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Rap e politica: uma tradição crítica preterida

Resumo: O cotidiano das cidades brasileiras é fortemente marcado pelo deslizamento


de sentido da chamada “questão social”: “periferia”, “pobreza” e “violência”,
discursivamente articuladas, convergem na figuração do “inimigo comum” cuja
estigmatização pública confere legitimidade às políticas de repressão e encarceramento,
exemplares contemporâneas do persistente processo de incriminação e deslegitimação
política da pobreza. Nessas condições, nas margens do estado e da cidade, vem se
constituindo dinâmicas de ressignificação das experiências vividas, cuja politicidade
permanece predominantemente estranha à prática e ao pensamento político
hegemônicos. Fruto da discussão coletiva praticada no NaMargem – núcleo de
pesquisas urbanas (UFSCar),  o minicurso propõe uma abordagem da dimensão política
inscrita na estética do RAP, procurando pensá-la como matriz de sentido que configura
uma experiência coletiva “marginal” e agencia modalidades de mobilização política,
seja enquanto fator que conforma normas de convívio, mediação de conflitos e formas
de subjetividade internamente a esses grupos, seja enquanto instrumentos de denúncia e
dissenso no espaço e debate públicos.

Bom, primeiramente eu devo dizer que as considerações que eu vou fazer sobre rap e
política

são fruto das discussões e das pesquisas que são desenvolvidas coletivamente no âmbito
do NaMargem – núcleo de pesquisas urbanas sediado no departamento de sociologia
aqui da UFSCar

então eu aproveito pra esboçar mais ou menos os parâmetros analíticos do grupo

que são os parâmetros também da discussão sobre estética do rap e política

Bom, o NaMargem estuda basicamente as dinâmicas sociais e os conflitos

relativos aos grupos urbanos considerados “marginais” no cenário urbano


contemporâneo

esses sujeitos são os mais heterogêneos: moradores de rua, usuários de drogas,


traficantes, ladrões, presidiários, jovens moradores de periferia e prostitutas, por
exemplo
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a ideia é romper com o pressuposto da exclusão e investigar as relações que esses


sujeitos estabelecem tanto entre si quanto com diversas instâncias sociais e políticas:

a família, o mercado de trabalho tanto formal quanto informal, as igrejas, o estado, a


burocracia, as políticas sociais e o universo que vem sendo conceituado como “mundo
do crime”

o objetivo geral dessas pesquisas é produzir compreensão sobre relações sociais e


políticas

que compõem o processo que simultaneamente produzem os sujeitos e territórios


“marginais” e, no mesmo passo,

constroem as representações da lei, do estado, do normal, do desejável, do legítimo, do


digno e, no limite, do próprio humano

portanto, numa perspectiva relacional nós postulamos a centralidade das margens

para a compreensão do centro normativo da dinâmica social e política contemporâneas

para a compreensão dos conflitos travados em torno da construção e contestação da


ordem social e urbana

tudo isso não é exatamente inédito

existe uma certa tradição no pensamento social e político que assinalam os antecedentes
nesse campo

a questão do estrangeiro e das prostitutas na obra do Simmel

os párias de fronteira da Hannah Arendt

as gangues dos rapazes da esquina em Foot White

os homens infames de Foucault e por aí vai

o que talvez seja original é a montagem de uma agenda de pesquisa e de uma


perspectiva que retoma essa tradição

e também o fato de que não se trata de compartimentar o enfoque a esses grupos em si


mesmos
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mas de montar uma perspectiva relacional em que o “centro” e a “periferia”, o “legal” e


o “ilegal”, o “legítimo” e o “ilegítimo” o “canônico” e o “marginal”

sejam tomados como figurações dos conflitos em cujo interior constituem-se sujeitos,
articulam-se solidariedades e repulsas, adesões e dissenções no interior da ordem social

***

Bem, dito isso, uma primeira observação que devo fazer é que a aposta analítica que
temos discutido no NaMargem

é abordar o rap como forma estética, que dizer, como uma formalização das linhas de
força que compõe a experiência vivida no cotidiano das periferias:

expansão do mercado formal de consumo, expansão paralela e conectada do mercados


informais e ilícitos,

expansão das igrejas neopentecostais, estigmatização e criminalização de práticas e


formas simbólicas das periferias

políticas públicas focais de saúde e assistência social acompanhadas de políticas


securitárias de repressão e “guerra ao tráfico”

Ao observar a formalização estética desse linhas de força que compõem os parâmetros


da experiência cotidiana nas periferias

é evidente a articulação de um discurso que se inscreve no interior dessa estética

um discurso que que se desprende dessa estética e que se volta para a experiência social
desses sujeitos

