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CHARLES A INFANCIA EMANCIPADA TEXTOS SOBRE EDUCACAO FOURIER rho ‘rRapugho Lu! ANTIGONA Utopia por utopia, por que no escother ‘omals belo dos sonhas? Camis Funan, Thor de Unit amiersele Teo da uidade universal, 1,7 Titulo orignal Verse eaten wnt Tere sx oucmOn ‘utr Charles Fovier Peelico org. Rene Scher Tradigio lis Lio Reusao Cada Ska Pra (Capa Ricardo Tadeu Bars TTéesign Pagina Level Matias 1d Ca da Siva Pereira Inpressdo. Guide Anes Gdicas CCopyrht 2006 La FabriqueEdtins 207, Angora para 2 ngus portuguese (ego portuguesa Setembro de 2007 Angora etre rfzcttos Fada Tindade, n° 3-2° he 1200467 Lisboa | Portal teh 213249170 | fox 212244171 vewwantgons gt info@unt gaa pt Depots kel 9.° 263653107 Wa 978 972-408-1920 PRE-AMBULO 0 FRACASSO DE UMA APROPRIACAO © nosso mundo esté doente da sua infancia. Sofre e consome-se com estes patifes, estes selvagens, esta corja que, porém, ele proprio criou e na qual jé no se reconhece. Detesta-os e ama-os a0 mesmo tempo. Odeia-se por gostar deles € 20 mesmo tempo os execrar. Sobretudo, teme-os. A evianca ~ compreendendo aqui o «oven». a nova geracéo inguieta e mete medo. Receamo-la, Se existe uma interrogac3o tniversal, que atravessa fronteiras, explicita ou no, quaisquer que sejam os povos e as civilizacées, ela jd no € hoje a cléssica «Que fazerts revoluciondtia, mas um timido «Que fazer com eles?», como hos deverios compartar com estes recém-chegados to prbximos to estranhos, que parecem furtar-se a toda a tentativa de dominio? Poucas épocas na historia ~ talvez mesmo nenhuma ~ tiveram de se defrontar com um problema semelhante, ou, para ser mais, preciso, se deixaram envolver em tal armadilha. Nenhuma época? Nao é absolutamente certo. A partir do fim do século XVIII, na Europa, «2 crianca» comeca a tornar-se um tema de eleigao, a configurar um problema. £ 0 tempo subsequente 20 Emilio de Rousseau, em que a pedagogia moderna comeca a tomar ‘corpo. AA educacao da crianca passa a ser uma das preocupacGes fundamentais da sociedade civil. Lma das chaves da Civilizagao. Assim, a0 escolher textos de Fourier, o detractor da sociedade ‘moderna eas suas taas, primeiro.a denunciara economia mercan til os «crimes do comérciov ¢ liberalismo, pareceu lhe conferia um modo de agir mais consequente sobre a Civilizagao, permitindo-he acabar com ela ou, pelo menos, perspectivar com esperanca esse fim, era a educagio das criangas, manifestamente tum dos seus pontos fortes, Se é dificil destacar qualquer coisa nesta obra, que constitu um todo, vagueando em todas as direcgdes, «a educaco harmoniana» forma, desde 0 inicio, desde a Théorie des quatre mouuements [Teoria dos quatro movimentos, 1808] ¢ sobretudo no Traité de association domestique-agricole [Tratado da associacao doméstica- agricola, 1822), até a le Nouveau Monde industriel [0 Novo Mundo Industrial, 1829], uma espécie de pequeno tratado relativamente auténomo. Para ndo estar com repetigaes inditeis, uma vez que estas obras se encontram actualmente disponiveis nas reedicdes das Presses du feel, de Dijon, fui levado a electuar as minhas escolhas entie os ‘nuumerosos esbocos que datam de 1820 e 1826, que permaneceram no estado de manuscritos e so menos conhecidos, embora tenham sido publicados por La Phalange em 1852 e retomados igualmente no tomo X das edigdes Anthropos em 1966, Basta folhear estas paginas para nos deixarmas envolver pelo seu tom, pelo seu registo de uma observacio que continua a ser justa mesmo para nds. Apelida-se Fourier de utdpico (ou utopsta). Temos de nos entender. Se por utSpico queremos significar que o que ele propde é actualmente impossivel, com