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DOI: 10.1590/1413-81232014192.

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TEMAS LIVRES FREE THEMES


A comunidade terapêutica para recuperação da dependência
do álcool e outras drogas no Brasil: mão ou contramão
da reforma psiquiátrica?

The therapeutic community for recuperation from addiction


to alcohol and other drugs in Brasil: in line with
or running counter to psychiatric reform?

Pablo Andrés Kurlander Perrone 1

Abstract In the second half of the last century a Resumo Na segunda metade do século passado
revolutionary movement began in the world men- iniciava-se um movimento revolucionário no
tal health scenario, namely Psychiatric Reform. cenário mundial da saúde mental: a Reforma Psi-
At the same juncture, the concept was also put quiátrica. No mesmo momento nascia a proposta
forward for Therapeutic Communities, which das Comunidades Terapêuticas, que mais tarde se
would later become the tried and tested model for tornaria um modelo consagrado de atendimento
treatment of addiction to alcohol and other drugs. para a dependência do álcool e outras drogas. Por
However, due to the alarming increase of this prob- outro lado, com o alarmante crescimento deste
lem in Brazil, as well as the absence of public problema no Brasil, assim como pela ausência de
policies to address the problem, there was an in- políticas públicas que dessem conta do problema,
discriminate proliferation of chemical dependency houve uma indiscriminada proliferação de locais
internment locations that, despite calling them- de internação para dependentes químicos que,
selves Therapeutic Communities, in no way re- mesmo se autodenominando como Comunidades
sembled the initial model proposed. These places Terapêuticas, em nada se assemelham ao modelo
featured inhuman and iatrogenic practices, very inicial proposto. Estes locais apresentam práticas
similar to those criticized by the Psychiatric Re- desumanas e iatrogênicas, muito semelhantes às
form movement, which consequently discredited criticadas pelo movimento da Reforma Psiquiá-
the Therapeutic Community model. This article trica, o que tem provocado o descrédito para com
seeks to demonstrate, through bibliographic re- o modelo das Comunidades Terapêuticas. Este
search, how the conceptual and methodological artigo tem como objetivo demonstrar, através de
bases of Psychiatric Reform closely resemble the pesquisa bibliográfica, como as bases conceituais
Therapeutic Communities movement, having e metodológicas da Reforma Psiquiátrica se asse-
appeared at the same time and for the same rea- melham profundamente as do movimento das
son, and how the lack of control and regulation of Comunidades Terapêuticas, tendo surgido na
chemical dependency internment locations in mesma época e pelo mesmo motivo, e como a falta
Brazil has contributed to the current disrepute of de regulamentação dos locais de internação para
1
Faculdade de Medicina de this model. dependentes químicos no Brasil tem contribuído
Botucatu, UNESP. R. Bento Key words Therapeutic Community, addiction com o atual descrédito deste modelo.
Lopes s/n, Distrito de
to alcohol and other drugs, Psychiatric Reform Palavras-chave Comunidade terapêutica, De-
Rubião Jr. 18.618-970
Botucatu SP Brasil. pendência do álcool e outras drogas, Reforma psi-
pablok@novajornada.org.br quiátrica

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Introdução tir da década de 60, no trabalho de recuperação


