicos ¢ nervosos, a teoria estética, a teotia “sensivel”, se funda em uma atitude de censura oriunda de uma mescla de sofri- mento, desprezo ¢ fiiria em relacao a tudo o que tem poder, Ela se estiliza ¢ se transforma no espelho do mal do mundo, da frieza burguesa, do Princfpio do dominio, do negdcio sujo ¢ de sua motivagéo pelo lucro. Edo mundo do masculino que ela se recusa a participar categoricamente, Inspira-se em um nde arcaico a0 mundo dos pais, dos legisladores e dos homens de negécios. Seu preconceito diz que, desse mundo, sé poderia surgir um poder mau contra o vivente. E aqui se funda a estagnagao da Teoria Critica, O efeito ofensivo da recusa se esgovou hé muito tempo, O clemento masoquista suplancou 0 clemento criativo. Q impulso da Teo- tia Critica amadurece ¢ se torna capaz de explodir os parénteses do ne- gativismo, Por sua vez, ela encontran seus adeptos entre aqueles que a tinham acompanhado em seu a priori da dot. Néo obstante, em uma ge- ra¢do que comecou a descobrir 0 que seus pais tinham feico ou tolerado, havia muitos desses adeptos. Como eles cram muitos, houve de novo na Alemanha a partir da metade dos anos de 1960 um fio fino de uma cul- tura politica — uma contenda ptiblica sabre a vida justa. Aressurreicao do grande impulso depende de uma automeditacao por parte da inteligéncia inspirada um dia por ela, Na critica sensivel € preciso denominar um ressentimento paralisante. A recusa se nutre de uma fiiria origindria contra a “masculinidade”, contra aquele sentido cinico para os fatos, que os positivistas, tanto os politicos quanto os cientifices, mani- 22 festam. A teoria de Adorno revoltou-se contra os tracos colaboracionistas Preeicio que estavam presos.’ “aticude pritica”. A partir das artes do equilibsio conceitual, procurou constrnir um saber que no fosse poder. Buscou re- fUgio no reino das macs, junto as artes € As nostalgias cifradas. “Proibigéo as imagens” — nfo pisar com a planta do pé. O pensamento defensivo caracteriza seu estilo — a tenrariva de defender uma reserva, onde as Jembrangas da felicidade estéo ligadas exclusivamente a uma utopia do inino. Em um escrito antigo, certa vez, Adorno revelou quase sem brimento o seu segredo tedrico-cognitivo-emocional. Em algumas as de rasgar o coragao, ele se exprimiu em relagéo ao choro com a mi- de Schubert, dizendo como lagrima ¢ conhecimento se encontravam conexao. Temos em vista com essa miisica, uma vez que nao somos © cla, algo perfeito, que se volta para a dogura perdida da vida, tal © uma Citagao distante. A felicidade precisa ser sempre pensada como algo perdido, apenas como a bel estrangeiva, Ela ndo pode ser mais do que um pressentimento, para o qual nos arremetemos com Ldgrimas nos olhos sem nos aproximar- mos. Todo o resto pertence de um modo ou de outro a “vida falsa”, O que _domina € 0 mundo dos pais, que sempre cstio terrivelmente de acordo om 0 granito das abstragdes, um granito assencado e transformado cm sistema. Fm Adomo, a negagao do masculino chegava a tal ponto que ele so manteve uma letra do nome do pai: W. O caminho para o Wiesengrund [para o fundo do campo), porém, nio precisa ser justamente um caminho da floresta.? Desde a dissolugdo do movimento estudantil vivenciamos uma mo- notonia da teoria, Ha, em verdade, mais erudigéo ¢ “nivel” do que nunca, amas as inspiragées séo surdas. © otimismo de “outrora’, segundo 0 qual 6s interesses vitais poderiam ser mediados por empenhos teérico-sociais, se extinguiu amplamente, Sem esses empenhos, repentinamente se mos- tra 0 quao entediante pode ser a sociologia, Para as fileiras do Esclarec mento, depois do fracasso do acionismo “de esquerda”, do terror e de sua muluiplicagéo no antiterror, o mundo vem girando em circulo. Ele tinha procurado possibilitar a todos um trabalho de luto em relagio A histétia alema ¢ acabou em melancolia. A critica parece ter se tornado ainda mais passagem acima com ¢ significado do nome paterno de Adorno cu conhecida hostilidade histérica entre Adorno e Heidegger. A palavra Wiesengrund significa literalmence 0 fiaeio ov 0 sola do campo. Nesse sentido, h& no nome ume imagem ligada 40 campo c florea, Por sus ver, Holeweg 60 titulo de uma das obras mais famosas de Heidegger: Cantinkos de floresa. (NTI 23 Critica ba nazo cinica impossivel do que Benjamin pensava. A “atmosfera” critica € interna- lizada em um pequene servigo de jardinagem, no qual se cultivam iris benjaminianas, flores do mal pasolinianas ¢ beladonas freudianas. A critica, em todo ¢ qualquer sentido da palavra, anima inteiramence dias turvos. Istompeu uma vez mais um tempo da critica is mascaras, no qual as posturas criticas foram subordinadas aos papéis profissionais. Cri- ticismo com uma responsabilidade restrita, balela sobre esclarecimento como fator de sucesso — uma postura no ponto de corte de noves con- formismos e de antigas ambigées. Jem Kurt Tuchalsky era possivel pres- sentir, “ourrora”, o vario de uma critica que procurava superacentuar sua propria desilusio. Tal postuza critica sabia que 0 sucesso estava longe de ser um efeito. Escrevia-se de maneira brilhante, mas isso nao ajudava em nada, ¢ é possivel auscultar tal fato a partir dai, Dessa experiéncia que se vornou quase universal se alimentam os cinismos latentes de esclarecedo- res atuais. Uma pitada de pimenta na critica adermecida sob as mascaras foi colocada por Pasolini, na medida em que ele a0 menos esbogou uma fan- tasia elucidariva: a fantasia de corsdrio — esctitos de picacas. O intelectual rio como corsdrio — eis aqui um sonho nada mau. Quase ainda néo nos vimos assim. Un homossextal deu 0 sinal contra a climinagao da critica. Andar por ai aos salros no cordame cultural tal como Douglas Fairbanks, com um sabre em punho, ora vencedor, ora vencido, incalculavelmente Tangado de um lado para o outro nos mares do mundo da alienacao so- cial. As pancadas séo dadas para todos os lados. Como a fantasia é amoral, cla cai moralmente como uma luva, Pontos de vista sélidos nao podem ser assumidos por piratas, uma ver que eles se encontram 2 meio caminho entre fronts alternantes. Talvez a imagem de Pasolini sobre a inteligencia corsiria possa nos levar a refletir sobre Brecht — tenho em vista aqui o Brecht jovem, mau, néo aquele que acreditou na necessidade de horas de aula na galera comunista. Digno de cumprimento no mito dos corsarios parece ser 0 elemento ofensive. Duvidosa seria apenas a ilusdo de que a inteligéncia teria seu fundamento na tixa enquanto tal. Na verdade, tanto quanto Adorno, Pasolini é um derrotado. E 0 4 priori da dor: o fato de as coisas mais simples da vida se mostrarem to pesadas para alguém — que abe criti- camente 0s sens olhos. Nao ha nenhuma grande critica sem um grande defeito, Aqueles dura e culturalmente feridos so os que enconcrain em gtandes empenhos algo capaz de produzir uma cura ¢ assim continuam Heine, A ferida Heine. Essa ndo ¢ nenhuma outra ferida sendo aquela que perfura toda critica significativa. Sob as grandes realizacoes criticas modernas ha feridas abertas por toda parte: a ferida Rousscan, a ferida Schelling, a ferida Heine, a ferida Marx, a ferida Kierkegaard, a feri- da Nietzsche, a ferida Spengler, a ferida Heidegger, a ferida ‘Theodor Lessing, a ferida Freud, a ferida Adorno. Da cura de si, levada a cabo por parte de grandes feridas, surgem crfticas, Estas servem as épocas como pontes de unificagio da experiéncia de si. Cada critica 6 um trabalho pioneiro na dor do tempo ¢ um pedago de uma cura exemplar. ‘Nao tenho a ambigaéo de ampliar este honroso hospital militar de teorias ctiticas. Ja ¢ tempo de uma nova critica dos temperamentos. Onde quer que o Esclarecimento apareca como uma “ciéncia triste”, ele estar fomentando, a despeito de sua vontade, o entorpecimento melancélico. Por isso, a critica da razio cinica promete mais um trabalho de diver- timento, no qual se enconera desde 0 principio decidido que ela nao € tanto um trabalho, mas muito mais um relaxamento do trabalho. A motivaséo Dever ter notado: hé um rastro de consideracdo exagerada na funda- mentagao para que ela possa ser totalmente verdadeira. Aceito a impressio de que se wrataria de uma tentativa de salvacio para o “Esclarecimento” € para a Teoria Critica; os paradoxos do método salvador cuidam para que essa no permanega como uma primeira impressio. Se parece de inicio que o Esclarecimento desembocaria na desilu- sao cinica, entao a pagina é logo virada ea investigagéo do cinismo se transforma na fundamentagao de uma boa auséncia de ilusdes. O B: clarecimento sempre significou de saida desilusio no sentido positive, ¢, quanto mais progride, tanto mais préximo se acha um instante no qual a razdo nos conclama a tentar uma afirmagao. Uma filosofia a partir do espirito do sim também inclui 0 sim ao ndo. Nao se trata nesse caso de nenhum positivismo efnico, de nenhuma atitude “afir- mativa”. © sim, que tenho em vista, nao é 0 sim de um vencido. Se se esconde nele algo da obediéncia, entao seria da nica obediéncia que podemios supor em relacao a homens esclarecidos, a obediéncia a uma experiéncia propria. Critica DA RazA0 cintca 26 A neurose europeia concebe a felicidacle como umaimeta ¢ empe- nho racional como caminho até ela. E preciso quebrar sua compulsio. E preciso dissolver 0 vicio critica do aprimoramento, ¢ isso em favor do bem, do qual nos désviamos to facilmente em longas marchas. De ‘mancira ironica, a meta do empenho maximamente critico é o deixar-se levar mais desprendido, Nao muito rempo antes da morte de Adorno, houve uma cena em um auditério da Universidade de Frankfurt que se ajusta como uma chave & anilise do cinismo aqui iniciada. O filésofo estava justamente em vias de comecar sua prelecéo, quando um grupo de manifestantes o impediu de subir a0 tablado. Algo desse género nio era incomum no ano de 1969. Nesse caso, porém, algo obrigou as pessoas a olharem mais atentamente, Entre os desordeiros se fizeram norar algumas estudantes que, em pro- testo, desnudaram seus seios diante do pensador. De um lado se achava # carne nua, que exercia uma “critica”, de outro o homem amargamente Gesiludido, sem que praticamente nenhum dos presentes tivewse experi- mentado 0 significado de critica — cinismo em aeéo. Nao foi a violéncia nua que cmusdeceu o filésofo, mas a violencia da nude.’ Justo injusto, verdadeiro e falbo foram misturados nessa cena de mancira inextrinca- vel, de uma maneira que ¢ pura ¢ simplesmente tipica para cinismos. O cinismo ousa se mostrar com verdades nuas, que mantém algo falso no modo como séo expostas, Onde encobrimentos séo constitutivos de uma cultura, onde a vida em sociedade esté submetida a uma compulsio & mentira, na efetiva emunciy. sao da verdade surge um momento agressivo, um desnudamento involun- tario, Todavia, 0 impulso ao desentranhamento é, 4 longo prazo, o mais forte. Em primeiro lugar, a nudez radical ¢ 0 desvelamento das coisas nos livram da compulséo Para 2 imputagéo desconfiada. Querer aceder “ver- dade nua” ¢ um tema da sensibilidade desesperada, que se dispde a rasgar o véu das convengées, mentiras, abstragées e discticdes a fim de chegar ds coi- sas mamas, Quero perseguit esse tema. Uma mistura de cinismo, sexismo, “objetividade” e psicologismo forma a atmosfera na superestrurura do Oci dente: uma atmosfera de creptisculo, boa para corujas ¢ para a filosofiz, ‘Com base em meus impulsos encontro wina adoracéo infantil poraquilo que se chamava em um sentido grego filosofia — do que de resto é con- Comitantemente culpada uma wadigéo familiar marcada pela veneracao. 3. Retotnatei a este ponto.na Quinta Consideraeao Previa. Com frequéncia minha avd, filha de um professor e oriunda de uma casa idealista, dizia de maneira orgulhosa € respeitosa para o nosso bem que tinha sido Kant que escrevera a Critica da razda pura e Schopenhauer, O mundo como vontadle e vepresentagao. E talvez houvesse mais no mundo de tais livros magicos, que nao se consegue ler, por serem dificeis demais, mas que se precisa admirar de fora como algo completamente grandioso. Néo hé nenhuma filosofia na qual a “velha mio ossuda” gire nosso cérebro voltas de parafuso, retirando-o de nossa cabeca? O sonho que sigo é 0 sonbo de vet uma vez mais Morescer a drvore moribunda da filosofia — em um florescimento sem desilusio, cobertz com bizarras flores de pensamento, vermelhas, azuis ¢ brancas, brilhando nas cores do inicio, cal como outrora na luz primeva grega — quando a theoria come- gou € quando, de modo incrivel e repentino como tudo o que é claro, 2 compreensio encontrou sua linguagem. Serd que somos realmente velhos demais em termos culturais para repetirmos tais experiéncias? © leitor esta convidado a tomar lugar por um momento sob essa dryore, que nfo pode existir propriamente. Prometo nao prometer nada, sobretudo nenhum noyo valor, A critica da razio cinica quer, para citar a caracterizacio dada por Heinrich Heine as comédias de Aristéfanes, seguir a “idcia profunda da aniquilagao do mundo”, sobre a qual se ba- seia a gaia ciéncia, “e que nela, como uma dtvore magica fantasticamente irénica, surja uma joia de pensamentos florescentes, ninhos de rouxinol cantante macacos trepadores”. (Os banhos de Lucca)* Munique, veréo de 1981 4, Heinrich Heine, Séamslicie Schvifien (Obras completas], Klaus Briegleb (org.), Munique, 1969, vol. Il, p. 466. Prericio PRIMEIRA PARTE Anilise: cinco consideracées prévias 1. Cinismo: crepdsculo da falsa consciéncia Os tempos sia dures, mas modernes, Provétbio italiano E nao se via mais ninguém por detrs de tudo. Todas as coisas giravam incestan- temente em iorno de si mesmuts. Os tnteressos mudavari a toda bora. Em parte alguna, objesive algum (...). Os guias perderam a cabega. Extawam exawridos no extrema e senis.. Cada ser humano no mundo comegava a perceber: ndo dé mais corto... O postergar do colapso ainda apontana um caminko.. Franz Jung; A conguista das méguinas, 1921 © mal-estar na cultura assumiu uma nova qualidade: cle aparece como um difuso cinismo universal. A critica 4 ideologia wadicional esta arénita diante dele. Ela nao vé na consciéncia cinicamente desperta um ponto de parrida para o esclarecimento. O cinismo moderno apresenta- -se como 0 estado de consciéncia que se segue as ideologias ingénuas ¢ a0 esclarecimento dessas ideologias. Nele, 0 esgotamento gritante da critica idcolégica tem a stia rarao de ser. Tal critica permaneceu mais ingéntia do que a consciéncia que ela quis desmascarar; em sua tacionalidade bem- -comportada, ela niio acompanhou as mudangas da consciéncia moderna rumo a um realismo muiltiplo ¢ refinado. A sequéncia de formas da falsa consciéncia até agora — mentira, erro, ideologia — est4 incompleta; a mentalidade atual forga 0 actéscimo de uma quarta estrutura — a do fenémeno cinico. Falar de cinismo significa tentar adentrar a antiga es- trucura da critica & ideologia por um novo acesso. Caracterizar © cinismo como fendmeno universal ¢ difuso atenta con- tra o uso da lingua; numa visao abrangente, o cinismo nao € difuso, mas marcante; ndo é universal, mas peculiar ¢ altamence individual. Os epitecos incomuns parafrasciam algo da nova compleicao do cinismo, que o faz 20 mesmo tempo controverso ¢ inatacavel. A Antiguidade conhece o cfnico (melhor: 0 Ayzikas) como um ex- céntrico aberrante ¢ como um provocative moralista currac. Didgenes no barril é visto como um patriarca do upo. Desde endo, ele figura ne livro ilustrado dos tipos sociais como trocista desagregador, como indi- vidualista mordaz ¢ ignébil, que declara néo precisar de ninguém ¢ que néo ¢ amado por ninguém, porque nio permite que se aproximem dele incélumes, sob seu crasso olhar desfagado, De acordo com sua origem 31 ANALIS#: CINCO CONSIDERAGOES PREVTAS $2 social, ele € uma figura urbana que mantém sua conduta na engrenagem da antiga metrdpole. Seria possivel referis-se a ele como a mais antiga manifestacao de inteligéncia desclassificada ou plebeia. Sua virada cinica contra a arrogincia e contra os segredos morais das instituicées da alta civilizagio pressupse a cidade, com seus sucessos e fracassos. Apenas na cidade, como imagem reversa, a compleicio do cinico pode cristalizar-se em toda a sua plenitude, sob a pressio do falatério publico ¢ do amor- dio gerais. E.s6 a cidade — embora 0 cinico, ostentativo, Ihe vire as cos- tas— pode acolhé-lo no grupo dos originais a quem ela devora a simpatia que nutre por individualidades urbanas ¢ sui generis, © solo moderno do cinismo encontra-se nao sé na cultura da cidade, mas também na esfera palaciana. As duas cunham um realismo maldoso, de onde os homens assimilam 0 sorriso obliquo da franca imoralidade. Tanto em uma quanto em ourra se acummula nas cabegas inteligentes ¢ desenvoltas um saber dis- tinto, que se movimenta de maneira clegante entre meros faros ¢ fachadas convencionais. Vindos bem debaixo, da inteligéncia urbana desclassifi- cada, ¢ bem de cima, do topo da consciéncia politica, sinais testemunham uma itonizagao radical da érica e da convencia social, como se, por assim dizer, demonstrassem que as leis comuns existern somente para os tolos € penetram o pensamento sério, enquanto nos lébios dos que sabem das coisas desponta aquele sorriso fatal e prudente. Mais precisament so 08 poderosos que sorriem assim, enquanto os plebeus Ayniko? fazem ouvir uma gargalhada satirica, No espaco amplo do saber cinico, os extremos se defrontam: Eulenspiegel encontra Richelicu; Maquiavel, o sobrinho de Rameaus 05 ruidosos condottieri da Renascenga, os cfnicos elegantes do rococé; empresdrios inescrupulosos, desiludidos abandonando o barco; estrategistas de sistema escaldados, renegados sem ideal. Desde que @ sociedade burguesa comecou a estabelecer a ponte en- tre 0 saber de cima € o aqui debaixo, anunciou a ambigao de erigir a sua imagem de mundo toralmenre com base no realismo, os extremos fundiram-se um no outro. Hoje, 0 cinico apresenta-se como um tipo das massas: um carter social mediocre na superestrutura clevada. Fle é 6 tipo vulgar — nao s6 porque a civilizagao industrial avangada produz o soli- tatio amargurado como fendmeno de massa, Pelo contririo, as proprias cidades grandes tornaram-se borras difusas, cuja forca para criar figuras publicas universalmente aceitas se perdeu. A pressio por individualizacio diminuiu na atmosfera da cidade grande ¢ na midia, Assim, 0 cinico mo- derno — como ha na Alemanha em grande quantidade, principalmente 1. CINIsMo: CREPUSCULO DA FALSA CONSCIENCIA desde a Péimeira Guerta Mundial — nfo fica mais & margem. Ele defi- nitivamiente ago entra em cena como um tipo plasticamente evoluido. O cinioo'de massa moderno perde o impeto individual ¢ poupa-se do risco de evidenciar-se. Ha muito renunciou a expor-se & atengio € ao - O homem com o “olhar escimniio allkcio para provar sua originalidad mau” € dlro desaparcce na multidio; apenas 0 anonimato torna-s¢ 0 grande egpaco do descaminho cinico. O cinico moderno é um associal incegrados péreo para qualquer hippie na falta de ilus6es subconscientes. A cle petiprio, scu olhar mau e claro néo surge como defeito pessoal ou como mania amoral a ser justificada por ele mesmo. Instintivamente, cle compesende seu modo de existir ndo mais como algo que tem a ver com sermau, mas enquanto participe de uma maneira de ver, coletiva € realisticamente conformada. Fssa é a forma corente por meio da qual as pessoas esclarecidas nao se veem como aquelas que continuam sendo tolas. Parese mesmo haver algo de saudavel nisso — exatamente em favor disso fala wontade de autoconservacéo. Trata-se da postura daqueles que se