as nossas maneiras de ver, ‘95 105805 preconceitos, os nossos bloqueios, sem duivida que 0 é Segue exactamente na direcc3o oposta daquilo que pensamos € realizamos, em matétia de escola, familia, concepcbes hierirqui- as e subordinagdo da infincia. Mas se avaliarmos a utopia con frontando um piojecto com os fins a atingir, entao é sobretudo um sistema - 0 nosso ~ com as suas pretensGes de, com os meios que emprega, conduit a crianga na vi da insercao sociale da Felicidade, pré-ambuto ue podemos com maior justeza classifcar de utépico. Inealist, votado constantemente a0 fracasso, Utépico porque toma os seus esejos por reaidades, embrulha-se na ficedo social de uma civiliza «io cujos projectos educativos foram sucessivamente falindo, e que ‘nem por isso deixa de se obcecar em acurnular cforms. Sim, ele pode com toda a propriedade ser qualificado de uté- pico. E.0 que Fourier Ihe contrapde € a observacao, a realidade des crita com toda a mindcia € subtileza. Como utopista, no sentido Visionatio, mas estribado mas exigencias do real Basta abrir um pouco 20 acaso esta recolha para encontrar pg nas que dirfamos ter sido escitas expressamente em nossa inten lo: algnoro que outros fins se propde a educacao civilizada. Li muito pouco dos tratados, mas aavaliar pelo resultado, 0 primeio € © mais geral nas crlancas civilizadas 6 que elas s6 usam a sua liber dade para cometer toda a espécie de danos, para se incentivarem umas is outras para a maldade e o crime, a tal ponto que um grupo delas deixado em plena lberdade, e sem medo de castigo, acabaria pa dedicarse 4 distraccSo de Nevo, incendliar ums cidade.» Eis. em termos crus, descritas as nossas angistias, vestidos 0s nossos fan tasmas: Fourier atira-nos com eles 8 cara, toga deles. Estes jovens vandalos sio preisamente aqueles que supomos ameacar os baires ddos subirbios, incendiéios de automéveis, saqueadores de lojas. Porém, em vez de se lamentar de um modo miserabilsta, de ape lac 3 repressdo ou de psicologizar com base em qualquer complexo edipiano, o utopista afera-se as causas reas, 8 causa primeira: a inutiidade da educacSo dada, da escolarizagio sem finaidade; aos vicios de uma sociedade que s6 consegue segura (segurar 8 trela) as suas eiancas através da coacgao e que se escandaliza com os efeitos de uma liberdade que se vira contra ela. E amontoa sistema sobre sistema, escola sobre escola, coacgEo sobre coacgdo, preenche a miriade de buracos das «lacunas juridicass, numa desvairada fuga paraa frente. No fim, s6 continua @ encontrar a shorda subversiva» das «criancas desacaimadas © primeira trago distintivo da educac3o societaria de Fourier € 0 de no tomar partido, nem pelo punir da reaccdo nem pelo det: xar fazer de um laxismo que hé pouco tempo ~ ou ni seré ja hi muito? ~ era imputado aos «esquerdistas». Contradicao ilusbria, falso diem, Tanto de um lado como de outro, ndo se trata de uma crianga dotada das suas propriedades natura, mas de um ser jé deformado pela sociedade que 0 produz, com 5 seus pressupos- tos, as suas contencbes, as suas divisdes ou esegmentaridades» na expressio de Guattari e Deleuze! referindo-se 20 mado que temos de chegar 20 mundo jfilhos-familia, destinados ao nosso papel sexual, encerrados no destino de uma classe e de uma profisso. J perverso, cheio de ressentimento, agressivo. A violencia vem por acréscimo, Nao ¢ inata Fourier nio se cansa de repisar aquilo que the parece ~ e nos pareceré a nds — uma evidéncia, O frenesi da destruiczo nao é natu- ral; nfo & proprio de nenhum out animal, para além do homem, AA ctianga ndo nasce perversa, mé, Torna-se isso. E, neste sentido, podeifamnos pensar, a partir dos