Bem, entendendo discurso como entenderia Foucault, “práticas discursivas são práticas
que constroem sistematicamente os objetos de que falam”

acho que uma primeira tarefa seria situar o rap em relação aos outros discursos que
incidem sobre a periferia

Quer dizer: qual o lugar do rap entre os demais discursos que compõem o processo de
construção discursiva, de figuração pública das periferias?
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Bom, podemos destacar pelo menos três atores sociais no processo de figuração pública
das periferias, que constituem três lugares de enunciação:

A mídia em geral

O estado

E a academia

O discurso midiático, principalmente o televisivo é bastante ambivalente e ambíguo

a gente pode dizer que ele oscila entre as chaves da glamourização, da vitimização e da
criminalização

Na glamourização temos que as periferias, as favelas e seus moradores

são figurados como portadores de valores mais comunitários, mais ligados à


“autênticidade” das relações pessoais, dos vínculos de vizinhança e de amizade, etc

como se esses territórios fossem um mundo á parte, intocado pelos vetores de


modernização representados pelo estado e o mercado,

e justamente essa ausência seria seu principal valor,

seria o que possibilita uma vida comunitária que constituiria um reservatório de


autenticidade apartado do restante da cidade e do mundo do “asfalto”,

onde imperariam os valores da concorrência desenfreada, do egoísmo individualista e


consumista

Muito próxima desse vetor discursivo, temos também a chave da vitimização

nessa chave, os moradores das periferias são figurados sob o signo da destituição:

são destituídos de recursos materiais, de infraestrutura,

destituídos de consciência, de capacidade de organização e reivindicação,

destituídos da presença de instituições como a família, o estado e o mercado

mais uma vez trata-se novamente de uma leitura pela ausência,

a mesma que está na base da glamourização


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só que agora a ênfase racai não sobre a autenticidade de suas vidas mas sobre a
vulnerabilidade de suas vidas

a ausência destes traços resultariam numa população civilmente incapaz, inoperante e


incapaz de mobilização social e política

incapaz de pautar e promover a melhoria das condições de vida das periferias (ex:
associações, cufa, cedecas)

numa palavra, trata-se de uma população inexoravelmente vunerável

É essa chave de leitura que também compõe o discurso que atravessa a visão
paternalista

que em geral anima as iniciativas cívico-pedagógicas de associações civis e não


governamentais imbuídas da missão de “levar cultura e educação aos favelados”

Como todo paternalismo, trata-se de uma figuração que pressupõe a ausência desses
elementos

como se não houvesse instâncias que agenciam a produção cultural ou processos


educativos operando no cotidiano dessa populações (ex: hip-hop, saraus, cooperifa)

portanto, trata-se de uma figuração em que esses sujeitos aparecem esvaziados de sua
própria capacidade de agência

esvaziados de sua capacidade de agenciar dinâmicas culturais próprias

Na sequência, temos a chave da criminalização

ao contrário do que aparenta, a chave da criminalização não é oposta à chave de


vitimização

Na chave da criminalização, o que se observa é uma conversão do esvaziamento


paternalista da agência à redução acusatória da agência

ou seja, a agência das periferias é pensada única e exclusivamente como uma agência
criminal, como uma inexorável propensão ao crime

Mais uma vez, como nas figurações anteriores, o enunciado da ausência é o vetor
discursivo central
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reduzidas ao crime e à violência as dinâmicas sociais da periferia são o retrato da


desordem e da incivilidade e da barbárie

essa leitura descarta a existência de instâncias próprias de ordenamento social, de


regulação das interações e de mediação de conflitos internos e externos à periferia

sabemos de pesquisas nos universos e circuitos da prostituição, por exemplo

o que essas pesquisas tem evidenciado é a existências de dinâmicas sociais e de


instâncias de regulação das condutas nesses universos

quer dizer, mesmo quando consideramos que estamos no meio da zona, estamos
também num universo que se ordena a partir de normatividades e moralidades próprias

inclusive com uma ideia própria, específica de família

o mesmo podemos dizer a respeito do mundo do crime nas periferias

longe de ser produtor de desordem e de caos, o universo do crime também é um agente


que produz regulação das condutas e das interações

produz uma gestão própria dos conflitos e da aplicação da justiça nas periferias

isso aparece inclusive no universo musical

é a figura do anjo construída na obra de Jorge Bem na década de 70

é o Charles Anjo 45 e sua retomada na figura do Charles Jr

figura que o rap vai retomar, na citação feita na abertura do disco Nada Como um Dia
após o Outro Dia do Racionais de 2002

quer dizer, há um processo de consolidação do crime como guardião legitimado de


valores como paz, justiça, liberdade e igualdade

ou seja, como instância normativa interna às periferias

(exemplo atuação do pcc no desarmamento e queda da taxa de homicídios – separação


política e economia e gestão da justiça)

