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Georg Simmel Filosofia as Anion yppc MON 06258/99 Dates Titulo original: PHILOSOPHIE DE L’AMOUR Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., S40 Paulo, 1993, para a presente edicao I* edi¢do brasileira: margo de 1993 Traduedo: Luis Eduardo de Lima Brandao ‘Revistio da tradugdo: Paulo Neves Revisdo tipogrdfica: Mauricio Balthazar Leal Flora Maria de Campos Fernandes Producao grdfica: Geraldo Alves Composigdo: Ademilde L. da Silva Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes Dados Internacionals de Catalogagao na Publicado (CIP) » (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Simmel, Georg, 1858-1918. Filosofia do amor / Georg Simmel ; [tradugo Luts Eduardo de Lima Brandao : revisio da tradugio Paulo Neves]. — Siio Paulo : Martins Fontes, 1993. — (Colegao t6picos) : ISBN 85-336-0162-X 1. Amor I. Titulo. II. Série. 93-0648 CDD-128.4 Indices para catitlogo sistematico: 1, Amor : Antropologia filoséfica 128.4 08 direitos para a lingua portuguesa reservados & MARTINS FONTES EDITORA LTDA. lheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 000 — Sfio Paulo — SP — Brasil SUMARIO Algumas reflexdes sobre a prostitui¢o no presente e no futuro (1892) ... sexenes 1 Sobre a sociologia da familia (1895) ...........66 °19 O papel do dinheiro nas relagdes entre os sexos — fragmento de uma /filosofia do dinheiro (1898) 416 Cultura feminina (1902) ..ccccccccesceseeeeeeeees 67% Psicologia do coquétismo (1909) .........1 eee 93% Fragmento sobre o amor (escritos péstumos) ..-“119%~ Fragmentos e aforismos .. Posfacio 4 meméria de G. Simmel (G. Lukacs, 1918) o ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUICAO NO PRESENTE E NO FUTURO (1892) A indignac4o moral que a ‘‘boa sociedade’’ mani- festa em relacao 4 prostituigao 6, sob muitos aspectos, matéria de ceticismo. Como se a prostituicao nao fosse a conseqiiéncia inevitavel de um estaclo cle coisas que essa “‘boa sociedade’’, justamente, impde ao conjunto da populagao! Como se fosse a yontade absolutamente livre das mulheres prostituir-se, como se fosse uma di- io para clas! Claro, entre a primeira ve © inforttinio, a solidao sem recursos, aa em que éncia de al- guma educagéo moral, ou ainda o mau exemplo do am-= biente incitam uma moga a se oferecer por dinhciro e, por outro lado, a indescritfvel miséria em que, de ordi- nario, sua carreira se encerra, claro, entre esses dois ex- tremos, existe na maior parte do tempo um periodo de prager e despreocupagiio. Mas a que preco © quao bre- ve! Nada mais falso do que chamar cle ‘‘garotas de vida alegre’? essas infelizes criaturas ¢ entender por af que FILOSOFIA DO AMOR elas vivem efetivamente para a alegria: talvez para a ale- Bri estima que seja uma delicia, noite apés noite, em qual- alheia, mas n&o decerto para a delas. Ou acaso se quer tempo — calor, chuva ou frio —, bater pernas pe- las ruas para oferecer uma presa ¢ servir de mecanismo ejaculatério ao primeiro individuo que aparecer, por mais repugnante que seja? Acaso se cré realmente que (al vida, ameacgada de um lado pelas doengas mais in- fectas, de outro pela miséria e pela fome, e em terceiro lugar pela polfcia, acaso se cré que essa vida possa mes- mo ser escolhida com esse livre-arbitrio que seria a Gni- ca coisa a justificar, em contrapartida, a indignac&o mo- ral? Sem dtivida, a prostituigio superior, fora de con- trole, se vé melhor aquinhoada por mais tempo. Se a mulher for bonita e conhecer um pouco a arte da recu- sa, se ademais fizer teatro, ent&éo pode escolher os can- didatos e mesmo as pulseiras de brilhantes. A parte o fato de que a queda é, de ordinario, mais grave quando a interessada no tem mais a sua disposi¢&o os encantos que lhe permitiam comprar a vida in dulet jubilo, a so- ciedade se mostra curiosamente muito mais indulgente para com essa prostituigao mais refinada (por certo ca- paz de se arranjar globalmente bem melhor do que a prostituigio de rua e de bordel) do que para com a pros- tituicao de baixo nivel, a qual, no entanto — supondo- se que haja pecado nisso —, é muito mais sancionada pela miséria de sua existéncia do que a primeira. A atriz, que nada tem de mais moral do que a mulher de rua c, talvez, até se revele bem mais calculista e vampires- ca, é recebida nos saldes de que a prostituta de calgada seria expulsa por c&es. As pessoas felizes, de fato, sem- ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUICAO 3 pre tém razao, e a lei tao cruel que quer que se dé a quem possui e que se tome de quem nada tem nfo co- nhece executora mais severa do que a “‘hoaseciedade”’. Esta, que em toda parte s6 enforca os ladréezinhos, tam- bém s6 despeja toda a sua indignacAo virtuosa sobre po- bres mulheres de rua} mostrando pudor apenas em fun- Ao da condicéo melhor ou pior das prostitutas, Isso por- que a sociedade vé no infeliz seu inimigo — e nao esta errada nisso. Porque esse infeliz, o individuo desfavo- recido por culpa sua ou nao, sobre o qual pesa um juizo de exclus&o eqiiitativo ou nao, ser4 responsabilizado pela coletividade por nao ter obtido melhor posi¢4o em seu seio| Ele a detestar4, e ela o detestara em troca, langan- do-o mais baixo ainda. Do mesmo modo que 0 feliz pos- suidor recebe em acréscimo, além dos beneficios dire- tos da sua situacdo, um prémio de felicidade devido ao fato de a sociedade respeitd-lo, elev4-lo ao pinaculo e conceder-lhe por toda parte a prioridade, também o in- feliz ser, em acréscimo, punido por sua desgraca, por- que a sociedade trata-o como seu inimigo nato. Pode-se observar todos os dias que 0 abastado escorraga 0 men- digo com cdlera, como-se-fosse.um erro moral ser-pebre, -comose.issa justificasse, poig, a indignagio virtuosa. Nes- te caso, como é freqiiente,‘a mA consciéncia que o rico sente face ao pobre escondese atras da mascara de uma legitimidade moral de maneira tao contfnua, com pseu- do-razées tio peremptorias, que a prépria vitima acaba acreditando*A diferenga que a sociedade estabelece as- sim no jufzo e no tratamento que reserva a prostituigao elegante ed prostituig&o miseravel 6 um dos exemplos mais esclarecedores, ou mais tenebrosos, da eqiiidade 4 FILOSOFIA DO AMOR dessa sociedade, que torna o desgracado cada vez mais desgracado, perseguindo-o por causa da sua desgraga, como se se tratasse de algum pecado cometido contra cla’ Talvez o faga por uma obscura antecipacao, a sa- ber: ele poderia ter a forte tentagao de cometer, de fato, um pecado contra ela, | Esse tipo de relac4o autoriza-nos designar a prosti- tuicao — t4o antiga, porém, quanto a histéria da civili- zacéo — como um produto, em sua ess@ncia atual, de nossas condigGes sociais. As culturas num estagio infe- rior nao véem nada de chocante na prostituigaéo, o que é bastante compreensfvel, porque ela nao tem para es- tas a nocividade social que possui num estado de coisas mais evolufdo:*Entre os Iidios da Antiguidade, segundo Herédoto, as mogas se ofereciam por dinheiro, para for- mar um dote; em muitas partes da Africa, o mesmo cos- tume prevalece ainda hoje e nao debilita o respeito de- vido As mocgas — entre as quais encontram-se, nao ra- ro, as princesas reais —, como tampouco impede-as de se casarem ¢€ se tornarem mulheres absolutamente hon- radas Temos ai, bem forjado, resqufcio de um estado\ globalidade e, portanto, de certa forma subtrai-se a uma obrigacao social casando-se com um sé e Gnico homem; pelo menos ela deve, até suas bodas, cumprir essa obri- Bacio entregando-se a qualquer um. E essa conduta se _ eleva tao alto na ordem moral, que até se vé aparecer @ prostituigao cultual — uma entrega de si cuja ren- i, de fato, destinada ao tesouro do templo, como relata acerca das mogas da Babilénia. antigo da sexualidade ainda nao regulamentado, a idéia’ de que cada mulher pertence, de fato, 4 etnia em sua | ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUICAO 5 Tudo isso s6 é possivel se ainda nao ha economia monetaria estabelecida de maneira permanente “Porque assim que o dinheiro-se-torna.a. medi as as OU- tras.coisas — uma infinidade de objetos extremamente diferentes podendo se obter em troca dele — ele mostra uma auséncia de cor e de qualidade que, em certo sen- tido, desvaloriza tudo aquilo de que é 0 equivalente? O_ Oo dinheiro é a coisa mais impessoal que existe na vida pra- tica; como tal, é dg todo inadequado a servir de meio de troca contra um valor tao pessoal quanto a entrega de ima mulher./Se, todavia, desempenha esse papel, rebaixd a seu nivel essa realidade individual de valor es- pecifico, provando ento & interessada que ela nio poe sua propriedade mais pessoal acima desse meio de tro- ca, que equivale igualmente a milhares de outras coisas de menor prego. Onde o dinheiro ainda nao constitui a medida de quase todos os valores da existéncia na mes- ma medida que entre nés, portarito quando ainda é al- go mais raro e menos usado, a c2ssio do bem pessoal em troca dele nao é téio degradante. Ao que se acres- centa o seguinte: quanto mais as mulheres se encontram numa posigSo inferior, mais permanecem ligadas ao ti- po genérico ¢ menos se manifesta cssa diesproporcao entre a mercadoria e o prego.” Nas culturas mais primitivas, onde as mulheres em particular sao ainda menos indi- vidualizadas, a dignidade humana nfo sofre tanto com o fato de que elas se entregam conte um valor tao pou- co individual quanto o dinheiré" Mas em condigdes mais evolufdas, como as nossas, onde o » dinheiro torna-se ca-_ da vez mais impessoal por podermos comprar cada vez mais coisas com ele, enquanto os humanos, por sua vez, BIRLIG ECA CENIRAL | UFPB 6 FILOSOFIA DO AMOR (ornam-se cada vez mais pessoais, a aquisigaio desse bem (ao fntimo mediante moeda parece cada vez mais indigna “ fornece uma das causas essenciais da arrogancia dos capitalistas, do abismo vertiginoso que se abre entre a posse e a oferta:“O bem préprio da pessoa humana, o mais sagrado de todos, sé deveria poder ser obtido na medida em que quem o procurasse cedesse, por sua vez, sua pessoa e€ seus valores mais fntimos/— como sucede no verdadeiro casamento. Se é notério, porém, que basta # dar cdinheiro para consumir tal bem, ver-se-4 entio, lo- . gicamente, instalar-se, face aos nao possuidores que en- tregam tudo a tao vil prego, o desprezo e a ignorancia do valor pessoal, e isso nao sem uma ingenuidade de preende, ou melhor, que nfo nos surpreende mais, Co- mo, com demasiada freqiiéncia, a distancia entre os de cima e os de baixo afunda cada vez mais os de baixo © também rebaixa moralmente os de cima, e como a es- cravidao degrada nao’sé 0 escravo mas também seu amo, assim a despropor¢ac entre a mercadoria € o prego, ates- | (ada em nossos dias pela prostituicao, significa a depra- vacéo nao sé daquelas que se entregam desse modo, mas também daquelesj que disso aproveitam! Cada vez que um homem compra uma mulher por dinheiro, vai-se um parte das classes superiores que muitas vezes nos sur- pouco do respeito devicdo a esséncia humana; e, nas clas- ses ricas, onde tal pratica é cotidiana, é esse fato, sem diivida, uma poderosa alavanca da presungo que a posse eat j oe ‘ do dinheiro gera,'dessa mortal ilus&o a respeito de si que leva a pensar que tal haver confere 4 personalidade co- mo tal um prego qualquer, ou um sentido interior. Es- a total deformacio de valores, que cava um abismo ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUICAO F cada vez mais intransponivel entre o possuidor e a pes- soa obrigada a deixar-se comprar, é a sffilis moral que decorre da prostituigao e que, como a sifilis propriamente dita, acaba infectando também os individuos nao dire- tamente envolvidos nessa causa primeira. Essas reflexes indicam o tnico ponto de vista a par- tir do qual a prostituigao pode ser corretamente julgada tanto quanto ao presente, como quanto ao futuro, a sa- ber: no contexto da situagdo social e cultural global. Se a considerarmos isoladamente e nao a seguirmos até suas raizes, que se estendem por toda a superficie do solo em que se edifica a sociedade, correremos 0 perigo de avalia- la a partir de uma ‘“‘moral absoluta”’ e, assim, julg4-la sem compreendé-la, seja banalmente, seja sem eqiiida- de. A necessidade da prostituigao nas culturas de nivel mais elevado baseia-se na defas¢gem temporal entre o inicio da maturidade sexual e a maturidade intelectual, econémica e psicolégica do homem. Porque esta ultima, com razao,' é exigida antes que_a sociedade autorize o homem a fundar seu préprio lar, Contudo, a luta acir- rada pela existéncia nao cessa de adiar a independéncia econdmica. As complicadas exigéncias da técnica pro- fissional e cla arte de viver proporcionam cada vez mais (arde a plena formagiio do espirito; o carater deve se im- por através das dificuldades sempre crescentes das si- tuagdes, das tentag6es, das experiéncias, para que se lhe possa confiar a responsabilidade de outras existéncias, a edueagio das criancas. Assim, o momento em que um shomem pode legitimamente possuir uma mulher é re- tardado cada vez mais ©, como a constituigdo fisica ain- da nao ge adaptou a esse estado de coisas, despertando 8 FILOSOFIA DO AMOR alids 0 instinto sexual com uma precocidade bem pouco mudada, é fatal que um aumento de cultura acarrete uma necessidade maior de prostituigio. Podemos deixar de lado aqui a questio de saber se um aumento da morali- dade nfo estaria em condigées de reprimir as pulsdes pré-nupciais, porque, justamente, nada caminha nesse sentido por enquanto, e porque queremos contar ape- nas com fatos. As associagGes pré-moralidade pretendem, por certo, que tal repressao seria no sé possivel como desejavel, no interesse da satide Contudo, de que ma- neira a natureza seria indulgente o bastante para auto- rizar que se desdenhe impunemente tio forte instinto, simplesmente porque as contingéncias da cultura nao lhe permitem satisfazer-se com toda a legitimidade? Em su- ma, uma necessidade de pessoas aptas a satisfazé-lo existe na sociedade ‘Por outro lado, esta se dé conta de tudo © que perde com essas vidas jogadas fora e nao ignora em absoluto que essas mulheres sdo pura € simplesmente massacradas, vitimas das pulsdes alheias\\K, pois, mui- to bonito que a “‘boa”’ sociedade tenha semelhantes sen- timentos; no entanto, é bastante estranho que ela seja tao sensfvel sobre esse ponto ¢ mostre uma consciéncia moral tao delicada em nome das vitimas que sua pré- pria conservagao custa!'Acaso ela nao delega, sem ou- tra formalidade, milhares de trabalhadores 4s minas, itinando-os a uma existéncia que mal vé o sol e que, apdés dia, ano apés ano, é sacrificada em relagao a — aparentemente o sacrificio de servigos bem | na realidade o sacrificio de uma vida inteira? | @ servico, tal como no caso das prostitutas ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUIGAO 9 — adespeito de um contetido absolutamente divergen- te —, determina 0 nivel da existéncia global, impondo por si mesmo 9 mais estreito limite a seus atrativos € suas liberdades: Do mesmo modo que o desempenho téc- nico e cientifico relacionado ao trabalhador nao pode se reduzir ao fato de que este Ihe custa sofrimentos no mo- mento, mas encerra implicitamente sua formacao ante- rior € todo o seu passado, também hd no servigo das pros- titutas todas as suas conseqtiéncias e conexGes, a atitu- de global e o futuro global do prestador do servigo, que se acham numa relac3o tao necessdria com o servigo quanto o passado acima mencionadoy'O falso individua- lismo, que destaca o individuo de seus bens sociais para considerd-lo ‘‘em si’, isola igualmente seu servigo dos vinculos que tem com o resto de sua vida e desconhece que a sociedade, parecendo nao pedir mais que o sacri- fico dos servigos isolados, exige de fato, tanto do minei- ro quanto de intimeras outras pessoas, 0 sacrificio de sua vida inteira. O trabalhador da mina de arsénico ou de uma fabrica de espelhos, em suma, de toda empresa que apresente um perigo imediato ou uma ameaga de into- xicagiio lenta, acaso nao representa puros sacrificios que a sociedade impée a outros, ou, digamos, a si mesma, para sua prépria conservacgao? E ‘Ke os reclama ou os fornece sem se comover com isso. Por que, entao, nao sacrificaria alguns milhares de mogas para possibilitar As + homennals: casados uma vida sexual no} mal € pro- C pea ulheres Serd que eapelhos seria mais importante que ver com sangue-frio mo- 10 FILOSOFIA DO AMOR cas langadas na perdicdo, na rufna exterior e interior; ja-se ent&o conseqiiente o bastante para se indig- nar também com, esses outros sacrificios, muitas vezes bem mais cruéis’ Pois é uma medida estranhamente de- sigual a que se aplica af, conquanto as razdes dessa de- sigualdade tampouco sejam dificeis de detectar. Elas re- sidem, de um lado, em que no se gosta de confessar abertamente a necessidade da prostituig&o no atual es- (ado de coisas; de outro, em que se repugna igualmente considerar a existéncia de ditos trabalhadores como um sacrificio na e pela sociedade! Essas duas tendéncias, mais a dificuldade de reconhecer a identidade da forma atra- vés da diversidade imensa dos casos em matéria de con- tetido ¢ de moral, fazem que a identidade de comporta- mento social em relag4o 4s duas categorias seja rejeita- da ao invisivel. \\ Num ponte, nao hd ilusdio alguma a se ter: enquanto © casamento existir, a prostituigao também existira] E s6 com o amor plenamente livre, quando caducar a opo- sigio entre legitimidade e ilegitimidade, que nao se pre- cisard mais de pessoas especiais dedicadas & satisfacao sexual do género masculing! Para nao ser contraido le- yianamente, com risco de perder ambas as partes, 0 ca- samento monogamico com obrigagio de fidelidade — pelo menos diante de si mesmo — deveré ser realizado numa idade em que o instinto sexual j4 se manifesta ha anos, Sem dtvida, numa sociedade socialista, o limite do casamento seré abaixado, dado que o individuo ver- get aliviado da preocupacio econémica individual pa- fa com amulher e os filhos; mas dever-se-ia, ent&o, exigir mais certa maturidade por outro lado, a fim de i ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUICAO 11 que essa facilidade exterior nao leve a aliangas estabele~ cidas apressada e frivolamente; e, muito emboral uma educagao melhorada possa acelerar a vinda dessa ma- turidade/ um fato a ela se opde: 0 aperfeigoamento das espécies na natureza, e também do homem, supde um retardamento de toda evolugao, pois os filhos de pais de- } masiado jovens sao débeis ou degenerados. Ora, dado Me que as impulsdes poligAmicas se encontram na nature- | za masculina, 0 casamento monogamico exige, inclusi- ve depois da supress&o de todas as dificuldades econé- 4 micas e visto unicamente como uma institui¢gado erdtico- moral, um tipo de homem que tenha tido a oportunida- de de » examinar e se conhecer, nao um adolescente em flor, ainda que, por certo, ‘nele também se agitem em plena forca as pulsdes carnais, Se, de um lado, nao se pode autorizar este tltimo a ligar-se a uma mulher para o resto da vida, de outro nao se poderia recusar- lhe a expressiio de seus instintos naturais. Mas como dever4 satisfazé-los? $6 restam duas for- mas possiveis.! Seja a que encontramos em muitos po- vou primitivos, em que as mulheres tém, antes do casa- mento, a escolha plenamente livre de sua vida amoro- , sem serem impedidas, nem exterior nem interior- ‘ Tanta) de contrair a seguir um casamento monogAmi- i wtituigho, que designa inteiramente para euups naar todas as de- dalbilidade {Quan- humanidade, mais homem ¢ mulher; filo se fizer mais por ar na simpatia puramente 12 FILOSOFIA DO AMOR interior, a auséncia de freios que o precede nio lhe for- ne mais a base para se edificar. Nessas circunst4n- cias mais