conscientizaram que os tempos da vaidade se foram. Psicologicamente, o cinico do presente deixa-se compreender como um casellimite de melancolia, que mantém seus sintomas depressivos sob controle, em ccrta medida, pode permanecer apto para o trabalho. Sim, ¢ isso que importa ao cinismo moderno: a capacidade de trabalho de seus Tepresemtantes — apesar de tudo, ¢ mesmo depois de tudo. H4 muito os postos-chave da sociedade pertencem ao cinismo difuso, em direcorias, parlamentos, conselhos, geréncias, leitorados, consultérios, faculdades, chancelatias e redacoes. Certa amargura refinada acompanha seu agir. Pois cimicos nao séo bobos, e olham simplesmente para o nada ¢ nova- mente para@ nada a que tudo conduz, Entretanco, seu aparato psiquico suficientemente elastico para integrar em si, como fator de sobrevivencia, a diivida perene aceica da propria atividade. Sabem o que fazem, mas 0 fazem porque as ramificagoes objetivas ¢ os impulsos de autoconservacio @ curto prazo falam a mesma lingua e lhes dizem que, se assim é, assim deveria ser. Dizem-thes também que, de qualquer maneira, ainda que eles no 0 fizessem, outros o fariam, talvez pior. Desse modo, 0 novo cinismo inregrado tem frequentemente o sentimento compreensivel de ser vitima ¢ fazer sacrificios. Sob a fachada dura desse jogo Arduo, ele facilmente leva muitos a inforttinios nocivos ¢ as lagrimas. Nisso ha algo de tristeza acerca de uma “inocéncia perdida” — a tristeza de um saber melhor, contra 0 qual todo agir ¢ todo trabalho estéo direcionados. 33 ANALISE: CINCO CONSIDERAGOFS PREVias a4 Isso resulta em nossa primeira definigdo: cinismo é a fala consciéncia exclarecida.' Ble & a consciéncia infeliz modernizada, da qual o Esclareci- mento s¢ ocupa ao mesmo tempo com éxito © em vio. Ele aprendeu sua licte sobte 0 Esclarecimento, mas néo a consumou, nem a pode consi mar. Ao mesmo tempo bem instituida ¢ miseravel, essa consciéncia nao se sente mais aturdida por nenhuma critica ideoldgica; sua falsidade jé esta reflexivamente conformada. “Falsa consciéncia esclarecida’: escolher tal formulacio significa apa- rentemente desfetir um golpe contra. tradigio do Esclarecimento. A frase snesma € um cinismo em estado cristalino. Contudo, cla manifesta uma pretensao objetiva de validacgo; 0 ensaio em questio desenvolve o teor dessa pretensio e sua necessidace. E légico que se trata de um paradoxo, pois como é que uma consciéncia esclarecida poderia ser ao mesmo tempo falsa? Agir contra 0 “saber melhor” € hoje a relacéo superestrutural em nivel global: tal agir sabe-se sem ilusées ¢, apesar disso, depreciado pelo “poder ! disso que se «rata aqui. das coisas”. Assim, © que na légica é comado como paradoxo ¢ na literatura com chiste surge, na realidade, como um estado de coisas, Isso constitui ‘um novo posicionamento da consciéncia diante da “objetividade”. “Falsa consciéncia esclarecida’: essa férmula ndo se quer episé- dice, mas um ponto de partida sistemético, come modelo diagnds- tico. Assim, cla se obriga a revisar o Esclarecimento; deve demonscrar claramente sua relacéo com o que a tradigao chama de “falsa consci- éncia”; mais ainda, deve reconsiderar a trajetéria do Esclarecimento € 6 trabalho da critica ideolégica om cujo decurso foi possivel que a “falsa conscigncia” absorvesse o Esclarecimento. Tivesse 0 ensaio um Propdsito histérico, este seria o de descrever a modernizacao da falsa consciéncia, Mas 0 propdsito da apresentagio como um todo nao é histérico, mas fisionémico: trata-se da estrutura de uma falsa consci éncia reflexivamente suprimida. Entretanto, gostaria de salientar que a cstrutura ndo € assimildvel sem situd-la em uma histéria politica de reflex6es contenciosas. Sem sarcasino, nos dias de hoje nao pode haver relagao saudavel en- tre o Esclarecimento ¢ sua propria histéria. $6 temos a escolha entre um spensio" desta definigse enconten-sena Quinea Consideragio Prévias segunda, A primeira ‘na Segio Principal Fenomenolégica 2 Ver os Seis Cinismos Cardinais da Se¢éo Principal Fenomenoléoica 1, CintsMo: CREPUSCULO DA FALSA CONSCIENCIA essimismo “Iealmente” vinculado as origens, que lembra a decadéncia, uma falta de respeito serena na continuagao das tarefas primordiais. Diante disso, s6 ma infidelidade resta fidelidade ao Esclarecimento. Em , isso se explica pela postura dos herdeiros que se voltam aos tem- s “heroicos” ¢ mantémi-se necessariamente mais céticos diante dos re- ados. No ser-herdeiro hé sempre certo “cinismo postural” — tipico histérias de heranga dos capitais de familia. Claro que essa postura re- ospectiva nao esclarece por si s6 o tom singular do cinismo moderno. o Esclarecimento, a decepgio nao é de forma alguma apenas um sinal que 0s epigonos podem, e devem, ser mais criticos que os fundadores. D rango caracteristico do cinismo modermo é de natureza essencial — uma igi da consciéncia que padece de esclarecimento ¢ que, instruida pela periéncia histérica, nao admite otimismos baratas. Novos valores? Nao, os. No cinismo novo coopera uma negatividade aclarada que quase no nu- esperancas por si mesma, quando muito um pouco de ironia e compaixio. Em ultima instancia, rrata-se dos limites sociais ¢ existenciais do Es- clarecimento. Imposigées da sobrevivéncia e desejos de autoafirmagéo Iharam a consciéncia esclarccida. Ela padece da imposigao de aceitar ces previamente dadas, das quais desconfia, de ter que se adaptar 2 ¢, por fim, até mesmo resolver seus negdcios. Para sobreviver, deve-se ir para a escola da realidade. Por certo. A lin- agem dos que tém as melhores inteng6es chama isso de tomnar-se adult. E hi nisso algo de verdadeiro, Mas néo é tudo. Sempre um tanto inquieta irascfvel, a consciéncia participe olha ao redor a procura de ingenuida- es perdidas, para as quais nao ha mais retorno, porque conscientizagées Sao irreversiveis. Foi certamente Gottfried Benn, ele mesmo um dos mais proeminen- ses porta-vozes da estrutura moderna do cinismo, que forneceu a esse ‘mesmo cinismo a formulagao do século, inequivoca e desavergonhada: “Ser colo ¢ ter trabalho: isso € a felicidade.” A inversio do sentido da frase ‘apenas demonstra seu contetido pleno: ser inteligente e, todavia, realizar seu trabalho — cis ai a consciéncia infeliz em sua forma modernizada, ometida de esclarecimento. A consciéncia nao pode tomar a ser “tola” ‘einggnua — inocencia ndo se restabelece. A consciéncia apega-se & fé na forca de coesio entre as relagdes as quais se vé atrelada por sen instinto de autoconservacio. Se assim fos, que seja. Com um saldrio Ifquido de dois mil marcos por més, comesa silencioso 0 Contra-Esclarecimentos ele 35 ALISE: CINCO CONSIDERACGES Prévias aposta que cada um que tenha algo a perder arranje-se Por conta propria com sua consciéncia infeliz ou a encubra com “atividades engajadas”, O cinismo novo nao se faz mais perceptivel de maneira gritante como Conviria ao seu conceito;¢ precisamente porque ¢ vivido sob uma compleicao Privacla que absorve ¢ assimila a situagio do mundo. Ele se cetca de discrigao ~ uma palavra-chave para a alienagio charmosamente mediada, com logo veremos.’ O ato de conformar-se ciente de si mesmo, que sactificou o melhor conhecimento as “imposigées”, ndo vé mais raxio em despojar-se de mancira ofensiva e espetacular. Hi uma nudez que ndo mais desmascara, ¢ na qual 0 jécexistente tem algo despido. Por isso, também nao é muito ficil, do ponto de vista metédico, fazer manifestar-seo cint mo difuso © de perfil vago. Ele se tecolheu em um aclaramento (Abgekdliribeif) acabru- nado, que internaliza como macula saber de que dispdee que nao se presta mss @ araque algum. As grandes manifestagées ofensivas do attevimente oie nico tornaram.-se raras; em seu. lugar, surgiram desavencas ¢ falta energia para © sarcasmo. Gchlen considera que hoje nem mesmo os ingleses podem ser mordazes, porque as reservas de insatisfacdo teriam se esgotado, ¢ 0 valet-se das provisos, comecado, © mau humor, que vem apés as ofensivas, nada acrescenta ao Fselarecimento, sta € uma das ra76es pelas quais, na Segunda Parte deste livto, ha certo GSH Re emprego de “material cinico” da Replica de Weimar — con. siderando, em todo caso, que documentos mais antigos também estio em Guestio. Na Segao Principal Histérica, denominada “O sintoma de Weimar”, Procuro delincar una fsionomia de época, Trata-se da carcterstca de um, “#éncia social de si mesmo. Pelas razées dadas, a Repiiblica de Weve Cho Segundo Desmascaramento, « Critica da Tasso Religioss 1. Cinusmo: crEPtiscuto DA FALsa CONscIENCIA Uma critica da razéo c{nica permaneceria um jogo de micangas aca- démico caso nao buscasse uma relacéo entre 6 problema da sobrevivéncia € 0 perigo do fascismo, De fato, a questao da “sobrevivéncia”, da auto conservacao ¢ da autoafirmacao, com vistas 4 qual todo cinismo esboca Fespostas, tocz o Amago do problema das garantizs de subsisténcia « de planejamento futuro em nagées modernas. Em. varias investidas tento confluem dinimicas tipi de medo de desagregacao psicoculcural ¢ de fii com uma venerével corrente de cinismo solda mio, € especialmente em solo prussiano, bra quanto fortemente arcaigada, CaO tegressiva, eza racional neo-objetiva idesco, que, em solo ale- Possui uma tradicao tio maca- Halves tais consideragées sobre o cinismo enquanto quarta figura da falsa consciéncia ajudem a superar a perplexidade peculiar & crftica Genuinameate filoséfica a respeito da assim chamada ideologia fa A filosofia como “disciplina” nao possul tese propria sobte © “fas ‘eérico”, porque esse fascismo Ihe parece na verdade abaivo de qu stitica. As explicagdes do fascismo como nilismo (Rauschning entre ou- fF05) ou como produto do “pensar totaltétio” permanccem dilatadas e immprecisas. Salientou-se suficientemente 0 cariter “impréptio”, irrefle- tido e desordenado da ideologia