de dependentes do álcool e outras drogas, tendo-
Desde o próprio nascimento da psiquiatria, esta se tornado atualmente uma das modalidades mais
tem tentado se reformar constante e incansavel- procuradas, tanto no Brasil como em muitas par-
mente, como afirmam Tenório1 e Sampaio et al.2, tes do mundo, em detrimento dos antes tradicio-
talvez por compreender as suas limitações e con- nais tratamentos de base medicamentosa hospi-
tradições desde o seu momento primigênio. talar, como afirmam De Leon10 e Fracasso11.
Teriam sido os próprios reformadores da Isto se deve também ao fato de que o alcoo-
Revolução Francesa que teriam delegado a Pinel lismo e, principalmente, a dependência de dro-
a tarefa de “humanizar e dar um sentido tera- gas, mesmo havendo registro do consumo de
pêutico aos hospitais gerais, onde os loucos en- ambas desde a antiguidade10-12, são doenças emer-
contravam-se recolhidos juntos com outros genciais da atualidade, pelo que as CT têm proli-
marginalizados da sociedade”1. ferado de forma abundante e desregulada no
Teria sido a meados do século XX, após a 2ª Brasil, nos últimos 20 anos.
Guerra Mundial, como afirmam Amarante3 e Por este motivo, a proposta das CT no Brasil
Jorge4, que Maxwell Jones5 inicia o movimento foi discutida pelo Ministério da Saúde13 em sua
definitivo de reforma da psiquiatria mundial, “Política para a atenção integral a usuários de
desenvolvendo o modelo de Comunidade Tera- álcool e outras drogas”, e regulamentada pela
pêutica (CT) psiquiátrica. Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvi-
Maxwell Jones5 visava uma maior interação sa)14, em sua RDC 101/2001, dando forma e con-
do paciente no seu próprio processo, fazendo-se teúdo oficial a um movimento de repercussão
este assim partícipe das suas pequenas conquis- mundial que oferecia um modelo diferenciado
tas cotidianas. Ele afirma que “de maneira recí- de tratamento.
proca, a total dependência e passividade [...] pre- Contudo, o movimento das CT no Brasil tem
cisa ser mudada a fim de permitir-lhe uma parti- sofrido severas críticas ao longo da última déca-
cipação mais ativa em sua própria cura e na dos da, assim como muitas denúncias e rigorosas fis-
outros”. calizações, como a realizada em 2011 pelo Con-
Juntamente com Jones, muito relevante foi a selho Federal de Psicologia (CFP)15, que se depa-
antipsiquiatria de Franco Basaglia, movimento rou com inúmeras e imperdoáveis práticas de-
que denunciava os valores tradicionais da psi- sumanas e iatrogênicas, que em muito se asse-
quiatria, que tratava o louco como um ser alie- melhavam às práticas dos primeiros Hospitais
nado, à parte da sociedade, afirmando que “a Psiquiátricos, combatidos pelo movimento pri-
psiquiatria sempre colocou o homem entre pa- mitivo da Reforma Psiquiátrica, assim como pelo
rênteses e se preocupou com a doença”2. Movimento de Luta Antimanicomial no Brasil.
Na década de ’80 chegaria ao Brasil este mo- Por estes motivos, o presente artigo busca
vimento, como afirmam Tenório1, Lüchmann e analisar, de acordo com a história e as bases epis-
Rodrigues6 e Pitta7, sob a égide de “luta antima- temológicas da Reforma Psiquiátrica e do surgi-
nicomial”, que teria como foco principal a reto- mento das CT, assim como a sua articulação e
mada da cidadania do doente mental, como for- funcionamento na atualidade, se, de fato, o tra-
ma de melhorar o seu grau de autonomia, e com balho das CT no Brasil se orienta em prol da
este a sua qualidade de vida. Reforma Psiquiátrica e do Movimento de Luta
Até o momento, a clínica era o principal dis- Antimanicomial, ou se, pelo contrário, pode ser
positivo construído socialmente para se relacio- considerada uma forma de regressão aos padrões
nar com a loucura, como afirmam Tenório1, Mari8 primitivos de tratamento das doenças mentais.
e Costa et al.9, e a luta antimanicomial representa-
ria justamente a superação deste paradigma.
Por outro lado, existiam os antecedentes de Metodologia
Jones e Basaglia, acima descritos, com as pro-
postas de Psiquiatria Comunitária e o movimen- Foi realizada, com a finalidade de embasar teori-
to das CT Psiquiátricas, que visavam abordar o camente o debate proposto, uma revisão biblio-
tema da doença mental desde uma perspectiva gráfica em livros especializados, artigos científi-
humanizada e, certamente, não predominante- cos nacionais e internacionais pesquisados em
mente clínica. bases de dados (SciELO, Lilacs, Portal Capes),
Este movimento das CT Psiquiátricas, origi- documentos oficiais e sites institucionais, sem um
nal de Maxwell Jones, teria se desdobrado, a par- recorte temporal específico.