grosseiras, em que ndo existem ainda as mais clevadas inter-relagdes psiquicas entre os sexos, a vida anterior da mulher pode permanecer indiferente em re- i lagao ao casamento; porém, quanto mais 0 casamento se interioriza e se personaliza, mais se complica o salto que leva da poliandria a cle. Sem dtivida, isso também vale aparentemente para o homem, mas esse fato nao o impedira, como nao impedira a mulher, de satisfazer antes do casamento seus instintos fisicos, visto que es- ta, pelo seu cardater sexual psicoffsico, chega & maturi- dade nupcial antes do homem e€ pode, por conseguinte, casar-se antes dele; os motivos econdmicos nao se opo- rao mais a isso, como hoje em dia, e portanto todo o problema desaparecera mais ou menos para elas. En- quanto 0 amor livre nao se generalizar, sempre sera pre- so certo ntimero de mulheres para preencher a fungio das atuais prostitutas Que nZo haverd mais prostitutas a partir do momento em que nao forem vitimas da mi- séria, € uma objegdo evidente, mas nao de uma solidez a toda prova. Porque as necessidades sociais suficiente- mente fortes criam quem delas se encarregue, a todo e qualquer prego. As finalidades sociais proporcionam-se os Orgios de que carecem, nao s6 quebrando exterior- mente as resisténcias individuais, mas também superan- do-as no interior das préprias pessoas. |Todavia, acon- cla nenhuma, que se eleve a posicZo das pros- Se, por um lado, adere-se firmemente a ins- ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUICAO 13 tituicdo do casamento, se, portanto, admite-se que este s6 poderia ser contrafdo bastante tempo depois da ma- turidade sexual dos homens, e se, enfim, quer-se que os instintos nao sejam reprimidos (quando mais nao fosse por ser isso impossivel), sem tampouco pér a disposigio / deles a totalidade das mogas, dai decorre que se impoe uma reforma da prostituigao, e que seria perfeitamente injusto fazer as mogas submetidas a semelhante exigén- cia social arcarem com o 6nus disso. Ora, \a sociedade burguesa faz exatamente assim, as prostitutas s40 0s bo- des expiatérios que se punem pelos pecados cometidos pelos homens da ‘‘boa sociedade’’ | E como se uma cu- riosa deformagao ética oferecesse uma expiagio A mA eonsciéncia social, fazendo a sociedade rejeitar cada vez mais as vilimas de seus pecados, submergindo-as numa desmoralizagio cada vez maior: ela se arroga 0 direito de tratéelas como criminosas./E um carater constante de nossa sociedade cobrar as mais elevadas exigéncias, em tmatéria de firmeza de carater e de resisténcia As ten- 4, precisamente daqueles a quem ela mais priva das cbes da moralidade, Ela pede ao proletario famin- pelto pela propriedade de outrem do que aos , lantras da nobreza; e exige do simplicidade méximas, nte doa olhos a ten- 4 FILOSOFIA DO AMOR ma, cla impée o dever de maneira tanto mais estrita ! quanto mais torna seu exercicio complicado. Uma or- ¢ ganizacao social mais moral mudaré as coisas. Ela re- conhecerd que nao se tem o direito de dar a quem quer que seja a ocasiao de sentir-se inimigo da sociedade;, mos- trard que, indimeras vezes, longe da sancao seguir o de- lito, foi a sociedade que comegou por punir, provocan- « do assim o delito; e quando admitir que existe em seu scio algo como a prostituicao — a qual serd necessdria enquanto a sociedade se ativer ao casamento monoga- mico — devera clevar a posigo social desse género de mulheres, para eliminar desta forma o aspecto nocivo do fendmeno. Porque, se a prostituigao € um mal se- * cundario, os fendmenos secundarios que dela decorrem por sua vez — desmoralizacao, depravacao geral das mentalidades, criminalidade das prostitutas — represen- (am os piores males, mas nfo lhe so necessariamente vinculados, porque procedem hoje apenas de sua posi- cio excepcional, devida ao regime exclusivo da circula- cio monetaria, 4 arrogdncia dos possidenies em relacdo A oferta e ao farisaismo de nossa sociedade. Quando, vilimas das circunst&ncias, as prostitutas nao tiverem mais de pagar pelos pecados alheios, no sero mais ten- (adas a merecer essa punicao de certa forma a postertort por seus préprios pecados. O que complica a construgao do futuro, a esse res- peito como a qualquer outro, €o0 fato de que podemos c apenas com a atual constituigao fisiolégica da hu- le, S6 poderemos apreciar a dose de prazer e de to e, de modo geral, as reagées fisicas que de- a extados de coisas por vir e que nos permi- ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUICAO 15 tirao medir o valor destes, se concebermos o efeito de semelhantes situagdes sobre nés mesmos; ora, somos pro- dutos do passado tal como este foi até aqui, e todo o nosso modo de sentir é determinado por circunstancias que se modificarao inteiramente em seguida. A posicao da pros- litui¢ao depende dos sentimentos sociais que ela desperta © nao podemos saber em que medida a eliminacdo do capitalismo e de suas conseqtiéncias os alteraré, Con- quanto se possa dar por certo o fim do atual desprezo pelas decaidas e de sua exclusao, que acarretam por uma terrivel interagdo sua desmoralizagio sempre crescen- te, € provavel que'a mulher que viver de maneira mo- nogdmica despertaré, enquanto subsistir o casamento monogaimico, o sentimento de um valor pessoal mais ele- vado que o da mulher que se entregar a varios homen: ©, na medida em que o casamento é 0 objetivo definiti- vo da relagio entre os sexos, a prostituicao continuard a ser sentida como um mal necessario™E esta a conse- qiiéncia do conflito entre as exigéncias da maturidade _ fextial © ay exigéncias da maturidade nupeial, conseqtién- cla eujo cardtoy, tragico nao pode ser suprimido, mas ape- alenuado, contanto que se vejam suas vitimas nao rio modifi- ual situacio rte que lei prove: tardia cesse 16 FILOSOFIA DO AMOR ). Mas, e se esse desenvolvimento individual mais coce nao fosse mais que a conseqliéncia do nao- nvolyimento da espécie? Através de toda a nature- za, vemos os seres se desenvolverem tanto menos de- pr e alcancarem tanto mais tarde o dpice da sua for- maciio quanto mais mostram nobreza e perfeicgao ¢ ocu- pam na escala geral uma posigdo mais elevada;\os ani- mais inferiores sdo os primeiros a se formarem comple- (amente. Talvez a opressao da mulher, que a fez apare- cer durante milénios como ser menos desenvolvido, te- nha tido essa conseqléncia; quanto menos numerosas as exigéncias a que um organismo dado deve respon- der, mais simples as fungdes para as quais ele deve se formar e mais rapido seu acabamentg) Ora, se agora de- saparecer a pressao exercida sobre as mulheres, de sor- te que sejam chamadas a abandonar seu estado menor para confirmar sua forca especifica, para desenvolver uas disposigdes mais diversas, pode ser que também se climine essa diferenga em relacgo aos homens e que so- brevenha nelas, ent4o, tao tarde quanto neles, o prazo da maturidade individual}, para elas também, nesse ca- so, a formagio do espirito e do carater requerida pelo asamento durar4 muito mais tempo do que a das fun- des e das pulsdes psicolégicas. Como essas tiltimas pro- curarao se exprimir, as mulheres ver-se-4o postas, por sua vez, diante da alternativa entre a ascese € a satisfa- ¢flo fisica antes do casamento. As conseqiiéncias de tal alclade cle condigdes para ambos os sexos s&o incal- eis, a nfo ser que nos percamos em fantasticas co- ; somos pouquissimo capazes de abragar com o mucangas simultaneas em todos os demais pon- ALGUMAS REFLEXOES SOBRE A PROSTITUICAO Le tos da constituic&o social, mudancas que contribuem de maneira decisiva para modelar as relacdes entre os se- xos. Devemos considerar como ideal tiltimo de toda es- sa evolugao a adaptac4o harmoniosa da formagao fisico- sensive] e da formag4o espiritual-caracterolégica, tornan- do ambas indissociaveis no tempo claf em diante. Se, nas culturas menos elevadas, a maturidade de fato sobre- yvém simultaneamente desse duplo ponto de vista, e se neles portanto a regulacao das relacdes entre os sexos simples, a cultura evolufda, ao contrario, dissociou os dois aspectos, criando com isso as dificuldades existen- (es nessas relagées. E uma tarefa da nossa organizacio, de eficdcia sempre crescente, re-harmonizar os aspec- fos em questo num nivel superior, em conformidade com as grandes regras da evoluciio, que, em seu auge, com freqiéncia espiritualiza, completa, reproduz no es taco purificado as formas de sua realidade primeira no estado nascente. — SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) As novas ciéncias que entram em cena gozam de uma vantagem duvidosa: a de terem a oferecer um re- fagio provisério para todos os problemas possiveis que esto no ar, pouco faceis de abrigar: Suas fronteiras ine- vitavelmente desprovidas de precisao ¢ defesa,atraem to- dos os sem-patria, até que seu crescimento expulse de novo, pouco a pouco, os elementos inconvenientes € os rechace para trds de barreiras por certo decepcionantes, mas por isso mesmo aptas a prevenir futuras decepgdes. “Assim, mal a massa confusa de problemas que acossa- vam a nova ciéncia da sociologia comega a se esclare- cer, esta pde-se a ndo mais conceder sem escolha o di- reito de asilo em seu seio e, conquanto n4o se deixe de contestar a forma mais precisa que seguem os contor- nos de sev domfnio, aparecem por toda parte sérios es- forgos cientfficos para determinar tais linhas. Por um mo- 20 FILOSOFIA DO AMOR mento, a sociologia pareceu ser a férmula magica que prometia a solugao de todos os enigmas, tanto da histé- ria como da vida prdtica, tanto da moral como da esté- tica, tanto da religidio como da politica, e ainda é bas- (ante comum assim consideré-la, por exemplo, na Fran- ca. Na Alemanha e na América do Norte, porém, nas- ceram essas teorias mais modestas, que renunciam a re- capitular numa s6 e tinica ciéncia o conhecimento de tudo © que ja esteve em jogo no Ambito de uma sociedade. “Flas compreencem a nova ciéncia como um ramo da psi- cologia, daquela que trata dos processos psiquicos oca- sionados no individuo pelo social ¢ expressos em termos sociais, seja como a ciéncia dos pressupostos comuns a todos os conhecimentos relativos 4 sociedade, seja co- mo a filosofia do devir social, seja enfim como 0 estudo dos termos em que os homens se socializam ¢ que mos- (ram a mesma esséncia e a mesma evolucdo através de toda a multiplicidade dos objetivos e dos contetidos em torno dos quais se cristalizam as sociedades?? Para todas essas finalidades mais bem delimitadas da sociologia, a histéria da famflia oferece um material de particular import4ncia: Porque temos af uma socia- lizagZo de um pequeno ntimero de pessoas, que se re- produz no seio de cada grupo mais vasto exatamente sob mesma forma e que cmana de interesses simples, aces- _ ifveis a cada um — portanto, um fendmeno facilmente é& em agrupamento duradouro, apesar de todas as 8 das outras formas de vida, podemos exa- SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 21 minar com precisdo sua esséncia prépria e sua for¢a, baseando-nos na influéncia que ela exerce em matéria de relacdes matrimoniais ¢ de parentesco; enfim 10 ca- samento e a famflia conjugam, apesar de sua estrutura simplissima, um sem-nimero de interesses bastante di- versos — eréticos ou econdmicos, religiosos ou sociais, interesses de poder ou de desenvolvimento individual —, mostrando com isso, por meio de um exemplo transpa- rente, como todos esses momentos, em sua combinac¢ao € na preponderancia alternada de um ou outro, atuam sobre a vida dos homens ju Ba partir desses pon- tos de vista que quero expor aqui alguns fatos e algu- mas reflexdes que decorrem das pesquisas e das andli- ses sociopsicolégicas mais recentes no dominio da his- téria da familia. A hipétese histérica que primeiro vem ao espirito éade que'6 casamento emana de um estado em que as relagdes entre homem e mulher nao conheciam mais regras que as existentes entre os animais e, portanto, mudavam arbitrariamentey’As disposigdes fixas, as nor- mas limitativas aparecem-nos, a principio, como esta- gios ulteriores de evoluges que comegaram por um caos absurdo, ¢ é assim que as relagGes definidas, duradou- ras, que designamos como casamento e familia, pare- ciam-nos poder resultar tao-somente da disciplina social, da busca comprovada da efic4cia; pois somos obrigados a considerar como 0 minimo do casamento essa relagaio entre o homem e a mulher que vai além do nascimento do filho e em que se exerce em comum uma previdén- cia vital) Essa concepgao que induz a uma auséncia do casamento, originalmente, encontrou seu principal apoio 22 FILOSOFIA DO AMOR no que se chamou de matriarcado. HA algumas décadas, como se sabe, descobriu-se que entre numerosos povos naturais, e provavelmente também nos primejros esta- gios por que passaram os povos hoje civilizados,\ndo era 0 pai, mas amie que constitufa 0 centro da familia, Mes- mo onde 0 casamento ja existe, a crianca pertence com freqiiéncia nao a etnia do pai, mas 4 da mie; o pai nao é tido como parente da crianga e esta, por sua vez, nao herda do pai, mas do irmio da mie. Era deveras tenta- dor explicar essa estranha relagaio como uma conseqiiéncia eum residuo de estados anteriores, em que o pai cm ge- ral nao era conhecido, porque nio existia lago nupcial definido e a comunidade das mulheres era o regime do- minante. Ora, descobriu-se recentemente que, em va- rios grupos de povos, s4o justamente as fracdes na base da escala que adotam o patriarcado e conhecem a des- cendéncia ¢ a heran¢a em linha paterna, enquanto as mais evoluidas tém a sucesso em linha materna, que deve ter se fixado no grau mais baixo e, em seguida, dele se afas- tado. Entre os fndios de estagio mais evolufdo, que, quan- do da chegada dos europeus, j cultivavam os cereais ¢ possufam uma sdlida organiza¢ao social, é sempre a as- cendéncia feminina que prevalece; entre os {ndios do es- tagio inferior, a que faltam ambas, é a masculina. A mes- ma relacao exatamente se encontra entre os aborigines da Australia; e mais: parece estabelecido que o patriarca- do era, 14, a primeira forma de familia existente e que a partir dele desenvolveu-se, por motives ainda desconhe- los, a sucesso em linha materna, isto €, a filiagZo da ca A tribo da mie, se bem que, no caso, nao se trate munidade de mulheres, nem de paternidade incerta. SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 23 Esse argumento maior, que depédc a favor da au- s¢ncia inicial de qualquer relag&o individual e duradoura entre homens e mulheres, mostra-se assim caduco. De resto, oferece-se aqui uma visao interessante sobre o sen- tido de todas essas reconstituigdes de estados anteriores a partir dos mais tardios. Bascando-se nos efeitos do citt- me, um pesquisador é, por exemplo, levado a construir a necessidade de um estado originario de liberdade com- pleta e de promiscuidade. Porque se, desde 0 inicio, ti-)) vesse existido uma propriedade privada das mulheres, nenhuma formagio tribal, nenhuma organizacdo teriam sido possfveis: os sentimentos ciumentos dos homens te- riam sufocado em germe toda vida coletiva préxima, toda associacao cooperativa’’ Para que se chegue a uma vida assim, 4 constituigao de grupos maiores ¢ mais duradou- ros, precisa-se supor uma tolerancia recfproca dos ho- mens adultos, uma auséncia de citime, isto é€, portanto, relagdes sem limites entre cada homem e cada mulher. / Outro estudioso conclui rigorosamente o inverso: é jus- tamente no seio das situagdes que acabamos de citar que © citime devia se desenvolver continuamente. Enquan- to nao ha relagSes regulamentadas entre os sexos, pre- tende ele, o homem tem uma propricdade exclusiva de sua companheira, que est4 fora de cogitacao para os ou- tros, ¢ a luta pelas mulheres — visto que elas nao sao todas igualmente desejaveis — € obrigatoriamente a fonte de constantes querelas entre os indivfduos masculinos. «* Foi preciso, a princfpio, que suas relagdes com as mu- Iheres fossem preservadas pelo isolamento, fossem ga- rantidas, e que a propriedade das mulheres fosse lim tada, sem dtivida, mas em compensagiio protegida em 24 FILOSOFTA DO AMOR relagiio a outro homem, para que se pudesse alcangar 4 paz no seio de um grupo e, deste modo, as organiza- ges mais vastas e mais vidveis" Esses dois fatos — a sa- ber, que temos tais organizacGes diante dos olhos c, por outro lado, que o sentimento do cite afasta os homens uns dos outros — levam, pois, um A conclusao de que, no inicio da « evolugao, sé podia reinar um estado de coi- Sas sem regras, 0 outro, um estado de coisas regrado. lundou-se outra prova da auséncia original das re- lagdes conjugais bem definidas no fato de que, entre mui- los povos, designa-se o sobrinho e a sobrinha da mes- ma maneira que o filho e a filha, ou ainda o primo e a prima da mesma maneira que o irmao ea irma. Essas denominages s6 podem aparecer no caso em que cada mulher tivesse uma relagfio conjugal com todos os ho- mens de scu grupo, portanto também com seus proprios irmaos; 0 pai € o irmao da mie e, por conseguinte;‘o filho e o sobrinho, eram nessas condigées freqiientemente idénticos, ou, pelo menos, nao se podiam distinguir, Ain- da que tal estado de coisas nao fosse mais encontrével em parte alguma hoje em dia, essa denominagao de- monstraria, no entanto, que deve ter existido outrora; porque semelhantes sistemas de nomes jamais surgiriam sendo para exprimir situagdes reais, continuando porém a sobreviver depois de ter perdido qualquer sentido desde ha muito por causa da evolugSo subseqiiente destas. Ora, mesmo essa demonstracao de um comunismo conjugal original revelou-se insuficiente, sobretudo de depois que co- nhecemos melhor a situacSo dos aborigines da Austraé- lia e pudemos deduzir, desse conhecimento, que a de- hominagaa de filho ou pai, entre os povos primitives, SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1095) 25 nao indica necessariamente qualquer parentesco, mas apenas uma diferenca de idade, do mesmo modo que, entre nés, tais usos lingifsticos permanecem em voga. O aborigine da Australia divide 0 curso da vida, para cada um, em trés fases: a crianga, o jovem, o velho (ou a jovem, a velha). Originalmente, essa estratificago por geragoes determinou exclusivamente a expressao do pa- rentesco para as pessoas; em outras palavras, os mem- bros da camada mais antiga eram indistintamente de- signados como ‘‘pais’’ ou ‘‘mies’’ da camada mais jo- vem, os da superior como avés da recente. As expres- ses pai ou mie, filho ou filha, nao significam, pois, em absoluto, a relacao fisiolégica de parentesco sanguineo que nés associamos ao termo correspondente, mas uni- camente as distingGes entre jovens e velhos. \Podavia, 6 australiano conhece com bastante exatidéo sua mae © seu verdaceiro pai, sem possuir vocdbulo especial pa- ra distingui-los idealmente dos outros membros da mes- ma camada. A que ponto faltam, aqui, de fato, 0 con- cello © o léxico, mas nao a capacidade real de efetuar A distingiio, prova-o um fenémeno: muitas etnias sequer {#1 um termo especial para o pai e outro para a mae; e querem assinalar a diferenga dos sexos no Ambito da agho anterior, em ou mulher a expresso comum para ambos. Por- , nfo se pode pretender aqui que a falta de uma i sinale uma impossibilidade ou uma de clistingAo, como niio se poderia deduzir, da fio indistinta de todos os homens mais velhos 0 de pai, que h4 um n&o-conhecimento efeti- v do paie, portanto, comunismo conjugal. ‘ao obrigados a acrescentar a palavra 26 FILOSOFIA DO AMOR Nenhum fato constatavel nos obriga, pois, a fazer amento monogamico — ou, ¢™m geral, toda forma definida de casamento, regida pelo costume ¢ pela lei _— suceder a um estado primitivo de total auséncia de regras. Ao contrArio, € possivel que 0 ser humano, do mesmo modo que muitos animais, em particular a miaio- ria dos passaros, seja monégamo por natureza © 86 te- nha chegado a uma liberdade de relagdes sem entraves, a poliandria ou a poligamia, em virtude de circunstan- cias especiais, como ocorrem em todos os dominios pa- ra modificar ou ‘ desgarrar as aspiracoes naturais. Mui- tas consideragoes depoem a favor dessa hipdtese. Pri- total, sem nenhuma regra, | meiro, uma arbitrariedade na relagio entre o homem € a mulher, nao é observada | . em nenhum povo conhecido da terra; €, onde a arbitra- riedade existe parcialmente, as curiosas contradigdes que \ surgem entao indicam que nao sé deve consideré-la co- mo uma fase universalmente valida da humanidade. Ha, por exemplo, alguns povos naturais em que as mocas conhecem uma liberdade absoluta e até gozam de uma consideragao particular quando possuem jntimeros na- morados, 0 que provaria a forga de seus encantos, a0 so que permanecem totalmente fiéis a seu esposo a e contraem casamento. HA ou- pa partir do momento em qui tros povos dos quais se relata exatamente 0 contrario: castidade mais estrita das mocgas € gosto pela aventura sem limite entre as mulheres. Que a poligamia nao poss fer uma forma t{pica de casamento, decorre de um sim- ples fato: por toda parte, heres quantos sao 0s homens, a posse de varias mulhe- pre, pois, apenas o privilégio de alguns, mas 4 hA mais ou menos tantas mnu-" SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 27 é vedada a ‘w ee massa. Também a poliandria sé existe asa ao aber em especiais, por exemplo, nos alti- ee crane ae . onde @ cificuldade de se alimentar é are um compromisso pesado € aif, de modo ee #0; eles partilham esse fardo entre varios. Digamos ta - ee sus a pee dos casos de noliandria vevelaram um nea coon mt ‘ aoe’ seen sem sIhantes formas também eristem mult a ie nd mistas, por exemplo esses casam: it eat oper tos’’ que se puderam observar vommawibs Leal, Nela, ao contrair matrimdnio, a moga se compromels ra - ee oe niimero de dias por semana. Um via ¢ descreve de maneira bastante divertida : presentes de casamento do noivo sao exami sdainGe bs pais da noiva e, a princfpio, considerados tae ins a pea 2 Ao insignifi- rai atials pr cane ae —- de wm regateio assaz ay sieona a ae wees formula salutar: “Minha Alosriesd Sel cessor . ga, quinta ¢ sexta!’’ Outra forma mista é constitu, a : peta tempordrios dos muculmanos wiitas "Sao entos legais, dependentes de i Bes F _ oritas, mas apenas por wm prazo ord anOnee et hele. c ida, indo de uma hora a 99 anos. Os filhos de ial a ento, plenamente reconhecidos em direito, sao ‘ane ftimox quanto os de um casamento por itoda‘s vida! En. , ha uma forma bizarra de casamento entre oa ie eH da Australia de condicg&o bastante inferior a nia. momentaneamente o grau de evolucan spall 28 FILOSOFIA DO AMOR baixo de nossa espécie. Suas tribos so, em sua maio- ria, divididas em classes matrimoniais. Entre os kami- laroi, por exemplo, ba duas classes: numa delas, os ho- mens chamam-se jppai e as mulheres jpatta; na outra, os homens, cubbi, e as mulheres, cubbota. Ora, um jppai tem o direito de se casar exclusivamente com uma cub- bota, e um cubbi com uma jpatta, eo casamento do pri- meiro com uma jpatta, ainda que esta nao tenha nenhum vinculo de sangue com ele, € terminantemente proibi- do.’ Em compensacao, porém, ele € tido como potencial- mente casado, de certa forma, com todas as cubbotas existentes; e se, numa aldeia bem distante, ele encon- trar uma que nunca vira antes é natural para ambos que estabelecam uma relacao conjugal, por mais fugidia que das essas miltiplas formas de relacao entre o ho- seja> To am como 0 resultado de mem e a mulher se caracteriz circunstancias histéricas particulares € nenhuma nos re- vela um “estado original’ a que conduziria algum ins- tinto natural, a ser pressuposto regularmente por toda parte. 'No entanto, se tal estado deve existir, entao a mo- nogamia nfo é absolutamente menos atestada que a au- s@ncia de regra. Melhor, o casamento tende por toda parte a evoluir da poligamia e da poliandria 4 monoga- _mia, Das duas primeiras formas, relata-se quase geral- mente que uma das mulheres ocupa uma posicao legal ou habitualmente dirigente entre as diversas esposas de homem — a primeira desposada, ou a mais distin- a favorita. Por esse motivo, as mulheres zulus, iplo, esforcam-se inclusive para comprar uma posa para seus homens com suas préprias eco- fato, esta diltima tem a situaco de uma criada SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 29 em relaca imei Iga on sae a primeira. A posigao do primus inter pares q mulher principal assume na poligamia, evolui ae 2 > ordin ics rer, mints ties se geral é proprio dessa posigao, para a simplesmente: aconteci ém ena € que também os fi- ulheres secundari i s rias consideram a es po Osa su- pei como sua verdadeira mae. Quanto mais a posi le . . si - mulher adquire import&ncia, mais a das ou- " mul eres rebaixada, até esse processo sociolégico e separacdo levar a que na i ao reste mais que um; sa no Casamento, tornand Aoi 3 aah é F lo-se entao ilegitii i 7 ‘gitimas ou proi- piney as relagdes secundérias com outras mulhe res, i i i : a jee poder-se-ia muito bem conceber essas rela- - cum outro tipo como etapas intermediarias, diante e juais 0 instinto monégamo dominaria tanto as pre on come as seguintes. Este seria apenas um dos s freqiientes em que o mai. is alto grau de d poe g le desenvol- nto reproduz a forma do mais baixo, mas purifica- ait 5 . & 7 Pp ome aperfeicoada. Dito isso, essa indubitavel F * ilidade ainda nao é, decerto, uma probabilidade . e : me revela como tal, no caso, é antes a iaéia : a diversidade infinita das formas de casamento fambém correspond i i " lg uma diversidade das di gd € instintos originai 86 tts is’ Do mesmo mod interi ; : 1 lo que, no interi¢ ir . seer 2 aid ee “ social id@ntico, os indivfduos, apesar de to- igualdade das cireunstAncias exteriores, se compor- 30 FILOSOFIA DO AMOR dade errénea em relacio a pulsao unitéria de nosso a samento querer construir, a qualquer prego, sob a di- versidade dos fenémenos histéricos, um mesmo come- co pré-histérico. IL Podem-se conceber como se quiser as relages pri- mitivas de casamento e nao-casamento. Em todo caso, parece-me incontestavel que o nticleo fixo em torno do qual _a familia cresceu nao € a relagao entre 0. homem ¢ amulher, mas entre a mie 0 filho. E este ° pélo es tdvel na seqiiéncia de acontecimentos que assinala a vic da conjugal, ou ainda a relago por toda parte idéntica, no essencial, enquanto a relacao entre os esposos é sus- cetfvel de mutagoes infinitas. E por ise0 que, em int- meros povos primitivos, a relacao do pai de familia com 0s filhos nao é em absoluto direta € baseada na nature- za, como entre nds. O filho pertence 4 mae; € ao pal unicamente na medida em que a mae lhe pertence — do mesmo moda que os frutos da anvOre pertencem ao proprietario desta./Causa ou consequencia disso, encon tramos in@meras vezes uma indiferenca quase incom- preensivel a nossos olhos para com a identidade do ver- dadeiro pai fisico da crianga; desde que a mae pertence aum homem determinado, 0 filho é dele, pouco impor- ta que ele saiba, eventualmente, que nas elas desea erianca nao corre seu sangue. Dai a freqiténcia do em: préstimo e da troca de mulheres entre os ee na iw, © que caracteriza as primeiras formas da familia SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 31 no é, portanto, como se acreditou, o anonimato do pai, mas a indiferenga qua a sua identidade no sentido fisiolégico. Vou citar alguns exemplos contundentes para mostrar a que ponto a nogao de pai pode ser puramente juridica, de todo estranha 4 questo do vinculo sangui- neo. Em alguns povos, os meninos impiberes so noi- vos de mogas adultas que, até a maturidade dos primei- ros, tém relagSes com outros homens, freqiientemente com o sogro. Os filhos dessas ligacdes sAo tidos, ento, sem nenhum problema, como filhos do menino, que é © proprietario jurfdico da jovem mulher. Entre os ca- fres, o filho herda mulheres de seu pai. Ele préprio nao as (oca, mas empresta-as a outros, € os filhos assim ge- rados sao seus filhos, isto é — reforcando ainda mais 4 concep¢do em questao aqui —, so tidos como filhos -tlo falecido, como no casamento do levirato; e, dado que toda propriedade deste passa para o filho, os filhos su- pracitados também lhe pertencem agora, no caso dire- lente, ¢ nao por algum ato de adogiio ou reconheci- mento particular. No entanto, o caso mais notdvel é 0 nOmeno, freqiiente no seio das tribos primitivas, se- undo o qual os homens se esforcam diretamente por suas mulheres terem relagdes com o chefe, o sa- 0u outros homens eminentes, porque créer que = que, nada obstante, so sempre seus — her- As eminentes qualidades de seu procriador, o que F proveitoso para eles ¢ sua famflia. Portanto, te- ‘um estatuto de procriador claramente cons- 32 FILOSOFIA DO AMOR qt preendé-lo.\A nog&o de pai teve de percorrer uma lon- ga evolucao antes que seu sentido original, que inclufa ‘apenas a posse do filho por meio da posse da mae, se tornasse o de uma relacao direta ¢ individual entre o pro- criador e o filho/ Essa évolugao esté ligada, provavelmente, a da pro- priedade privadat Quando o homem adquiriu ¢ defen- deu pela luta e o trabalho uma posse pessoal mais vas- ta, desejou deix4-la a um herdeiro de seu préprio san- gue. A heranga dos bens, creio eu, é a nogao a partir da qual cresceu e fortaleceu-se a de una transmissao do sangue, sob o aspecto aqui considerado)A paternidade nao adquiriu demasiada import4ncia enquanto nao acar- retou conseqiiéncias notéveis em matéria de proprieda de. Em compensac4o, assim que surge, esse interesse traz consigo a exigéncia de uma absoluta fidelidade con- jugal da mulher, se bem que, manifestamente, a do ho- mem nio tenha a mesma raiz e, na verdade, sé alcan- card de maneira bem mais lenta 0 mesmo grau de ri- gor. Essa exigéncia em relag&o ao homem aparece pro- vavelmente & medida que se desenvolve a igualdade entre homens ¢ mulheres, igualdade em virtude da qual as res- trigdes a que as mulheres sao submetidas também pare- cem, para os homens, mandamentos da simples justi- ga, mesmo se nao vale para eles a causa real que os fez surgir para elas. / Todavia esse fator genético da fidelidade conjugal, uralmente entre muitos outros que agiram em con- to com ele, sugere-nos 0 seguinte fato, que deve ser certo: o amor individual, que hoje, segundo val, 6 0 fundamento do matriménio e a fon- SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 33 te determinante das suas qualidades e do seu desenro- lar, nao tinha originalmente nada a ver com ele; ao con- trario, as condigées e contetdos particulares do casamen- to decorreram de causas 4 parte, com muita freqiiéncia bastante exteriores, ¢ fizeram nascer 0 amor, por sua vez, como uma relagao individual de corac&o. A princi- pio, a estrita monogamia no casamento deve-se tHo-sd 4 vitéria do princfpio democratico./J4 mencionei que, em toda parte, a massa dos homens é reduzida de fato a uma mulher tinica, justamente porque nao hA maior nimero de mulheres para cada um; portanto, quando a poligamia é igualmente autorizada pela lei, s6 a en- contramos de maneira regular como um privilégio de principes, de ricos, de personagens de algum modo emi- nentes. Ora, na medida em que impdc direitos face aos poderosos, direitos no sé politicos, mas também mo- rais, a grande massa imprime as suas normas de vida proprias a marca de leis étnico-sociais a que sio subme- tidas igualmente aqueles que, a princfpio, delas estavam isentos. A monogamia, que tantos fatos etnoldgicos nos apresentam como uma limitac&o exterior imposta a quem no podia esperar melhor sorte, torna-se, 4 medida que aumenta 0 nivelamento social, um mandamento inte- rior, um mandamento moral para todos. HA nisso um principio de explicagao idéntico Aquele que permite in- terpretar o jejum como um sinal de tristeza, como j4 acontece em muitos povos naturais, O medo de que o espfrito do falecido volte incitou os préximos a se conci- liarem com ele mediante copiosas oferendas cle alimen- tos. Mas, como m freqiiéncia eram escas- i ox engendravam por forca 54 FILOSOFIA DO AMOR , um jejum forgado que, por fim, pareceu uma conseqiiéncia moral ¢€ religiosamente necessaria de to- do falecimento. Quando a monogamia se tornou uma forma permanente de casamento, somaram-se a ela, ade- mais, os sentimentos subjetivos, que resultam por toda parte de situagdes estabelecidas desde h4 muito e que atestam a adaptacio dos individuos a estas. O que por vezes ainda se diz hoje para justificar os casamentos de conveniéncia — a saber, que o amor viria com as ntip- cias — comporta uma indubitavel verdade no caso da evolucao histérica de nossa espécie. Aqui produziu-se uma inversdo que a sociologia pode constatar em pon- tos tio numerosos quanto importantes: 0 que para a es- pécie era uma causa, para o individuo é um efeito, e vice-versa. A entrada em vigor do casamento monoga- mico, tal como decorria de circunstancias econdédmicas e sociais, levou em geral ao sentimento especffico de amor e de fidelidade por toda a vida; e agora, inversamente, o nascimento de tal sentimento é 0 motivo para contrair matriménio. E por semelhante invers%o que se desenvolve a re- lag&o dos pais com sua descendéncia. Se todas as insti- tuigdes ptiblicas e permanentes decorrem de alguma fi- nalidade ou utilidade para o grupo social, também de- veremos perguntar: qual é, para sermos exatos, a fina- lidade original do casamento, isto é, da vida em comum dos pais apés o nascimento de seus rebentos? O que in- citou os seres humanos a estabelecerem aliancas.dura- douras, fontes de obrigacGes, com frequéncia restritivas, em vez de se limitarem a satisfazer momentaneamente xao? A utilidade social que impeliu nesse senti- sua pa SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 35 do talvez tenha sido, a principio, a maior solidez, a pos- terior consisténcia que a sociedade tirou de vinculos du- radoures, um grupo cujos elementos estado reciprocamen- te implicados em ligacoes firmes, em relagdes confidveis, em que um encontra no outro um apoio est4vel, fazen- do que uma cadeia de deveres atravesse 0 conjunto do cfirculo — tal grupo revelar-se-4, portanto, na luta pela existéncia, mais consistente e mais resistente do que ou- tro, cujos elementos nao conhecem deveres miituos, mas unicamente vinculos momenténeos, arbitrarios, que nio cessam de rebentar em todos os sentidos. Mas o princi- pal objetivo social de um casamento sdlido foi visivel- mente a melhor assisténcia fornecida 4 descendéncia, as- sisténcia que garante esta Ultima e j4 leva no mundo ani- mal a relagGes de tipo conjugal. O casamento acarreta uma divisSo do trabalho entre homens e mulheres que beneficia essencialmente os filhos: a mulher nutre os fi- lhos e o homem alimenta a mulher; ou entao o homem traz os viveres e a mulher os prepara para ele ¢ os fi- lhos. O interesse conjunto ou concorrente dos pais para o bem-estar dos filhos torna necessariamente a gerag4o seguinte mais forte fisica e intelectualmente do que se- ria possivel num grupo sem assisténcia comum dos pais, logo, sem casamento. O casamento cria assim, a longo prazo, uma superioridade direta do grupo em relagio a outro que ignore o casamento e em que a nova gera- ¢&o continua abandonada As forcas isoladas da mie, ou auma assisténcia comunista, desprovida de todo e qual- quer interesse pessoal. Essa eficdcia social do casamen- to permite-nos compreender um cardter notdvel de sua evolucao. Nos povos mais diversos da terra, o casamento 36 FILOSOFIA DO AMOR s6 é tido como valido e contraido nas devidas formas a partir do momento em que um filho nasce ou é espera: do. Em muitas etnias — na Asia, na Africa e na Améri- ‘a — a mulher fica em casa de seus pais até isso aconte- cer; nas Filipinas e em certo distrito do sul da India, niio existe nenhum compromisso que preceda ao casamen- to; numa etnia da Senegambia, ao contrario, as bodas s6 sfio celebradas depois do noivado. Em suma, a ori- gem do casamento, assim relacionada 4 finalidade so- cial que o faz existir por causa dos filhos, torna-o, na evolugao da nossa espécie, de que os povos primitivos citados acima ainda ilustram o estagio em questao, um efeito da procriacdo da descendéncia. Do mesmo modo que o amor foi conseqiiéncia do casamento até 0 casa- mento se tornar uma conseqiiéncia do amor, também o amor ainda é uma conseqiiéncia da procriagao da no- va geracao até se instalar 0 estado de coisas inverso que hoje conhecemos. 'Essas duas inversdes revelam clara- mente que a evoluc4o histérica, partindo do interesse social e da norma social, conduz cada vez mais ao inte- resse pelo individuo erigido em critério: o casamento re- presenta o interesse social face ao interesse individual do amor e, no seio de outra categoria, a existéncia e a assisténcia da nova geragio representam 0 interesse so- cial face 4 questo pessoal do casamento. E por isso que, nos estAgios anteriores, os primeiros fatores citados sao a causa dos tiltimos, enquanto nos est4gios ulteriores a jacao de causalidade se inverte. Outra evolugao, que desemboca de maneira and- loga na inversao de seu ponto de partida, também con- duz a que o amor resulte do casamento. Uma das for- SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 37 mas mais freqiientes sob as quais encontramos o casa- mento nos est4gios antigos da cultura é 0 casamento por compra. A mulher é€, antes de mais nada, um animal de trabalho, tanto quanto o escravo, e¢ inclusive, no ni- vel mais baixo de cultura, é a tinica com quem se possa contar duradouramente. O desejo de conseguir uma for- ca de trabalho € quase o tinico interesse propriamente individual que leva 0 homem primitivo ao casamento. Além disso, ha apenas o desejo de ter filhos — que, de resto, nao existe em toda parte. Um costume encontra- do com freqtiéncia mostra que esses dois dados sAo soli- darios: quando a noiva foi paga a crédito, os filhos do casamento pertencem aos pais desta até o valor total ser saldado. A mulher é um objeto de valor econdmico; é por isso que seus pais, que até ent&o utilizavam sua for- ¢a de trabalho em seu beneficio, nao a abandonam a tro- co de nada, mas exigem uma estimativa aproximada do capital que sua forca de trabalho representa. A compra da mulher indica, em primeiro lugar, a posigao inferior que ela ocupa no casamento. O simples fato de sua venda significa, na maior parte dos casos, que ela nao tem von- tade prépria ¢ que seus pais tratam-na como objeto; € sob esse aspecto que ela entra no casamento. Trata-se, pois, para o marido, de fazé-la trabalhar o mais possf- vel a fim de recuperar 0 prego pago por ela. Mas isso €é apenas o aspecto exterior da forma dada ao casamen- to pelo processo de compra. O que adquiri com meu di- nheiro, cu possuo inteiramente, de maneira mais abso- luta do que qualquer posse que me tenha cabido por uma livre vontade; semelhante aquisicao, de todos os pontos de vista, comporta menos obrigagdes, impSe menos de- 58 FILOSOFIA DO AMOR feréncias. Isso nfo se revela tao abruptamente quando 0 prego pago consiste em trabalhos pessoais do preten- dente efetuados para os pais da noiva. Nesse caso, pelo menos, ha uma prestac&o individual, um compromisso da personalidade, que deixa ao objeto assim ganho um traco de valor préprio e, portanto, nao o relega integral- mente a categoria de ‘“‘coisa’’. E isso que se da, ao con- trario, quando as mulheres sao compradas por dinheiro ou por um valor diretamente conversfvel em moeda — gado, lenha, roupas. De todos os valores que a vida pra- tica elaborou, o dinheiro é o