fiscista, ¢ mdo 0 que ela quis “defender” scista, scismo alquer como ideologia substancial a ser tomada a tica detida realmente devesse extenuar-se. critica, Bla se detém sobre adversérios sé o objetivo de formular o modelo ideolé anos”. Por isso, até hoje, a crit ide cinismo ¢ opiniao, Porém sétio, com a qual uma cri- Mas ai esté 0 ponto fraco — Tids e, nessa aticude, desvia-se gico de “sistemas” vagos ¢ “le- ica nao esti & altura da miscura moderna retratacio da moral. Eu a chamo de I6gica da “ , at0 de se autodesmentis, proprio & étca da alta cultura, Seu aclatemeren er aquilo que se quer viver, 37 2. Esclarecimento como didlogo — Critica a ideologia como prosseguimento do didlogo fracassado por outros meios Quem fala de cinismo faz-nos lembrar dos limites do Esclarecimento. Nesse aspecto, lidar com os focos do cinismo de Weimar, abstraindo-se do privilégio da clareza e da distincio, pode ser algo rico em perspectivas Mesig em termos histérico-filoséficos, A. Republica de Weimar nao se encontra no curso da histéria alema apenas come produto do desenvol- vimento de um Estado nacional retardado, pesadamente sobrecarregado pela heranga guithermina, ou seja, pelo espirito de um siscema priblico cinicamente nao liberal, mas também como exemplo de um “Esclareci- mento fracassado”. Expés-se frequentemente que € por que os pré-combatentes de um Esclatecimento republicano aquela época nunca pudcram ser outra coisa senao uma minoria desesperadamence benevolente de representantes da ra- ao ante forgas contrérias quase invenciyeis: correntes mmacicas de um Con- tra-Fsclarecimento ¢ de um édio & inteligéncia; uma falange de ideologias antidemocriticas auroritarias, que sabiam se organizar de maneira eficaz em termos publicistas; um nacionalismo agressivo com tragos de luxtiria vingativa; uma confusio insoliive! de conservadorismos de cabega dura, pequeno-burgueses descuidados, pequenas religioes messianicas. direcdes Politicas apocalipricas e, desse modo, de recusas tanto realistas quanto psi- cossomaticas ei relagao 4s suposicées de uma modernidade desagradavel, As feridas da Primeira Guerra Mundial contagiaram cada vex mais a crise intumescente; © niewschianismo continuava pululando, como um estilo de pensamento maximamente marcado pelo mau humor teuto-narcisista e pela ligagéo de vencta, arrogante, “protestante” com a “pérfida realidade”. No clima de excitagSes em crise formott-se uma oscilagio psicoldgica pe- Aetrante entre medo do futuro e ressentimento, entre pseudorrealismos frigeis e condicées psiquicas provisérias. Se ha uma época que exige tima Psicopatologia histéica, essa época inclui os quinze anos entre a queda do Tmpério ¢ 0 estabelecimento do nacional-socialismo, ‘ssatiamente razio: quem pre- esclarecimento nesta sociedade cncontrava-se em eis razGes, as forcas do Escl 2. ESCLARECIMENTO COMO DIALOGO com os meios de comunicacao de massa, ¢ a maiotidade nunca foi um ideal do monopélio industrial ¢ de suas associagées. Também, como poderia ser? Evidencemente, o Esclarecimento foi quebrado pela tesisténcia de 0 apenas como uma poderes opostos. Seria falso, porém, considerar questao de aritmética do poder. Pois cal aritmética, simuleaneamente, se quebra junto 2 uma resisténcia qualitativa presente na consciéncia adversdria, Essa consciéncia reage irada ao convite para a discussio, 4 conversa “analitica” sobre a verdade; para 0 proprio discurso jé vige afirmacao tradicionais sio colocados em jogo. A interpretagio dessa resistencia como fundamento ideolégico tornou-se um tema central do Esclarecimento. 40 é apenas na modernidade que o Esclarecimento passa a ter algo em comum com uma consciéncia hostil, entrincheirada em posigées firme- . o ressentimento, pois nesse caso as visdes, valores ¢ formas da auto- , mente esclarecidas, Em princfpio, o front pode ser perseguido retroativa- mente até 0s dias da Inquisigfo. Se € verdade que saber poder, tal como nos ensinou o movimento dos trabalhadores, entéo também é verdadeiro que nem todo saber é saudado com boas-vindas. Como nao hd em parte alguma vetdades das quais possamos nos apossar sem luta € como todo co- nhecimento tem de escolher o seu lugar na estrutura de poderes hegemdni- cos ¢ de contraporéncias, os meios de ctiar validade para os conhecimentos parecem ser quase mais importantes do que os prprios conhecimentos. Na modernidade, o Esclarecimento se mostra como uum complexo titico. “Acexigéncia de que seja possivel uma universalizagao do racional o atrai para . da pedagogia, da propaganda. Com isso, 0 Esclareci- a esteira da politi mento reprime conscientemente o realismo cru de doutrinas mais antigas sobre a sabedoria, para as quais no estava fora de questo a massa ser tola clitismo moderno precisa se ciftar € a razio ser apenas para poucos. U democraricamente. Nao é nossa tarefa aqui desenrolar historicamente o obscurecimen- to do Esclarecimento. Sabemos que cle encontrou uma forma de, ape- sar de intimeras resisténcias e contradigSes, com vistas 4s suas proprias izagoes € planos, lidar de mancira preponderantemente produtiva m os obsticulos, aspirando scmpre seguir em frente, mutrido do fer- to da duivida de si. Por mais intensas que fossem as calcificagées © reveses do desenvolvimento, ele pode de qualquer modo actedi- que tinha a lei do progresso ao seu lado. Grandes nomes do tempo ANALIS#: CINCO CoNsTDERAGOES PREVIAS 40 testemunham grandes conquistas: Watt, Pasteus, Koch, Siemens. Pode- se tecusar suas sealizagées de maneira rabugenta. Isso seria um gesto oriundo do estado de humor, néo da justica. A imprensa, o trem, 0 auxt- lio social, a penicilin: ges esta no “jardim do humano”. De qualquer modo, porém, desde as atrocidades técnicas do século XX, de Verdun aos gulags, de Auschwitz quem poderia contestar que essas notiveis inova- a Hiroshima, a experiéncia escarnece de todos os otimistas. Conscién- cia hisc6tica e pessimismo parecem desembocar no mesmo ponto. E as catdstrofes, que nao aconteceram e que crepitam sobre suas bases, ali- mentam as dtividas onipresentes da civilizagéo. O final do século XX nos impele sobre a onda de um fururismo negativo. “JA se contou com o pior”, ele “sé” precisa agora acontecer, Gostaria de restringit a principio o tema do Esclarecimento insatis- feito a um ponto: a questéo acerca dos meios de poder do Esclarecimento em face de uma consciéncia adverséria. Indagar sobre “os meios de poder” ja é de certa maneira incorreto, uma ver que, para o Fsclarecimento, a questo ¢ essencialmente a concordancia livre, O Esclarecimento ¢ aquela “doutrina” que néo busca alcangar a sua imposigéo gracas a uma prcssio extrarracional. Um de seus polos ¢ a ra7ao; 0 outro, o didlogo livre da- queles que se encontram empenhados pela razio, Seu cerne metodologico © seu ideal moral é a0 mesmo tempo, 0 consenso nolurinirio. O que se tem em vista com isso é 0 fato de a consciéncia adversdria ndo mudar de Pesicio sob a influéncia de nenhuma outra coisa sendo do argumento elucidativo. Trata-se de um acontecimento sublimemente pacifico no qual, sob o choque de fundamentos plausiveis, posig6es opinidticas anti- gas, que se tornaram insustentéveis, sao alijadas. Com isso, o Escla- um idilio de paz recimento porta em si uma cena origindria utdpica: epistemolégica, uma visto bela ¢ académica — a visio do didloge livre dos interessados pelo conhecimento, sem qualquer coergio, Aqui se retinem individuos livres, nao os escravizados por sua ptdpria consci- énci € tampouco os oprimidos por convengoes sociais, para um did- logo ditigido & verdade ¢ sob as leis da razao. A verdade, que quer set difundida pelos esclarecedores, emerge de una adesio obtida sem a in- sergio de estruturas de poder as fundamentagbes mais fortes. O proca- gonista ou descobridor de um pensamento , € perigasa, ¢, sim, fatidica. No principio maniqueista do mau poder estatal 43 ANNALISE: CINCO CONSIDERAGOFS PREVAS 44 plenamente duas veres. A critica esclarecida reconhece em tudo aquilo que “jd se enconrra presente” nas cabegas 0 scu inimigo mortal interior; ela lhe dé um nome desprezivel: precanceitos, © Esclarecimento procurou fazer © melhor possivel diante dessa si- tuagao. Como nada lhe tinha sido presenteado, ele desenvolveu, quase desde 0 inicio, ao lado do convite pacifico a0 dilago, uma segunda pos- tura combativa, Barem ele, Por isso, ele bate de volta. Algumas trocas de golpes sio hoje tio antigas que nao faria sentido algum perguntar quem comegoua pancadari A histori da critica A idcologia significa em grande parte a histéria deste segundo gesto polémico, a histéria de um grande revide, Tal critica, como teoria da luta, serve ao Esclarecimento de maneira dupla: como arma contra uma consciéncia calcificada, conser. vadora ¢ autossuficiente, e como instrumento do exercicio ¢ da autocon- solidacao, Ondo do adversétio ao diélogo proposto pelo Esclatecimento c um fato téo poderoso que se torna um problema teético, Quem nao quer tomar parte no Esclarecimento precisa ter suas razées —e provavel- mente razdes diversas das que apresenta. A resistencia torna-se ela mesma objeto do Esclarecimento. Assim, surge do adversdrio necessariamente tum “caso”, um objeto, de sua consciéncia, Como ele nao gosta de falar conosco, € preciso falar sobre cle. Como acontece em todo posiciona- mento de luta, porém, o adversdrio ndo é pensado a partir dai como eu, as como aparato, no qual em parte abertamente, em parte veladamente, trabalha um mecanismo de resisténcia, que 0 rorna desprovido de liber- dade ¢ o torna culpado por equivocos ¢ ilusses. Critica & tdeologia significa 0 prosseguimenro polémico do didlogo cassado por outros meios. Ela esclarece uma guerra da consciéncia, mesmo > onde se arroga nfo téo séria “nao polémica’. A regra de paz jd se coloca fora de jogo. Vem a