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As bases conceituais e metodológicas siste em trabalhar para eliminar a realidade e a
da reforma psiquiátrica no Brasil cultura institucional [...] e suas consequências:
violência, miséria, isolamento, falta de dignida-
Segundo Tenório1 “o movimento que denomi- de, injustiça e ampliação da enfermidade institu-
namos reforma psiquiátrica brasileira data de pou- cional, seja dos pacientes, seja dos que cuidam
co mais de vinte anos e tem como marca distintiva deles”.
e fundamental o reclame da cidadania do louco”. Cabe lembrar, como consta nas políticas pú-
No Brasil, este movimento de quebra de pa- blicas13-19, que em ambos os casos não se des-
radigmas fundamentais da psiquiatria deu à luz consideram absolutamente os atendimentos com
o Movimento de Luta Antimanicomial, como internação, desde que sejam de curta duração (até
afirmam Lüchmann e Rodrigues6, criado a par- 90 dias), e sempre com o intuito final da alta,
tir do II Congresso Nacional do Movimento dos com o subsequente acompanhamento posterior.
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), ocor- Esta crítica leva, em primeiro lugar, à supera-
rido em Bauru, SP, em 1987, onde foi redigido o ção do paradigma da clínica, como nomeia Tenó-
Manifesto de Bauru, que seria considerado o seu rio1, o que representa uma forma embrionária
documento de fundação. de independência do modelo médico, segundo o
As bases deste movimento são claras e conci- qual se trata a doença, e não o doente.
sas, porém muito complexas em sua prática, prin- Esta nova percepção levaria a uma notória
cipalmente face à hegemonia dos modelos hos- “ampliação do conceito de saúde, incluindo em
pitalocêntricos tradicionais incrustados na cul- seus determinantes as condições gerais de vida”17,
tura e no imaginário popular. “Não se trata de incluindo assim a melhora da qualidade de vida
aperfeiçoar as estruturas tradicionais [...], mas como um dos principais objetivos a serem atin-
de inventar novos dispositivos e novas tecnolo- gidos através dos dispositivos terapêuticos utili-
gias de cuidado”1. zados, e não mais somente a retirada ou a dimi-
Para Lobosque6 “o Movimento de Luta Anti- nuição dos sintomas mais evidentes.
manicomial é um movimento social, plural, in- Outra modificação substancial no conceito
dependente, autônomo que deve manter parce- de saúde mental seria o novo modelo psicossocial
rias com outros movimentos sociais [...] para de atendimento, citado por Costa-Rosa et al.17,
que a sociedade se aproprie desta luta”. segundo o qual “o engajamento subjetivo e soci-
Segundo Vecchia e Martins16 os conceitos ocultural são indissociáveis da definição de saú-
basais deste movimento implicam “a defesa tan- de mental”. Este modelo psicossocial seria o con-
to da desospitalização da população cronificada, traponto do já ultrapassado modelo asilar, e sig-
mantida em longa permanência, quanto um pro- nificaria uma superação do modo de relação su-
cesso de desinstitucionalização”, o que confirma jeito-objeto característico do modelo médico.
as ideias de Lüchmann e Rodrigues6, conforme A horizontalização das relações interprofissio-
os quais “a ruptura com o modelo manicomial nais, assim como as intrainstitucionais, incluin-
significa [...] muito mais do que o fim do hospi- do as paciente-equipe de saúde, seria uma das
tal psiquiátrico, pois toma como ponto de parti- premissas básicas deste novo modelo, segundo
da [...] a crítica profunda aos olhares e concep- Costa-Rosa et al.17, e que suporia uma forma de
ções deste fenômeno”. controle social compartido, através do qual o pa-
Desospitalização seria, basicamente, o atendi- ciente e os familiares teriam prerrogativas seme-
mento ao doente fora do ambiente hospitalar. lhantes e equivalentes às da equipe de saúde para
Segundo Costa-Rosa et al.17, é muito importan- poder gerir cada fase do tratamento.
te, neste caso, “a substituição do modelo hospi- O que está em jogo, portanto, é a reapropria-
talocêntrico por uma rede de serviços diversifica- ção do sujeito; do sentido e da motivação humana;
da e qualificada [...] através de programas públi- reapropriação da capacidade de forjar sua própria
cos de lares e pensões protegidas”. identidade, capacidade esta historicamente ampu-
A ideia de redes vai além de uma dimensão tada pelos processos de manipulação e controle dos
estratégica, caracterizada, entre outros, pela capa- aparatos de gestão dos sistemas complexos6.
cidade de articulação, organização e mobilização, Desta forma, estes autores focam a atenção
na medida em que comporta, de forma nuclear, na reapropriação da identidade como mecanis-
uma noção de solidariedade pautada no comparti- mo altamente benéfico na relação de saúde que
lhamento de princípios e valores6. se propõe estabelecer neste novo modelo de aten-
Já a Desinstitucionalização é um conceito mais ção. O doente mental não somente teria sua saú-
abrangente, que segundo Saraceno et al.18 “con- de física restaurada ou melhorada, mas poderia