Poderíamos nos perguntar: mas não há criminalidade e violência armada nas periferias?
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O problema é que a questão não é essa

ou no mínimo é que a questão esta mal colocada: ao contrário do pressuposto que


preside

a política estatal de encarceramento ou do extermínio em massa

o crime não é uma aglomerado de pessoas dedicadas à infligir à lei

O crime é uma dinâmica social, é uma rede de relações

entre outras coisas, pois ele também pode ser visto como agente pacificador como
acabei de afirmar

o crime é apenas parte de uma extensa rede de mercado

e de um mercado que não é operado centralmente a partir da periferias

é uma rede de escala transnacional

o problema aí então é que o discurso da criminalização reduz essa rede ao espaços


urbanos empobrecidos

quer dizer, esse discurso opera uma territorialização discursiva da rede transnacional da
atividade do tráfico ao espaço restrito das periferias

Bem, como podemos ver, todas essas chaves discursivas mobilizadas pela esfera
midiática tem em comum a leitura pelo negativo, pela ausência: as periferias são lidas
pelo o que nelas faltaria

seja sua autenticidade, seja sua vulnerabilidade, seja sua periculosidade são
compreendidas pela ausência dos traços que definiriam a ordem social moderna,
civilizada e liberal-democrática

Bem, o discurso estatal não difere em muito do midiático

pelo contrário, ambos compõe uma formação discursiva do negativo

da leitura pela ausência

a figuração pública das periferias operada na esfera estatal apenas subtrai a dimensão da
glamourização que apontamos no discurso midiático
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Uma primeira coisa a observar da relação estado e periferia

é que ao contrário do que poderíamos supor e do que nos diz o discurso midiático,

as favelas e periferias não são territórios marcados pela ausência de estado, não são
espaços abandonados pelo poder público

o que as pesquisas do NaMargem tem evidenciado é uma tendência à hipertrofia da


presença do estado nos territórios urbanos empobrecidos

e também uma intensificação da incidência das práticas estatais sobre as camadas


pobres urbanas, oriundas das periferias

mesmo quando elas não se encontram nos territórios periféricos (por exemplo:
população em condição de rua, população das cracolândias, catadores de recicláveis,
mas também jovens em busca de lazer)

A questão aqui é que essa presença não coincide com uma expansão do estado
democrático de direito, não coincide com uma expansão da cidadania

pelo contrário, essa presença do estado vai no sentido contrário de políticas


universalistas pautadas na chave dos direitos

Porque essa hipertrofia da presença estatal se reduz a duas frentes de políticas públicas

por um lado nós temos as políticas de assistência/medicalização da pobreza e por outro


as políticas de punição da pobreza

duas frentes que além de serem fruto de um reducionismo da ação do estado, são elas
próprias reducionistas em suas práticas

e elas apresentam esse caráter reducionista pelo fato de ambas trabalharem com a noção
de vulnerabilidade e risco

tanto uma noção quanto a outra acabam imprimindo um perfil de políticas focais a essas
políticas publicas

Quer dizer, não estamos mais na chave de políticas públicas universalistas de expansão
dos direitos

mas na chave de intervenções estatais pontuais e emergenciais


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não se trata mais de pautar o direito à cidade, à moradia, ao trabalho, à educação, à


saúde, ao lazer, etc

mas de definir os critérios de vulnerabilidade e de risco que direcionam intervenções


pontuais e emergenciais sobre grupos focais que encaixam dentro destes critérios

O que equivale a dizer que não estamos na chave propriamente política da negociação e
do litígio em torno da elaboração de políticas públicas

mas na chave da gestão estatal da questão social

E aqui eu aproveito pra fazer uma distinção entre política e gestão

distinção importante pra nossa discussão de hoje sobre o rap

essa distinção é baseada na distinção que Jacques Rancière faz entre política e polícia

é como se ele fizesse a seguinte proposta: e se nós chamássemos de política tudo isso
que nós chamamos de baderna

e de polícia tudo isso que nós chamamos de ordem

Para este autor, em linhas gerais, política extrapola o campo da simples administração
pública ou da viabilização dos “interesses de Estado”

ele identifica a política como aqueles eventos que são dissensuais,

quer dizer, eventos que comportam atos enunciativos e performáticos que introduzem
uma ruptura no sentido, socialmente construído, em torno das copertinências entre os
sujeitos, os enunciados e suas posições

a política seria esse dissenso, essa suspenção dos ordenamentos sociais que estipulam as
fronteiras entre os grupos admitidos e os grupos banidos do espaço público,

as fronteiras entre a ação propositiva e a baderna, entre os sujeitos banidos e admitidos

entre as falas legítimas e admitidas e as falas banidas e ilegítimas


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a política portanto, não se reduz à mera disputa entre sujeitos previamente reconhecidos
em espaços sociais e institucionais pré-demarcados,

mais do que isso, a política é essencialmente o conflito em torno da própria definição


desses espaços e da própria seleção dos próprios sujeitos considerados legítimos e aptos
a ocupá-los

então nós temos política quando os sujeitos e seus enunciados teimam em se esquivar de
suas posições pré-demarcadas