tona o fato de no haver nenhuma intersubjevivi- dade que nao se pudesse mostrar do mesmissimo modo como inzerobj tividade. Ao bater ¢ ao receber de volta uma pancada, os dois partidos tornam-se reciprocamente objetos subjetivos. Considerada rigorosamente, a critica & ideologia no quer simples- mente “barter”, mas operar de mancira precisa, tanto no sentido cinirgica quanto no sentido militar: quer abater o adversério nos flancos, decapiré- -lo, descobrir criticamente suas intengdes. Descoberta significa aqui tra- zet 4 luz o mecanismo da consciéncia falsa e nao livre. Em prinefpio, o Esclarecimento s6 conhece dois fundamentos de na didade: equtvoco e md vontade. Em todos os casos, essa md vontade pode 2, ESCLARECIMENTO COMO DIALOGO conquistar uma dignidade de sujeito, pois apenas quem mente conscien- temente para o adversario possui a “opinido falsa” de que ¢ um eu, Caso se suponha um erro, entio a opiniao falsa se bascia nao em um eu, mas em um mecanismo que falsifica 0 correto, S6 a mentira retém a sua prépria responsabilidade, enquanto 0 eto, uma vex que mecinico, permanece > gelativa, Mas rapidamente o erro se divide em dois em uma “inocéncit fendmenos diversos: no erro simples, que se baseia nas ilusdes légicas ou sensiveis e é facilmente cortigivel; o erro tenaz, sistematico, inculeado nas proprias bases da vida, que se chama, entio, ideologia. Assim, surge a clissica série de formas da consciéneia falsa: mensind, erro, ideologia. Toda lura conduz necessariamente a um coisificagdo mutua dos su- jeitos. Uma ver que o Esclarecimento nio pode abdicar de sua pretensio de impor uma intelecgéo melhor contra a consciéncia que o bloqucia, cle precisa ir ds tiltimas consequéncias, “operat” por trds da consciéncia do adversirio. Por isso, a critica & ideologia conquista um traco cruel, se E que ele se reconhece efetivamente como ctuel, que néo quer ser outra coisa seniio a reagao 4 ctueldade da “idcologia”. Aqui se mostra melhor do que em qualquer outro lugar o fato de a critica “filosdfica’ a ideologia ser em verdade herdeira de uma grande tradi¢ao satfrica, na qual o tema do desmascaramento, da exposigio, do desnudamento sempre foi utilizado como atma. Mas actitien moderna a ideologia se liberrou — essa éa nossa tese — das poderosas tradigSes comicas do saber saritico, que se enraizam Glosoficamente no cinismo antigo. A critica moderna 3 ideologia agora ismo e até mesmo no marxisme e, com aparece sob a peruca séria do maior razdo ainda, na psicandlise, veste terno ¢ gravata, a fim de nao Ihe fal tar nada i conqnista da respeitabilidade burguesa. Ela se despiu de sua vida como sétira, a fim de conquistar para si o seu lugar nos livros como “teoria”. Da forma viva de uma polémica calorosa cla se retraiu para o interior das posicées de uma guerra fria entre as consciéncias. Heinrich Heine foi um dos iiltimos autores do Esclarecimento classico a combater literariamente em uma satira aberta o direito da critica a ideologia a uma “crueldade justa” —eaesfera publica nao o seguiu nessa empreitada. O aburguesamento da sitira ea sua transformacdo em ctitica 4 ideologia cra téo inexorivel quanto o aburguesamento conjunto de suas oposig6es em geral. Uma critica & ideologia, que se tornou séria, imita em seu procedi- mento a intervencio cirtirgica: cortar © paciente com 0 escalpo critico e, em seguida, operar de maneita propriamente desinfetade. © adversirio é seccionado diante dos ollies de todos, aré que a mecinica de seu erro 45 ANALISE: CINCO CONSIDFRAGOES PREVIAS 46 O simulacro relative & vaidade (a segunda Imagem mostra a visio que temos Guando levantamos o saiote). Mateus Greuter, 1596. venha a tona. As camadas superiores de revestimento da pele se tornam ‘efimadamente asseadas ¢ as peles superiores sie afistadas, de tal modo que os flamentos nervosos dos temas ‘propriamente ditos” sejam des. facados © preparados, A partir dai, o Esclarecimento néo chega a ficar, na verdade, satisfeito. Néo obstante, em sua insisténcia em suas proprias Pretens6es, torna-se mais bem aparelhado para um fururo mais distante O que esté em jogo na critica & ideologia nao ¢ mais trazer para o seu lado 0 adversirio depois da vivissecéo: o interesse est volzado para o sen “cadaver”, para o preparado critico de suas ideias, ideias que se en- contrat nas bibliotecas dos esclarecedores e nas quais se pode ler sem dificuldade © quo falsas clas sio, O fato de nao ocorrer com iso ne- nhuma aproximagao em relacio ao adversitio é evidente, Quem j4 nao se dispunha de antemao a se meter com o Esclarccimento, com tarie ainda maior nao vai querer que isso acontega agora, no memento em ue © adversitio ja foi dissecado ¢ desmascarado. Naturalmente, na vi. sio Idgica de jogo dos esclarecedores, é possivel alcancar ao menos uma vitoria a partir dai: seja por uma via breve ou longa, apologeticamente © adversério seré levado a falar. 2. ESCLARECIMENTO COMO DIALOGO Irvitado pelos ataques ¢ “desmascaramentos”, 0 contraesclarece- dor comecaré um dia a empreender por sua vez “um esclarecimento” sobre os esclarecedores, a fim de difam4-los humanamente e yolti-los socialmente para a vizinhanga dos ctiminosos. Ele os chamari, envio, na maioria das vezes, de “clementos”. A palavra é involuntariamente escolhida de modo primoroso — pois nao soa promissor querer lutar contra os clementos. Nao se conseguird evitar que as poténcias come- cem algum dia a se mostrar indiscretas em suas contracriticas. Nesse caso, elas abandonam, de maneira cada ver mais excitada, algo de seus segredos; os ideais culturais clevados e universalmente reconhecidos sio entéo revogados insidiosamente. Na compulsdo a confissio de porén- cias enfraquecidas se encontra, como resta mostrar, uma das raizes da estrutura cinica moderna. Nolens volens, 0 “Esclarecimento insatisfeito” se entrincheirou nesee front. Ameagado por seu proprio cansago ¢ infiltrado pela necessidade de seriedade, jé se d4 com frequéncia por satisfeito a0 conquistar confisies involuntirias de seu adversério. Sim, com o tempo, a visdo experiente consegue decifrar por toda parte “confissdcs", ¢ até mesmo quando a po- téncia hegeménica atira primeiro, ao invés de megociar, nao serd dificil ver as balas como revelagées de uma fraqueza fundamental; € assim que se manifestam os podetes, para os quais nada lhes ocorre € que, para se manterem, no se fixam mais em outra coisa sendo em seus nervos fortes em seus executivos. ‘A argumentagéo pelas costas ¢ por meio da cabega do adversirio fea escola na critica moderna. O gesto do desmascaramento marca 9 estilo de argumentagao da critica & ideologia — ¢ isto desde a critica & reli no século XVIIL até a critica a0 fascismo no século XX. Por toda parte, mecanismos extrarracionais da opinido séo descobertos: interesses, pai- x0es, fixag6es, ilusdes. Isso ajuda um pouco a aliviar a contradigao es- candalosa entre a unidade postulada da verdade ¢ a pluralidade fatica das opinides — se é que essa contradicgo j4 nio precisa ser eliminada Verdadeira sob tais pressupostos scria aquela teoria que tanto funda- mentasse da melhor maneira possivel suas teses, quanto conseguisse ali- jar todas as posicdes contratias essenciais € tenazes. Nesse ponto, como se reconhece facilmente, o marxismo oficial possui a maior de todas as ambigées, uma vez que coloca a melhor parte de sua cnergia tedrica na precensio de exceder todas as teorias no marxistas, desmascarando-as como “ideologias burguesas”. [sé assim, por meio de uma presungao 47 ANATISE: CINCO CONSIDERACOES PREVIAS 48 Grafite no muro de Berlim, *Nascaros para sermos livres”. Crilloa @ ideologia como inserigao em defesa do outro. Permanente, que os idedlogos conseguem “viver” de algum modo com 4 pluralidade de ideologias. De fato, critica & ideologia sigaifica a ten- tativa de construir uma hicrarquia entre uma teoria desmascaradora ¢ uma desmascarada; © que estd em questao na guerra entre as conscién- Cias € a posic¢io superior, ou seja, a sintese de pretensées de poder e de intelecgdes melhores. A medida que, em meio a0 negécio critico © contra 08 habitos aca- démicos, também se luta sem hesitagao por meio de argumentos ligados 4 pessoa, as universidades se comportaram reservadamente com cnidado ante 0 procedimento prdprio a critica & ideologia. Pois o ataque lateral, © argumentum ad personam, é mal visto no interior da “comunidade aca. démica”. A critica séria procura pelo adversdrio em sua melhor forma; honta a si mesma, ao superar o rival na plena posse de suia racionalidade. Por tanto tempo quanto possivel, © corpo de eruditos procurou defen- der a sua integridade contta a luta cerrada de desmascaramentos critico- ideolégicos. A regra implicita poderia muito bem set: nao desmascarai, Para que vs do sejais desmascarados. Nao é por acaso que os maiores representantes da critica — os moralistas franceses, os enciclopedistas, 0s socialistas, a saber, Heine, Marx, Nietzsche ¢ Freud — permaneceram 2, ESCLARECIMENTO COMO DIALOGO outsiders da repiiblica dos eruditos. Atua em todos cles um componente satiric, polémico, que nunca consegue se esconder completamente sob a mascara da seriedade académica. Gostarfamos de utilizar estes sinais da fala de setiedade sagrada, que continua sendo um dos indices mais se- guros da verdade, como guia para a critica da razo c{nica. Encontramos em Heinrich Heine um compagnon de rouie, no qual confiavelmente nao podemos confiar. Heine ofereceu-nos 0 artificio até hoje néo superado de unir teoria e sitira, conhecimento ¢ entretenimento. Seguindo o seu ras- tro, gostariamos de tentar unis aqui uma vez mais as capacidades veritati: vas da literatura, da sdtira e da arte com aquelas do “discurso cientifico”. O dircito da critica a ideologia a argumentar tendo em vista a pessoa foi reconhecido até mesmo pelo mais