mais impessoal. Como serve de equivalente para as coisas mais opostas, ele perma- nece totalmente incolor, todos os valores pessoais, to- das as individualizacées da vida terminam com o dinhei- ro, razao pela qual diz-se pertinentemente que, nas ques- tées de dinheiro, cessa todo sentimentalismo; ele nao pos- sui outras qualidades além da sua quantidade; € por is- so também que, 4 sua incompardvel importdncia para todas as exterioridades da vida, corresponde sua total falta de relag&o com todos os valores interiores e pes- soais desta. Ora, essa ess¢ncia do dinheiro influencia a estimativa de todas as coisas que se adquirem por seu intermédio. Tudo que tem uma particularidade, uma exceléncia bem definidas, subtraindo-se 4 apropriacao do primeiro que aparece, nés declaramos “‘inestimével’’. Se uma mulher se vender, seja no casamento com um homem que lhe é indiferente, seja sob formas mais fur- tivas, isso nos parecera especialmente repugnante pela raziio de que o bem mais pessoal que o ser humano possa regalar é trocado, nesse caso, por um valor impessoal coma 0 dinheiro. Ora, o simétrico existe nos estAgios SOBRE A SOCIOLOGIA DA FAMILIA (1895) 39 inferiores. As mulheres sao, em geral, particularmente maltratadas quando vendidas por dinheiro, sua posi¢ao se eleva com o desaparecimento dessa forma de casa- mento. _ Contudo, a mesma forma de casamento também desenvolveré necessariamente 0 efeito psicolégico oposto. Que as mulheres representam uma propriedade util, que sejam feitos sacriffcios por elas, sao dados que, no fim das contas, revelam seu valor..Por toda parte, ja disse- ram, a posse gera o amor da posse. Fazem-se sacrificios pelo que se ama, mas, inversamente, também sc ama aquilo por que se fazem sacrificios. Sendo o amor ma- terno o motivo de intimeras devogoes, as aflicdes e as preocupacées que as mes assumem vio lig4-las de ma- neira ainda mais sélida a seus filhos; compreende-se en- tHo que as criancas enfermas, ou desfavorecidas de al- guma outra maneira, que exigem a maior abnegacao da mie, costumam ser amadas por ela com a maior pai- xao. A Igreja nunca temeu pedir os mais pesados sacri- ficios pelo amor a Deus, sabendo bem que aderimos com maior firmeza e maior intimidade a um principio quando aceitamos fazer maiores sacrificios em scu favor e nisso investimos, por assim dizer, um capital mais elevado. Portanto, € psicologicamente verossimil que a compra das mulheres, que, por um lado, as desclassificava a prin- cfpio, deve justamente té-las elevado, por outro lado, na estima dos homens. Pode ser até que esse momento sociolégico n&o esteja tio distante da familia moderna. A posicAo relativamente boa da mulher no seio desta cor- responde, dado o dever de manutengao por parte do ho- mem, um sacrificio material deste ultimo relativamen- FILOSOFTA DO AMOR maior do que o prego de compra das mulheres aeio dos povos ainda rudes. Mas dado que o dever sacrificio material é repartido, aqui, sobre 0 conjun- da exist@ncia, ¢ visto sobretudo que ele beneficia a prépria mulher, e nao, como antes, sua familia (a tran- nigho é dada, no caso, pelas épocas posteriores em que O# paix deixavam o dinheiro da compra, & guisa de do- te, A prépria moga), acham-se justamente conservados 8 aspectos do sacrificio aptos a aumentar o valor do que se ganha com ele. O sacrificio feito para adquirir a mu- lher, o qual, originalmente, exprimia e aumentava sua opressa assim 0 momento psicolégico cujo desenvolvimento aca- bado conduziu a uma mudang¢a de avaliacao direta da sua posicao. io, sua exploracdo e sua reificacao, j4 continha O PAPEL DO DINHEIRO NAS RELACOES ENTRE OS SEXOS FRAGMENTO DE UMA FILOSOFIA DO DINHETRO (1898) A etnologia mostra que a compra das mulheres nao se pratica exclusiva ou prioritariamente nos est4gios in- feriores da evolugio cultural. Um dos melhores especia- listas no assunto observa que os povos civilizados que nao conhecem o casamento por compra pertencem, na maioria das vezes, a ragas especialmente nisticas. A com- pra das mulheres tanto parece um fator de rebaixamen- to no seio de uma condi¢&o superior, como pode agir como fator de elevag&o no seio de uma condic¢So infe- rior. Isso por duas.raz6es. Primeiro, ela nunca ocorre, a nosso conhecimento, no modo da economia individua- lista. Ela é submetida a formas e férmulas estritas, ao respeito aos interesses familiares, a convengGes precisas FILOSOFIA DO AMOR sobre a natureza e o montante do pagamento. Todo o seu desenrolar tem um car4ter eminentemente social. Mencionarei apenas que o noivo tem muitas vezes 0 di- reito de exigir, de cada membro da sua tribo, uma cota do prego da noiva ¢ que essa contribuicgio muitas vezes é distribufda na linhagem da moga. Mas a organizacao dos casamentos que vem & luz com a compra das mu- Theres representa um imenso progresso diante das con- digdes mais grosseiras do rapto nupcial, ou ainda dian- te dessas relagdes sexuais de todo primérias, que no co- nheciam, sem duvida, a promiscuidade absoluta, mas ignoravam, muito provavelmente também, a firme re- feréncia normativa que a compra socialmente regulada proporciona. A evolucao da humanidade sempre atra- vessa estagios em que a opressao da individualidade é © ponto de passagem obrigatério de seu livre desabro- char posterior, em que a pura exterioridade das condi- cdes de vida se torna a escola da interioridade, em que a violéncia da modelagem produz uma acumulagio de energia, destinada, em seguida, a gerar toda a especifi- cidade pessoal. Do alto desse ideal que é a individuali- dade plenamente desenvolvida, tais periodos parecerao, é claro, grosseiros ¢ indignos. Mas, para dizer a verda- de, além de semear os germes positivos do progresso vin- douro, j4 s4o em si uma manifestagao do espfrito exer- cendo sua dominacio organizadora sobre a matéria- prima das impressdes flutuantes, uma aplicaco das fi- nalidades especificamente humanas, procurando clas préprias fixar suas normas de vida — do modo mais bru- tal, exterior ou, mesmo, estipido que seja —, em vez de recebé-las das simples forgas da natureza. Existem 0 DINHEIRO NAS RELACOES ENTRE OS SEXOS 43 hoje individualistas extremos que so, n&o obstante adeptos do socialismo na pratica, porque consideram- no como a indispensdvel preparaciio, como a indispen- savel escola, por mais dura que seja, de um individua- lismo justo e puro. Assim, pois, a ordem relativamente fixa e 0 esquematismo algo exterior do casamento por compra foram uma primeira tentativa, violentissima pouquissimo individual, de dar As relacdes conjugais cers ta expressao, tao adaptada a est4gios ainda rdsticos quan- to as formas de casamento mais individuais a tempos mais evolufdos. A troca de mulheres, uma troca fiat ral em que poderfamos ver um primeiro grau da com- pra das mulheres, j4 adquire o mesmo sentido ante a coesdo social. Entre os narinyeri da Australia, 0 casa- mento legal propriamente dito se d4 por troca das mu- Iheres entre os homens. Quando, em vez disso, deter- minada moga foge com o eleito de seu coragao, * nilo 86 é tida como socialmente inferior, como, além disso perde 0 direito 4 protec4o que lhe é devida pela horda em que nasceu. Temos af um fato que traduz claramente o pa- pel social desse modo de casamento eminentemente ou co individual. A horda nao protege mais a moca e aa pe suas relagdes com ela, porque nenhuma contraparti- da foi obtida por sua pessoa. a“ , Isso nos leva ao segundo fator de clevacao cultural ligado ao casamento por compra. Que as mulheres re- presentam uma propriedade wtil, que sejarn feitos sa- criffcios em vista da sua aquisicao, sao fatos que, no fim das contas, revelam seu valor. Por toda parte com foi dito, a posse gera o amor da posse, Fazem-se sacritiata por aquilo que se ama, mas, inversamente, também se 44 FILOSOFIA DO AMOR ama aquilo por que se fizeram sacriffcios. Como o amor materno é 0 mébil de intimeras devogGes, as aflicdes e preocupagdes que as m4es assumem vao ligd-las ainda mais solidamente aos filhos; compreende-se, entéo, que as criancas doentes, ou desfavorecidas de outro modo, que exigem a maior abnegacao da mae, costumam ser amadas por ela com a maior paixao. A Igreja nunca te- meu pedir os mais pesados sacrificios pelo amor a Deus, sabendo bem que aderimos de maneira tanto mais fir- me e mais {ntima a um principio quanto mais elevado, por assim dizer, for o capital que nele investimos. Por- tanto, embora a compra de mulheres exprima no ime- diato sua opressio, sua exploracao, sua reificagZo, ain- da assim elas adquiriram valor com isso, primeiro para o grupo parental que recebia o prego de sua venda, de- pois para o marido, aos olhos de quem representavam um sacrificio relativamente elevado, de modo que, em seu proprio interesse, ele devia traté-las com deferén- cia. Em relagao as idéias avancadas, esse tratamento ain- da é bastante miser4vel; ademais, os outros momentos degradantes que acompanham a compra das mulheres podem obstaculizar essa vantagem, a tal ponto que sua situacio tornar-se-4 0 ciimulo da desolagao e da servi- dio. Nem por isso deixa de ser verdade que essa com- pra de mulheres deu uma expresso evidente ¢ penetrante ao fato de que tém um valor — isso num contexto psi- colégico em que se paga por elas porque elas valem al- a coisa, e em que elas valem alguma coisa porque por elas. E compreensivel ent&o que, em certas América, a cessao de uma moga sem pagamento lerada um aviltamento grave, tanto dela mes- O DINHEIRO NAS RELAGOES ENTRE OS SEXOS 45 ma como de toda a sua familia, a tal ponto que seus pré- prios filhos serao considerados bastardos e nada mais que isso. E capital aqui que as diferencas de prego — social- mente fixados ou estabelecidos por negociaciio indivi- dual — traduzem diferengas de valor entre as esposas. Relata-se que as mulheres cafres nao sentem em abso- luto sua venda como um aviltamento; ao contrério, a moga orgulha-se dela, pois quanto mais bois ¢ vacas cus- tou, mais atribui valor a si mesma. Notar-se-A varias vezes que uma categoria de objetos determinados ad- quire um valor mais consciente desde que cada um pe- ¢a para ser apreciado em particular, ¢ que fortes dife- rengas de prego facam sentir 0 valor sempre novo e sem- pre vivo; enquanto em outros estdgios da avaliago, co- mo vimos acerca do wergeld, a untformidade da indeniza- cio é justamente o que aumenta o significado objetivo da contrapartida. Assim, a compra de mulheres com- porta um primeiro meio, grosseirfssimo decerto, para fazer sobressair o valor individual de determinada mu- lher em particular, portanto também, de acordo com a -Yegra psicolégica mencionada acima, o valor das mu- em geral. Como quer que seja, também em ma- isigio de mulheres o est4gio mais baixo é 46 FILOSOFIA DO AMOR sobretudo da India, como infamante, enquanto em ou- tros lugares € praticaclo, mas teme-se a palavra ¢ apre- senta-se 0 preco a pagar como um presente espont4neo aos pais da noiva. Aqui se assinala a diferenga entre o dinheiro propriamente dito € as prestagdes de outra na- tureza, Diz-se dos lapdes que eles dao as filhas contra presentes, mas julgam inconveniente receber dinheiro por elas. Com respeito a todas as outras condig6es, tao complexas, de que a situacao das mulheres depende, pa- rece que a compra monetéria propriamente dita rebaixa- as muito mais que os presentes ou as prestacdes pessoais do noivo aos pais da noiva. No presente, dado seu va- lor mais indeterminado, assim como sua escolha mais individual — ainda que essa liberdade fosse recoberta pela convencao social —, ha algo mais pessoal do que na soma de dinheiro com sua implacdvel objetividade. Ademais, o presente realiza a jun¢4o com essa férmula mais evolufda que, por sua vez, leva ao dote, pelo qual aos presentes do noivo correspondem os dos pais da noi- va. Portanto, o poder absoluto de dispor da mulher é, em principio, quebrado, porque o valor recebido do ho- mem comporta em si certa obrigacao; j4 nao é ele o tnico a oferecer uma prestacao, pois a outra parte também tem um direito a exigir. Pretendeu-se também que a aquisi- caio das mulheres por um trabalho representava uma for- ma de casamento superior 4 compra direta. Parece, po- rém, que se trata da forma mais antiga e menos civili- 0 que nao impediria em absoluto que fosse acom- a de um melhor tratamento das mulheres. Por- si, a economia mais desenvolvida, de carater degradou muito a situagao delas, bem co- O DINHEIRO NAS RELACOES ENTRE OS SEXOS 47 mo, em geral, a dos seres mais fracos. Em meio aos po- vos mais préximos da natureza vemos hoje em dia as duas formas coexistirem com freqiéncia. Esse fato pro- va que nao ha diferenga maior no tratamento das mu- lheres, se bem que, grosso modo, a oferta de um valor tao pessoal quanto a prestacao de servicos pde necessa- riamente a mulher acima de uma escravidao, muito mais que o faz sua compra a dinheiro ou valores substanciais. Mas a isso também se aplica o que podemos reparar em toda parte, a saber: a diminuicio e 0 aviltamento do valor humano assim adquirido sao inversamente proporcio- nais as somas pagas. Porque, num nivel muito elevado, o valor monetario possui uma raridade que lhe confere uma cor mais individual, menos intercambiavel, e que portanto faz dele wm melhor equivalente dos valores pes- soais. Entre os gregos da época heréica, hd presentes ofe- recidos pelo noivo ao pai da noiva, mas que nao repre- sentam uma verdadeira compra, ao passo que a situa- cio das mulheres é particularmente boa. Esses donati- vos, sublinha-se, eram relativamente considerdveis, Por mais humilhante que pareca comprometer contra dinhei- ro seja a interioridade do ser humano, seja a totalidade deste, o montante inabitual das somas em jogo poderd no entanto criar, como provarao melhor ainda os exem- plos seguintes, uma espécie de compensagao tendo em sultens em ake a posigho wooed do intere waco, A\ 48 FILOSOFIA DO AMOR das somas envolvidas preservava a priori da desclassifi- caciio as pessoas assim comprometidas por dinheiro, 0 que néo aconteceria no caso de bagatelas. Do casamento por compra, que sem dtivida pre- dominou em determinado momento na maioria dos po- vos, ao principio oposto do dote, a passagem se deu pro- vavelmente como jé foi indicado: os donativos do noivo foram entregues pelos pais da noiva a esta, a fim de lhe garantir certa independéncia econdmica; 0 enxoval da jovem esposa, dado pelos pais, subsistiu mais tarde e se desenvolveu, mesmo quando desapareceu a causa ori- ginal, a soma paga pelo esposo. Nao tem interesse ape- gar-nos aqui a essa evolucao mal conhecida. Todavia, poderemos sustentar que o dote tende a se gencralizar com o desenvolvimento da economia monetéria. O que se encadeara como segue. Nas situagGes primitivas em que reina a compra das mulheres, estas tiltimas nao sao simples bestas de carga (continuarao a sé-lo em segui- da, em muitos casos), mas seu trabalho ainda nao é ver- dadeiramente ‘‘doméstico’’, como ser4 na economia mo- netdria, onde consiste principalmente em gerir no lar o consumo dos rendimentos do homem. Nessas épocas anteriores, a divisio do trabalho ainda nao esta muito avancada, as mulheres participam de forma mais dire- ta da produgio, apresentando portanto para seu proprie- tdério um valor econémico mais tangivel. Essa conexdo se fortalece eventualmente até uma época bastante tar- dia, Enquanto Macaulay via na execugao dos grandes balhos agricolas pelas mulheres na Escécia um esta- ¢ atraso barbaro do sexo feminino, um especialista ‘assunto sublinhava que elas obtinham com isso certo Pi i i | 0 DINHEIRO NAS RELAGOES ENTRE OS SEXOS 49 grau de independéncia ¢ considerag4o junto aos homens. Ao que se soma o fato de, em condigdes primitivas, os filhos possufrem para o pai um valor econémico dircto, ao passo que, em condigées superiores, constituem nao raro um fardo econémico. O proprietario inicial, 0 pai ou o cla, nao tem a menor razao de abandonar tal valor a outrem sem uma compensacao. Nesse estagio, a mu- lher nao se limita a ganhar sua propria subsisténcia, e o homem pode recuperar o preco pago por ela direta- mente do trabalho que ela fornece. Tudo muda quando a economia perde seu cardater familiar e o consumo nao se limita mais ao que se produz para si mesmo. Vistos do lar, os interesses econdmicos cindem-se em duas di- reg6es opostas, centrifuga e centripeta. A oposigio se de- senvolve entre a produgdo mercantil e a economia do- méstica; suscitada pelo dinheiro, ela acentua a divisao do trabalho entre os sexos. Por causas faceis de se com- preender, a atividade voltada para o interior cabe 4 mu- lher € a atividade voltada para o exterior ao homem, con- sistindo a primeira, cada vez mais, em utilizar e admi- nistrar os produtos da segunda. Assim, a mulher perde © que seu valor econémico tem de substancial e de evi- dente, parece doravante mantidd pelo trabalho do ma- rido. Nao s6, portanto, desaparece a razfo de exigir e de consentir um preco para sua compra, mas também ela representa, pelo menos de um ponto de vista gros- seiro, um fardo que o homem assume e com que tem de se preocupar. O dote encontra nisso seu fundamen- to; portanto, ele aumentard tanto mais quanto mais se dissociarem as esferas de atividade masculina e femini- na no sentido acima indicado, Num povo como os ju- 50 FILOSOFIA DO AMOR em que, em conseqiiéncia de um temperamento mais instavel e de outros fatores, os homens eram bas- tante méyeis e as mulheres, por uma correlagao neces- sdria, mais estritamente limitadas ao lar, encontramos a prescrigao legal do dote desde antes do pleno desen- volvimento da economia monetaria, que leva, de seu la- do, ao mesmo resultado. S6 esta ultima permite 4 pro- dugao conhecer a técnica objetiva, a expansio, a rique- za relacional e, ao mesmo tempo, a divisao unilateral do trabalho, que cindem o estado de indiferenga primi- tivo entre interesses domésticos e interesses lucrativos, requerendo portanto agentes individuais diferentes no caso dos primeiros e dos segundos. Entre o homem e a mulher, a escolha nao deixa margem a diividas, e nao é menos claro que 0 prego da noiva, cuja forca produti- vao homem comprava, deve ser entao substituido pelo dote, que compensa a manuteng&o da esposa néo pro- dutiva, ou que concede a esta independéncia e seguranca junto ao marido que ganha sua vida. A esjreita conex4o, no scio da economia moneta- ria, entre o dote e o regime geral da vida — quer se tra- te de garantir a sorte do homem, quer da mulher — ex- plica bastante bem por que, finalmente, na Grécia co- mo em Roma, o dote se torna 0 critério da esposa legf- tima por oposig&o & concubina. De fato, a concubina nao conhece outra exigéncia com respeito ao homem, de modo que ele nao precisa ser compensado do que quer que seja, nem ela ser garantida contra uma promessa nfo manticla. Fis 0 que leva 4 prostituigao, prépria pa- ya langar uma nova luz sobre o papel do dinheiro na re- entre os sexos. Enquanto todos os donativos do O DINHEIRO NAS RELAGOES ENTRE OS SEXOS 51 noivo destinados 4 compra da mulher, ou a prépria mu- lher, inclusive o presente de ntipcias ¢ o pretium virgini- tatis, podem se apresentar e se apresentam de fato como presentes em_espécie ou em dinheiro, 0 comércio nfo conjugal acompanhado de pagamento requer, em geral, a forma monetaria. 