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Géneros Jornalísticos

2018/2019
Há racismo no ensino superior português?

As universidades portuguesas integram cada vez mais estudantes de origem PALOP e CPLP,
porém continuam a ser muitos os entraves que dificultam o percurso académico dos mesmos.

Bruna Alexandra Alves Ferreira

(nº 54752)

Desde a década dos anos 90, que se assiste a uma reconfiguração e abertura do ensino superior
português a alunos de origens sociais menos privilegiadas. Isto tem conduzido a uma ascendente
diversidade ético-nacional estudantil, potencializada igualmente pelos crescentes processos de
mobilidade e internacionalização de alunos, bem como da fixação dos imigrantes e dos seus
descendentes em Portugal. Contudo, existem ainda algumas desigualdades estruturais que os
separam dos restantes estudantes autóctones.

O estudo Caminhos escolares de jovens africanos (palop) que acedem ao ensino superior (2016),
dinamizado por Teresa Seabra, Sandra Mateus, Adriana Albuquerque e Cristina Roldão, aponta
para significantes desigualdades étnico-raciais desde os níveis escolares mais básicos até ao
universitário.

A maioria dos jovens de origem PALOP ou CPLP que ingressam no universo académico português
vive uma desvantagem económica, com insuficiência de apoios, mesmo usufruindo de bolsas –
estas que nem sempre são suficientes ou nem chegam a ser atribuídas. Situação que explica que
a maioria destes estudantes adote uma posição de trabalhador – estudante, numa tentativa de
sustentar os custos, o que não se verifica com tanta intensidade nos académicos de origem
portuguesa.

Wesley Machado imigrou para Portugal com dezoito anos, tendo acabado o secundário no
Brasil. Apenas dois anos depois consegue entrar no ensino superior português, terminando
neste momento o último ano da sua licenciatura. A sua entrada foi atrasada especialmente por
razões financeiras e económicas – “Quando eu entrei, nos já tínhamos o suporte necessário, (…)
tinha guardado dinheiro exatamente para isso (…). Se eu tivesse entrado logo seria complicado
pagar as propinas. Esse suporte veio de trabalharmos esses dois anos. Ainda há um algum
esforço para pagar todas as despesas, claro”. Há assim um grande esforço e investimento
familiar dos alunos para que estes consigam usufruir de melhores experiências escolares. O
mesmo se repercute no percurso de Zahra Ismail, natural de Moçambique e que em 2017
ingressou no ensino superior português – “Chega a ser muito complicado (…), tendo em conta
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que lá quem paga as minhas despesas é a minha mãe”. Nenhum dos dois usufrui de qualquer
bolsa.

Estes estudantes são também marcados por um historial negativo, advindo maioritariamente
de origens caracterizadas pelas suas baixas habilitações, acabando por se refletir nas gerações
seguintes como um processo de reprodução automatizado. Como por exemplo, Wesley foi o
primeiro entre os seus primos brasileiros a ingressar no ensino superior – “além de sorte, sinto-
me privilegiado, primeiro por estar a estudar em Portugal e depois por ser esta referência na
minha família.”. Zahra sempre teve o intuito de estudar fora, já que “o ensino cá é muito melhor
do que em Moçambique.” Este historial reflete-se também no difícil acesso destes alunos a
posições mais prestigiadas no ensino superior, como anota Cristina Roldão “é possível encontrar
muitos alunos negros em ciências sociais e humanidades e muitos poucos em medicina e
engenharia ou outros cursos prestigiados. Claro que isto também acontece para alunos pobres
brancos. O problema é se você for pobre e negro, a probabilidade é ainda menor.”

A falta de informação e apoio fornecidos pelas instituições para com alunos PALOP e CPLP
corresponde também a um dos entraves ao seu sucesso, já que há um desconhecimento
generalizado quanto às possibilidades existentes no ensino superior. Diversos esclarecimentos
relativos a ajudas sociais ou questões meramente burocráticas, apenas são tardiamente
transmitidos a estes alunos, acabando por serem prejudicados devido a este distanciamento de
contacto. O caso de Wesley exemplifica esta situação, tendo atravessado um processo de
inscrição deveras complicado – “a cada lugar que ia davam-me uma informação diferente. (…)
foram demasiadas informações que eu recebi, nenhuma concreta e acabei por ficar confuso”,
confessa. Ambos os entrevistados admitem que o maior apoio que receberam foi proporcionado
por outros estudantes – “tive a oportunidade de falar com alguns colegas que eu conhecia (…) e
deram-me muitas informações. (…) A maioria foi pelos colegas”, conta Zahra.