Já a polícia, que aqui assimilamos à gestão, ao contrário da política,

seria o conjunto das iniciativas voltadas à finalidade de manutenção de um certo


ordenamento social

e, por extensão, voltada à manutenção da dominação resguardada por esses


ordenamentos

a polícia, ou a gestão, se esforça por manter os sujeitos em suas devidas posições, as


coisas em seus devidos lugares

em manter a ordem, rsrsrsrsr

Bem, no contexto da nossa discussão da relação entre estado e periferias

poderíamos dizer que essa relação atualmente se encontra na chave do que a professora
Cibele Rizek e o professor Chico de Oliveira chamam de gestão/contenção da pobreza

Ou seja, intervenções estatais que desempenham a função de manter os pobres em seu


devido lugar

em outras palavras, a função de reproduzir a pobreza enquanto tal

e ao mesmo tempo evitar que os setores empobrecidos representem um risco ao


ordenamento da hierarquia social, da ordem social e urbana
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E quando a questão é gerir o social, a fronteira é muito tênue entre aqueles que são
vulneráveis e portanto expostos aos riscos

e aqueles que são vulneráveis e por isso representam um risco, e por isso representam
perigo

(exemplo, moradores de rua, catadores ambulantes de recicláveis, habitantes das


cracolâncidias).

É nesse diagrama que a gente observa não a ausência de estado nas periferias ou diante
das populações empobrecidas

mas sim a intensificação de uma presença estatal corporificada nas políticas de


assistência e medicalização dos vulneráveis por um lado

e, por outro, de punição aos perigosos, sendo que estes grupos são facilmente
intercambiáveis entre si

Bem, essas práticas compõem elas mesmas discursos, produzem discursos em termos de
legislação, de saber médico, de saber securitário, urbanístico e criminológico

mobilizados a partir dos enunciados da vulnerabilidade e do risco

fica claro que esses discursos agenciados a partir da esfera estatal

figuram os pobres e as periferias como universos sociais da inoperância, da


incapacidade civil, da desordem, da violência e do crime

ou seja, assistência, medicalização e internamento compulsório aos incapazes e aos


“nóias”

e encarceramento em massa ou extermínio aos “bandidos”

Do ponto de vista das políticas securitárias, é interessante chamar a atenção pro


vocabulário mobilizado pelas campanhas:

“guerra às drogas”, guerra ao crack”, “guerra ao tráfico”, “guerra ao crime”, etc

todo um vocabulário belicoso que vem colado a práticas bastante seletivas e


discricionárias na orientação dessas políticas
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um exemplo disso são as upps, as operações saturação, etc,

que revelam uma investida crescente dessas políticas sobre os territórios urbanos
empobrecidos

ou seja, estamos diante não de uma política de combate ao tráfico, mas de uma política
de combate ao elo mais frágil da extensa cadeia do tráfico

uma política que não tem por finalidade a resolução do problema a que ela se propõe,

mas que desempenha a função de repressão ao pequeno traficante

uma política de criminalização e de punição da pobreza, portanto

Bem, todo essa complexo de práticas e de discursos compostos na esfera midiática e na


esfera estatal

compõe o núcleo discursivo da nova figuração pública da “questão social” no cenário


urbano contemporâneo

quer dizer, no lugar da questão da desigualdade e da redistribuição, no lugar da questão


do reconhecimento e da integração social

nas últimas décadas nós temos a chamada questão social girando em torno de um
dispositivo estatal que vincula discursivamente,

por nexos de condicionantes e consequências, de causa e efeito as categorias “periferia”,


“pobreza” e “violência”,

é como se houvesse uma causalidade retilínea entre

criminalidade, drogas ilegais, mercados ilícitos, armas de fogo

facções, quadrilhas, corpos pardos e pretos, territórios urbanos e pobreza

como se esses aspectos da realidade social fossem congenitamente indiferenciados

é como se falar “violência” fosse o mesmo que falar “tráfico”, “crime” ou “PCC”

é como se qualquer programa social voltado ao jovem favelado

fosse evidentemente um programa de “prevenção à violência”.