textos aqui apresentados, que le se limita a retomar Diderot ou Rousseau: ela & boa, ela é ma? *Adquitiremos a conviecio, neste campéndio de educacaa sexual {que no s6 0 homem nasceu virtuoso, propenso a justica, & vedade € unidade, mas que todos os vicios sociais que Ihe censuramos S40 impulsos de virtude, desnaturados pelo regime civlizado.» Isto 6 Rousseau, sem duivida, mas apenas em parte, Para o autor de Discurso sobre @ Origem da Desigualdade entre os Homens, & a entrada em sociedade que corrompe. Para Fourier no se pode cconceber um homem, uma crianga, que nda seja imediatamente social. Als paixées que esto na origem da sua actividade s& dirigidas para outrem, Ela tem tendéncia espontaneamente para for mar grupos. S6 no seio dos grupos as paixdes podem set contraria das ou desenvolverse plenamente, todas 1 Mile plate Fit, p. 253 Pais, ed. Minuit, 1980, cap. I, «Mictopolitiue et segmenta pré-ambuto De igual modo, os problemas da bondade, da maldade, da con: cbrdia ou da agressividade dependem da maneira como se formam 0s grupos e como se incinam para a repressdo au para a exaltagdo das paixdes, inicas vmolas» do movimento, knicos focos de aac io. A crianca naturalmente socivel de Fourier no é feita para a solid3o, para uma educagao a s6s com um preceptor. E também 1 ¢ feita para ficarconfinada na familia, sozinha perante o pai ou ado que seja © grupo, por mais sedutor que seja 0 vocdbulo «ratemnidade. Se tomado a letra, este cobre apenas um campo restritoe limitativ, No, a cxianga ni € feta para a familia, mas também nao é feta para qualquer tipo de socializaczo salhelas, nem sobretudo para aquela, 2 escolar, que a Civilizacao Ihe impde. Falase hoje da escola como uma espécie de naturlidade quase consubstancial& crianca «Lima cana que no vai escola ndo é uma criancav, podemos ler petiodicamente nos catazes de propaganda em prol da escolariza Go das criangas dos paises pobres, e certamente com as methores intengdes, Crianga = cianca de escola ou aluno: a conseat boa e a equacao inelutive ‘a mle, ou mesmo com itmaos e itm, por mais al Assim, 0s grupos «falsos» na Chvlizagao sio principalmente, criangas, a familia e a escola. ‘A familia, sendo o menor agregado possivel,limitado a0 casal parental endo podendo, pela simples razao do carécterrestrito deste ndmero, abrir de forma suficientemente ampla o leque passional, € fonte de incompatibilidade de temperamentos e de personalida des. Sem divida que, para Fourier, no se trata nunca de associar caracteres uniformes au idénticos; pelo contrrio, a rivalidade que alimenta a emulacio, a intervencao da wabalista», ¢ indispensével a harmonia, Ea quantidade, © niimero, opera aqui na medida em que 6 ela comporta uma variedade suficiente para que sejam possives, simultaneamente, os acordos e os desacotdos, e, ente eles, as tran sigbes, as variagdes infinitesimais tao indispensiveis a continuidade de todo 0 movimento. A propria Civlizacao compreendeu muito bem que o meio mais ptopicio ao pleno desenvolvimento das capacidades do corpo e da alma no podia sera familia restrta,e tem razio, em parte, quando the atribui o grupo, mais numeroso e mais diverso deste artebata mento 2 familia, de cadinho de caracteres que constitui a escola, A falsidade do grupo é produzida, desta vez, pela incoeréncia, pela anarquia, pela indigéncia e pela simplicidade dos meios. Milhares de imétodos diferentes & superficie e que, no fundo, se reduzem todos @ mesma educac3o que sé faz intervir ~ e mesmo assim de um modo imperfeito ~ as faculdades do espirito. Que condena como vergo nnhosas as paixbes e proscreve o prazer. Um grupo que, além do mais, s6 agrega os individuos para os