rigozoso absolutista da razio, por J. G, Fichte, que Heine de maneira pertinente coloca em paralelo com Napoleao, 20 dizer que o tipo de filosofia que escolhemos depende do tipo de homem que somos. Nas condicionalidades humanas tipicas da opi nido, essa critica insere o seu ferro de maneira misericordiosamente se- rena ou tertivelmente séria. Ataca o erro pelas costas ¢ arranca as suas raizes fincadas na vida pritica. Esse procedimento nfo ¢ propriamente modesto, mas stta imodéstia se desculpa cam o principio da unidade da verdade. O que o ponto de partida vivissectério exige que venha a tona a vergonha incessante das ideias diante dos interesses que se encontram & sua base: algo humano-demasiadamente humano; egoismos, privilé- gios de dlasse, ressentimentos, manutengao dos poderes hegeménicos. Sob tal iluminagao, 0 sujeito adversério aparece minado tanto psicolégica quanto politico-sociologicamente. Por conseguinte, s6 se compreende 0 seu ponto de vista caso se acolha em suas autoexposigées aquilo que em verdade ainda se encontra por tras e por debaixo delas. Assim, a critica 2 ideologia alcanca uma prevensao que a coloca em contato com a her- menéutica: a pretenséo de compreender umn “autor” melhor do que ele mesmo se compreende. Aquilo que soa de inicio arragante nessa preten- séo pode ser metodologicamente justificado, De fato, 0 outro percebe com frequéncia coisas em mim que escapam & minha consciéncia — ¢ vice-versa. Ele tem a seu favor a vantagem da distancia, que eu s6 posso frutificar ulteriormente para mim por meio de reflexos dialégicos, Natu- ralmente, isso pressuporia o funcionamento do didlogo, algo que justa- mente nao acontece ne processo da critica a ideologia. Uma critica & ideologia, contudo, que nao se confesse claramente adepta de sua identidade como sitira, pode facilmente se transformar de Ag, ANALISE: CINCO CONSIDERAGOES PREVIAS 50 tum instrumento de descoberta da verdade em um instrumento da mania de sempre ter razio, De maneita por demais frequente, ela perturba a capacidade de negociar ao invés de abrir novos caminhos pasa essa capaci- dade. Isso explica, abstraindo-se o afeto universalmente antiescoléstico ¢ ant-intelectual, uma parte do desconforto acual coma critica’ ideologia, Assim, uma critica & ideologia que se apresenta como ciéncia, por- que no pode ser sétira, acaba se enredando sempre cada ver mais em soluug6es sérias radicais., Uma dessas solucdes éa tendéncia peculiar de tal critica a buscar abrigo na psicopatologia. Uma consciéncia falsa aparece em primeira linha como uma consciéncia doente. Quase todos os tra- balhos importantes do século XX sobre o fendmeno da ideologia batem nesta tecla — ¢ isto de Sigmund Freud, pasando por Wilhelm Reich até Ronald Laing e David Cooper, sem que possamos nos esquecer de Joseph Gabel, quelevouacianteaanalogiaentreideologia eesquizofrenia da maneira mais ampla possivel. Aquelas posturas que se proclamam da boca para fora como as mais saudaveis, as mais normais cas mais naturais sdo aquelas que caem sob a suspeita de serem as posturas doentias. O em- Préstimo materialmente bem fundamentado que se faz & critica a psivo- Patologia corre o risco de gerar uma alienagéo cada vex mais profunda dos adversirios; ela enisifica © descealiza 0 outro. Por fim, o critica da ideologia encontra-se diante da consciéncia adverséria como um pa- tologista moderno extremamente especializado que, em verdade, pode dizer de maneira precisa de que tipo de perturbacéo doentia se trata, sem saber, contudo, nada sobre terapias, porque isto nao tecai sobre o set campo de atuagao. De maneira semelhante a alguns médicos cor rompidos pela profissao, tais criticos interessam-se pelas doencas, néo pelos pacientes. A mais sdbria coisificagio maximamente sdbria de toda e qualquer consciéncia adversiia emergiu da crftica a ideologia articulada com Marx, por mais que precisemos deixar de lado a reflexao sobre o fato de ‘sso ter-se realizado por meio de um uso cotreto ou de um abuso. Em todo caso, a coisificacao radical do advers do realismo econdmico polémico, por meio do qual a teoria marxista se io € uma consequéncia fitica distingue. Todavia, um wea adicional entta aqui em jogo: se todos os outros desmascaramentos da consciéncia falsa recondutrem a Farores obs- curos da totalidade humana (mentira, maldade, egofsmo, repressio, tene Sao, iluséo, quimera etc.), entdo 0 desmascaramento marxista se depara com algo nao subjetivo: as I is do processo politico como um todo, Nao se toca de modo algum em “fraquezas humanas” quando se criticam ideo- logias de maneira politico-econémica. Ao contririo, nos deparamos com um mecanismo social abstrato, no qual os individuos possuem fungées distintas como membros de classes: como capitalista, como proletariado, como funciondtio intermedidrio, como servo do sistema. Nem na cabega, nem nos membros do sistema, porém, impera clareza quanto 4 natureza do todo. Cada um de seus membros € mistificado com vistas a um modo. cottespondente a sua posicao. Mesmo o capitalista néo encontra, apesar de sua experiéncia prética com o capital, nenhuma imagem verdadeira do nexo conjunto, mas permanece um epifendmeno necessariamente ilusd- tio do processo do capiral Aqui surge um segundo rebento do cinismo moderno. Tao logo eu, para falar com uma formulacao marxista, assumo uma “consciéncia neces- sariamente falsa’, a cspiral da coisificagao experimenta outro giro, Exata- mente 0s erros que precisariam estar presentes para que o sistema pudesse fancionar, indo ao encontro do colapso, estariam, envio, nas cabecas das pessoas. Reluz na visio do critico marxista do sistema uma ironia 4 priori condenada ao cinismo. Pois ele adiite que as ideologias, que se mostram como uma consciéncia falsa ao serem vistas a partir de um Angulo externo, se revelam como pertencentes 3 consciéncia correta ao serem vistas a partir de um Angulo interno. As ideologias vém & tona meramente como 0s erros adequados nas respectivas cabecas: “a falsa consciéncia correta”. Ouve-se sessoar a definigao do cinismo da Primeira Consideracao Prévia. A dife- renga reside no fato deo eritico marxista abrir espaco para que a “falsa cons- inci correta’ se esclarega ou seja esclarecida — por meio do marxismo, Com sso, ¢ 0 que ele acha, ela se transformaria em uma consciéncia verdadeira, ‘nao em uma “consciéncia falsa esclarecida”, como a férmula do cinismo dizia, Teoricamente, a perspectiva da emancipacao é mantida aberta. Toda seoria sociolégica sistematica que trata a “verdade” de maneira funcionalista, aqui me adianto, guarda em si um porencial nico poderoso. E como toda igéncia contemporanea estd vinculada ao proceso de tais teorias socio- , elas se enredam inexoravelmente nos cinismos senliotiais latentes ou itos dessas formas de pensamento. O marxismo, tomado em sua origem, vou, contudo, umaambivaléncia entre perspectivas coisificadas eeman- térias. Teorias sistémicas nao marxistas sobre a sociedade abdicam ainda dltima scnsibilidade. Ligadas a correntes neoconservadoras, elas decretam membros titeis da sociedade humana tém de internalizar de uma vez por certas “ilustes corretas”, porque sem elas nada funciona propriamente. 2. ESCLARECIMENTO COMO DIALOGO 52 (ISE: CINCO CONSIDERACOES PRévias Procura-se prever a ingenuidade dos outros, capinal fie being man himself E sempre um bot investimento aduzir ingénuas disposigées de tabalho, independentemente de para qué. Os tediricos do sistema ¢ os estrategistas da Conservasao estao desde © principio para além das crencas ingénuas. Todavia, Para aqueles que ceredicam nisso, vale 0 seguinte: interrupsao da reflexzo ¢ valores firmes. Quem eoloca a disposicao os meios Para uma reflexao libertadora ¢ con- vida as pessoas a se secvirem desses meios se mostta para os conservadores emo um vagaloundo sem consciénciae vide por poder, ao qual se repreende dizendo: “Seo os outros que fazem 0 trabalho”. Ora, mae pata quem? 3. Os oito desmascaramentos — Revisao critica Esbocarei em seguida oito casos de uma eritica esclarecida e desmas- caradora & ideologia, cujos modos polémicos de procedimento Szeram escola. Trata-se das figuras historicamente mais exitosas do desmasca- ramento — exitosas, porém, nao no sentido de a critica ter realmente “destruido” o criticado. Os efeitos da critica séo normalmente diversos daqueles que tinham sido visados. Forgas sociais hegeménicas, que pro- curam se manter, revelam-se na defensiva, quando todo 0 resto nao ajuda © quando incapazes de aprendizado, Uma histéria social do Esclareci- mento precisa voltar a sua atengéo para os processos de aprendizado das poténcias hegeménicas autodefensivas, Um problema cardinal da histéria jes das “consciéncias falsas”, que ideologia aponta para as superposi 50 aprendem com seus criticos o que significam a suspeita eo desmasca- ramento, 0 cinismo € o “refinamento”. Nossa revisio critica mostra o Esclarecimento en marche, em uma in- vestida serena ¢ inresistivel contra ilusdes velhas ¢ novas. O fato de a critica ‘do poder “abrir o jogo” no embate com os seus adversitios é algo que ainda precisa ser mostrado. Gostarfamos de observar como é que se formam, aqui cali, na propria critica, posigées iniciais para novos dogmatismos. O Fscla- recimento ndo penetra na consciéncia social simplesmente como um por- rador de luz desprovido de qualquer problematicidade. Onde quer que ele cxerga seu efeito, surge um lusco-fusco, uma profunda ambivaléncta, Nés caracterizaremos essa ambivaléncia como a atmosfera na qual, em meio a um novelo de autoconservacio ftica, acontece a cristalizagio cinica junta- mente com um autodesmentido moral. 