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quer dizer, trata-se de um discurso que vincula necessariamente fenômenos que são
evidentemente díspares

e que estabelece como relações necessárias as relações entre fenômenos que são
evidentemente relações contingentes

Bom, a articulação discursiva desses aspectos a princípio dispares da experiência social

convergem na figuração de um “inimigo comum” que acaba não só servindo de base à


produção de práticas estatais

como também acaba conferindo legitimidade às políticas de repressão e


encarceramento,

É nesse ponto que a gente flagra em ato uma dinâmica indispensável à constituição do
estado

Ou seja, é produzindo incessantemente suas margens que o estado se produz

A produção do aparato e do discurso estatais são inseparáveis da produção estatal de


suas próprias margens

nesse ponto que fica evidente não a simples “exclusão”, mas o fato de que as margens e
os marginalizados situam-se no centro do processo de construção do próprio estado

Portanto dá pra gente afirmar

que a margem ou marginalidade em geral, assim como as periferias em particular,

não são pura e simplesmente realidades territoriais

elas são, antes de tudo, figurações territorializadas de conflitos sociais e políticos


ligados à gestão estatal da ordem urbana e social

e portanto, não são categorias absolutas, mas categorias fortemente relacionais

categorias que estão inscritas nas relações litigiosas

que compõem e distribuem a legitimidade/ilegitimidade entre “centro” e “periferia”,


“legalidade” e “ilegalidade”, “integrado” e “marginal”
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relações conflituosas que estabilizam e/ou desestabilizam os ordenamentos da vida


urbana

Bem, com isso chegamos à terceira esfera de figuração das periferias que é a produção
bibliográfica acadêmica

vou me restringir à abordagem das periferias no campo das ciências sociais brasileiras

Bom, o interesse das ciências sociais pelas periferias começam dos anos 70 pra cá

Embora o processo de periferização no Brasil seja quase tão antigo quanto ao próprio
processo de urbanização

se a gente pega as reformas urbanas e higienistas da campanha do Rio Civiliza-se no


início do século no Rio de Janeiro

ou as reformas urbanas do prefeito Antônio Prado na mesma época em São Paulo

a gente pode dizer que o fim dos cortiços no centro da cidade é o início da favela em
suas periferias

No entanto, é compreensível que é apenas a partir dos anos 50 que as periferias


começam a despertar interesse

não só é o período de institucionalização das ciências sociais

como também é o período em que o boom de crescimento urbano da época

foi acompanhado pela intensificação da periferização e da expulsão dos pobres das áreas
centrais

Bom, muito esquematicamente e resumidamente, podemos dizer que a bibliografia de


ciências sociais sobre periferias se divide em dois períodos

uma produção que cobre as décadas de 70 e 80

e uma produção das décadas de 90 e 2000

entre as décadas de 70-80 a ciência social olhava para as periferias e enxergava


sobretudo o mundo do trabalho e os movimentos sociais induzidos a partir dele

era o período da abertura do regime autoritário e de movimentação da redemocratização


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e a aposta política era que a expansão do assalariamento seria um fator de integração


social e de expansão da cidadania

quer dizer, a ênfase nesse momento era nos trabalhadores e nos movimentos de
trabalhadores frente ao estado e como indutores da mudança social e política

Por outro lado, nos anos 90-2000 nós temos uma inflexão na abordagem da bibliografia

o objeto deixa de ser o trabalho e os movimentos de trabalhadores e passa a ser


fundamentalmente a violência

nesse período, a perspectiva de integração social e de expansão da cidadania via


trabalho assalariado

já tinha desabado diante do processo mundial de reestruturação produtiva, da


precarização do trabalho e do processo de reformas neoliberais do estado

a ênfase então passa a ser a segregação social, a figura da “cidade partida” disseminada
pela mídia,

a questão passa a ser a segregação social e suas implicações para a violência

seja a violência ligada ao crime seja a violência de estado ligado ao estado policial que
falamos anteriormente

A grande questão que surgi diante desse panorama da produção bibliográfica

é que a categoria “política” foi exclusivamente pensada em relação à categoria


“trabalho”

quer dizer, a relação entre “política” e “violência” foi muito pouco discutida

como se “trabalhadores” e “bandidos” não coexistissem no universo social estudado

e como se suas trajetórias e histórias de vida não fossem mutuamente construídas

Talvez seja uma avaliação um pouco apressada da minha parte,

mas acho que é uma hipótese de leitura afirmar que essa bibliografia na verdade enxerga
as periferias de uma ótica formata a partir de uma perspectiva de estado
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de uma perspectiva alinhada às epistemologias régias, ou à epistemologia de estado


como diriam Deleuze e Guattari no Mil platôs

Nesse caso, isso quer dizer que a categoria central, embora ausente, é o estado

na medida em que a politicidade só aparece nas dinâmicas sociais dos movimentos


organizados, dos sindicatos e dos partidos

quer dizer, nas dinâmicas que remetem diretamente à institucionalidade política que se
dirige ao estado

o mesmo no caso da violência, que é uma categoria que adquire contorno em função da
remissão de certas condutas aos parâmetros de legalidade fixados pelo estado