56 semelhante transag4o corresponde bem a essa relagao estabelecida, permite uma adequa- cao muito melhor a ela do que a oferta de qualquer ou- tro objeto qualificado, ao qual permanece facilmente vin- culado —, por seu contetido, sua escolha e seu uso —, o toque da pessoa que faz a oferta. Ao desejo que cul- mina de imediato € que expira nao menos depressa, tao bem servido pela prostituigao, s6 convém o equivalente monet4rio, que nao estabelece compromisso algum e per- manece, em princfpio, disponfvel e bem-vindo a todo instante. T'ratando-se das relagdes inter-humanas, que buscam pela esséncia a durac4o, assim como a verdade interior das forcas de ligacao (ver, por exemplo, a rela- cao amorosa auténtica, por mais pronta que esteja a desfazer-se), o dinheiro nunca poder4 ser um mediador adequado; mas, tratando-se do prazer venal, que recu- sa toda relac&o para 14 do instante e da pulsdo sexual, esse mesmo dinheiro, por se destacar inteiramente da personalidade, uma vez pago, e por romper radicalmente com toda outra espécie de conseqtiéncia, é a prestagdo mais perfeita, tanto de um ponto de vista real como sim- bélico: pagar em dinheiro é terminar radicalmente com tudo, assim como com a prostituta depois da satisfacio. Na prostituigdo, a relagiio intersexos, reduzida sem equi- vocos ao ato sensual, vé-se rebaixada a seu puro con- tetido genérico; ela consiste no que cada exemplar da 52 FILOSOFIA DO AMOR O DINHEIRO NAS RELAGOES ENTRE OS SEXOS 53 espécie pode fazer e sentir, e no que possibilita o encon- tir nao parece concordar muito com o fato sublinhado tro de personalidades opostas sob outros aspectos, pa- acima, a saber: a relacdo sensual entre os sexos é de es- recendo assim abolir todas as diferencas individuais. O séncia puramente genérica, de modo que nela, realida- dinheiro é, pois, a contrapartida econdmica desse mo- de absolutamente geral, e além disso comum a nds € ao do de relagao, dado que ele também representa 0 tipo reino animal, se aboliria toda personalidade, toda inte- genérico dos valores econémicos, 0 que € comum a to- rioridade prépria. Se os homens se mostram tao propen- dos os valores particulares. sos a falar de mulheres ‘‘no plural’, a pd-las no mesmo Eis como o terrivel aviltamento da prostituigo en- saco para julga-las em bloco, uma das razées disso € com contra em seu equivalente monetério sua expressao mais certeza a seguinte: o que nas mulheres interessa parti- nitida. O nfvel inferior da dignidade humana € alcan- cularmente aos homens de sensualidade grosseira é 0 que cado quando, por uma retribuigao tao anénima, tao ex- elas tém de semelhante, da costureira 4 princesa. Pare- terior e tio objetiva, uma mulher concede o que ela pos- ce, pois, exclufdo atribuir um valor pessoal a essa fun- sui de mais intimo e mais pessoal ¢ que nao deveria sa- Gao, tendo as demais fungées a mesma generalidade. Co- crificar a nao ser por um impulso totalmente individual, mer e beber, as atividades fisiolégicas, ou mesmo psi- contrabalangado por uma doacao nao menos individual coldgicas, o instinto de conservago tanto quanto as fun- do homem — Bee mals diferente que deva SEE ® sentido ces tipicamente légicas, nunca sdo associadas de ma- desta doagao em relagao ada mulher. Sentimos aqui a neira soliddria 4 personalidade como tal, e nunca se sen- mais total e penosa disparidade entre a prestacZo ¢ sua iSquemleuém, exercendoouapresentandovorque:tem contrapartida; ou antes: o aviltamento da prostituicao ora que alguem, P ae indistintamente em comum com todos, exprime ou ce- se deve justamente ao fato de que ela degrada a posse We Bi ogi _ : J a 8 P de o que tem de mais intimo, de mais essencial, de mais mais pessoal, mais ‘‘reservada’’ da mulher, a tal ponto mi . Y ° 5 P global. Ora, a doaco sexual da mulher comporta, ine- que o valor miais neutro e mais anénimo é tido como “ Zi . or 3 gavelmente, tal anomalia. Esse ato totalmente genéri- seu equivalente adequado. Dito isso, a definicSo da pros- ae . co, idéntico em todas as camadas da humanidade, tam- tituigao como retribuicdo monetéria se choca com algu- % mas consideragées inversas, a serem desenvolvidas pa- bém € de fato expermentado — num aspecto, em todo ra langar plena luz sobre esse significado do dinheiro. caso — como um ato eminentemente pessoal, que com- promete sua interioridade. Uma explicagio seria que as mulheres sao ainda mais imersas na espécie que os ho- Il mens, conhecendo estes tiltimos uma diferenciagiio ¢ uma individualizag&o mais extremas, Disso resultaria, em pri- /eardter totalmente pessoal, intimamente indivi- meiro lugar, que o elemento genérico e o elemento pes- ¢ a doacao sexual da mulher deveria se reves- soal coincidiriam melhor nas mulheres, Se, de fato, elas 54 FILOSOFIA DO AMOR esto ligadas mais estreita e intensamente que os homens ao fundo primordial, obscuro, da natureza, entao o es- sencial de sua personalidade est4 ancorado de mancira ainda mais sélida também nessas fungdes eminentemente naturais e universais que garantem a unidade da espé- cie. E, em segundo lugar, resultar4 ainda que a homo- geneidade do sexo feminino — em virtude da qual o que todas as mulheres tém em comum se distingue menos claramente do que cada uma é para si — deverd refletir- se na maior homogeneidade de seu ser individual. A ex- periéncia parece confirmar que as forcas, as qualidades ¢ as impulsées singulares das mulheres, do ponto de vista psicolégico, est&o ligadas de maneira mais imediata ¢ mais intima do que nos homens, cujos tracos caracte- risticos se desenvolverao com mais autonomia, perma- necendo portanto o devir e o destino de cada um deles bastante independentes do que sao no conjunto dos ou- tros. A esséncia da mulher — assim, pelo menos, serA resumida a opiniao geral a seu respeito — vive muito mais sob o signo de um ‘‘ou tudo, ou nada’’, suas incli- nagGes e€ suas atividades sAo melhor integradas, a tota- lidade de seu ser se subleva mais facilmente do que no homem a partir de um sé ponto, afetos, voligdes e pen- samentos inclufdos. Se assim é, estaremos relativamen- te fundados ao supor que a mulher, pela oferta dessa fungao central, dessa parte de seu eu, dé toda a sua pes- sa com mais integridade, com menos reserva do que oO homem, mais diferenciado, 0 faz nessa ocasio. Des- t 8 estAgios ainda bastante inocentes da relagao ho- ulher, impGe-se entre os parceiros essa dispari- papéis; mesmo os povos primitivos normatizam O DINHEIRO NAS RELAGOES ENTRE OS SEXOS 55 de modo diferente as multas que 0 noivo ou a noiva de- vem pagar em caso de ruptura unilateral do noivado. Assim, entre os bakaks, ela deve pagar cinco florins e ele dez; entre os habitantes de Benkulen, 0 noivo que no respeita o contrato, quarenta florins, a noiva ape- nas dez. O sentido ¢ os efeitos que a sociedade vincula a relag4o sensual entre o homem e a mulher pressup6em portanto, também, que esta dltima ponha na troca to- do o seu eu, com todos os seus valores, ¢ 0 primeiro, nada mais que uma parte da sua personalidade. KE por isso que a moga que comete falta perde a sua ‘‘honra’’; por isso também o adultério da mulher é condenado mais gravemente que o do homem, parecendo-se admitir que as ocasionais extravagancias deste, puramente sensuais, pelo menos ainda podem se conciliar com a fidelidade conjugal, no que esta tem de fntimo e essencial; por is- so, enfim, a prostituta é irremediavelmente rebaixada, enquanto 0 pai libertino, pelos demais aspectos da sua personalidade, sera sempre capaz de safar-se do atolei- ro e conquistar uma posig¢ao social. Portanto, no ato pu- ramente sensual que define a prostituicZo, o homem sé compromete o minimo do seu eu, j4 a mulher compro- mete o maximo — nao, é claro, cada vez em particular, mas no geral. Um tipo de relac&o que permite compreen- der 0 proxenetismo tao bem quanto os casos de lesbia- nismo entre as prostitutas, considerados freqtientes: como tiram forcosamente de suas relacgdes com os homens, em que estes nao pdem sua plena e inteira humanidade, tao- s6 um vazio e uma insatisfagao terriveis, elas procuram um complemento através de relagdes que, ao menos, ain- da concernem a alguns outros aspectos dessa mesma hu- 56 FILOSOFIA DO AMOR manidade. Assim, pois, nem a idéia de que 0 ato sexual é algo genérico e andnimo, nem o fato de o homem, visto do exterior, dele participar tanto quanto a mulher po- dem alterar o estado de coisas afirmado mais acima, a saber: 0 comprometimento da mulher € infinitamente mais pessoal, mais essencial, mais globalmente envol- vente para o eu do que o do homem, e portanto 0 equi- valente monetario é o menos apropriado, o menos ade- quado que se possa imaginar, a oferta de dinheiro e sua aceitagao sao o pior rebaixamento da personalidade fe- minina. O aviltamento pela prostituico ainda nao de- corre, tomado em si, de seu carater polidndrico, do fato de que a mulher se dé a varios homens; alias, a polian- dria nao raro proporciona 4 mulher uma preponderan- cia bastante nitida, por exemplo na India, no grupo de posi¢ao relativamente elevada dos negros. Em outras pa- lavras, a Ginica coisa que conta no caso no é que a pros- tituicdo signifique poliandria, mas poliginia. Em toda parte, esta deprecia incomparavelmente o valor préprio da mulher, que perde seu valor de raridade. Do exte- rior, a prostituicao conjuga poliandria e poliginia. Mas a vantagem constante de quem da o dinheiro em rela- ao aquele que dé a mercadoria acarreta que s6 a poli- ginia, que concede ao homem uma formidavel prepon- derancia, determina o carater da prostituic¢éo. Mesmo em circunstancias que nada tém a ver com a prostitui- giio, as mulheres de ordinario acham penoso e degra- ite receber dinheiro de seus amantes, ao passo que, qéncia, essa impressao nao se estende a outros -oferecidos; em compensacio, elas terfio prazer em dar dinheiro a esses amantes. De Marl- O DINHEIRO NAS RELAGOES ENTRE OS SEXOS 57 borough, dizia-se que seu sucesso com as mulheres vi- nha de que ele aceitava dinheiro da parte delas. A su- perioridade, logo notada, de quem dé o dinheiro sobre quem o recebe, superioridade que se torna a mais terri- vel distancia social no caso da prostituig&io, proporcio- na a mulher, nesse exemplo inverso, 0 contentamento de ver depender dela o homem que ela estava habitua- da a olhar de baixo. Eis-nos porém, agora, diante de um fenémeno sur- preendente: em intimeras civilizacdes mais primitivas, a prostituigao nao é vista, em absoluto, como degradante ou desmoralizante. Relata-se que, na Asia, outrora, as mulheres de todas as classes se prostituiam para adqui- rir o prego de um enxoval ou de uma oferenda ao te- souro do templo, como ouvimnos dizer ainda hoje de cer- tas tribos negras para o primeiro desses motivos. Essas mulheres, inclusive muitas vezes as princesas, nada per- dem entao da estima publica, e sua vida conjugal em seguida nfo sofre nenhum preconceito com o caso. Es- se abismo em relacdo a nosso modo de sentir significa que ambos os fatores — a honra sexual da mulher e 0 dinheiro — acham-se, af, numa relacdo fundamental- mente diferente. Se a situacao da prostituigdo se assina- la entre nés pelo abismo intransponivel entre os dois va- lores, por sua total incomensurabilidade, esses valores nao poderao deixar de se aproximar em condigdes que geram outra visdo da prostituigao. Isso deve ser posto em paralelo com os resultados a que levou a evolucio do wergeld, a multa monetaria por homicidio. A valori- zacao crescente da alma humana e a desvalorizacao pa- ralela do dinheiro se conjugaram para tornar o wergeld BIBLIOTECA CENTRAL / UFPB. 58 FILOSOFIA DO AMOR impossivel. O mesmo processo de diferenciacéo que con- fere ao individuo sua tonalidade particular, seu aspecto relativamente incomparavel, faz do dinheiro o critério € 0 equivalente de objetos tao opostos, que a indiferen- ca c a objetividade daf resultantes revelam-no cada vez mais inapto a contrabalancar os valores pessoais. Essa despropor¢ao entre a mercadoria € 0 prego a pagar, qué ~ proporciona seu carater 4 prostitui¢ao em nossa cultu- ra, nao € a mesma no seio de sociedades menos evolui- das. Quando os viajantes relatam que, em numerosfssi- mas tribos primitivas, as mulheres apresentam uma no- tavel similitude corporal e, com freqtiéncia, também in- telectual com os homens, acaso nao falta justamente a essas mulheres a diferenciagdo que proporciona 4s mu- lheres mais civilizadas, & sua honra sexual, um valor nao substituivel por dinheiro, mesmo quando elas aparecem, confrontadas aos homens do mesmo meio, menos diferencia- das, mais arraigadas no tipo genérico? A apreciagao da prostituicao mostra, assim, exatamente a mesma evo- lugaio que podemos constatar no caso da peniténcia ecle- sidstica e da multa do sangue: nas épocas ditas primiti- vas, a totalidade do ser humano, incluidos os valores in- teriores, tem um carter relativamente pouco individual; j4o dinheiro, vista a sua raridade, seu uso restrito, tem um cardter relativamente mais individual. Uma evolu- ¢&o divergente vai tornar imposs{vel compensar o pri- meiro pelo segundo, ou entao, quando subsiste tal pos- bilidade, como com a prostituicdo, daf resulta uma ter- desvalorizacao da personalidade. O DINHEIRO NAS RELAGOES ENTRE OS SEXOS 59 TI No vasto conjunto de reflexdes sobre o ‘‘casamen- to por dinheiro”’ ligado ao que precede, trés considera- cdes parecem-me importantes com respeito 4 evolugao sem4ntica do dinheiro, aqui em questio. Em primciro lugar, os casamentos que obedecem apenas A motivac4o econémica nao sé sempre existiram, em toda época e todo estagio de civilizagéo, como tam- bém se encontram com maior freqiiéncia no seio dos gru- pos menos evolufdos, nas situagdes mais primitivas, onde nao provocam, de ordindrio, nenhuma espécie de esc4n- dalo. A perda da dignidade pessoal que hoje decorre dos casamentos que nio sao fruto da inclinagdo individual — perda tal, que parece um dever de conveniéncia lan- car um véu sobre a motivagao econdmica — nao é sen- tida em condig@es culturais mais simples. A causa de se- melhante evolugao € que a individualizacao crescente tor- na cada vez mais contraditérias e aviltantes as relacdes puramente individuais estabelecidas por motivos que nao os puramente individuais. Numa sociedade de elemen- tos bem pouco diferenciados, também pode ser relati- vamente indiferente conhecer os casais que se formam — indiferente com respeito 4 vida conjugal, mas tam- bém aos filhos que nascem. De fato, quando globalmente concordam no seio do grupo as constituigées fisicas, os estados de satide, os temperamentos, as formas e orien- tagGes de vida, tanto interiores como exteriores, 0 éxito da descendéncia nao depende de uma selegio tao deli- cada do casal parental chamado a combinar ¢ se com- star, quanto a que uma sociedade altamente diferen- FILOSOFIA DO AMOR O DINHEIRO NAS RELACOES ENTRE OS SEXOS 61 eiada requer. E ¢ perfeitamente natural e util deixar ou- tras motivages, além da pura inclinacao individual, de- terminarem a opcao conjugal. Esta ultima, em contra- partida, deveria sobressair-se no seio de uma sociedade bastante individualizada, onde se tornam cada vez mais raros os individuos que se harmonizam. Ora, nao temos aqui nenhum outro critério e nenhum outro sinal além da inclinac&o mtitua no que ela tem de instintivo. J4 que a felicidade estritamente pessoal é um interesse que os es- posos tém de acertar sozinhos, nao haveria raz4o impe- rativa para simular oficialmente, com tal aplicag&o, amo- tivacZo erética em questo, se a sociedade atual nao fosse obrigada a insistir sobre a dominag4o exclusiva desta pa- rao éxito da descendéncia. O casamento por dinheiro cria, de safda, um estado de pan-mesclagem — de acoplamento sem combinacdo, em detrimento das qualidades indivi- duais —, em que a biologia vé a causa da degeneragao mais imediata e mais funesta para as espécies. A uniao do casal é determinada, af, por um fator absolutamente estranho aos fins genéricos, do mesmo modo que as con- sideragoes de dinheiro separam com bastante freqtiéncia os seres feitos para se pertencerem, e devemos ver nesse tipo de casamento uma causa de decadéncia, ao passo que, na mesma medida, a diferenciag’o mais acentuada dos individuos nfo cessa de aumentar a importancia da esco- - Tha segundo as afinidades individuais. Nessc caso tam- | bém, pois, é a maior individualizag4o no seio do grupo que tornao dinheiro cada vez mais inapto a servir de me- diador das relagdes puramente individuais. Em segundo lugar, ressurge af, numa forma bastante modificada, a observacao sobre a prostituigao: esta é, por certo, tanto paliandria como ggliginia, mas, dada a he- gemonia social do homem, s6 se manifestarao ativamente os efeitos da poliginia, isto é, do fator desmoralizador para a mulher. Acaso nao parece que o casamento por dinheiro deva sempre degradar interiormente, como uma. prostituic&o crénica, a parte movida pelo dinheiro, quer se trate do homem, quer da mulher? Mas isso nao acon- tece normalmente. No casamento, a mulher na maio- ria das vezes envolve a totalidade de seus interesses € de sua energia; ela compromete sua personalidade, cen- tro e periferia, integralmente, enquanto o homem casa- do no sé vé os costumes concederem-lhe uma liberda- de de movimento muito maior, como também nfo traz de safda 4 relag&o conjugal o essencial da sua personali- dade, acupado por sua profissao. Tal como se apresen- ta a relacdo entre os sexos na nossa cultura, o homem que se casa por dinhciro se vende menos que a mulher no caso andlogo. Pertencendo mais ao homem do que este a ela, a mulher corre maiores riscos contraindo um casamento sem amor. Portanto, como a construgao psi- colégica deve paliar aqui as insuficiéncias da experién- cia empirica, sou levado a crer que o casamento por di- nheiro desenvolve principalmente suas conseqtiéncias mais tragicas — sobretudo se envolver naturezas mais finas — onde a mulher é comprada. Nesse caso, como em intimeros outros, as relacdes instauradas pelo dinhei- ro tém a particularidade de que a preponder4ncia even- tual de uma das partes sera, por conseguinte, explora- da ao maximo, ¢ até mesmo acentuada a fundo. B, a priori, a tendéncia de toda relag&o semelhante. A situa- ¢a0 do primus inter pares logo se torna a do primus puro 62 FILOSOFIA DO AMOR ¢ simples; o avanco adquirido em qualquer domfnio nao é mais que a etapa que permite ir mais longe ainda, apro- fundar 0 abismo; a obtengio de posigées privilegiadas revela-se ainda mais cOmoda, se j& se esté em posi¢ao mais elevada; em suma, as relagdes de superioridade se desenvolvem, de costume, em proporg6es crescentes, € a ‘‘acumulagio do capital’’ € um caso decorrente de uma norma bastante geral, que se aplica também a todas as esferas de poder estranhas & economia. Mas estas tlti- mas respeitam, sob varios aspectos, certas precaugées, comportam certos contrapesos que freiam a avalancha das superioridades; assim se dé com os costumes, a pie- dade, o dircito ¢ os limites atribufdos 4 expansao do po- derio pela natureza intrinseca dos interesses envolvidos. Vista a sua docilidade, sua total auséncia de qualidade, o dinheiro é 0 menos apto a deter tal tendéncia. Por is- so, quando parte de um interesse financeiro, uma rela- fio em que a vantagem e a supremacia se encontram a priori de um sé lado se desenvolverdé na diregtio dada — mantendo-se iguais todas as demais circunstAncias — de maneira bem mais ampla, radical e decisiva do que se outras motivacbes, concretamente determinadas e de- terminantes, estivessem em sua base. Em terceiro lugar, o casamento por dinheiro reve- la claramente seu car4ter através de um fendmeno bem particular: 0 antincio matrimonial. O fato de este ser de uso tao restrito, limitado & classe média, poderia pa- er surpreendente e lamentdvel. Porque, apesar de toda vidualizagao das personalidades modernas aqui ob- , apesar de toda a dificuldade da opcao conju- laf decorre, ainda ha para cada ser, por mais O DINHEIRO NAS RELAGOES ENTRE OS SEXOS 63 diferenciado que seja, um correspondente no seio do ou- a tro sexo em que ele se completa e encontraria o cénjuge “que lhe convém’’. O tinico obstaculo é a dificuldade j de se encontrar, para esses predestinados. O