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ter acesso a práticas que o levassem de volta a si ção constante, cada um com seu núcleo específico
mesmo, de encontro com a sua história, com a de ação, mas apoiando-se mutuamente, alimen-
sua singularidade. tando-se enquanto rede – que cria acessos varia-
Assim surge o conceito de singularização no dos, acolhe, encaminha, previne, trata, reconstrói
atendimento ao doente mental, que seria, segundo existências, cria efetivas alternativas de combate13.
Tenório1, uma forma de tratá-lo de acordo com as Como se confirma através destes conceitos, a
suas características e necessidades pessoais, fugin- Reforma Psiquiátrica e o Movimento de Luta
do da lógica asilar capitalista de massificação. Antimanicomial são movimentos que visam
Para ser almejada e alcançada, a singulariza- muito mais do que apenas a desaparição dos
ção dependerá de que a forma das relações sociais e manicômios. Eles buscam, acima de tudo, a qua-
humanas na instituição parta da horizontaliza- lidade de vida do doente mental, a atenção inte-
ção como meta e, em alguma medida, seja vivida gral, a humanização do atendimento, através de
como exercício17. um novo olhar que se faz cada vez mais urgente
Considerando todo o apresentado até o mo- numa sociedade que pretenda dizer-se justa e
mento, fica evidente que o novo modelo propos- democrática.
to visa como finalidade última a ressocialização,
ou seja, o retorno do doente mental à sociedade e A comunidade terapêutica para
à família, de acordo com as reais possibilidades recuperação da dependência do álcool
de cada caso, e para isto busca desenvolver diver- e de outras drogas: modelo e método
sos dispositivos que se adaptem a cada necessida-
de, como o CAPS, residências terapêuticas, hos- Quem teve a oportunidade de aproximar-se de
pitais-dia, NASF, consultórios de rua e outros dis- uma CT, tem a sensação de haver participado de
positivos que podem ser adaptados com a finali- ‘algo diferente’. Quem teve, além disso, a oportuni-
dade de garantir a integralidade do atendimento dade de conviver durante algum tempo numa CT
ao doente mental desospitalizado1,2,7-9,16,17,19. terá uma lembrança que o acompanhará pelo res-
A necessidade do retorno à sociedade, como tante dos seus dias12.
prática despatologizante, se torna um dos estan- Como foi visto acima, as CT existem há mais
dartes do Movimento de Luta Antimanicomial de 60 anos, tendo-se consagrado nas duas últi-
no Brasil, assim como da Reforma Psiquiátrica mas décadas como um dos modelos mais pro-
no mundo. Para isto é imprescindível garantir curados para a recuperação da dependência do
ao indivíduo o cuidado nesta tarefa de readapta- álcool e outras drogas, tanto no Brasil como em
ção social, e por este motivo o cuidado, em saúde muitas partes do mundo, por oferecerem uma
mental, amplia-se no sentido de ser também uma inovadora forma de tratar o problema, tão im-
sustentação cotidiana da lida diária do paciente, placável e urgente, independentemente da cultu-
inclusive em suas relações sociais1. ra e do nível de desenvolvimento das populações
Desta forma, segundo Vecchia e Martins16: o atingidas.
trabalho de desconstrução do manicômio e da cul- Neste momento serão apresentadas apenas
tura manicomial envolve políticas sociais de con- as bases metodológicas e conceituais deste mo-
junto, implicando o reconhecimento da necessida- delo, comparando-as com as recém-explicadas,
de de: moradias substitutivas e assistidas para ex- referentes à Reforma Psiquiátrica e ao Movimento
internos psiquiátricos; espaços de trabalho prote- de Luta Antimanicomial, deixando as críticas ao
gido (mas não ‘tutelado’); inserção em atividades respeito da aplicação das mesmas no Brasil para
culturais e de lazer etc... outro tópico adiante.
Outra característica indiscutível do modelo Segundo consta na RDC nº 10114 (atual RDC
de atenção proposto pelo Movimento de Luta nº 29, de 30/06/1120) da Agência Nacional de Vi-
Antimanicomial é a maciça participação dos fa- gilância Sanitária (Anvisa) as CT: “são serviços
miliares dos usuários, tanto na discussão políti- urbanos ou rurais, de atenção a pessoas com
ca das diretrizes e normativas vigentes, quanto transtornos decorrentes do uso ou abuso de subs-
no cotidiano do atendimento, como agentes de tâncias psicoativas (SPA), em regime de residên-
saúde do mais alto escalão, tendo participado do cia ou outros vínculos de um ou dois turnos, se-
movimento desde o seu nascimento, como afir- gundo modelo psicossocial. São unidades que têm
mam diversos autores1,7-9,16,17. por função a oferta de um ambiente protegido,
Nunca é demais, portanto, insistir que é a rede técnica e eticamente orientado, que forneça su-
– de profissionais, de familiares, de organizações porte e tratamento aos usuários abusivos e/ou
governamentais e não governamentais em intera- dependentes de substâncias psicoativas, durante