Bem, se essa leitura pode ser uma leitura apressada

o que é fato é que de qualquer modo a perspectiva dessa bibliografia é uma perspectiva
externa ao mundo social estudado

é uma perspectiva construída a partir da academia

Talvez resida aqui um dos fatores de inovação e de implicações políticas contidas na


produção cultural do hip-hop em geral e do rap em particular

e aqui eu encerro a questão dos atores e esferas discursivas que atuam na figuração
pública das periferias

e passo a esboçar uma abordagem da dimensão política inscrita na estética do rap

Antes de tudo é bom enfatizar que essa inovação a que me referi é uma inovação não só
em relação aos atores que atuam na figuração pública das periferias

quanto também em relação à própria tradição da “canção de protesto” no brasil

o que aliás representam uma retomada de uma tradição que foi posta de fora da assim
chamada “canção de protesto”: que é o samba, o baião, os repentes, certo funk dos anos
70

A inovação é que o rap apresenta um perspectiva crítica construída desde dentro da


condição de desigualdade e segregação
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quer dizer, no rap, aqueles que até então ocupavam a posição de objetos nos demais
discursos, tomam pra si a posição de sujeitos

quer dizer, com o rap, a figuração do lugar e lugar da figuração coincidem, “voz da
favela e parte dela” como diriam os rappers

voz que fala da favela e para a favela, mas que não deixa de convocar e desafiar a escuta
dos “playboys” e dos “bacanas” do “sistema”, setores ricos, policiais, governantes, etc

é um ato de evidente empoderamento político, um dissenso como definimos


anteriormente

porque é um ato que equivale ao fato de que o rap desloca as fronteiras entre os sujeitos
e os enunciados no processo social de construção discursiva das periferias

Cabe destacar também, o fato que o rap preenche o problema que acabei de apontar na
própria bibliografia sobre periferias

o mundo que o rap enuncia não é um mundo compartimentado entre o trabalho e o


crime

as trajetórias narradas entrecruzam constantemente as esferas formais e informais dos


mercados

entrecruzam o legal e a ilegalidade

entrecruzam a vida de bandidos e de trabalhadores

não é raro a narrativa de uma trajetória que têm início no mundo formal-legal e que
passam por inflexão num período de encarceramento e depois se desviam para o crime

como também o contrário é frequente: trajetórias que se iniciam no crime e acabam se


direcionando pra legalidade

Quer dizer, as dinâmicas sociais que emergem das narrativas do rap desestabilizam a
imagem simplista da cidade partida

pelo contrário, colocam em foco a interdependência e a constituição recíproca da cidade


formal e informal, lícita e ilícita, legal e ilegal
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colocam em foco a interdependência, discursiva e social, da existência do “centro” e da


“periferia”, dos condomínios fechados e dos barracos,

a interdependência dos mercados formais e legais de consumo e do mercado do


narcotráfico, dos “manos” e dos “playboys”

algo que aparece na sociologia paulista nos trabalhos da Vera Telles, por exemplo, e na
sociologia carioca nos trabalhos do Michel Misse

Quer dizer, só nesse ponto, já dá pra ver o papel insurgente do rap na figuração pública
das periferias:

é um discurso que desloca o binarismo e reducionismo que informam essas figurações

um dissenso que questiona a compartimentação entre essas esferas e explicita a


constituição recíproca entre elas

o rap é uma estética de fronteira nesse sentido, no sentido que é uma estética que se
move no limiar desses mundos

talvez esteja aí a gênese social da expressão linguística “vida loka”, que circula nas
periferias e que dá título a duas composições do Racionais

vida loka tem um duplo sentido, é experiência, é vida – a vida loka

mas é também uma agência, um processo de subjetivação – o vida loka

quer dizer, é a vida vivida no limite, no limiar, no conflito entre essas esferas
interdependentes que ordenam o mundo social urbano

mas é também o sujeito que vive assim por força das circunstãncias, contrariando as
estatísticas como diz o Mano Brow

como se diz nas quebradas, a vida loka explicita o lado certo da vida errada e o lado
errado da vida certa

não é à toa que a “vida loka” seja figurada como “guerra”

e que o “vida loka” seja figurado como “guerreiro”

e aqui não se trata de adesão à violência ou ao crime


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guerreiro é sobretudo um agência política, porque é o sujeito que se dispõe a bancar o


conflito,

se dispõe a bancar o litígio cotidiano em torno da sedimentação ou da contestação dos


ordenamentos que regulam o cotidiano das cidades,

que territorializam o “centro” e a “periferia”

que apartam o “desejável” do “marginal”