absurdo da sorte humana nao pode se revelar de modo mais tragi- co do que no celibato ou no casamento infeliz de dois estranhos que s6 precisariam se conhecer para obter um do outro o maximo de felicidade. O aperfeigoamento de- finitivo do anincio matrimonial racionalizaria, sem dti- vida nenhuma, © acaso cego dessas relagdes, € tem-se com tal sistema um dos maiores fatores de civilizacao, pelo qual o individuo se dé uma oportunidade infinita- mente mais elevada de satisfazer de maneira adequada seus desejos do que se estiver reduzido a descobrir seu objeto diretamente, pela mais pura das contingéncias. A maior individualizagao das necessidades torna o anin- cio matrimonial rigorosamente necessdrio, pois permi- te a extensao da oferta. Se, no entanto, ele permanece fora de questo nas camadas sociais feitas de personali- dades mais diferenciadas, as quais, em princfpio, deve- riam ser mais tributdrias dele, essa aversao precisa ter uma razio bastante positiva. Se examinarmos os amtin- cios publicados, observaremos que a situagao de fortu- na dos indivfduos que pedem ou sao pedidos é sua mo- tivagdo central, por mais que esteja mascarada. Que ha de mais compreensivel, de resto? Nenhuma outra qua- dade pessoal se presta a uma definigao precisa ou con- vincente. Nem o aspecto ou o carater, nem o grau de dade ou de intelectualidade descrevem-se tao fa- ‘a deixar uma imagem inequfvoca, suscitan= e individual. A vinica coisa que, em todos 64 FILOSOFIA DO AMOR 08 casos, pode ser definida com inteira certeza é a situa- fo financeira das pessoas, e a faculdade humana de re- presentagao tende inevitavelmente a privilegiar, entre as multiplas determinagdes de um objeto, as que podem ser indicadas ou conhecidas com uma justeza e uma exa- tidaéo m4ximas, como sendo a primeira e a principal. Essa vantagem especffica, quase metodolégica, da for- tuna monetdria torna o antincio matrimonial impossi- vel para as classes que teriam a mais urgente necessida- de dele, porque entao traria a confissao do puro e sim- ples interesse financeiro. Também no scio da prostituigao, impie-se o fato de que o dinheiro, além de certa quantidade, nao € mais nem indigno, nem inapto para compensar os valores in- dividuais. O desgosto da ‘‘boa’’ sociedade moderna para com a prostituta ficar4 melhor evidenciado se esta se mos- trar mais lamentavel e mais miseravel; ele se atenua com. o aumento do preco pedido 4 clientela, até o ponto de determinada atriz, notoriamente mantida por um mi- liondrio, ser recebida com freqiiéncia nos saldes, embo- ra esse género de mulher seja, sem divida, muito mais vampiresco € mentiroso, muito mais intimamente cor- rupto do que muitas mulheres da rua. Ja ha nisso um fendmeno de ordem geral: deixam-se soltos os grandes ladrées e enforcam-se os pequenos; ou, ainda, todo éxi- to consideravel, qualquer que seja seu dominio ou seu contetido, suscita certo respeito, Dito isso, a razao maior, funda, € que o preco de venda, ao alcancar uma al- exorbitante, poupa ao objeto da transagio 0 avilta- que decorre da sua venda. Numa descri¢aéo do do Império, Zola evoca a esposa de um persona- O DINHEIRO NAS RELACOES ENTRE OS SEXOS 65 gem bem situado, que se podia notoriamente possuir por 100.000 ou 200.000 francos. Nesse episddio, por certo baseado num fato hist6rico, ele conta primeiro que a mu- lher em questao freqiientava os cfrculos mais distintos e, em seguida, que seus amantes conhecidos como tais desfrutavam um insigne renome na ‘‘sociedade’’. A cor- tes& que se vende a alto preco ganha com isso um “‘va- lor de raridade’’, nZo s6 porque as coisas com valor de raridade alcancam um preco clevado, mas também, in- versamente, porque tém valor de raridade as coisas que alcangarn um prego elevado por alguma outra razo, ain- da que 0 capricho da moda. Como muitos outros obje- tos, os favores de muitas cortesas foram apreciados e dis- putados por muitos por causa das somas consideraveis que ela teve a coragem de exigir. A justica inglesa deve partir de uma base andloga, quando concede uma in- denizagao financeira ao marido de uma mulher seduzi- da. Nada repugnaria mais nosso sentimento do que tal procedimento, que rebaixa o marido a um papel de caf- ten. Mas a tarifa de ditas sentengas bate recordes. Co- nhego um caso em que a mulher tinha relagGes com va- rios homens; cada um foi condenado a pagar 50.000 mar- cos ao marido, Parece que, também aqui, quis-se com- pensar pela elevac&o da soma a baixeza do principio, a saber: a traduc&o em dinheiro de semelhante valor. CULTURA FEMININA - (1902) Se, na vida hist6rica de nossa espécie, temos o di- reito de ver produtos e valores que representam outra coisa que os individuos e encontram seu sentido em ou- tra parte que n&o nestes ultimos; se, portanto, podemos classificar os movimentos e as obras, as instituicGes € os pensamentos, conforme sirvam a uma soma definida de individuos e vivam para eles, ou, ao contrario, confor- me digam algo além do bem-estar ou do mal-estar dos sujeitos, ent&éo o movimento das mulheres, ao que pa- rece, recusa todo significado que ultrapasse as pessoas como tais, sua felicidade, sua formacdo, sua liberdade. Naturalmente, ele nao visa individuos determinados, porque éa totalidade das mule que deve se abrir um trava, po milhées, e 68 FILOSOFIA DO AMOR si toda esfera individual ou pessoal. E por mais que a ténica seja os interesses da sociedade em seu conjunto (aprofundamento e aperfeigoamento do casamento e da educagiio dos filhos com o pleno desenvolvimento inte- lectual e a plena independéncia econdmica das mulhe- res; seleg’o mais rigorosa dos melhores em todos os se- tores pela multiplicacao das candidaturas), nao vejo levantar-se em parte alguma a questao do valor cultu- ral suprapessoal e supra-social desse movimento, a ques- tao de suas energias propriamente criadoras, capazes de aumentar o fundo dos valores espirituais. Nio quero que o problema de saber o que é a cul- tura em si venha misturar no debate suas obscuridades e suas controvérsias. Mas, como quer que se exprima sua esséncia geral, nao se poder4 ignorar que a cultura se particulariza em dois significados bem distintos. Em primeiro lugar, figura certo estado da formagao ou da atividade, do saber ou da beleza, da felicidade ou da mo- ralidade nos indivéduos. Sua realidade eficiente vive nas almas singulares, e a quantidade maior ou menor de seus bens nestas constitui, cada vez, a sfntese da sua existén- cia histérica. Mas a linguagem, com uma enorme pro- fundidade, chama essa cultura dos sujeitos de participa- ¢ao nos ditos bens, como se houvesse nao sei onde um estoque impessoal, de que o individuo é chamado a con- sumir uma parte fortuita e varidvel, sem que o fundo global seja comprometido com isso. De fato, o que se le chamar de cultura objetiva permanece, em seu con- , plenamente independente da intensidade e da fre- de suas manifestagdes nos individuos: a lingua , 08 costumes € a arte, as profissGes ¢ a reli- CULTURA FEMININA 69 giao, os méveis € os trajes regionais sao modelos forja- dos, que podem ser adotados ou desprezados, de certa forma 4 disposigao dos individuos, aos quais ultrapas- sam, porém, por seu significado interno fatual — resul- tados objetivados da atividade cultural fornecida até en- tao, e normas das atividades futuras. O valor ideal de uma obra de arte ou de uma regra moral, de uma idéia religiosa ou de uma forma.de mandamento, de um prin- cipio juridico ou de uma constatagio cientffica, nao de- pende, quanto aos ganhos e perdas, da freqiiéncia ou da raridade com que tudo isso integre em si o material contingente da vida; ao passo que, do ponto de vista do interesse individual ou social, s6 se reveste de uma im- portancia decisiva justamente o guanias vezes do valor sin- gular. Essa oposigao revela claramente a nova proble- miatica relativa ao movimento das mulheres. O signifi- cado cultural objetivo deste ultimo sé poderia ser o de que as mulheres preenchem por sua vez, certo ntiimero de vezes, as formas de existéncia e de prestacao até en- tao reservadas aos homens. A questdo sera, ao contra- rio: vao nascer de semelhante movimento produgGes in- teiramente novas, qualitativamente distintas das prece- dentes e que nio se limitem a multiplicar as antigas? O reino dos contetidos de cultura sera objetivamente am- pliado com isso? Nao se vai se contentar com copiar, vai-se inventar? Essa quest&o, que nfo tem diretamen- te significado nem pessoal, nem social, nem ético na acepcao tradicional do termo, pode muito bem ser con- siderada puramente académica e tida como uma preo- cupacio ulterior, dada a urgéncia premente dos interesses entao exclufdos. Mas os que se preocupam nifio 86 com 70 FILOSOFIA DO AMOR os humanos, mas com o homem em geral, nao s6 com 0 uso das coisas, mas com as prdprias coisas, nao s6 com a torrente agitada da acdo e do sofrimento, mas com o sentido atemporal de suas formas, estes verao nas res- postas dadas 0 significado tiltimo do movimento das mu- lheres, movimento que influenciard o futuro de nossa espécic de mancira mais profunda do que a propria ques- to operaria. Para abracar as condigdes e as conseqiiéncias des- sa problemAtica, € preciso tomar consciéncia de que a cultura da humanidade nao €, em suma, nada assexua- da, nao reside numa faculdade pura além do homem e da mulher. Ao contrdrio, essa cultura, que é a nossa, se revela inteiramente masculina, com excegao de raros dominios. A indistria e a arte, o comércio e a ciéncia, a administracio civil e a religiao foram criacao do ho- mem, e ndo sé apresentam um cardter objetivamente masculino, como, ademais, requerem, para a sua efe- tuagdo repetida sem cessar, forgas especificamente mas- culinas. A bela idéia de uma civilizagaéo humana que nao se inquiete com uma partilha homern/mulher nao é his- toricamente realizada, a crenca que se pode ter nela de- corre desse mesmo sentimento que conhece apenas uma palavra para o homem e o ser humano em tao numero- sas Ifnguas. Esse trago masculino dos préprios elemen- tos objetivos da cultura explica por que, em todos os do- minios, atribui-se as realizagGes insuficientes a denomi- nagiio rebaixadora de ‘‘feminina’’, enquanto nao se sa- ‘a elogiar melhor o desempenho de uma mulher se- qualificando- o de “‘absolutamente viril’’. Isso nao apenas do orgulho do sexo masculino, que faz CULTURA FEMININA 7 como se o masculino ja fosse em si sindnimo de valoro- so; mas hé nisso também um fato histérico, a saber, que nossa cultura, nascida do espfrito e do labor dos homens, s6 € verdadeiramente adaptada 4 capacidade de produ- co masculina. N&o penso unicamente, aqui, na quan- tidade superior das forgas requeridas, na ordem fisica ou talvez, igualmente, psfquica; se s6 se tratassc delas, esse desprezo de principio nao colocaria um enigma in- solivel. Todavia sao, de fato, as diferengas qualitativas entre os sexos que ai atuam. Porque a natureza de nos- so trabalho cultural, ¢ no sé sua quantidade, se dirige especialmente a energias masculinas, a sentimentos mas- culinos, a uma intelectualidade masculina. Darei alguns exemplos bastante dispares. Em toda legislagaéo e, em certo grau, também em toda jurisprudéncia, atuam con- juntamente um sentimento fundamental de eqitidade, uma preocupagao instintiva ou deliberadamente social de eficdcia e uma légica objetiva sistematica. Ora, a ma- neira e a dosagem segundo as quais se misturam esses elementos seguramente divergiriam muito do que se ob- tém atualmente, se o direito das mulheres estivesse es- tabelecido e aplicado. A freqiiente oposigao destas as nor- mas € sentengas jurfdicas nao significa sempre, longe dis- so, uma hostilidade em relac4o ao direito em geral, mas sim ao direito masculino, 0 tinico em nossa posse, que nos parece ser, portanto, o direito puro e simples. Cer- tos oficios, como a marcenaria e a tapegaria, sao obri- gatoriamente tidos como masculinos, apesar de impli- carem todo tipo de atividades que as mulheres poderiam muito bem exercer. S6 que a divisao e a composigio do» minantes do trabalho ligaram-nos a operagdes bem di+ 72 FILOSOFIA DO AMOR ferentes, que exigem a forca fisica do homem. Em vir- tude dessa constelagao histérica, mas evidentemente de modo nenhum necessaria, os offcios em questao assu- miram a marca do trabalho cultural exclusivamente mas- culino. De modo bem geral: a espectalizagdo que caracte- riza em si nossas profissdes e nossa cultura é, de cabo arabo, masculina em sua esséncia. Longe de se reduzir a um dado puramente exterior, s6 € possivel, de fato, pela mais profunda especificidade psicolégica do espfri- to masculino: a tendéncia exacerbada aos trabalhos ra- dicalmente unilaterais, que se diferenciam da persona- lidade global, a tal ponto que a atividade objetivamente especializada, de um lado, e a subjetividade, de outro, levam cada uma sua prépria vida, se assim posso dizer. Toda divisao do trabalho bastante avancada significa que o sujeito se separa de seu trabalho, o qual se integra en- tao num contexto objetivo, em que se dobra as exigén- cias de uma totalidade impessoal, enquanto os interes- ses subjetivos e os movimentos interiores do ser huma- no constituem, por sua vez, um mundo prd6prio e pros- guem de certa forma uma existéncia privada. Se essa possibilidade psicolégica nao subsistisse, nossa cultura, nstruida sobre a mais extrema divis&o do trabalho, se- nao sé insuportavel, mas a priori impossfvel. Ora, pa- rece que a diferenga mais marcante entre 0 espirito mas- culino e o espirito feminino reside nisso, e que este tilti- mo nao pode existir, pelo menos a nfvel do tipo, com semelhante dissociacao entre o desempenho singular e 6 et dotado de seus centros afetivos e sensfveis. Toda I nda beleza da esséncia feminina, que lhe da pree- a sobre o espfrito masculino, cuja libertacio e CULTURA FEMININA 73 ¢ nessa unidade, nes- ada reconciliacao cla simboliza, bascia: sa solidariedade imediata, organica, entre a pe 30a. uma de suas manifestacdes, em suma, na indivisibili- “ou tudo, ou nada’’. dade do eu, que s6 conhece um A maravilhosa relagao que a alma feminina ainda pare- ce manter com a unidade intacta da natureza e que cria a disting&o entre a férmula global de sua existéncia e ado homem multicindido, diferenciado, dissolvendo-se no seio da objetividade, essa fabulosa relacao separa-a, justamente, também do que € 0 trabalho de nossa cul- tura, o qual se baseia na especializacao fatual. Ora, por mais que se abram agora para as mulheres todos os off- cios masculinos precisamente desse tipo, nao 86 elas per- dem a criatividade de seu préprio trabalho cultural, sen- do submetidas ento a um esquema de diferenciag&o que nao deixa as forcas mais profundas de seu ser se expri- mirem; no sé elas repetem sempre, com respeito ao in- teresse cultural objetivo, o j4 dado, mas também fazem- no com meios de certa forma inoperantes, pois nao se amoldam As formas que se oferecem assim as suas for- cas. E isso nao porque essas forgas seriam demasiado pequenas, mas porque seu modo de exercfcio nao entra nas categorias de nosso trabalho cultural. Ja encontra- mos agora fenédmenos similares num grande nimero de homens. A mistura das classes, a vida moderna com seus milhares de estfmulos e de potencialidades criaram ou levaram & consciéncia uma profusao de aptidées origi- nais, a que nao correspondem mais as profissdes dadas. As constelacGes e orientagSes do talento intrfnseco mul- tiplicaram-se mais depressa do que as possibilidades de exercé-lo nas profiss6es. HA uma quantidade cada vez 74 FILOSOFIA DO AMOR maior de homens cujas disposig6es os levam a flutuar entre varios offcios e nao se arraigar em nenhum deles, e que, de um lado, nao assumem a forma de vida que a profissao abragada oferece, enquanto, de outro, amea- cam explodir os limites desta. Tanto mais graves serao, entao, as distorgdes entre as profissdes historicamente dadas, logo masculinas, ¢ essa alma feminina, com o rit- mo, o modo de desempenho, a tensio volitiva e afetiva que lhe pertencem! O verdadeiro problema cultural que colocamos as- sim (produziré a liberdade que as mulheres buscam no- vas qualidades culturais?) s6 encontrara resposta posi- tiva mediante uma nova partilha das profissGes ou me- diante uma nova modulagio destas, fazendo no que as mulheres se tornem cientistas ou técnicas, médicas ou artistas no sentido em que os homens o séo, mas que realizem trabalhos que eles sao incapazes de realizar. Trata-se, em primeiro lugar, de estabelecer uma outra divisao do trabalho, de redistribuir os trabalhos globais de uma profissao dada, de reunir depois os elementos especificamente adaptados ao modo de trabalho femi- nino para constituir esses oficios parciais, singulares, di- ferenciados. Nao se obteria, assim, apenas um aperfei- Goamento e um enriquecimento extraordindrios de to- do o setor de atividade envolvido, mas também se evi- taria em boa parte a concorréncia com os homens. Os operdrios ingleses impuseram esse principio num domi- nio estrcito e assaz material. Com freqiiéncia, as mu- 8, com seu nfvel de vida menos elevado e menos ndioso, concorriam com os homens provocando terioragio do saldrio padrao, de modo que, em CULTURA FEMININA 75 geral, as associagdes operarias combatiam com o mais vivo afinco a utilizacao da forcga de trabalho feminina na industria. Algumas unides operdrias, por exemplo os tecel6es ou os chapeleiros, encontraram entao uma saf- da introduzindo uma lista padrao de salarios para todas as fungdes parciais do trabalho fabril, mesmo os mais infimos. Essas fungies sao retribuidas em plena igual- dade, quer sejam exercidas por homens, quer por mu- lheres. Nasceu assim quase automaticamente a divisao do trabalho cm virtude da qual as mulheres monopoli- zaram, de certa forma, as funcgdes adequadas a suas for- cas fisicas e A sua habilidade, deixando aos homens as que convinham 4s capacidades destes. Isso cria, em pri- meiro lugar, uma real igualdade objetiva, porque, se as mulheres podem fornecer o trabalho masculino, elas ga- nham, entéo, exatamente o mesmo que os homens e, em segundo lugar, a concorréncia € suprimida pela di- visio do trabalho supracitada. O melhor conhecedor da situagao criada para os operdrios da industria inglesa for- mula o seguinte jufzo: ‘‘Enquanto se trata de um tra- balho manual, as mulheres formam uma classe particu- lar de operarios, tendo capacidades e necessidades dife- rentes das dos homens. Para manter os dois sexos no mesmo estado de satide fisica e de capacidade produti- va, é preciso com freqiiéncia uma diferenciagiio das ta- refas.’’ Eis, pois, aqui, jf resolvido, ingenuamente por assim dizer, 0 grande problema do trabalho cultural fe- minino; a L njunto das tarefas, 4 0 v ! predestina- 76 FILOSOFIA DO AMOR forma desse tipo visava resolver as tarefas dadas, claro que com os meios dados, mas de um modo inédito e efi- caz, ha outra que cria novas tarefas, ou, em princfpio, pelo menos novos caminhos para resolver os problemas gerais. O exemplo mais imediato é, ent&o, o da medici- na, A questaéo que colocamos é de saber se as médicas, além de um aumento do bem-estar fisico ¢ moral, pro- porcionarao alguma melhoria da cultura médica impos- sivel de se realizar por meios masculinos. Ora, pode-se cefetivamente esperar tal coisa, parece-me, dado que o diagnéstico e a terapia dependem, ambos, numa parte nao desprezivel, da capacidade de sentir 0 estado do pa- ciente. Os métodos de exame clinico tidos como objeti- vos logo se esgotam, se nao forem completados por um conhecimento subjetivo do estado do doente ¢ de seus sentimentos, seja esse conhecimento imediatamente ins- tintivo, seja mediatizado por manifestagdes quaisquer. Um neurologista muito experiente disse, certa vez, que uma pessoa sé podia desvendar certos estados nervosos se houvesse experimentado estados semelhantes. A com- preens4o imitativa €, assim, condicionada por certa ana~ logia de constituicao. E por isso que estou persuadido de que, confrontada a mulheres, uma médica, além de ter o diagnéstico mais exato e o pressentimento mais fi- no para tratar dos casos individuais de maneira conve- niente, ainda poderia, sob o Angulo puramente cientffi- co, descobrir conexées tipicas, nao detect4veis por um médico, e dar com isso contribuig6es especificas 4 cul- tura objetiva; porque as mulheres possuem, com sua Natituicdo idéntica, uma ferramenta de conhecimen- vecusada aos homens. Variando um pouco o mesmo e | CULTURA FEMININA TE motivo bdsico, também o conhecimento histérico pode- ria pér a seu servico a psique feminina. Tudo o que cha- mamos de histéria se reduziria a um absurdo vaivém de movimentos externos, desprovidos em si de signifi- cado, coeréncia € interesse, se nao interpretéssemos psi- cologicamente os atos exteriores, introduzindo proces- sos mentais sempre impossiveis de se constatar direta- mente ¢ acess{veis apenas a imaginacdo imitativa, 4 com- preensao das almas por intropatia. Af também sera pre- ciso, em geral, certa semelhanga de compleigées psiqui- cas para alcancar uma traducao adequada das necessi- dades e das paixdes, do amor e do édio, dos instintos e das emogGes religiosas, que nao s6 desencadeiam to- do 0 jogo da histéria, mas também o constituem direta- mente. Tal semelhanga, no entanto, nao deve ser con- cebida mecanicamente, € 0 conjunto desses processos en- cerra um grande mistério psicolégico. Claro, nao é pre- so ser um César para compreender César, nem Cati- lina para compreender Catilina. Ao contrario, tal com- preensao imitativa realiza-se, de certa forma, em cama- das da alma situadas além da existéncia pessoal imedia- ta, 6 uma fungao artistica que tem sua vida acima da subjetividade. Portanto, pode ocorrer que certo modo de diferenciagao subjetiva seja justamente a base de uma compreensao psicolégica especialmente profunda; inclu- sive, uma semelhanga demasiado direta pode nos reter no subjetivo a tal ponto que nfo aleancemos mais um sentimento objetivo na esfera cient{fico-artfatica, Assim, as experiénelas d ram que as mulheres co- nhecem varlow: palma maseulina bem melhor, com um in fiegure, do que os homens. 78 FILOSOFIA DO AMOR N4o ha a menor diivida, a meu ver, que esse talento po- deria ser explorado para a pesquisa histérica. Basta no- tar — como decerto ainda se omite fazer atualmente, de ordinario, por diversas causas de burocratismo cien- tifico — a que ponto toda ciéncia histérica € psicologia aplicada, para adivinhar os servicos inigualdveis que a alma feminina poderia prestar nesse ponto, com seus 6r- | gaos especificos para perceber e sentir, desde a compreen- ! sao de obscuros movimentos populares até a epigrafia. Estou convencido disto: poderia haver, exatamente co- mo na medicina, funcGes especificamente femininas em histéria. Também aqui, poderfamos desembocar nas contribuicgdes de uma cultura feminina no sentido ob- jetivo. Nao obstante, é no domfnio da arte que essa possi- bilidade deveria ser mais acess{vel 4 compreensdo ge- ral, porque nele j4 existem os primeiros elementos do que quero dizer. E na literatura que eles melhor se per- cebem. Nesse dominio, j4 ha uma quantidade de mu- Iheres que nao tém a ambicAo servil de escrever ‘‘como um homem’’, nem manifestam, usando pseudénimos masculinos, nenhuma ignorancia quanto 4 originalida- de ou 4 importncia especffica das contribuigdes que po- deriam dar enquanto mulheres. Claro, a exteriorizacgao da nuanga feminina, sua objetivagio, também é bastante dificil na cultura literdéria, porque as formas gerais da eriagio poética, no interior das quais o fenémeno ocor- ‘re, so justamente produtos masculinos e mostram, pro- yavelmente por essa razdo, uma reticéncia interna ao | preenchidas por um contetido especificamente fe- No lirismo feminino, notadamente, sobretudo CULTURA FEMININA 79 onde é particularmente bem-sucedido, sinto freqtiente- mente certo dualismo entre o conteticlo pessoal ¢ a for- ma artistica, como se a alma criadora e seu modo dle ex- pressdo nao tivessem o mesmo estilo. A vida interior, que impele 4 sua objetivac4o numa figura estética, nao preenche inteiramente os contornos dados por esta, de sorte que as exigéncias que emanam dela e As quais é preciso satisfazer s6 poderao ser aplacadas mediante certa banalidade, certo convencionalismo; enquanto que, por outro lado, no campo da interioridade, um resto de sen- timento e de vida permanece privado de forma e de rea- lizac&o. Fi interessantfssimo a esse respeito que, em mui- tos povos, as mulheres, no est4gio do canto popular, se- jam pelo menos tao produtivas, poeticamente, quanto os homens. Isso significa justamente que nao ha, nas cul- turas ainda nao pouco desenvolvidas, a ocasiao de dis- crepancia aqui em questao. Enquanto as formas cultu- rais ainda nio estiio especial ¢ firmemente assinaladas, elas nado podem tampouco ser resolutamente masculi- nas; enquanto se encontrarem no estado de indiferen- ciagAo, as energias femininas nao sao submetidas A ne- cessidade de se exprimir de um modo que nao lhes é ade- quado, elas podem se desenvolver livremente e em con- formidade com suas préprias normas interiores. Aqui, como em muitas evolugées, o grau mais elevado repro- duz a forma do mais baixo: o produto mais sublimado da cultura do espfrito, a matematica, esté igualmente além do masculino e do feminino, e talvez isso explique o fato surpreendente de que, nessa ciéncia, mais que em qualquer outra, as mulheres penctraram profundamente € deram importantes contribuigdes. A matemética possui 80 FILOSOFIA DO AMOR um grau de abstracao que supera toda diferenciag&o psi- colégica dos humanos, do mesmo modo que o estégio da produgao feminina de cangGes populares ainda nao chegou a ele. O romance parece oferecer dificuldades menores pa- ra a produg&o feminina do que as outras formas de lite- ratura, isso porque, por sua natureza e sua problemAati- ca artistica, ele possui em si uma forma muito menos estrita, muito menos fixada. Ao buscar, por seu conteti- do, mais a amplitude do que a profundidade, cle pro- porciona, do ponto de vista formal, uma liberdade maior que qualquer outro género artfstico, e seus limites flexf- veis, extensfveis & vontade, trazem menos abruptamente o cardter de sua origem masculina. E por isso que o ins- tinto justamente conduziu as mulheres para o roman- ce, como seu verdadeiro dominio, em que elas podem dar o aspecto mais livre de si mesmas, o mais especifi- co. Af também, decerto, a relac&o interior constante, re- gular, mantida com uma grande variedade de fendme- nos, a tensao do sentimento, obrigado a permanecer sem- pre no mesmo nfvel de objetividade tanto diante dos con- tetdos simpaticos como dos antipaticos, ai também, por- tanto, nada disso tudo parece corresponder ao ritmo da alma feminina, e talvez seja por isso que mesmo a for- ma do romance, que oferece 4 nuanga feminina um es- paco particularmente vasto de acdo, s6 apresenta, des- se ponto de vista, poucas produgées artisticamente emi- nentes. Em todo caso, os elementos iniciais de uma cul- (ura especificamente feminina aparecem aqui com mais nitidez do que nas artes plasticas, onde a adeso habi- tual a um mestre basta para impor ideais em si mesmos CULTURA FEMININA masculinos & artista, reprimindo assim a feitura femi- nina em suas particularidades. Que essa possa existir a titulo de possibilidade nas artes plasticas, é coisa de que nao duvido um sé instante. E isso nao sé porque os prin- cipais sentimentos femininos diante do mundo e da vi- da — que também determinam a arte — possuem uma coloragao especilica, mas notadamente porque sabemos hoje a que ponto todas as artes plAsticas dependem dos dados psicofisicos, do modo de conversao dos movimen- tos morais em movimentos corporais, das sensagdes de inervacao, do ritmo do olhar e do toque. O modo, em parte mais direto, em parte mais reservado, pelo qual a vida interior das mulheres se manifesta ao exterior, a mancira particular que elas tém de se mover, condi- cionada anatémica e fisiologicamente, o tipo de relagaio com 0 espago que emana da cadéncia, da amplitude e da forma especiais de seus gestos, tudo isso deveria deixar-nos esperar delas, nas artes da especialidade, uma interpretagao ¢ uma figuracao especificas dos fenédme- nos, como na arte da danga, em que se apresentam par- ticularidades similares. Mas af as formas tradicionais re- servam aos impulsos, a graca e A gesticula¢ao individuais um espaco de agao sem igual. Nas artes plasticas, em compensagao, a violéncia exercida pelo material histé- rico ja € irresistivel para intimeros artistas masculinos — tomados individualmente, enquanto, além disso, cla o € genericamente para as mulheres. Também nesse do- minio, porém, percebem-se alguns leves indfcios de um toque especificamente feminino, Em certos quadros de Dora Hitz, nas 4guas-fortes de Kathe Kollwitz, em al: gumas outras de Kornelie Wagner em seus infcios, do- 82 FILOSOFIA DO AMOR mina uma atitude de conjunto que nunca senti numa produgao masculina. Claro, essa diferenga nao se deixa descrever com palavras; ou, pelo menos, seria preciso, para isso, que a estética estivesse muito mais avangada do que é possivel até mesmo prever na hora atual. O fato é que af, na realidade, mesmo se se trata unicamente de um comego, a imensa diferenga do principio de vida ferninino em relag&o ao masculino passou da forma do vivido em sua fluidez a do produto cultural em sua ob- jetividade. Com respeito a essas primfcias de uma cultura fe- minina, gostaria de assinalar uma variante das nature- zas femininas bem pouco notada, mas que parece pre- destinada a sustentar esse género de criagdes. Penso nas mulheres que, em todas as expressdes de seu ser, apre- sentam o selo puro e auténtico da feminilidade, embora tenha desaparecido por completo a colorag&o propria- mente sexual desta, Para empregar uma metdfora bio- légica, direi que se trata de seres nos quais as caracte- risticas sexuais secundarias sao plenamente desenvolvi- das do ponto de vista psicol6gico, ao passo que as pri- marias apagaram-se. Sem divida nenhuma a complei- cao fisiolégico-sexual, com os fendmenos psiquicos con- comitantes ¢ as outras pulsdes que emanam diretamen- te dela, é a fonte das propriedades da alma feminina, inclusive das mais espiritualizadas e mais sublimadas. Contudo, essas uiltimas, numa série de individuos alta- mente evoluidos, diferenciaram-se para levar uma vida independente, néo bebem mais na fonte precedente, completamente atrofiada, ao contr4rio. A sexualidade cumpriu seu dever, pode afastar-se; nesse caso € sob es- CULTURA FEMININA 83 se aspecto, ela é compardvel aos interesses praticos da hu- manidade. No inicio, tais interesses promoveram os ted- ricos, como sua conseqléncia ou também como seu ins- trumento, enquanto agora o interesse cognitivo pode existir de maneira de todo auténoma, inteiramente separada da praxis. Sob o aspecto fisiolégico, colocou-se recentemen- te a hipétese de que a evoluco ascendente dos humanos ia diminuir em geral a importancia do erotismo para 0 con- junto da vida interior, localizando cada vez mais esse in- teresse, por assim dizer, e ao mesmo tempo tornando au- ténomos os demais interesses em relagiio a ele. Assim co- mo, fisicarnente, a fungo sexual deu-se 6rgaos mais ou menos particulares, enquanto nos animais inferiores 0 cor- po inteiro participa da réproduco da espécie, também, segundo se afirma, a evolucao superior vai demarcar ca- da vez mais nitidamente o sentimento de amor das outras. fungoes psiquicas, resultando em que ele se mesclaré cada vez menos a estas para desvia-las ou tiraniz4-las. Uma va- riante particular desse esquema se realiza nas mulheres em que a feminilidade no sentido da sexualidade diferenciou- se totalmente, na alma, da feminilidade no sentido da com- pleicao psfquica geral, de modo que a primeira péde re- gredir ¢ desaparecer totalmente, sem rebaixar a segunda no que quer que seja. Atinge-se aqui, sob a forma da vida pessoal € como para simbolizar o objetivo cultural indica- do neste estudo, a impregnac&o do contetdo da alma por todas as cores da feminilidade, mas isso dissociado ao mes- mo tempo da obscuridade e do excesso de subjetividade que entravam com tanta freqiiéncia, direta e indiretamente, o desenvolvimento completo da personalidade espiritual nas producées concretas e mentais. 84 FILOSOFIA DO AMOR Além disso, é preciso tomar mais consciéncia do que de ordindrio da diferenga interna entre os princfpios mas- culino e feminino. E justamente a profundidade abso- luta dessa diferenca que costuma nos impedir de fazé- lo, Pois ela se tornou tao natural para nés e condiciona de maneira to dogmatica nossa vida pratica, que con- sideramos instintivamente cada mulher em fungao de puras categorias femininas, e cada homem segundo pu- ras categorias masculinas. Sem uma atengdo especial- mente consciente, nao julgamos o ser ou o fazer mascu- lino e feminino segundo uma norma realmente homo- génea; contudo o resultado final da avaliagao — é isso 0 falacioso — nao deixa ver que chegou-se a ele compa- rando-se a mulher 4 média ou ao ideal da esséncia fe- minina, e medindo-se o homem & luz dos critérios mas- culinos. Sendo, sao justamente as diferencas entre os hu- manos que suscitam a consciéncia mais clevada, mas uni- camente em fungao de sua importancia para a aco pra- tica. O que é semelhante em todos os humanos € o fun- damento evidente de toda aco, ao qual, na ordem pra- tica, nao aplicamos nenhuma consciéncia. Toda ativi- dade econémica, social ou ética é orientada, em secu ob- Jetivo especial e em seu modo especial, pelas diferencas reconhecidas entre os individuos; estas séo os pressupos- (os maiores de nosso fazer. Mas, dada a persistente di- visio do trabalho entre os sexos, a diferenca entre os prin- efpios masculino ¢ feminino foi aceita até aqui como na- ral para a pratica, com tanta ingenuidade quanto, por lado, as semelhancas mais gerais entre todos os nos, Foi preciso esperar a irrupg%o das mulheres ios masculinos de atividade para se colocar CULTURA FEMININA 85 em termos praticos a questio de suas diferencgas essen- ciais, e portanto para mostrar, ainda que de longe, o imenso problema de saber se uma atividade cultural po- deria decorrer tao organicamente do ser feminino quanto foi o caso até aqui para o ser masculino. Ora, houve e ainda ha, em parte pelo menos, uma sé e tinica profis- sdo desse género, revestida da mais elevada significa- cao cultural, plenamente autéctone ao mesmo tempo, , ho seio da natureza feminina. Falo da economia domés- ? | tica. A gestao doméstica, com sua incomensur4vel im- portancia para o conjunto da vida, é a grande contri- buig&o cultural da mulher, e a casa traz inteiramente sua marca; suas capacidades e interesses, sua afetivida- ) * de e sua intelectualidade, toda a ritmica de seu ser for- neceram, até aqui, uma criagao de que sé ela € capaz. | Nao é preciso explicar a que ponto a evolugao moder- { na, tanto econémica como moral, retirou cada vez mais vail substancia dessa criagao!: divistio do trabalho, expatria ¢ao de inimeras producées para fora de casa, queda dos se colocasse 0 problema do acesso das mi balhos culturais. Todavia, como de dera a cultura existente, isto 6, ca possivel, as mulheres se sional m 86 FILOSOFIA DO AMOR menor preconceito reacionArio que, por falta de relagdes intrinsecas com a obra objetiva, os valores, as caracte- rfsticas e os atrativos pessoais da alma feminina nao po- dem deixar de sofrer. Quando se acreditou que as pro- fiss6es privariam tao pouco as mulheres de sua femini- lidade quanto haviam privado os homens da sua virili- dade, esqueceu-se 0 porqué desse fato: ditas “‘profissdes’’ eram 4 priort de esséncia masculina — sem contar que os homens tém uma capacidade maior de diferenciagio, porque nao misturam tao facilmente quanto as mulhe- res seu centro psfquico 4 sua aco exterior, e portanto nao deixam esta perturbar ou destruir aquele. Tal al- ternativa, que parece obrigar as mulheres a escolherem entre a preservacao de sua natureza prépria e o traba- lho cultural produtivo, desaparece quando se sabe a que ponto a cultura existente no é neutra e o quanto é mo- delada, com excegao da economia doméstica, segundo um modo de trabalho unicamente masculino, propor- cionando pois todo 0 espaco desejado, se necessdrio, a outro modo de trabalho que suporia e exprimiria a na- tureza feminina. A criagdo de uma nova nuanga desse tipo, ou mesmo de um novo continente da cultura, nao corresponderia somente & grande férmula social do de- senvolvimento: estabelecer, em vez da concorréncia entre trabalhos idénticos, uma complementaridade das ativi- dades miltiplas devidas & divisiio do trabalho — essa complementaridade parece-me ser também, em si, o be- neficio préprio que a cultura objetiva pode tirar do mo- ito das mulheres na época moderna?. isso, nfio me dissimulo as dificuldades exter- a8. com que se choca a evolucio rumo ao ideal CULTURA FEMININA 87 indicado. Nao é ela tal, poderfamos dizer, que seus pri- meiros est4gios adquirem uma diregdo diametralmente oposta a seu objetivo final? A formagio, a atividade e a situacao das mulheres intelectualmente aut6nomas de- vem passar pelo estagio da cultura historicamente da- da, logo masculina, ainda que isso n3o seja mais que uma prepara¢ao para melhor deix4-las seguir, depois da bifureagao num ponto definido, sua linha prépria. Por- que, por mais longe que possamos ver sem nos perder nas fantasias, resulta que mesmo a cultura feminina mais desenvolvida baseara seu desenvolvimento em dados ou tarefas essenciais da vida humana, acrescentando a seu tratamento especificamente masculino uma abordagem especificamente feminina, mas no sem partilhar com aquele o fundamental e, sem dtivida, também muitos detalhes. As mulheres deverao primeiro desfrutar da for- miagao dos homens, de suas oportunidades de confirma- cdo, de seus direitos: € a tnica forma sob a qual lhes é dado adquirir a base, o material e a técnica necessd- rios a suas possibilidades particulares de trabalho. O ar- tista mais original acaso nado passa também seus anos de aprendizado com um mestre inevitavelmente diferente dele, apropriando-se destarte das finalidades ¢ meios da arte sob uma forma definida que, em seguida, ele vai modificar soberanamente por diferencii Nosso problema chega aqui nas qu da psicologia da histéria, Di J cas sobre pontos técnico: a cultura femini nam 88 FILOSOFIA DO AMOR as diferencas de alma entre homens e mulheres e de que, com isso, diminua um dos encantos mais profundos e mais indispensaveis da existéncia. O perigo é evitavel, mas contanto que se fortalega extraordinariamente a sen- sibilidade diferencial. E uma das tarefas mais refinadas da vida da alma cultivar ou sentir a existéncia e a atra- c&o das diferencas num fundo de semelhangas considerdveis. A constituigao de ideais especificamente femininos sem- pre esteve ligada até agora 4 maior e mais grosseira di- ferenga, de ordem imediatamente sexual. A oposicao ab- soluta 4 esséncia masculina, que faz das mulheres 0 ob- jeto do erotismo, foi o que modelou seus ideais mais pré- ximos e mais distantes, nao permitindo fosse ignorada um s6 instante sua distancia em rela¢ao ao principio mas- culino. No entanto, o toque estritamente feminino nao se distinguiré com um tal absolutismo ou uma tal evi- déncia do toque masculino no 4mbito da criag4o cultu- ral objetiva. Tornar-nos-emos necessariamente muito mais sensfveis 4s nuangas; 0 processo de apuro que ja conduziu 0 gosto estético, aqui ou ali, dos contrastes crus as gradagGes suaves, do extremismo violento das formas ¢ das expressdes a um sistema temperado de acentos for- tes e fracos, sem que, com isso, sejam sentidas com me- nos vivacidade ou agrado as diferengas que a comuni- dade mais acusada dos fendmenos deixa subsistir, esse processo de apuro, portanto, devera estender-se aos ou- tros dominios culturais — querendo-se prolongar em to- do seu vigor, no seio de uma cultura feminina, o en- canto devido a tensao entre os princfpios masculino ¢ sminino, Admitir-se-4 em todo caso, por enquanto, que macfo ¢ os direitos das mulheres, que estagnaram CULTURA FEMININA 89 por tanto tempo numa desigualdade excessiva em rela- co aos homens, devem transitar pelo estdgio de certa igualdade exterior, antes que se edifique uma sintese su- perior, ou seja, 0 ideal de uma cultura objetiva enrique- cida com a nuanga que a produtividade feminina repre- senta. FE assim, em todo caso, que as pessoas para as quais o valor do movimento das mulheres repousa nes- sa diferenciac&o esperada, nesse esforco para destacar a especificidade feminina, poderao num primeiro mo- mento aprovar o brutal igualitarismo do partido da emancipacio, do mesmo modo que existem hoje indi- vidualistas extremos que sao socialistas porque esperam apenas da passagem por um socialismo nivelador uma hierarquia verdadeiramente natural e uma nova aristo- cracia que seja de fato a dominacao dos melhores. Dito isso, dtividas mais profundas que as que pro- vém de tais dificuldades de desenvolvimento concernem & relaco que o espfrito feminino parece ter com a for- ma da cultura. Todos os produtos culturais sobre cuja producio nos interrogamos aqui tém o cardter da dura- co, situam-se, quanto a seu sentido, além da vida in- dividual e de seu decurso temporal. Ora, talvez a natu- reza e o ritmo da esséncia feminina em seu conjunto per- manegam no princfpio estranhos a esse tipo de criagao. Sim, talvez as mulheres possuam, mais fortemente que os homens, o cardter da fluidez, uma propensio a dis- solver-se na exigéncia do momento, a orientar-se para a vida puramente individual. 