É igualmente problemático para a sua integração a má preparação destes alunos para


enfrentarem as exigências universitárias do ensino português – “(…) os professores não puxam
tanto por nós como os professores puxam por vocês cá. E essa foi a grande diferença que eu
senti.”, aponta Zahra. Por sua vez, Wesley confirma que “no Brasil é muito mais fácil estudar do
que aqui, infelizmente. (…) Aqui temos de nos esforçar.”, acrescentado ainda que muitas vezes
“não conseguia perceber as cadeiras, a matéria, era complicadíssimo para mim. Eu tive de me
esforçar”.

Uma outra grande dificuldade sentida por estes alunos corresponde a questões linguísticas, que
leva muitas vezes à diferenciação dos mesmos pelos seus modos de falar. Wesley confirma que
no início é complicado ter em consideração “essa diferença do consigo e contigo, para ti e para
si (…) do tu e do você”. Este também nos conta que as experiências de racismo que sentiu na
sua faculdade, surgiram exatamente relativamente ao seu sotaque – “eram coisas que falavam.
(…) Eu pelo menos ouvi de três professores, piadas que envolviam o ‘pt-br’ (…) ouvi coisas, como
a nossa gramática ou a forma como a gente fala, como a gente escreve.” Por sua vez, Zahra
desabafa que “os portugueses têm a tendência de se sentirem superiores perante os outros (…)
que vêm de outros países, principalmente de África.” A professora Cristina Roldão acrescenta
que este é um problema velho português, acarretado desde os tempos colonialistas: “em
Portugal muitas vezes considera-se que só há uma norma de falar o português, que é o
português de Portugal, e o português da classe média urbana de Lisboa. Todas as pessoas que
estejam longe desse padrão, são muito penalizadas por isso. (…) Imagine alguém que fale o
padrão de português de algumas das ex-colónias em África ou do Brasil, em que os professores
estão sistematicamente a dizer que aquilo é um português malfalado.”
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Os jovens mencionam também sentirem-se pouco representados na sociedade portuguesa,
tanto nos media como em posições profissionais mais prestigiadas, estando sempre associados
ao rótulo ‘imigrante’. Os alunos receiam uma certa discriminação que os possa futuramente
atingir na sua área de trabalho – “nós não vemos na televisão, como por exemplo, um repórter
brasileiro” afirmou Wesley. Zahra acrescenta que “tenho medo de escolherem outra pessoa que
seja de outro país em vez de mim que sou descendente de África. (…) tendo em conta as notícias
que eu vejo sobre o meu país, (…) são todas negativas. É mais fácil estarem a reforçar a ideia
negativa, que geralmente muitas pessoas têm de África, que é um país empobrecido (…)”.

Os obstáculos ao sucesso universitário são muitos, que vão reforçando ainda mais a tendência
de canalização dos alunos PALOP e CPLP para vias profissionalizantes, em detrimento do
prosseguimento dos estudos. Wesley conta-nos que entrou na faculdade em simultâneo com
outros três estudantes brasileiros, estes que acabaram por ficar para trás – “Um foi trabalhar, a
outra também (…) e uma desistiu do curso a meio. Eu fui o único que continuei”.

Roldão critica o sistema vigente no ensino superior e que acaba por desvalorizar estes
estudantes à posteriori – “a instituição ao fingir que toda a gente é igual, que todos chegam nas
mesmas condições, está a penalizar os alunos (…) a política normal de “dar igual a todos”
provoca exclusões”. A investigadora reclama, portanto, uma maior atenção às especificidades
destes alunos.

De forma mais ou menos direta, uma diferenciação faz-se sentir na pele destes estudantes,
muitos destes que veem os seus trajetos escolares serem interrompidos por condicionantes que
demonstram a existência de um racismo que opera estruturalmente no ensino superior
português. “Claro que existem situações de racismo declarado (…), mas eu tenho de conseguir
pensar que o racismo é muito mais do que isso”, conclui Roldão.

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