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período estabelecido de acordo com programa mento no modelo psicossocial, considerando sem-
terapêutico adaptado às necessidades de cada caso. pre as relações interpessoais como o principal
É um lugar cujo principal instrumento terapêu- agente de modificações de comportamento, como
tico é a convivência entre os pares. Oferece uma afirma De Leon10.
rede de ajuda no processo de recuperação das Maxwell Jones5 afirma que quaisquer habili-
pessoas, resgatando a cidadania, buscando en- dades, tanto dos terapeutas quanto da institui-
contrar novas possibilidades de reabilitação físi- ção como um todo, seriam ineficazes se o clima
ca e psicológica, e de reinserção social”. social da CT como unidade estiver em contradi-
O modelo básico de CT é o residencial, como ção com as mesmas.
afirmam NIDA21, De Leon10 e Goti12. Existem tam- Por este motivo, Emilio Rodrigué25 afirma
bém CT que trabalham no regime ambulatorial que:
(hospital-dia), outras em regime de internação Sabe-se que uma CT é, para usar um quase
de curta duração, e outras de longa duração. neologismo antiantiterapêutica. Ou seja, solucio-
De Leon6 cita que a permanência tradicional na determinados agentes antiterapêuticos, patóge-
na CT era de 12 a 18 meses, fato que tem se mo- nos, tais como a privação sensorial e social, pró-
dificado na atualidade, sendo que para as CT prios das instituições totais em geral, e do asilo
filiadas na Federação Brasileira de Comunida- clássico em particular. [...] Para diminuir a priva-
des Terapêuticas (FEBRACT)22 a permanência ção emocional e social a CT deve proporcionar uma
padrão varia entre 6 e 9 meses. série de papeis sociais.
De acordo com vários autores10,11,21,23,24, um Para Maria Elena Goti12 a CT é:
dos critérios mais determinantes do trabalho da uma instituição onde tem lugar um processo
CT atual é o público atendido, sendo o foco o de crescimento pessoal acompanhado de um pro-
atendimento exclusivo de dependentes do álcool cesso de aprendizagem social. Isto implica que não
e de outras drogas. é um lugar onde alguém se ‘cura’, mas onde muda,
Em relação ao sexo da população atendida, cresce e amadurece, e onde aprende a ser um mem-
as CT podem ser masculinas, femininas ou mis- bro útil e produtivo para a sociedade.
tas, prevalecendo, no Brasil, as CT masculinas, Um dos principais avanços das CT contem-
como pode se perceber pela amostra referente às porâneas, para De Leon10, é “a passagem [...] de
CT filiadas na FEBRACT22 assim como pelo Re- uma comunidade alternativa para dependentes
latório do CFP15. O critério de idade também é químicos excluídos que presumivelmente não ti-
muito variável, mas o padrão no Brasil é entre 18 nham condições de viver em sociedade a uma
e 65 anos, havendo algumas CT que admitem instituição de serviços de atenção [...] que prepa-
menores de idade, e outras que aceitam idosos ra os indivíduos para a reintegração à sociedade
para o tratamento. mais ampla”.
Já em relação à quantidade de residentes aten- Ele ainda afirma que “é ao se esforçar para
didos numa CT, esta é muito variável. Segundo satisfazer as expectativas de participação da co-
dados do NIDA21 um programa típico de CT munidade que os residentes perseguem suas me-
abrigaria entre 40 e 80 pessoas. tas individuais de socialização e crescimento psi-
Para Maxwell Jones5 a ideia primeva da CT cológico”. Desta forma, o dependente que conse-
seria o ambiente democrático, de mobilidade so- gue socializar-se dentro da CT teria desenvolvi-
cial, no qual todos os membros possam fazer-se do recursos internos suficientes como para dar
responsáveis pelo grupo e pela instituição, inde- conta de uma posterior socialização, no suposto
pendentemente das suas características pessoais. “mundo real”.
Desta forma nas CT democráticas a autorida- Não é raro, por este motivo, que algumas CT
de seria uma prerrogativa do grupo como um todo, desenvolvam atividades em conjunto com a co-
e não de um ou alguns membros do mesmo. Isto munidade local, atividades estas que, muito além
implica uma grande complexidade do espectro so- de serem apenas simples ocupações, se tornam
cial da CT, normalmente muito difícil de adminis- dispositivos capazes de fazer com que o paciente
trar e regular. Como mostra De Leon10, para todos se sinta pertencente também ao mundo do lado
os efeitos, existe uma autoridade máxima de refe- de fora da CT, estruturando assim a rede de aju-
rência dentro do ambiente da CT, sem que por isso da citada acima pela Anvisa.
desapareça o ambiente democrático de relações Para Badaracco26 a recuperação verdadeira
horizontais e de controle social compartido. passa, inevitavelmente, pela aceitação da realida-
Como mostra a regulamentação da Anvi- de, com uma consequente adaptação à sociedade,
sa14,20, as CT baseiam seus programas de trata- com seus papéis estabelecidos. Araújo27 também

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considera que a verdadeira ressocialização passa b) a permanência na CT deve ser voluntária e


pela incorporação de princípios comportamen- decidida após o candidato ser informado sobre
tais e sociais, tais como o entendimento do papel a orientação e as normas em vigor;
social, assim como por uma integração social c) deve ser assegurado um ambiente livre de
pautada pela cooperação e comprometimento. drogas, sexo e violência.
Por adaptação não se deve entender condici- Em relação ao acompanhamento familiar, é
onamento nem abdicação da individualidade, bastante comum que “a família apresente uma
mas sim capacidade de pertencer funcionalmen- certa resistência, quando solicitada a participar,
te a um grupo com regras e limites específicos, ou então aceite o tratamento apenas por causa
algo que exige um grau mínimo de capacidade de do adicto, do doente, como se ela não precisasse
autocontrole e habilidades sociais básicas. refletir sobre a qualidade da relação familiar”30.
Como os dependentes apresentam, geralmen- Por este motivo a abordagem da CT deve
te, baixos índices de habilidades sociais, dentre prever a orientação familiar, ou o atendimento
elas o autocontrole, o que dificulta muito o seu psicoterápico propriamente dito, para os casos
desenvolvimento familiar, laboral e social, como mais resistentes. Em muitas ocasiões, quando a
afirmam Aliane et al.28, desenvolver estas habili- CT não possui este serviço, as famílias são enca-
dades deve fazer parte do processo de recupera- minhadas para Grupos de Apoio para familiares
ção, a fim de garantir o sucesso de uma posterior de dependentes do álcool e outras drogas, como
ressocialização. o Nar-Anon, Al-Anon ou o Amor Exigente.
Para o NIDA21 a recuperação envolve “re-ha- Desta forma percebe-se que a modalidade de
bilitação”, o que seria restabelecer o funciona- tratamento da CT abrange um espectro de tota-
mento das habilidades e valores saudáveis, as- lidade, no qual são contemplados os fenômenos
sim como resgatar a saúde física e emocional. individuais e sociais, físicos e psicológicos, carac-
Em outras palavras, retomar um estilo de vida terizando uma das bases da atenção integral, pro-
saudável, habilitar novamente aquilo que tinha posta também pelo modelo da Reforma Psiquiá-
sido desabilitado por causa da doença. trica e do Movimento de Luta Antimanicomial
Por outro lado, quando se fala da recupera- no Brasil.
ção da dependência do álcool e outras drogas A seguir serão comparados ambos os mode-
não tem como se deixar de pensar na díade do- los, com a finalidade de evidenciar as semelhan-
ença-pessoa, já que, como afirma De Leon10: “não ças existentes, pelo menos no que diz respeito
é a droga, mas a pessoa inteira, o problema a ser aos seus fundamentos teóricos e metodológicos.
tratado”. E a pessoa inteira sugere, inevitavelmen-
te, todo o universo psicológico e emocional do Aproximações e distanciamentos entre os
dependente. modelos descritos (Reforma Psiquiátrica –
Assim, desde a perspectiva da CT de De Movimento de Luta Antimanicomial –
Leon10, o que deve ser tratado é a pessoa como Comunidade Terapêutica)
ser social e psicológico, ou seja, deve ser tratado o
modo como o dependente se comporta, pensa, A seguir serão apresentados os Quadros 1 e 2:
sente, administra suas emoções e frustrações, suas um com as semelhanças entre os modelos acima
culpas e tristezas, a sua comunicação com o descritos, e outro com as diferenças entre os mes-
mundo externo e o interno. mos. Ao longo do texto anterior podem-se en-
De certa forma, como afirmam Sabino e Caze- contrar – grifados em itálico, para uma melhor
nave29, o dependente é alguém que se encontra visualização – os próximos “conceitos básicos”.
diante de uma realidade objetiva e/ou subjetiva Como pode ser visto nestes dois quadros
insuportável, e que não conseguindo suportar, comparativos, as aproximações entre as bases me-
modificar ou se esquivar desta realidade, lhe resta todológicas e conceituais da Reforma Psiquiátri-
modificar a percepção que tem da mesma, o que ca e o Movimento de Luta Antimanicomial, com
acontece pelo uso do álcool e outras drogas. os das CT, são muito maiores do que as suas
Quanto à orientação ética das CT, a institui- diferenças.
ção regulamentadora brasileira nestas questões De acordo com os conceitos apresentados
é, mais uma vez, a FEBRACT23, que constituiu anteriormente, podem ser enumeradas, seguin-
em 1995 o primeiro Código de Ética para as CT, do estes quadros, onze semelhanças e apenas
cujos Princípios Fundamentais são: duas divergências, sendo que estas últimas não
a) o trabalho nas CT deve ser baseado no seriam absolutas, já que tanto o conceito de De-
respeito à dignidade da pessoa humana; sospitalização quanto o de Tratamentos de curta