1S essa uma das erfticas ba- nais que lhes é dirigida: elas nfo teriam nenhuma obje- tividade, sua devogio nunca iria para um objeto ou uma idéia, mas, em tiltima instfincia, sempre para uma pes- 90 FILOSOFIA DO AMOR soa, portanto para uma realidade temporal e, de certa forma, pontual, com respeito 4 ponderac&o e A nao-con- tingéncia que sao préprias do interesse puramente ob- jetivo, O que pode haver de verdadeiro nisso deve, com certeza, ligar-se ao fato de que a atividade das mulhe- res, sobretudo desde a limitacao da produgio domésti- ca, raramente cria “‘objetos’’. O trabalho doméstico que ainda subsiste vale para o dia que passa — 0 que elas cozinharam a manhd inteira é devorado em meia ho- ra —, acomoda-se ao fluxo e refluxo de exigéncias e in- teresses momentaneos, sem deixar resultado substancial que nao seja de imediato aspirado por esse fluxo. A vi- da no nao-temporal — que é bem diferente da eterni- dade no sentido religioso —, a pura fatualidade e a ine- vitavel unilateralidade do trabalho substancial, a inser- ¢4o em contextos suprapessoais, eis o que talvez repug- ne 4 vida mais fntima da alma feminina. Portanto, nao se trata mais de saber, agora, se esta possui contetidos especialmente caracterizados, que poderiam se encar- nar na vida cultural histérica. Poder-se-ia admiti-lo em prinefpio, mas afirmando simultaneamente que a for- ma de vida interior tfpica, que o ritmo psiquico da fe- minilidade s&o rebeldes A producto desses valores a que chamamos cultura objetiva. Importa, aqui, nfo a coi- sa, mas seu portador, nao o teor moral, mas a funcao que a realiza, nao o ser, mas a natureza de seu devir — 0 que torna a tarefa talvez iluséria. Essa questao da cadéncia ¢ do andamento inerente ao movimento ps{quico da vida feminina, ou, ainda, da forma deveras geral desta tiltima, ritmando de dentro todas as expressdes essenciais, € a Ultima instancia de CULTURA FEMININA 91 que depende 0 problema de um desenvolvimento futu- ro da produgao cultural feminina, ao lado da masculina ou em scus intersticios. Um problema que,,como: tudo o que concerne as realidades primeiras e altimas, nao requer solugio cient{fica, mas é tratado unicamente a partir das decis6es intuitivas dos individuos, para as quais cooperam o acaso das tendéncias pessoais, originarias, € 0 acaso, nio menor, de inimeras experiéncias naconi= cientes, assim como sua interpretacgao. Existe, porém, um contexto que legitima essa subjetividade na respos- ta dada as questdes mais profundas da vida hhistéincas falo dos grandes movimentos e€ mudangas hist6ricas de ordem fundamental, nao menos misteriosos para a tie teligéncia contemporanea do que para a inteligéncia pré- cientffica e englobando o destino e 0 trabalho das mu- Theres como causa e efeito de todos os demais samovir mentos e mudangas produzidos, afinal, na realidade da histéria exatamente pelos mesmos sentimentos instinti- vos que surgem das profundezas a-légicas da alma € sao os tinicos a tornar possivel a apropria¢ao espiritual dos primeiros, isto é, um jufzo subjetivo sobre sua forma- cio, tao polissémica objetivamente. PSICOLOGIA DO COQUETISMO (1909) I j A filosofia platénica do amor, segundo a qual o amor é um estado intermediario entre 0 ter e o nao-ter, nao vai, parece, até o mais profundo de seu ser, mas detém-se apenas numa modalidade de sua manifestagao fenomenal, nao s6 porque essa filosofia nao leva abso- lutamente em conta o amor que declara ‘‘se te amo, que te importa?’’, mas também, na verdade, porque pode apenas designar 0 amor que morre pela realizagio de seu desejo. jSituado no caminho do nfioster ao ter, esgo- tando seu ser nesse percurso, ele nio pode mais, no mo- mento em que ‘‘tem’’, ser 0 mesmo que antes, no po- de mais ser amor, mas converte seu quantum de ener- gia em gozo ou, tal Bawa logica do amor como dexejo de posse do suidor nfo abole o fato de que instante do seu de- 94 FILOSOFIA DO AMOR prisioneiro de uma alternancia ritmica cujas cesuras con- tém os momentos de realizago. Mas quando 0 amor es- t4 ancorado no mais profundo da alma essa rotagao do ter e do n4o-ter apenas descreve seu aspecto exterior su- perficial. O ser do amor, de que o desejo é simplesmente amanifestacao fenomenal, no pode ser abolido pelo apla- camento deste tiltimo. Qualquer que seja o sentido do querer ter, quer sig- nifique o definitivum do amor, quer simplesmente o dpice desse ritmo ondulatério que atua além do seu definitivum, cada vez que seu objeto é uma mulher e seu sujeito um homem, ele se eleva bem acima da realidade psiquica pro- priamente dita do ‘‘agradar’’. O agradar é a fonte em que se alimentam 0 ter ¢ 0 nao-ter quando devem se transfor- mar para nés em prazer ou sofrimento, desejo ou temor. Porém, nisso como em outros aspectos, o vinculo entre uma posse € sua estimacao também funciona no sentido inverso. Nao sé importancia e valor vém se somar ao ter e ao n&o-ter do objeto que nos agrada, mas, além disso, quando por uma raz4o qualquer um ter ou um nao-ter recebe certo significado e acentuacao, seu objeto poe-se geralmente anos agradar® Assim, nfo € apenas a atracgao de uma coisa & venda que determina o prego que accita- mos pagar; intimeras vezes, ao contrario, é apenas 0 fato de que é pedido certo prego, de que sua aquisicao no é facil e requer esforgog ¢ sacrificios, que nos torna a coisa atraente ¢ desejavelA eventualidade dessa invers&o psi- colgica é que faz a relacdo entre homens ¢ mulheres en- tyar no modelo do coquetismo. O ‘querer agradar”’ da coquete ainda nao é, em si ui, o que d4a seu comportamento o cunho decisivo; PSICOLOGIA DO COQUETISMO 95 traduzir coquetismo por ‘‘necessidade de agradar’’ é con- fundir o meio em vista de um fim ¢ a pulsao orientada para esse fim. Uma mulher pode langar mao de tudo para agradar, dos encantos espirituais 4 exposi¢ao mais insistente de seus encantos fisicos, que ainda assim dis- tinguir-se-4 bastante da coquete. Porque o préprio des- ta Ultima € despertar o prazer e o desejo por meio de uma antftese/sintese original, através da alterndncia ou da concomitancia de atencdes ou auséncias de atengdes, sugerindo simbolicamente ao mesmo tempo o dizer-sim ¢ 0 dizer-nao, que atuam como que ‘‘a distancia’’, pela entrega ou a recusa — ou, para falar em termos platé- nicos, pelo ter e o nao-ter —, que ela opde uma a ou- tra, ao mesmo tempo que as faz experimentar como que a uma s6 vez. No comportamento da coquete, o homem sente quéo préximos e imbricados esto o ganhar e a impossibilidade de ganhar, que constituem a prdépria es- séncia do ‘‘prego’’ e que, por essa inversao que faz do valor o epigono do prego, fazem aparecer esse ganho co- . mo precioso e desejavel. A esséncia do coquetismo, re- sumida num paradoxo, é a seguinte: onde hé amor, ha — em profundidade ou na superficie — ter e nio-ter, portanto onde ha ter e nao-ter, se nfio numa forma real, ao menos sob forma lidica, hé amor ou algo que é tido por ele, Aplicarei essa interpretagio do coquetismo pri- meiro a alguns fatos da experiéneia, O que earacteriza © coquetismo em sua manifestagio banal é 0 olhar ter no, a cabega meio esquiyada, HA nisso uma maneira de se exquivar, ligada porém a uma maneira furtiva de se dav, de divigir lente sua Atenglo para o instante, pela diregiio oposta 96 FILOSOFIA DO AMOR da cabega e do corpo, ela se recusa simbolicamente. Es- se olhar, fisiologicamente, nao pode durar mais de al- guns segundos, de sorte que, voltando-se para, ele j4 pre- figura, como inevitavel, o movimento de se esquivar. Ele tem a atrac&o do segredo, do furtado, que nao pode ter durago, onde, por conseguinte, o sim € 0 nao esto intimamente mesclados. O olhar francamente de fren- te, por mais intenso ¢ insistente que seja, nunca possui precisamente esse traco especifico do coquetismo. No mesmo registro superior dos efeitos do coquetismo, ha o movimento do requebrado, o andar balanceado. Nao s6 porque este tiltimo, remexendo as partes do corpo se- xualmente excitantes, as pde nitidamente em evidéncia, enquanto, ao mesmo tempo, distancia e reserva sao efe- tivamente mantidas — mas também porque esse andar simboliza o gesto de se voltar para e se esquivar, na rit- micidade hidica de uma alternancia continua.’ E quan- do © coquetismo vai buscar além dos movimentos e ex- pressdes do prdprio sujeito nao se trata mais que de uma variante técnica dessa concomitancia do sim e do nao que a coquete sugere!' Por exemplo, ela gosta de se ocu- par de objetos de certa forma marginais: cachorros, flo- res, criancas. Porque, de um lado, esquiva-se assim da- quele que ela visa, mas, por outro Jado, voltando-se pa- ra esses outros objetos, faz-lhe ver quanto é desejavel. Isso significa: nao é vocé que me interessa, mas essas coisas; € ao mesmo tempo: eu jogo esse jogo na sua fren- te, mas é 0 interesse por vocé que me faz voltar-me pa- _ yA estes Outros objetos. Tal imbricag&o do ter e do nao- ‘simbélicos culmina visivelmente na atitude da mu- yoltando-se para um outro homem que nao aquele e ~~ ailie PSICOLOGIA DO COQUETISMO 97 em quem, na verdade, ela pensa. Nao se trata, af, da simplicidade brutal prépria do citime. Este ultimo situa- se em outro registro e, quando se desencadeia, por as- sim dizer, sem reservas, para levar a vontade de con- quistar ou conservar,& paixao, nao entra mais no domf- nio do coquetismo.-O coquetismo, ao contrario, deve) fazer aquele a quem cle sc dirige sentir esse jogo insta- > vel entre o sim € o nao, uma recusa de se dar, que po- | deria muito bem ser a esquiva que leva A entrega, uma | entrega de si atrés da qual se delineia, num plano de fundo, a eventualidade, a ameaca de uma retomada de si? Toda decis4o definitiva poe fim A arte do coquetis- mo; por isso, ele manifesta a soberania de sua arte che- gando bem perto de um définitivum, que contrabalanca _, porém, a cada instante, por meio de seu contrario. O duplo sentido da palavra ‘‘com’’, designando seja 0 ins- trumento, seja o parceiro, para indicar 0 objeto de uma correlagao, revela aqui sua justeza profunda. - Nisso tudo, o coquetismo, enquanto comportamen- to deliberadamente dualista, est4, ao que parece, em completa contradiga&o com a ‘‘unidade”’ da natureza fe- minina; de fato, esse conceito, por mais diversamente o compreendamos, por mais profunda ou superficialmen- te o interpretemos, atravessa no entanto todas as psico- logias da mulher como motivo fundamental delas. Ca- da vez que a alma feminina e a alma masculina sAo sen- tidas como tais num contraste essencial, trata-se de or- dinario do seguinte: a mulher é, por sua natureza, 0 ser que tem seu centro em si mesmo, cujas pulsdes ¢ pensa= mentos estio mais estreitamente reunidos em torno de um ou varios pontos, e sao mais diretamente excitavels 98 FILOSOFIA DO AMOR a partir deles do que no homem, mais diferenciado, cu- jos interesses e atividades se desenrolam muito mais nu- ma autonomia objetivamente determinada, conforme uma divisao do trabalho que 0 isola da globalidade e da intimidade da pessoa. Ficara cada vez mais patente que essa dualidade n&o encontra nenhuma contra-instancia no ser feminino como tal e, inclusive, sua relagdéo com o ser masculino encontra no coquetismo uma sintese es- pecffica de seus préprios momentos determinantes, ja que, precisamente, a relagaéo da mulher com o homem, em seu sentido especffico e sem igual, se esgota nos dois gestos, de conceder e recusar’ Seguramente existe uma infinidade de outras relagdes entre eles, amizade e hos- tilidade, comunidade de interesses e solidariedade mo- ral, alianga sob uma égide religiosa ou social, coopera- cao com finalidades concretas ou familiares’ Mas ou es- tas decorrem da natureza humana em geral e podem também estabelecer-se, no essencial, entre pessoas de mesmo sexo, ou sao determinadas a partir de um ponto real ou ideal qualquer situado fora dos préprios sujeitos c¢ da linha que os liga diretamente; ¢ ent4o nao estabe- lecem entre eles uma interagdo tao pura e exclusiva quan- to a que consiste nos dois tinicos gestos, de recusar e con- ceder, claro que no sentido mais amplo, que engloba todo contetido de natureza interna e externa. Recusar e con- ceder é 0 que as mulheres sabem fazer com perfeigio, 86 clas sabem, A recusa de um homem diante de uma mulher que vai a seu encontro, ainda que totalmente justificada, ou mesmo necessaria por motivos éticos, pes- abaix ou estéticos, sempre tem algo de penoso, de nao eayalheiresco, de certo modo censurdvel, e mais para ele rT PSICOLOGIA DO COQUETISMO 99 do que para a mulher, para quem s itada assume facilmente um acento tragico. Nao é atitude que con- vém aum homem repelir uma mulh inconveniente para ela oferecer- ao passo que, no sentido inverso, nenhuma dificuldade: recusar 0 ho- mem que a corteja é, por assim dizer, uma atitude to- talmente condizente com uma mulher. Mas poder se dar éigualmente, na mulher — a despeito de uma restricZo que precisaremos evocar no fim destas paginas —, a ex- pressdo profunda, inteira e exaustiva de seu ser, a um ponto que 0 homem talvez nunca ser4 capaz de alean- car por essa via No dizer-sim e no dizer-nao, na Entre ga de si e na recusa de si, as mulheres sao mestras.’ Na- da de espantoso em que clas tenham desenvolvido, no coquetismo, um modelo absolutamente inadequado para o homem, em que as duas coisas lhes s4o possfveis ao mesmo tempo. r, ainda que fosse sc a Agora, que o homem se preste a esse jogo, nao sé porque nao lhe resta outra alternativa, estando seu de- sejo agrilhoado ao favor da mulher, mas freqiientemente também como se ele sentisse um prazer e um goz ) par- ticulares nesse tratamento que o puxa c! 1 diregdes opos: tas, € coisa que corresponde, primciramente, é claro, a este fendmeno bem conhecido: uma série de aconteci- mentos vivido s, orientada para um sentimento de feli cidade final, j4 irradia sobre os momentox que o prece- dem uma parte do yalor do prager deste tiltimo, O co quetismo é wm dos exemplog mals tfpleos cdesse género de experiéneia, A prineipio, o tinies prazer da série eré- tica deve ter ado fisiolégieo. Mas, a partir daf, ele se estendeu pouice a pouce a todes oa momentos anterio- 100 FILOSOFIA DO AMOR res da série. E bem provavel que, de fato, estejamos aqui diante de uma evolucio histérica, na medida em que permanecamos no plano psicolégico, pois a importAn- cia do prazer se estende a momentos tanto mais afasta- dos, alusivos, simbélicos, do dom{fnio erético, quanto mais refinada e culta for a personalidade. A reserva da alma pode ir tio longe que, por exemplo, um rapaz apai- xonado tira de uma primeira pressfo secreta da mio mais felicidade do que, mais tarde, uma entrega total da pes- soa, € que, para mais de uma natureza terna e sens{vel — mas no necessariamente frigida ou despida de sen- sualidade —, o beijo, ou mesmo a simples consciéncia de ter seu amor correspondido, supera todas as alegrias eréticas por assim dizer mais substanciais. O homem com quem a mulher se mostra coquete jA sente no interesse que cla demonstra, em seu desejo de atraf-lo, a atraco, perceptivel de uma maneira ou de outra, de sua posse, do mesmo modo que a felicidade prometida ja antecipa uma parte da felicidade alcancada. A mesma relacio apresenta, ademais, outro aspecto de efeitos auténomos: quando o valor de um objetivo finalistico j4 se estende de mancira sensfvel a meios ou estdgios preliminares, © quantum de valor assim sentido por antecipacdo é, ain- da assim, modificado pelo fato de que, em nenhuma sé- rie real, o ganho de um grau intermedidrio garante com seguranca absoluta o do valor final propriamente deci- sivo. O crédito que temos deste, gracas a esse prazer an- tecipado, corre 0 risco de n&o ser reembolsado. Daf re- sulta, para os estdgios intermediérios, que, ao lado des- sa inevitdvel diminuicao de seu valor, produz-se tam- i um aumento deste devido & atracZo do acaso, em PSICOLOGIA DO COQUETISMO 101 particular quando a fatalidade, esse elemento que esca- pa de toda decis&o voluntdria ¢ inerente a todo éxito, surge com secu obscuro poder de atragao. Se o que faz o aventureiro € que ele mostra diante do incalculavel da existéncia a mesma confianga desenvolta do que diante do calculavel — ¢ isso justamente porque ele os aproxi- ma tanto em sua pratica e sente de maneira muito mais profunda e demonfaca a tensio entre os dois, a atracao da sorte, do puro talvez, do deus escondido de nossos destinos —; se isso é verdade, pois, numa menor medi- da e das mais diversas maneiras, somos todos aventu- reiros. Se calculdssemos em funciio de seu peso objetivo os riscos de fracasso que se interpdem entre estagio pre- liminar e estdgio final, no nos entregarfamos sem dti- vida a essa antecipacao da felicidade; mas sentimos is~ sO, ao Mesmo tempo, como um atrativo, como um jogo de seduciio para conquistar o favor das forgas imprevi- siveis. Esse valor ceudemonista do acaso, da consciéncia de nossa ignor4ncia do ganho e do fracasso, como que se fixou e se coagulou no comportamento psfquico que a coquete pretende provocar: De um lado, este tira da promessa inclufda no coquetismo essa felicidade anteci- pada; mas a outra face, isto €, a eventualidade de que essa antecipacdo seja desmentida por uma reviravolta das coisas, vem se acrescentar simultaneamente, sob a forma de um distanciamento que a coquete faz scu par- ceiro sentir. Como esses dois aspectos agem constante- mente um sobre 0 outro, como nenhum deles é sério 0 suficiente para expulsar 0 outro da consciéncia, sempre paira acima da negativa a a de um talves,

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