***

Bem, até aqui, a gente já toca em alguns significados políticos que a narrativa do rap é
portadora

vamos aprofundar isso e apontar alguns procedimentos estéticos envolvidos nessa


politicidade

mas antes é necessário perguntar pelas dinâmicas sociais

que fazem com que a política das periferias

seja canalizada para a estética das periferias

quer dizer, porque a política pode ser procurada não só nas formas de mobilização das
periferias que remetem diretamente ao aparato estatal

mas também na produção estética que se processa nas periferias

Como ficou sugerido na nossa discussão inicial, a sociedade brasileira, o estado


brasileiro, o processo de expansão urbana brasileiro

apresentam um processo de formação caracterizado fortemente pela sistemática


incriminação e deslegitimação política dos setores empobrecidos da população

foi assim com a integração social dos ex-escravos pós-abolição,

foi assim com as ondas migratórias do norte-nordeste no processo de expansão urbana e


industrial pós anos 50

foi assim com desempregados estruturais pós redemocratização neoliberal


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esses setores foram relegados às posições mais subalternas e precarizadas do mundo


institucional-legal brasileiro

tanto do ponto de vista social, quanto do econômico e do político

Nessas condições, por um lado, o senso de justiça, de liberdade, de igualdade destes


setores

foram construídos de forma grandemente autônoma da ordem política institucional

embora guarde com ela inúmeros pontos de contato e de tensão

Por outro lado, a interdição e a intolerância às vezes velada às vezes ostensiva

que pesam sobre o acesso desses setores aos canais institucionais de participação e
representação

assim como na ocupação e no desempenho de suas práticas no espaço público

acabou por canalizar esse senso político específico para outras esferas

que não se reduzem à esfera que a prática e o pensamento político hegemônicos

considerariam a esfera apropriada: que seria a institucionalidade política ligada ao


estado

do ponto de vista dos integrados social, econômica e politicamente

essa esfera do senso político dos marginalizados

assume predominantemente os contornos do mero lazer e do divertimento quando não a


da baderna e da libidinagem

são, entre outros exemplos, toda a sociabilidade contida nos sambas de terreiro de fins
do XIX e início do XX,

os bailes negros dos grêmios recreativos do início até meados do século

os bailes de black music dos anos 70, os bailes funks de hoje,

as rodas de duelo e de rima dos rappers da estação São Bento do metro de São Paulo,
onde teria surgido o rap no Brasil
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enfim, é a esfera da sociabilidade e da produção cultural

produção cultural que implica em um regime de sociabilidade que catalisa os vetores


centrais da prática política:

a aliança entre sujeitos e o compartilhamento de uma experiência comum – muitas


vezes a experiência do estigma e a experiência do combate a ele

Talvez resida aí a chave de compreensão para o lugar de centralidade que a


expressividade estética ocupa na sociabilidade das camadas populares

A centralidade das canções, danças, vestimentas, pichações, vídeos e posts em redes


sociais,

quer dizer, a centralidade de expressões estéticas que comportam diversos aspectos de


oralidade e de narratividade

e que são portadoras de um vasto repertório de códigos, de gestos e de comportamentos

e que também são elementos cuja simples manifestação implica modos diversos de
apropriação do meio urbano e do espaço público.

Eu me pergunto se a centralidade que esses elementos estéticos apresentam na


sociabilidade das camadas populares

não se deveria justamente pelo fato de que eles seriam peças imprescindíveis de um
agenciamento coletivo de enunciação

de uma fala coletiva de atribuição de sentido às virtuais comunidades políticas que se


configuram nas dinâmicas sociais das camadas empobrecidas da sociedade brasileira

justamente por força das circunstâncias de sua marginalização

O que é fato, é que essa formas estéticas em geral, e o rap em particular, consistem em
um dos principais canais de publicização da voz dos setores marginalizados

em outras palavras, a estética do rap circunscreve um espaço de enunciação da fala


daqueles que foram sistematicamente silenciados

melhor dizendo, daqueles que foram sistematicamente banidos dos espaços legitimados
de elocução
22

***

Bom, se esse aspecto por si só já constitui um evento político, cabe ainda especificar a
politicidade específica de alguns aspectos intrínsecos da estética do rap

para encaminhar essa discussão eu vou ler um trecho de O homem na estrada do


Racionais MC`s:

Um mano meu tava ganhando um dinheiro,/tinha comprado um carro/ até rolex


tinha!/Foi fuzilado a queima roupa no colégio, /abastecendo a
playboyzada de farinha,/Ficou famoso, virou notícia, /rendeu dinheiro aos
jornais, cartaz à policia/Vinte anos de idade, alcançou os primeiros
lugares... /superstar do notícias populares!/
Uma semana depois chegou o
crack, /gente rica por trás, diretoria./Aqui, periferia, miséria de sobra./Um
salário por dia garante a mão-de-obra./A clientela tem grana e compra bem,
/tudo em casa, costa quente de sócio./A playboyzada muito louca até os
ossos!/vender droga por aqui, grande negócio (BROWN, 1994).