submeter uniformemente 3 autoridade de um meste tnico, numa relacdo unilateral, vertical, O saber é langado de cima para baixo, € 56 pode ser distribuido equitativamente quando & desejado e soli citado. No decorrer da letura, deixamo-nos seduzir pela perspicacia das observacies de Fourier, por tantas notas judiciosas referentes 8 maneira de captar a atencdo da crianga, de a motivar de modo a que seja ela, espontaneamente, a exprimir 0 desejo de aprender. (© que acabou por fazer Fourier colocar-se.ao lado dos pedagogos mais subtis;€ isto levou muitos sistemas contemporaneos de pedagogia activa a inspirarse nele em muitos aspectos, nomeadamente (refiro 20 acaso ¢ 20 correr da pena) a supremacia dos trabalhos manuais sobre 0s trabalhos intelectuais, um ensino nao livresco: a necessi- dade de juntar a afectividade @ inteligéncia; a funglo primordial de uma emulagio que ndo se confunda com uma concorréncia acerba pelos primeiros lugares, a necessidade, na crianca, da mudanca per rmanente, 0 que exige privilegiar as sessdes de curta duracdo, et. Pedagogo superior, &0 certamente Fourier na teoria da sua edu cago. Ele seré 6 isso? E seré mesmo isso? Pensar que sim seri, creio eu, um profundo cantra-senso. N3o 6 quanto as suas intengBes como quanto a0 efeto destas. Nao se trata apenas de adopt fiagmentos do seu método, mas de compre: ender o ponto de vista segundo o qual ee se coloca; de apreender 0 pré-dmbulo destocamento que ele exige: de nos transportarmos para um ponto conde vamos poder lancar um outro olhar sobre a crianca e atrbuir Ihe, no conjunto da sociedade, outro lugar, e de the confers outra funcio, Este deslocamento ¢ primordial; 0 valor pedagégico ver por acréscimo, Sem divida um valor de elevadissimo prego, de um alcance incomensurivel, mas somente uma vez que se tenha com preendido que o seu projecto no & de modo nenhum pedagogico que 0 que ele coloca precisamente em causa € a funcdo e a impor tancia dos pedagogos, a quem apelida de «pedantes» © papel que. na educaglo, ele thes confere é comparével a0 que atribui aos pais: nulo ou negativo, Nem 0 pai, nem o peda 070, slo 0 «mestre naturaly da crianca. O mest € 0 grupo, so as cfiangas da mesma idade ou de uma idade um pouco superior. ‘A admiravel pedagogia de Fourier esté fora da pedagogia: ou seja fora do seu campo. Fora deste wcampo pedagogico> que, desde os finais do século XVIIL, tem reforcado constantemente o seu dominio, até se apresentar como natural. Fourier comeca por pr em causa a sua lepitimidade; vra-o de cima para baixo. destri-o, Se entender- mos por pedagogia uma relacdoelectiva entre mest e aluno. ¢ por campo pedagégico o espaco neutro, a distincia que se estabelece entre um e outro, tudo isso, em Fourier, ndo existe. & por ai que é preciso comecar para 0 compreender: Zo absolutamente natural que propde. Uma vez cientes disto, entramos na via da solucdo dos nossos problemas insoliveis. Para a crianga, hd apenas um mest, existe uum s6 Deus: a atracedo, a atraccdo por palxd0 ou atracedo apaixo nada. E ha um s6 mestre, ou um s6 tipo de mestre: os seus amigos © 0 seu grupo. Qu melhor - e isso que é neces ai que tem origem a revolu: rio agora estabelecer com precisio, é isso que é especifico de Fourier, a sua invencio, a solugio, ao mesmo tempo miraculosa e natural, dos conflitos que preconiza -. 