Você está na página 1de 5

Galileu Galilei: um Cientista entre

a Cruz e o Telescópio
Mateus Leite de Sousa

Introdução

Durante o século XVII, o cientista pisano Galileu Galilei viverá um episódio que ficará
marcado pelo modo como a Igreja exercia seu poder perante a pesquisa científica, ou seja,
limitando-a por um empreendimento que precisava respeitar o dogma religioso. Assim, a
ciência – por uma boa parte de sua história – ficou presa pelas correntes de tal dogma. A
contenda Galileu versus Bellarmino é um exemplo para compreendermos a velha discussão
que ainda existe entre a ciência e a religião. É a partir da apresentação desse debate que será o
tema do presente texto.

Em Filosofia da Ciência, há uma discussão que problematiza os critérios para que a


pesquisa científica possua validade lógica e, consequentemente, seja verdadeira
empiricamente – e que, portanto, seja diferente de outras áreas de conhecimento – é
denominada de “problema da demarcação”. Segundo Karl Popper, é “o problema de
estabelecer um critério que nos habilite a distinguir entre as ciências empíricas, de uma parte,
e a Matemática e a Lógica, bem como os sistemas ‘metafísicos’, de outra” (1972, p. 35).
Queremos destacar a dimensão política deste problema a partir da história de Galileu como
um exemplo que ilustra as visões divergentes sobre tais critérios metodológicos. Tal destaque
é orientado pelos seguintes pensamentos: primeiramente, o problema da demarcação entre a
ciência e outras formas de conhecimento não é um pseudoproblema de filosofia de salão, e
sim uma questão de relevância política (cf. LAKATOS, 1978, pp. 11-20., para a discussão
sobre a pseudociência e sua relevância ético-política); por último, é expressivo porque
“sempre que a relevância do discurso entra em jogo, a questão torna-se política por
definição, pois é o discurso que faz do homem um ser político” (ARENDT, 2007, p. 11., grifo
nosso). É o que tentaremos mostrar com a explicitação dos discursos de Galileu Galilei e
Roberto Bellarmino.
À primeira vista, o que pode ser dito da obra filosófico-científica de Galileu Galilei é
que este tinha como objetivo liquidar com a visão que a Igreja aceitava como verdadeira, isto
é, o sistema geocêntrico de Ptolomeu e a cosmologia de Aristóteles, pois, aos olhos de nosso
cientista, não eram mais do que doutrinas passíveis de refutação. Isto significa que Galileu, ao
ter como objetivo a refutação da doutrina astronômica estabelecida e, consequentemente, uma
defesa do sistema heliocêntrico de Copérnico, era ele um irreligioso em busca de ferir a
Igreja? De modo nenhum! O que o cientista buscava – e isto é evidente nas cartas que ele
escreveu, do qual foram compiladas com o título Ciência e Fé – era uma conciliação entre o
sistema copernicano e as Sagradas Escrituras. Como que a Igreja recepcionou Galileu?

A polêmica teológico-cosmológica – 1613-1616

O período que envolve a polêmica do cientista pisano é entre 1613 a 1616, do qual
denominaremos de ‘polêmica teológico-cosmológica’ – retiro esse termo da biografia Galileu
e a nova Física, de Pablo R. Mariconda e Júlio Vasconcelos (2006, pp. 18-9).

Neste período – após Galileu polemizar contra as ideias do padre jesuíta Christopher
Scheiner sobre as manchas solares –, o nosso cientista pisano enfrentará uma polêmica com
diversos setores tradicionais, sendo estes diferentes professores de Filosofia Natural e
Teologia, com a acusação de que as ideias de Galileu eram “suspeitas e temerárias, […]
principalmente pela pouca reverência mostrada para com os Santos Padres antigos e São
Tomás, além das injúrias à Filosofia de Aristóteles, tão importante para a teologia escolástica”
(ibidem, p. 88). A controvérsia é extrapolada, por causa da publicação, no dia 21 de dezembro
de 1613, de uma carta que Galileu teria escrito para o padre Benedetto Castelli, seu
colaborador e discípulo. Qual era o conteúdo da carta para que abrissem um processo contra o
pisano no Santo Ofício em Roma?

O cientista demarcará o que seria a ciência e sua prática, contrapondo-a ao que era
usado como autoridade pela Igreja, isto é, a Bíblia. Galileu escreve que “[…] a Sagrada
Escritura não pode nunca mentir ou errar, mas serem os seus decretos de absoluta e inviolável
verdade”, entretanto, “não menos poderia às vezes errar algum dos seus intérpretes e
expositores, de vários modos” (2009, pp. 18-9). Vemos de que trecho foi retirada a
acusação… Não obstante, o que mais este trecho nos diz? É explícita a diferenciação entre o
que as Sagradas Escrituras dizem respeito apenas à moral e a fé; e o domínio científico que a
Autoridade da Bíblia não seria suficiente para a validação de quaisquer hipóteses – seus
critérios são a experiência sensível e a demonstração necessária, assim, tal metodologia dá
autonomia para a investigação científica. Essa delimitação é feita a partir da linguagem que
estes dois domínios são requeridos, a saber: a religião é expressa na linguagem comum; a
ciência, na linguagem matemática. Assim, “a verdade é uma [pois, Deus é o autor], mas as
linguagens usadas para exprimi-la são duas” (MARICONDA; VASCONCELOS, 2006, p. 91).