1. Critica da revelagéo Comet O milagre seria apenas un erro de interpretagdo? Uma fila de flologia? Friedrich Nietzsche, Par além alo bem ¢ do mall Para a civilizagao crista, a esceitura sagrada obrém um valor predomi- nante por meio da ideia de que se trataria de uma obra oriunda do ditado divino. O entendimento humano precisaria se submeter a esse ditado 53 AwAuusi CINCO CONSIDERACOES PREVIAS Heinrich Hoorle, Mascaras, 1929. fanto quanto os sentidos precisariam se curvar a visio de um “milagre”, ane acontece diante de seus olhos. Revestida pelas diversas linguas ma- ‘eras, fala a partir do texto sagrado a “voz” do divino, teologicamente: 0 Espirito Santo. © livro mostra-se “sagrado” enquanto um texto que se enraiza no absoluto. Por conseguinte, nenhuma interpretacdo seria suficiente para esgotar a sua superabundancia de sentido, superabundancia essa que se renova nas épocas humanas. A exegese ndo seria outra coisa senio a tenta- tiva tao vi quanto necessdtia de preencher este oceano de significado com a colherinha de nosso entendimento, Ora, todas as insergoes de sentido ¢ aplicagées permaneceriam em tiltima instancia meramente humanas ¢ intiteis, sem a suposi¢ao de que o texto mesmo seria inspirado divina- mente. E 56 essa crenga que eleva a escritura a uma posi¢ao tinica. Trata- se, emt uma palavra, da crenga na narureza revelada da Biblia, crenca por meio da qual a Biblia se transforma pura ¢ simplesmente em livro sae grado, De maneira to ingénua e radical quanto possivel, ela se anuncia na doutrina da “inspiracao verbal” — dowtrina segundo a qual o Espirito Santo teria ditado imediaramente para os esctitores humanos e entrado em suas penas, sem tomar o desvio por suas consciéncias finitas. No inicio 3. Os OrTO DESMASCARAMENTOS — REYISAO CRITIC da teologia encontra-se uma éeriture automatique. As “opinides” religiosas “privadas” de um Mateus ou de um Paulo seriam naturalmente interes- santes, mas nao imperativas; clas permaneceriam posigdes de consciéncia esgotdveis ¢ humanamente limitadas. Somente a hipostasia teolégica, a elevacao 4 voz. do Espirito Santo no ditado a Mateus ou a Paulo, volta 0 texto para a fonte do sentido ilimitado. O Esclarecimento procura saber exatamente 0 que est4 em jogo com essa pretensio. Questiona, de mancira inocente e subversiva, as provas, as fontes ¢ os testemunhos. De inicio, afirma que gostaria muito de acreditar em tudo, contanto que encontrasse alguém que 0 convencesse. Aqui se mostra o fato de os textos biblicos, considerados filosoficamente, perma- necerem as Unicas fontes de si mesmos. Seu carater enquanto revelacao é sua prépria pretensdo. Nessa pretensao, a recepgao pode acreditar ou nao; € a Igreja, que eleva esse caréter de revelacdo ao nivel do grande dogma, desempenha neste caso ela mesma o papel de uma receptora. Lutero ja tinha repelido com um biblicismo radical a pretensio a autoridade caracteristica da Igreja. Essa rejei¢4o repete-se em um plano mais elevado no proprio biblicismo. Pois texto continua sendo texto, € toda e qualquer afirmagio de que ele seria um texto inspirado por Deus sé pode ser, por sua vez, uma afirmacio humana, falivel. Em meio a toda e qualquer tentativa de apreender a fonte absoluta, a critica se depara com fontes relativas, histéricas, que nunca conseguem outra coisa sendo afirmar 0 absoluto. Os milagres, dos quais fala a Biblia, a fim de legitimar o poder de Deus, sao apenas relatos de milagres, para os quais ndo hé mais nenhum meio ¢ nenhuma via de comprovagao. A pretensio a revelacio permanece presa em um cfrculo filolgico. Em sua defesa dos escritos de Reimarus, Uber den Beweis des Geistes und der Kraft (Sobre a demonstragao do espirito ¢ da forga], apresentada em 1777, Lessing expe classicamente o desmascaramento da pretensao da revelaco como uma mera pretensao. A tese principal é: “Verdades his- téricas contingentes nunca podem se tornar a demonstragao de verdades racionais necessérias.” Suas consequéncias: Portanto, se eu mio tenho como contrapor nada historieamente ao fato de Cristo ter ressuscitado um morto, preciso por isso considerar verdadeiro que Deus tertha um filho feito de sua mesma esséncia? Qual a relago entre a minha incapacidade de objecar algo significative contra os testemunhos de Cristo com a obrigatoriedade de acreditar em algo contra o que minha rarao se opde? 55 ANALISE: CINCO CONSIDRRAGGES PREVIAS Se ndo tenho nada 2 contrapor histoticamente 20 fato de esse mesmo Cristo ter ressuscirado dog mottos, ser que peeciso por isso considerat yer. daceiro que justamente esse Cristo rexsuscitado teria sido 0 filho de Deus? © fato de esse Cristo, a cuja ressurreicéo nav consigo contrapar nada televante em termos histdricos, se arrogat pot isso como o flho de Deus, 0 fate de seus discipulos entéo rerem comado como o filho de Deus: acredieo com prazer e de todo coracé ‘0. Pois essas verdades, enquanto verdades de uma ¢ mesma classe, se seguem de maneita totalmente natural umas das outras. No entanto, aquela verdude histérica, ao saltar para o interior de uma classe toralmente diversa de verdades e ao exigir de mim que eu conforme todos os meus conceitos metafisicos e mozais a parti dela, zequsita de rim gus; na medida em que nao tenho como contrapor nenhum documento ceivel A ressurreicdo de Cristo, a partir disso cu altere todas as minhas ideas fundamentais acerca da esséacia da divindade; se isso nao for uma mendbacs a allo génos (passagem para outro género Idgico), entéo mio sei o que Aris: téreles pode ter entendido por iste Diese naturalmenre: 0 mesano Cristo, de quem wu precisas deixar viger 9 Faro de cle ressuscitar os mortos e 0 farn de ele mesmo ter ressuscitado dos mottos, afitmou gue Deus teria um filio dotado da mesma esséncia que a dele € que esse filho seria ede, Isso estaria muito bem. Nao fosse o faro de tudo 0 que é dito sobce esse mesmo Cristo nao ser, contudo, mais do que historicamente certo, Caso se qt esse seguir um pouco mais adiante e di “Claro que sim! Isto & mais do que historicamente certos pois é assegurado por historidgrafos inspiradas que no tinham como eras”, Enrao, infelizmence, também setia apenas historicamente certo o fito de «esses historidgrafos terem sido inspirades ¢ nio terem podido errar, Esse € 0 tlmulo amplo antipético, para além do qual eu aio posso i or mais frequente e seriamente que eu possa tentar dar um salto, Se alguém ‘gt puder me ajudar a ir além, contudo, por favor, [aga iso. Eu 0 pego, eu 0 imploro. Ble merece uma recompensa divina por mim, O saber humano ¢ obrigado a recuar para o interior dos limites da his- ‘Orta, da flologiae da ligica. Aparece algo da dor desse eco em Lessing, due afitma de maneira bem crivel que seu cozagao gostaria de permane. cer mais crente do que sua razéo Ihe permitia, Com a questio “de onde 56 se pode saber algo assim?”, o Esclarecimento arranca as ratzes do saber RAMENTOS — REVISAO CRiTICA 3. Os orro pEsmase da revelagdo de maneita francamente clegante, sem uma agressividade particular. Com a melhor das boas vontades, a razao humana nao tem come encontrar no texto sacralizado mais do que hipéteses histricas, feitas pelo homem, Com um questionamento critico filolégico simples, a pretensao de absolutidade da tradigéo ¢ aniquilada. Por mais irresistfvel que possa ser a critica historico-filolégica & Biblia, © absolutismo da fé caracteristico da religido organizada nao quer tomar conhecimento de que esta suspenso segundo as regras da arte. Continua simplesmente “existindo”; em verdade, ndo como se nunca tivesse havido essa suspensio e esse desmascaramento, mas de tal modo que nao se po- detia retirar dai nenhuma consequéncia a nao ser a de que os criticos pre- da critica fundamental cisam estudar ¢ excomungar. Foi somente depois da modernidade que a teologia subiu completamente na barca dos loucos da assim chamada fé ¢ se afastou cada vez mais da margem da critica lire- ral, No século XIX, as igtejas deram o sinal para a fusio do irracionalismo pés-critico com a reagao politica. Como todas as instituigoes preenchidas pela vontade de sobreviver, clas souberam resistir & suspensio de suas bs ses, O conceito de “existéncia” tem a partir de agora o chciro da toxina do cristianismo, a sobrevivéncia apodrecida do criticado apesar da critica.® Com os cinicos, os tedlogos tém desde sempre algo a mais em comum: o sentido para a pura autoconservagio. No tonel de uma dogmética esbu- racada, eles se estabelecetam até bem pouco tempo como em sua morada, IL Critica da ilusio religiosa A ilesda sempre vai mais longe do gue a suspeita La Rochefoucauld De maneira estrategicamente astuta, a critica esclarecida do fendmeno religioso se concentra nos atributos de Deus; ela sé se atém secundariamente a espinhosa “questao acerca da existéncia”. O problema, no fundo, nao é se Deus “existe”, O essencial é saber o que rem em mente quem afirma a sua existéncia e descreve a sua vontade, constituida de tal e tal modo. 6. Para tanto ¢ vélida a polémica gonhice teolsgical, 1841. Ins Feldaige der reiten Kricie [Datalhas da critica pura), H. M. Sass (org), Frankfurt, 1968, 37 ica de Bruno Bauer Thealogizche Schamdlosighet [Sem-ver~ ANALISE: cinco CONSTDERAGOES PREVTAS 58 Portanto, a importante é experimentar inicialmente 0 que se pretende saber de Deus, além de sua existéncia, Quanto a esse ponto, as tradicées religiosas fornecem material. Como Deus nao ocorre “cmpiricamente”, a subordinacao dos atribucos de Deus & experiéncia humana desempenha © papel decisivo na critica. A dontrina de Deus que é prépria ds religiges nao tem nenhuma possibilidade de escapar desse ataque — a néo ser que ela opte por uma radical reologia dos mistérios ou, de mancira mais consequente, pela tese mistica do Deus sem nome. Essa consequéncia correta em termos de filosofia da religiado ofereceria uma protecdo sufi- ciente diante da questo de detetive do Esclarecimento, diante da questao acerca das fantasias humanas sobre Deus, que