0 grupo no lugar que ocupa numa série Série € a palavra-chave: série de grupos. A associacao harmo: niiana é uma ordem serial. Enisto distingue-se da Civlizagio, das chefezinhos que apenas ‘manda, obrigar e punir, vigiar, para fazer reinar a ordem. Enguanto suas instituigdes, com chefe: 3 a série produz espontaneamente 2 order, pelo seu simples efeito, pois ela atrai. Ela 56 apela, em todos os seus pontos, as atracgoes apaixonadas, AA crianga de Fourier. se podemos usaresta expressao, nao é nunca o fiho-famiia ou a crianca «de paiss', nem a «crianga de escola». Toda @ ideia pedagigica refere-se a um modelo de relaco social entre 0 adulto e a crianca, Ela constrdi a educagao fixando-se num modelortipo. Este modelo é geralmente 0 de um par que delimita 1 plano social 0 adulto privlegiado com o qual a crianca se tera de haver, aquele que a define e a controla, que tem poder sobre cla. Os pares reconhecidos, normative, foram sucessivamente: © do pai-educador (Locke), contra o qual se levanta jé Rousseau, substituindo-o pelo par crianca-preceptor. Depois vem o par crianca sme, que Jean Paul antecipa na sua obra Levana e que governa, do lado afectivo, todo o século XIX até a actualidade, enquanto, do lado normative e educativo, vemos aparecer 0 psicélogo € a psic- toga, 0 psiquiatra a psiquiatra, 0 educador e a educador, e final mente o juiz e a juiza, e mesmo o policia a polica. Alo mesmo tempo que delimitam a drea de liberdade e de actividade da crianca, a sua area de jogo. citcunscrevern-na, definern-na € nomeiamna enquanto fiho ou filha, aluno ou aluna, pupilo, wmitidox ou adoles Cente, jovem delinquente ou pré-delinquente e delinquente. E por ai fora: poderos reconstituirfaclmente a série e 05 seus cambiantes, sempre situados no mesmo registo de tristeza, de opressio e de ridiculo (a nogao de «caractetialv, por exemplo). e sempre extrema ‘mente pobre ¢ incolor: esta linguagem da compreensao psicologica, da adaptacio ou da «perigosidades social exprime to-s6 a bareira intransponivelerigida pela pedagogizacéo entre as criancas e uma existéncia social activa 1 Expressio do escrtor Tony Duvert (1945-) na sua obra Quand mounut Jovathan pré-émbulo Com Fourier, entramos na infancia por uma outra porta, que € 2 da socializagdo imediata. O que & acompanhado, para o seu tempo, e relativamente ao entusiasmo pedag6gico nascente, de uma udespedagogizacZo». Deixa de haver preceptores, mestres e pedago- 0s: a crianca ndo é colocada numa situacio hierérquica vertical de fenquadramento por um ou mais adultos. Nao existe, pelo menos neste plano, a formacio de um par privlegiado. Por outro lado, pai € mie estio excluidos ~ mais precisamente desobrigados, dado que 2 atracco nao admite nada de forgado, de privativo ~ da guarda e da educacio da infancia, Poderdo dedicarse & sua palxio: a «mime ao», eminentemente antipedagogica. Apresentamos aqui uma bela pagina sobre esta tnica presrogativa dos pais na ordem societéia: 0 amor imoderado e sem inibi¢o educativa para com a crianga, que constitui a mimagao, desenvolvimento da paixdo animica menor do patemismmo: dita menor, como 0 amor, porque nela a atracco vem do inferior, que se sobrepbe ao superior. A estas despedagopizacéon ¢ «destamiliaizacion (que me sejam permitidas estas expressGes barbaras mas inevitaves) que ja 1 inicio do século XIX comecam a contrastar eutopicamente» com um movimento histércoiniciado pela Civilizagdo, convém acrescen- tar, relativamente ao nosso tempo, uma «despsicologizacaor. Quero signficar com esta expressio, igualmente horrvel, mas clara, que, retrospectivamente, a crianca de Fourier nfo é uma crianca «com problemas», uma acaracterialn, que deva ser posta sob a alcada do psic6logo para a fazeraderir, por efeito de uma interveno psiquica, uma ordem com a qual est em conflito, mas que é tratada como tum ser humano a parte inteire. um ser cujos impulsos, as pabxoes as rebelides tém, pelo contrério, raz3o contra a ordem subversiva da Civilizagao. € ela a grande culpada. As