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Quadro 1. Semelhanças metodológicas e conceituais entre o modelo da Reforma Psiquiátrica e o
Movimento de Luta Antimanicomial com o das Comunidades Terapêuticas.
Conceitos Reforma Psiquiátrica e Comunidade
básicos Movimento de Luta Terapêutica
Antimanicomial

Rede de serviços CAPS, residências terapêuticas, Atividades extramuros com foco na


hospital-dia, NASF, consultórios de ressocialização, grupos de apoio, hospital-dia
rua, etc. (modelo ambulatorial).

Desinstitucionalização Eliminar as consequências da vida Postura anti-antiterapêutica25. Solucionar


institucional, como: violência, agentes antiterapêuticos, patógenos, tais como
miséria, isolamento, falta de a privação sensorial e social, próprios das
dignidade, injustiça e ampliação da instituições totais em geral, e do asilo clássico
enfermidade institucional14. em particular.

Superação do “Tratar o doente, e não a doença”1, “Não é a droga, mas a pessoa inteira, o
paradigma da num ambiente social, e não apenas problema a ser tratado”10. O ambiente de
clínica no consultório. tratamento é a CT, um ambiente social.

Ampliação do Melhora nas condições gerais de A recuperação envolve “re-habilitação”, o que


conceito de saúde/ vida, não somente na remoção dos seria restabelecer o funcionamento das
Melhora na sintomas17. habilidades e valores saudáveis, assim como
qualidade de vida resgatar a saúde física e emocional. Em outras
palavras, retomar um estilo de vida saudável21.

Modelo psicossocial Os engajamentos subjetivo e Considerar as relações interpessoais como o


sociocultural são indissociáveis da principal agente de modificações de
definição de saúde mental17. comportamento no dependente10.

Horizontalização Mudança nas relações paciente- A ideia primeva da CT seria o ambiente


das relações paciente e paciente-equipe de democrático, de mobilidade social, no qual a
saúde, com maior participação de autoridade seria uma prerrogativa do grupo
todas as partes. como um todo, e não de um ou alguns
membros do mesmo5.