brilham nos seus atributos, ‘Todavia, com a reeusa mistica, a religiao nao pode se tornar uma institui- sao social; a religido vive do fato de apresentar narrativas sedlimentadas (mitos), attibutos padronizados (nomes e imagens), bem como formas de lidar estereotipadas com © sagrado (rituais), ¢ isso segundo formas que retornam confiavelmente, Assim, ndo € preciso sendv considerar mais detidamente essas apre sentacdes para poder seguir o rascro do segredo de sua fabricacéo, © rexto biblico oferece para os criticos da religiéo a referencia decisiva. Em Gé nesis (1:27): “E criou Deus © homem & sta imagem: & imagem de Deus © criou”, Sem diivida alguma, essa relacao imagética também pode ser interpretada inversamente. A pastir dai, néo hd qualquer enigma quanco ade onde provém as imagens; o homer e sua experiencia sio a matéria de que sio feitos os sonhos oficiais de Deus. © ollio teligioso projeta re- PresentagGes tertenas para o céu. Uma dessas projegées elementares — como poderia ser diferente? — Prove do campo representative da familia e da gerugdv. Nas religides politeistas, encontram-se romances familiares confuisos, com frequéncia bastante frivolos, ¢ assuntos ligados & procriagao sclativos ts divindades, como se pode facilmente estudar a partir dos deuses olfmpicos gregos, cgipcios ¢ hinduistas. © favo de a imaginagéo humana ter procedido de maneira por demais decente em meio 3 ilustracao das populagées celestes é algo que ninguém jamais afirmars, Acé mesmo a douttina cristi da Trindade, uma doutrina sublime ¢ tio complexa, nao se mantém com. pletamente isenta de fantasias ligadas & familia ¢ 4 procriacdo, Sua finesse Particular, contudo, fez com que Maria engravidasse do Espirito Santo, A sitira reconheceu esse desafio. Deve-se evitar com isso 0 [ato de existic entre pai ¢ filho um lago sexualmente fundado. © Deus cristio pode 3. Os O10 DESMASCARAMENTOS — REVISAO CRITICA muito bem procrias, mas nao copular — razio pela qual o credo diz com um cariter verdadeiramente sublime: genitum, non foctum A ideia da autoria, da criacao, que se atribui em particular aos deuses do alto edo interior da tetra, ¢ uma ideia bem présima a ideia de geracio. Aqui se imiscui a experiencia humana da produgao, enraizada em uma empitia camponesa c artesanal. Em seu trabalho, o homem experimentou a si mesmo de maneira modelar como criador, como autor de um novo efeito, anceriormente inexistente. Quanto mais progride a mecanizacio do mundo, tanto mais se transpée a representagio de Deus da intuiggo biolégica da geracao (procriago) para a produgéo; de mancira correspon- dente, o Deus gerador foi se tornando cada vez mais um fabricante do mundo, o produtor originario. A terceira projegao clementar ¢ a projegio da assisténcia — no que concerne ds imaginag6es constitutivas da vida religiosa talvez a projecio mais importante. A maior parte dos apelos teligiosos volta-se para Deus como © auxiliador nas indigéncias da vida e da morte. Mas como a as- sisténcia divina pressupée o poder de Deus sobre os fenémetios munda- nos, a fantasia do auxiliador se mistura com as experiéncias humanas da protecio, do abastecimento ¢ do governo. A imagem popular do Cristo © mostra como o bom pastor. No curso da hist6tia da religido, foram atri- bufdos aos deuses as areas de seu dominio ¢ de sua responsabilidade, seja sob a forma de uma elevagio setorial acima de um elemento natural como © mar, 0 rio, 0 vento, a floresta ¢ os graos, scja sob a forma de um domi- aio universal sobre o mundo criado. Experiéncias politicas penetram de maneira inconfundivel essas projegées; 0 poder de Deus encontra-se em analogia com fung6es de chefia e com funcoes imperiais. A religiio da so- ciedade fendal oculta ae menos sua projegéo politica de Deus, na medida em que insere sem hesitagio Deus como o marechal supremo ¢ 0 intet- pela com o titulo feudal “senhor”; em inglés, ainda hoje se diz my Lord. Da maneira mais ingénua possivel, 0 antropomorfismo ou 0 socio- moxfismo vém a tona quando se tenta construir representagdes image ticas dos deuses. Por isso, religides © tcologias refletidas promulgaram proibigées rigorosas de imagens: elas reconheceram o perigo inerente a coisificagio. O judaismo, 0 Isla e mesmo certas facgdes “iconoclastas” do cristianisma exerceram nesse caso uma abstengéo inteligente. Jé a sdcira do Esclarecimento tinha se divertido com as divindades africanas, para as 7. Em latita no original: gerade, no feito, (NI] 59 ANALISE: CINCO CONSIDERAGSES PREVIAS 60 o reino de Deus € 0 reino terreno —teoria na qual insiste ainda o monge agostiniano Lutero, O fato de Agostinho empregar nesse caso 0 conecito de civitas para a comunidade religiosa sinaliza a sua corsupcao politica De modo cutioso e, contudo, compreensivel, pode parecer que s6 nos movimentos democriticos modernos um pensamento primitivamente cristéo entrou uma vez mais no jogo politico. As democtacias ocidentais sao no fundo parédias permanentes do anarquismo religioso, estruturas mistas peculiares a partir de aparatos coercitivos ¢ ordenagées da liber- dade. Nelas vale a regra: um pseudoeu para cada um. Aqui se entaiza ao mesmo tempo a ironia catdlica no mundo moderno. Pois o catolicismo ergue-se com a sua douttina ¢ com a sua orgenizagio absolurista como um bocado arcaico em uma ordcm social liberalmente distendida. Fle s6 continua se mostrando conma 0 mundo no sentido de manter o scu lago perverso com os poderes politicos centrais, tal como ele o tinha firmado com 0 Império Romano ocidental ¢ com o absolu- tismo dos séculos XVIII ¢ XIX. E por isso que os poderes centrais de hoje, os quais aprenderam um pouco 0 jogo liberal, se sentem facilmente um tanto embaracados com o Vaticano abcr:amente autoritério: 0 cato- licismo 86 foi resgatado das concordatas ¢ leyado de volta para o cerne da bruta modernidade pelo fascismo de Mussolini. Esse aperitivo ralver seja titil para que possamos compreender a situ- a¢ao inicial da posterior critica & moral. Em sua hist6ria, o cristianismo revoga a sua propria estrutura moral, a autorteflexividade superior As convengées. Ele mesmo se terna, em uma pelavra, uma orgunizacio co- ercitiva convencional. Com isso, do ponto de vista livre, caracteristica da metaécica, a qual deixa a visto clara do efetivamente real ¢ um amor ple- namente racional lhe dizerem o que seria preciso fazer, 0 catolicismo recai no ponto de vista superficial do sw deves. Originariamente empregado 3. Os OrTO DESMASCARAMENTOS — REVISAO CRITICA tra 0 farisafsmo, seu sucesso politico © transformon na ideologia hi rita que viu o mundo. Na Europa, sabe-se disso desde a Idade Média de uma maneira bastante eralizada. Distingue-se desde entio os lobos nas peles dos cordeiros cris- dos cordeiros ¢ das excegdes que, apesar do cristianisimo, perceberam, da oportunidade crista. Desde o fim da Idade Média, ou seja, desde 1c hd documentos escrivos pata a vox do povo e para o seu realismo, uma parte do povo nao se deixa mais enganar ern relago a essa divisio da ral. O monge lascivo, o principe da Tgreja, avido por guetras, 0 cinico ‘eardeal e 0 papa corrupto séo tipos permanentes do realismo popular; ne~ sshuma critica “tebrica”consegnin acrescentar algo de essencial a este ponto ‘de partida satirico, O desmascaramento clerical faz parte do catolicismo ‘como o riso faz patte da sétira. No riso, toda teoria ¢ antecipada. Nao obstante, a critica A moral nao progrediu como riso — ¢ isso estd cm conexio com o papel do protestantismo na renovagio do mora- ismo. O catolicismo pode se satisfazer em Ultima instdncia com a sdtira clerical. O provestantisme, contudo, precisa levar adiante a critica moral até as raias do desmascaramento do profano, do pseudocristio, ou seja, de qualquer um. © Fsclarecimento francés ainda dirige a sua sitira moral contra o pessoal do expetaculo catdlico: as freiras, os padres, as virgens por demais castas ¢ 05 prelados por demais santos. Os ataques de Heinrich Heine também estao voltados contra o catolicismo e podem permanecer satiticos. Tudo isso é inofensivo, comparado & critica & moralidade laica internalizada de maneira protestante. quao benevolentes sao as escar- ios mordazes de Diderot em relagéo a critica ao cristianismo feita pelo fi- Iho de um pastor protestante: Friedrich Niewsche! Hé uma clara diferenga de grau ¢ mesmo uma queda em termos de satide entre o Esclarecimento lico-romano ¢ o Esclarecimento germanico-protescante. Pois as ver- dadeiras complicagées da existéncia scligiosa permanecem reservadas no catolicismo em tiltima instAncia ao clero. Nos paises protestantes, a critica a moral leva necessariamente ao autodesmascaramento de sociedades classes inteiras. Em tais pafses, em particular na Alemanha do Norte e na ‘América, 0 Esclarccimento moral nao , por isso, pensivel sem compo- nentes social-masoquistas. (O seu segundo solo alimenticio ¢ o judaismo emancipado [Mars Heine, Freud, Adorno entre outros], ao qual, como Hannah Arendt mostrou de maneira clucidativa, por mais estreita que seja a assimilagio & sociedade buzguesa, se mantém presente certa visio de outsider, predisposta a critica.) 79 ANATISE: CINCO CONSIDERAGOES PREVIAS 80 vr — ado Cf | Pe Te Be Lcencstnaetl cs cdsitits Reena damnemeccnsd Simplicitas (verdadeira simplicidade) vence Fraus (engodo), Catedral de Estras- burgo, janela 45, setor 7. A critica 4 moral persegue no essencial crs estratégias: descoberca de um segundo plano de regras (dupla moral); inversao entre ser ¢ aparéncia; redugdo a um tema realista origindrio. A descoberta do segundo plano de regras é 0 processo mai simples, pois im seus fritos, vyésosconhecereis”. A comprovacao navidad o que decide. O Esclarecimento salta aos olhos em meio a uma mera consideragio. Jesus:

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