atracc6es. pelo seu lado, ditam 2 «via naturaly, wquerida por Deus», da organizacio socal, da inserg2o do individuo, n2o cestamente no grupo restito da familia, nner no grupo falso e artificial da escola, mas em séries atractivas e passionais, ‘Abordemos enti estas. |As series, de uma maneira que é talvez mais directa e mais imediata: mente compreensivel para n6s, so apelidadas por Fourier de seitas (de onde vem a designacdo de ssectérios») na primeira edicdo da Théorie des quatre mouvements. A palavra, que poderia ser desacte ditada quando pensamos no fanatismo das seitas, contém porém uma conotagao muito clara de atractividade apaixonada, entusiasta, de congregacdo nao forcada e todavia auto-disciplinada, hierarqui zada, contrastada, produzida pela simples forca da atraccao, da emulagdo mutua. Estas seitas, cujo modelo civilzado & dado para 05 adultos pelas coteries e pelos clubes, sio criadas espontanea mente pelas criancas quando formam os seus bandos. Ao par intra- familiar ou pedagégico, Fourier opde a espontaneidade dos bandos; 20 aluno, 0 mido da tua. esse 0 seu modelo, a wnaturalidade> da crianca, a referéncia social, De igual modo, o problema da «socializa- ‘o» muda radicalmente se, em vez de tomar problemtico 0 modo como a crianca vai aceitar os outros, a apanharmos em flagrante delito de socializacao espontanea, origindria. Que fique bem entendido: isso nao significa que a individua. lidade de cada crianga se perca na massa uniformizada, mas, pelo contrério, que ndo existe crianca que no tenha, atractivamente, © ue a sociologia ulterior apelidaré de socius ou, mais simplesmente, tum grupo de eleic3o na qual ela se sente livre, se sente uela préprian, adequado para dar livre curso as-suas inclinagdes e aceder, sem coer Gio, a tudo 0 que a atra Esta observacao deve precatarnos contra uma interpretacdo errada da recusa de Fourier em especuiar sobre a individuacio abs- tracta da Crianga (a maneira do Frito). Essa letra conduzitia & ideia de um alinhamento colectivo, de uma atenuacio ou de um aplainamento da originalidade individual por uma disciplina, por uma anegimentacao. éindubitével que, nos quadros que Fourier apresenta na sua ima ettica da inféncia (paradas,evolucdo de grupos, cavalaia infantil) hé ualquer coisa que roga o militar; que evoca, em diversos sentidos, pré-émbule 0 liceus napoléonicos, as criancas das escolas militares, as exibi Bes de gindstica, as juventudes hitlerianas, os pioneiros soviticos. 0s «voluntirias®iranianos, etc. Esta objeccdo deve ser encarada de rent, pois € prejudicial. Se admitirmos que existe arregimentacao nia educaco harmoniana (unitaia), ela torna-se efectivamente a prefigurac3o de toda a educacdo totalitaia, e muito menos ut6pica ddo.que se pensa, pois vimo-la concretizada na Alemania, na Rassia, na China € no Médio Oriente A resposta fourieriana pode ser dada em dois planos: em pri imeiro lugar, 0 éxito histérico destas aregimentacdes da juventude reside no facto de elas terem sabido usar a gosto, na crianca, da emulacio de grupo, do uniforme, dos ornamentos espaventosos, da exibigao, et. ~ coisa perante a qual as democracias sempre hes taram, em nome de um individualsmo estritamente juridico, ou seja. o elemento passions e estético. Além disso este elemento ndo pode ser conetado com qualquer formola juridic precisa: é incom parével tanto com a ideia abstracta de «pessoa» como com a idea, igqualmente abstracta, de econsciéncia colectivar. Ao reler Fourier através dos seus textos, econfrontando-os com a nossa actualidade talvez sejamos mais do que nunca sensiveisfragilidade da fronteira que separa as paradas infants do falanstério, a sua