Controle social O paciente e os familiares teriam Todos os membros podem fazer-se


compartido prerrogativas semelhantes e responsáveis pelo grupo e pela instituição,
equivalentes às da equipe de saúde independentemente das suas características
para poder gerir cada fase do pessoais5.
tratamento.

continua

duração existem nas bases conceituais das CT, A contramão do movimento


embora isto ainda não tenha sido convertido, de
fato, em metodologia aplicada. Atualmente, segundo consta no site da FE-
A questão agora seria: por que o trabalho BRACT22, existem no Brasil 132 CT filiadas à
das CT é considerado tão geralmente como ab- mesma, e sabe-se que a quantidade de CT não
solutamente contraditório ao movimento da filiadas excede, e muito, este número. Um exem-
Reforma Psiquiátrica e ao Movimento de Luta plo disto é a pesquisa realizada por Laura Paes
Antimanicomial, se de acordo com os dados ob- Machado31, segundo a qual somente no Estado
tidos as suas bases conceituais e metodológicas da Bahia teriam sido registradas 80 CT atuantes,
são tão semelhantes? enquanto que no registro da FEBRACT22 cons-
A próxima seção dará conta de responder esta tam apenas três.
pergunta. Segundo divulgado pelo SENAD32,33, existiriam
entre 2500 a 3000 CT no Brasil, que atenderiam
aproximadamente 60.000 dependentes químicos

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Quadro 1. continuação
Conceitos Reforma Psiquiátrica e Comunidade
básicos Movimento de Luta Terapêutica
Antimanicomial

Reapropriação da O que está em jogo é a O que deve ser tratado é a pessoa como ser
identidade reapropriação do sujeito; do sentido social e psicológico, ou seja, deve ser tratado o
e da motivação humana; modo como o dependente se comporta,
reapropriação da capacidade de pensa, sente, administra suas emoções e
forjar sua própria identidade6. frustrações, suas culpas e tristezas, a sua
comunicação com o mundo externo e o
interno10.

Singularização Tratar o doente mental de acordo “É ao se esforçar para satisfazer as expectativas


com as suas características e de participação da comunidade que os
necessidades pessoais, fugindo da residentes perseguem suas metas individuais
lógica asilar capitalista de de socialização e crescimento psicológico”10.
massificação1.

Ressocialização Retorno do doente mental à Um dos principais avanços das CT


sociedade e à família, de acordo contemporâneas, para De Leon10, é “a
com as reais possibilidades de cada passagem [...] de uma comunidade alternativa
caso, buscando desenvolver diversos para dependentes químicos excluídos que
dispositivos externos que se presumivelmente não tinham condições de
adaptem a cada necessidade. viver em sociedade a uma instituição de
serviços de atenção [...] que prepara os
indivíduos para a reintegração à sociedade
mais ampla”.

Participação dos Participação ativa na fundação do Participação fundamental da família no


familiares movimento, assim como na gestão tratamento e na gestão do mesmo através de
das políticas públicas. acompanhamento individual ou de
participação em diversos Grupos de Apoio.

Quadro 2. Diferenças metodológicas e conceituais entre o modelo da Reforma Psiquiátrica e o Movimento


de Luta Antimanicomial com o das Comunidades Terapêuticas.
Conceitos Reforma Psiquiátrica e Comunidade
básicos Movimento de Luta Terapêutica
Antimanicomial

Desospitalização Atendimento ao doente fora do Regime residencial, embora existam modelos


ambiente hospitalar, através dos de CT ambulatorial.
dispositivos da rede de serviços.

Tratamentos de Nos casos de internação, tempo Tratamentos a partir de 6 meses de duração,


curta duração máximo de 90 dias. embora existam projetos de diminuição do
tempo mínimo de tratamento.

anualmente. Segundo a mesma pesquisa, mais de mica Aplicada (IPEA), mais de 80% dos trata-
55% das ONG que oferecem tratamento para a mentos no Brasil são realizados dentro de CT.
dependência do álcool e outras drogas no Brasil Isto se configura um problema, já que gran-
seriam CT, embora Hartmann32 afirme que, se- de parte destas CT não consta nos registros de
gundo pesquisa da Universidade de Brasília (UnB) nenhuma instituição regulamentadora, poden-
juntamente com o Instituto de Pesquisa Econô- do ser esta tanto a própria FEBRACT, os respec-