Em resumo, a carta expõe uma belíssima defesa da autonomia da pesquisa científica a


partir de critérios completamente alheios à autoridade da Bíblia – e que os intérpretes e os
expositores levassem em conta as conclusões da ciência para a correta interpretação de certas
passagens das Sagradas Escrituras (cf. GALILEU, 2009, p. 20). A dimensão política, que é
explícita na defesa de Galileu da autonomia da ciência e do copernicanismo, é evidenciado
por não ser “apenas uma questão de preferência teórica, a ser julgada com base em padrões
estritamente científicos, pelo sistema copernicano em detrimento do sistema ptolomaico ou do
sistema de Tycho Brahe, mas é fundamentalmente uma polêmica que envolve a
transformação mesma dos padrões de juízo científico e uma nova circunscrição do campo
científico” (MARICONDA, 2000, p. 101., grifo nosso).

Como que a Igreja recepciona tal defesa? É na figura de Roberto Bellarmino que
veremos a réplica das ideias de Galileu e, consequentemente, a posição oficial da Igreja sobre
o debate entre a sua autoridade e as teses heliocêntricas – evidenciado pela influência que o
cardeal exercia politicamente, em Roma (cf. Ibidem, pp. 117-9). A posição de Bellarmino
sobre os copernicanos e, particularmente, Galileu é a defesa de uma concepção
instrumentalista da ciência. Que ideia é esta? Na medida em que as Sagradas Escrituras,
concernentes às questões naturais, não são falsas – os cientistas podem, no máximo, propor
“hipóteses matemáticas que melhor ‘salvam as aparências’”. Não sendo reais, tais hipóteses
serviriam como “instrumentos de cálculo” (Ibid., pp. 119-20), de tal modo que a astronomia
seria “inferior e dependente” das verdades da Bíblia. Logo, o sistema copernicano não seria
ignorado completamente, mas apenas seria utilizado para resolver certas dificuldades
encontradas no sistema “ptolomaico”, por exemplo, o sistema de Tycho Brahe: segundo o
qual defendia que a Terra era o centro do universo, porém apenas o Sol orbitava este planeta –
os outros corpos celestes orbitavam o Sol. Esse ponto de vista da pesquisa científica também
compreende outra posição defendida pelo cardeal, a saber: que a experiência sensível refutaria
sistema heliocêntrico. Pois, é a partir dos nossos sentidos que nós percebemos a Terra como
estática e os outros astros e estrelas em movimento – não o contrário. É com essa réplica que é
baseada a acusação contra os defensores do copernicanismo.
Considerações Finais

Qual foi o fim dessa polêmica? A consequência do processo contra o sistema de


Copérnico e seus defensores é a sua condenação. “Em 24 de fevereiro de 1616, o inevitável
acontece e a Sagrada Congregação do Índice, em reunião dos assessores teológicos do Santo
Ofício, pronuncia a censura contra as duas proposições copernicanas da centralidade do Sol e
da mobilidade da Terra, abrindo o caminho para a solução teológico-jurídica do pleito
copernicano. A censura indicava que a parte processual estava encerrada e o veredicto era
claramente contrário ao copernicanismo”, e o que dizia especificamente ao cientista pisano, o
Papa Paulo V ordena “que Galileu seja primeiro admoestado verbalmente pelo cardeal
Bellarmino; se resistir, que se proceda então à intimação pelo Santo Ofício; se desobedecer,
que seja encarcerado” (MARICONDA, 2000, pp. 126-8).

Assim, vemos, de passagem, a dimensão política que envolve tal problema da demarcação,
pois, ao compararmos a carta de Galileu e a réplica de Bellarmino, nós encontramos algumas
tentativas de solucionar o problema da demarcação: para o cientista, a ciência é alheia à
autoridade da Bíblia, sendo apenas produzida por demonstrações matemáticas e por
experimentações, segundo o qual a pesquisa científica é, e deve ser, orientada; para o cardeal,
a ciência e, particularmente, a astronomia é compreendida como uma área de conhecimento
“inferior” aos conhecimentos bíblicos, portanto, deve estar em concordância com a Filosofia
Natural e a Teologia – de tal modo que novas teses devem ser encaradas unicamente como
hipóteses não confirmadas pela experiência. Interessante ver que há uma semelhança nesses
dois pontos de vista sobre a experiência como a característica essencial para metodologia
científica, apesar do poder exercido pela Igreja Católica tenha silenciado Galileu.

Segundo Feyerabend, “metodologia e política são, ambas, meios de passar de um a


outro estágio histórico. A única diferença está em que as metodologias-padrão deixam de ter
em conta o fato de que a História apresenta, constantemente, feições novas” (1977, p. 24).
Portanto, é nessa história fatídica, que se mostra claramente a seguinte ideia sobre um
problema que, à primeira vista, parecia inócua: que fazer ciência é um ato político.

Referência Bibliográfica

ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Trad. de Roberto Raposo. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2007.
FEYERABEND, Paul. Contra o Método. Trad. de Octanny S. da Mota e Leonidas Hegenberg.
Rio de Janeiro: F. Alves, 1977.

GALILEI, Galileu. Ciência e Fé: cartas de Galileu sobre o acordo do sistema copernicano
com a Bíblia. Trad. de Arthur R. do Nascimento. 2. ed. rev. E ampl. São Paulo: Editora
UNESP, 2009.

LAKATOS, Imre. História da Ciência e suas Reconstruções Racionais. Lisboa: Edições 70,
1978.

MARICONDA, P. R. O Diálogo de Galileu e a condenação. Cadernos de História e Filosofia


da Ciência (UNICAMP), Campinas, v. 10, n.1, p. 77-163, 2000.

_____________; VASCONCELOS, J. C. R. Galileu e a nova física. 1. ed. São Paulo:


Odysseus, 2006.

POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. de Leonidas Hegenberg e Octanny S. da


Mota. São Paulo: Cultrix, 1972.

Você também pode gostar