cavalariazinha, as suas pequenas espingardas € 0s seus pequenos canhies, eas espin gardas e metralhadoras reais das criancas que, da Nicardgua 20 Ird0 € a0 Cambodja, se sacificam, matam e morrem por causas incom- preensiveis. Em minha opinido, a educacao do falanstério ndo pode contornara prova deste confronto, mas sai dele facilmente vitoriosa pois escapa a essa enmaditha dissimulada que é, para a Cilizacio, querer ignorar, contra toda a evidéncia - as formas rivalizantes hherbicas da atraccao passional | Podertmos relei-nos & andlise efectuada pels autores de Mile plateaux sda esepmentaridades — de que os regimes militares e fascists conferem um ‘exemplo ~ que estd sempre em vias de se reconsttur paracortare desir os ‘flurselibertos do deseo. etd sempre impassvelevitr esta ambiguidade da ‘desteitialzachow do desejo com as suas fxagSes perversas que exigem que ‘mantenhamos viva uma prudénci constante Com a antipedagogia de Fourier, o egoismo, o culto do eu, a busca obsessiva da identidade, da identificacdo, que se encon tram no centro desta xpessoa» que se quer implantar em todas as criangas, foco egoista de toda a educacao civilizada, deslocam-se para outro centro, para outro foco denominado «uiteismo», Nao devemos dizer que temos, por um lado, uma realidade, a da identi- dade pessoal, ¢ por outro uma utopia, em ditima analise perigosa, a de uma subordinacio do individuo ao grupo, a da sua fusio nele. Com efeito, a identidade pessoal ¢ igualmente ut6pica, mas como lum incentive, um fir jamais atingido, ponto de fuga inacessivel que visa manter a crianga num estado de imaturidade permanente. precisamente aquela que, para toda a educacfo civilizada, define a imenoridade relativamente 3 maioridade. Pelo seu lado, a insercdo em Fourier do individuo no grupo ou ra série, a0 contrétio de ter 0 sentido de uma fusio, possui a de tuma exaltagdo da intensidade passional. Aqui, o estudo da infancia vai ao encontro da andlise geral das paixdes, ¢ confirma-a, segundo a qual 2 Civilizagio no pode dar mats do que estimulos passio nals, mas sem 0s conduzir a um pleno desenvolvimento. O termo «socializagao», fomecido sem maior preciso, poderia no entanto ser enganador: nfo ha um individuo que se insere no grupo, hé um spo originatio gracas 20 qual o individuo evolui e descobre em si mesmo a possibilidade de desenvolvimento, de crescimento do que de outio modo, s6 teria conhecido o impulso restrito de uma paixdo bloqueada. A organizacdo serial ou insercdo da crianga na ordem societéria ndo & uma diminuigdo de forcas ou de energia, nem uma erivacdo que alteraria brutalmente o seu curso, Nao s6 a enetgia é exaltada, mas 0 seu objecto € conservado. O exemplo privlegiado, paradigmatico e central, o das «pequenas hordas» ~ que assenta no gosto da porcaria ~, mostra que é através do desenvolvimento deste mesmo gosto que a crianga atinge a mais ata exaltacdo da sua exis téncia simultaneamente individual e social; ela nfo se sacrfica por nenhuma causa, ainda que a sirva. Com efeito, esta scausa» € tam bém o objecto do seu prazer. Esta alianga paradoxal do individuo € do grupo torna incl qualquer «cowreccdo por parte do adulto. pré-dmbulo Ela assegura desde logo. para toda a crianga, uma liberdade plena e Um estatuto de «maioridade. © importante permanece que, para Fourier, nfo existe nenfuma rmenoridade juridiea nem soeial da infancia, ou seja, uma menos dade que implique uma tomada em mos. uma apropriacao que se encontra no préprio fundamento da concepeo educativa cvilizada, Menor, a ctianca desfruta de capacidades menores € de direitos rmenores. Os tnicos que possui dependem do adulto e confirmam a supesioridade deste, Sdo