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tivos Conselhos Municipais Antidrogas (CO- a) o cuidado com o bem estar físico e psíqui-
MAD), de Saúde (CMS), de Assistência Social co da pessoa, proporcionando um ambiente li-
(CMAS), dos Direitos da Criança e do Adoles- vre de SPA e violência;
cente (CMDCA), a Agência Nacional de Vigilân- b) a observância do direito à cidadania do
cia Sanitária (Anvisa), ou qualquer outro órgão residente;
competente. c) alimentação nutritiva, cuidados de higiene
Este mesmo problema foi constatado pelo e alojamento adequados;
Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos d) a proibição de castigos físicos, psíquicos
Humanos15, referente aos locais de internação ou morais;
para usuários de drogas, elaborado pelo Conse- e) a manutenção de tratamento de saúde do
lho Federal de Psicologia, realizado em 24 Esta- residente.
dos mais o DF, num total de 68 instituições, nas Como se pode conferir através destes dados,
quais foi encontrada uma infinidade de irregula- é evidente que grande parte das supostas CT em
ridades e abusos, como, por exemplo: funcionamento no Brasil não atendem os requi-
a) agressões físicas e morais; sitos mínimos de funcionamento, e é por este
b) constrangimento aos familiares nas visitas; motivo que não devem ser denominadas sob o
c) utilização de contenção química contra a nome de CT. Como foi visto nas seções anterio-
vontade do indivíduo, sem o consentimento da res, o histórico e a essência do trabalho numa
família, e sem a presença de profissionais res- legítima CT divergem diametralmente daquilo
ponsáveis; que foi encontrado pelo CFP no levantamento
d) cárcere privado; citado, motivo pelo qual fica evidente que estas
e) desrespeito à orientação sexual; inconsistências não são produto das bases con-
f) imposição de credo religioso; ceituais e metodológicas do movimento das CT,
g) negligência de cuidados com a saúde; mas sim de uma prática indiscriminada e irres-
h) condições indignas de alimentação, habi- ponsável daqueles que dirigem estes locais.
tação e saneamento básico. Cabe ressaltar, finalmente, que das 68 insti-
Muitos outros exemplos poderiam ser cita- tuições investigadas pelo CFP, apenas quatro fa-
dos para ilustrar o grau de desrespeito para com zem parte da relação das CT filiadas fornecida
o ser humano que demonstram muitas destas pela FEBRACT, o que evidencia, mais uma vez, a
instituições, que erroneamente se autodenomi- necessidade de regulamentação e fiscalização que
nam CT, mas com certeza estes já retratam uma esta abordagem de trabalho exige, a fim de que
realidade alarmante, muitas vezes desconhecida seja realizado com seriedade e eficácia.
para aqueles que procuram pela primeira vez um
serviço desta espécie.
Além de transgredir os princípios básicos dos Conclusões
Direitos Humanos, também transgridem a re-
gulamentação oficial do Estado, que na Lei nº A trajetória da Reforma Psiquiátrica e do Movi-
10.216, de 6 de Abril de 200113,19, dispõe sobre a mento de Luta Antimanicomial no Brasil marca
proteção e os direitos das pessoas portadoras de o início de um profundo processo de mudança
transtornos mentais, direcionando o modelo de no que diz respeito ao atendimento em Saúde
assistência em saúde mental. Mental, visando tratamentos mais humanizados,
No Artigo 2º, inciso II, define-se que o indiví- que considerem a individualidade e a cidadania
duo em tratamento deve ser tratado com huma- do portador de transtornos mentais de qualquer
nidade e respeito, no interesse exclusivo de bene- espécie.
ficiar sua saúde, visando alcançar sua recupera- Neste intuito muitos hospitais psiquiátricos
ção pela inserção na família, no trabalho e na foram fechados e, concomitantemente, foram
comunidade. abertas inúmeras vagas para atendimento nos
No inciso III do mesmo Artigo, a lei garante setores da atenção primária, buscando modelos
que o indivíduo em tratamento deve ser protegi- alternativos de atendimento, preferentemente
do contra qualquer forma de abuso e exploração. fora de o ambiente hospitalar, altamente iatro-
Na regulamentação da Anvisa20, no Artigo gênico na maior parte dos casos.
20, consta que durante a permanência no trata- Assim, foram criadas estratégias como os
mento a instituição deve garantir: CAPS, NASF, residências terapêuticas, hospitais-

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dia, consultórios de rua e outros dispositivos que Por outro lado também se percebeu que uma
garantam a integralidade do atendimento, sem o grande maioria destas supostas CT não recebe
ônus da hospitalização. nenhuma forma de fiscalização, não se encontran-
Por outro lado, o problema da dependência do cadastrada em nenhum serviço de referência
do álcool e outras drogas tem se alastrado de que regulamente sua prática, o que facilita ainda
forma alarmante nas últimas décadas, o que tem mais a proliferação e a prática indiscriminada.
provocado, em função da ausência de políticas Mas isto não significa, de forma alguma, que
públicas, a proliferação de uma série de locais de o conceito de CT se posiciona contra as bases do
internação para este público, dentre estes as de- movimento reformista da saúde mental, já que,
nominadas CT. como foi demonstrado, as suas bases conceituais
Embora em sua origem histórica, conceitual e metodológicas em muito se aproximam.
e metodológica, o movimento das CT tenha O que sim fica evidente é a necessidade de
muitas mais semelhanças do que diferenças com uma sistemática de fiscalização e regulamenta-
o proposto pela Reforma Psiquiátrica e o Movi- ção das CT, a fim de que somente permaneçam
mento de Luta Antimanicomial, na prática, pelo em atividade aquelas que, de fato, sigam o mo-
menos no Brasil, a realidade é diferente, como delo proposto originalmente, nascido no mes-
confirmado por diversas investigações realiza- mo berço da Reforma Psiquiátrica.
das na atualidade. Desta forma, as CT poderão sim fazer parte
De fato, uma boa parte das CT no Brasil pos- das estratégias de atenção integral aos dependen-
sui práticas tão desumanas e iatrogênicas quan- tes do álcool e outras drogas, consolidando-se
to às das antigas instituições asilares manicomi- como um excelente instrumento nos casos em
ais, sem garantir minimamente a preservação dos que outras alternativas se mostrem ineficazes.
direitos humanos mais básicos.

Colaboradores

NR Costa, SV Siqueira, D Uhr, PF Silva e AA


Molinaro participaram igualmente de todas as
etapas da elaboração do artigo.

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Artigo apresentado em 23/01/2013


Aprovado em 03/03/2013
Versão final apresentada em 16/03/2013

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