de proteccao. Pelo contritio, na Harmonia ndo existem bareiras no que respeita 3s fungdes industias e civ cas. a ndo ser a barreira natural da puberdade, a qual teremos aids de volte Esta inexisténcia de menoridade jurdica apresenta dois aspec tos, desenvolve'se em dois plans, ligados, mas diferenciéveis: a crianga nfo esté submetida, para a sua educacao, & autoridade do adulto, Nao forma, socialmente, um grupo separado: do mesmo modo que no é menor, no constitu, como por vezes se reivine dicou para ela, uma sociedade a parte. O que a relegaia para uma espécie de reserva, ainda que esteja presente em todos 0s lugares da vida social. Ela nao é uma menor, embora muitas das suas actvida des, dos seus grupos, dos seus instrumentos sejam denominados, mas por acordo tacit, gentilmente, podemos mesmo dizer decora tivamente, «minimose. O simples facto de atribuir paixdes 8 cian conferea esta uma maioridade recusada, ou, se assim se pode dizer, emaiorizam-na>, Pensamos em La Bruyére: «s8o jé homens». Em Fourier nfo ha em nenhum lado, relativamente 8 crianga, «compre ensioe, ou seja, um entemecimento, uma maneira de use debrucar sobre», Apesar de haver ciitcas firmes e inequivocas para com a exploracdo, o trabalho das criancas nas fabricas. Mas é porque 5 fabricas, € nao, particularmente, por serem criancas. Os crimes da Civilizacao nao so abordados pelo lado da piedade, mas da contra digdo € do ridicule, A diferenca entre aquilo a que podertamos chamar a orienta lo humanista da pedagogia, que acabaré por triunfar arancando a ctianga ao trabalho ¢ escravizando-a nas escolas, € 0 que, em con: ‘radicdo com toda a tendéncia do século, forma a utopia fourierista, consiste numa deslocagdo de ténica. Nem o trabalho nem a fusdo na sociedade adulta sio em si mesmos exploradores da crianca, mas sfo-no tio:s6 pelo deseonhecimento da atracedo. & preciso acres centar imediatamente — pois isso € de extrema importancia para uma sociedade que esta a preparar a uniformizagao da crianga ~ 0 desconhecimento das atraccdes diferencias. Esta é a razio pela qual 2 educacio harmoniana dé tanta atengao 8 observacio e & orientacdo original das vocagGes e dos caracteres. E por isto € preciso entender simultaneamente o facto de néo dest: ‘nar uma crianea, porimposicio adulta, a uma funcio que a repugna, mas também a auséncia de fixacao defnitiva de cada crianga a uma 56 vocacio, uma sé tarefa, em virtude da diversidade das atraccoes industrais que existe num mesmo individu e da accdo da paixao altemante ou borboleta que as desencadeia, Esta possibilidade de rmudar no tem nada a ver com um estado de coisas em que, sob 0 pretexto de worientacdo» ou de preparacdo preliminar para diversos empregos, de sformacio polivalente». a crianga é pasta em espera em suspensdo de actividade produtiva e de vida, condigao essen ial da sua menorizacdo. E preciso insists, de novo, na auséncia de ‘enquadramento e de subordinacdo pedagégica que faz com que a presenca constante do adulto vigilante deixe de ser exigivel a par tir da dade dos lactentes e dos pequerruchos, ou seja, cerca dos dois anos e meio: «Podemos assim. a partir dos dois anos e meio, logo que a crianga esti em condigoes de andar convenientemente abandoné:la & atraccdo» (V, 24). E, 0s quatio anos. podemos afir- mar sem hesitaco que, dado que & capaz de se desenvencilhar sozi nha e de gantara vida, ela ¢ incontestavelmente «maior. Anteriormente ela teve de se haver com boninas e boninas que se dedicam a mimé-la, no por dever, muitas vezes desagradive ‘mas por atracc3o apzixonada. A ctianga da Harmonia nao tem para com ninguém essa

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