Um primeiro aspecto a observar é que a letra suspende as chaves de leitura usualmente


empregadas na figuração das periferias

aquela ideia de um mundo à parte definido pela ausência dos traços que definem o
“centro”

e a letra faz isso na medida em que estabelece correspondências e interdependências


entre essas esferas supostamente apartadas e contrárias

quer dizer, a miséria de sobra é a contrapartida do privilégio de poucos,

ambos, miséria e privilégio, explicitam as condições sociais que permitem que a


playboyzada seja abastecida de farinha.

a droga atravessa as classes


23

e o mercado das drogas corresponde ao mundo formal-legal não só na disparidade de


renda que gera um salário por dia

como também no aspecto organizacional, com gente fina por trás, diretoria e costa
quente de sócio

o que remete à ocupação das posições mais elevadas no mercado de drogas por setores
sociais externos à periferia

Entretanto, a nota irônica, vender droga por aqui, grande negócio, deixa claro a partilha
dos ganhos e dos riscos:

não são os “playboys” ou os sócios costa quente que rendem dinheiro aos jornais ou
cartaz à polícia,

tampouco são eles que aparecem como superstar do notícias populares.

Dá pra ver então que os versos estabelecem um circuito de interdependência e conflito


entre o “central” e o “periférico”,

tal como os rolex e carrões que circulam tanto pelas ruas dos bairros privilegiados como
pela favela

os versos traçam um circuito entre a pobreza e o dinheiro de sobra, entre legal e o ilegal

esse trânsito dos versos equivalem ao ato poético de implodir o discurso acusatório

o discurso que territorializa o fenômeno social global do narcotráfico no espaço


circunscrito das periferias urbanas,

e ao fazer isso os versos implodem também a suposta copertinência entre os grupos e os


lugares, entre a civilidade e a incivilidade, enfim, entre a legitimidade e a ilegitimidade.
24

Portanto, pode-se dizer que O homem na estrada descontrói e ressignifica a experiência


do estigma,

na mesma medida em que confronta as figurações hegemônicas sobre a periferia no


espaço público

Portanto, O homem na estrada apresenta ao menos dois vetores que se oferecem à


sondagem da potência política da estética do rap:

ressignificação e confronto, isto é, uma linguagem fortemente calcada em


procedimentos de (re)apropriação e recombinação de sentidos

e que revela uma incondicional disposição ao conflito.

***

Bom, um aspecto privilegiado da estética do rap pra discutir esses dois vetores, a
ressignificação e o conflito

está situado naquilo que podemos chamar de uma estética do sampler

o rap pode ser pensado como uma estética do sampler

e sampler aqui é um conceito mais estendido que sua mera definição enquanto
dispositivo tecnológico

ou enquanto o resultado musical decorrente do emprego desse dispositivo

Pra gente avaliar a dimensão política do sampler

é necessário que a gente observe que o processo de urbanização brasileira implicou um


intenso processo de espoliação das camadas pobres

lúcio kowarick discute bem isso no livro a espoliação urbana


25

bem longe de ser uma urbanização desordenada como se costuma afirmar

a urbanização no Brasil apresenta um princípio de ordenamento bem evidente e muito


recorrente

esse princípio é a conexão entre poder público, especulação urbana e periferização

ou seja, a expulsão dos setores empobrecidos das áreas centrais das cidades

o resultado é que os pobres foram sistematicamente empurrados para as franjas da


cidade

e, em geral, os bairros periféricos que nasceram daí foram construídos com base na
autoconstrução:

com base nos mutirões de moradores que se reuniam pra erguer suas casas

embora essa tenho sido a estratégia de realização do projeto familiar de obtenção da


casa própria

do ponto de vista de uma economia política da cidade

a auto construção acabou desonerando o capital privado e o estado dos gastos ligados à
reprodução da força de trabalho

pelo menos no que diz respeito a necessidade de prover a moradia como parte do
processo de reprodução da força de trabalho

então, essa população era duplamente espoliada:

espoliados em seu tempo de trabalho pela extração de mais-valia


26

os setores pobres eram também espoliados pelo empenho de seu tempo livre na auto
construção

quer dizer, no provimento da necessidade de moradia

que é parte do processo de reprodução de sua própria força de trabalho

Por outro lado, essa espoliação não é só material

ela é também, e talvez sobretudo, discursiva

na medida em que sobre esses bairros e populações vão recair todos os estereótipos e
estigmas que já apontamos anteriormente

esses sujeitos serão não só definidos como um desvio à norma

como serão também considerados como portadores de práticas e discursos


inapropriados, grosseiros, equivocados

assim, a espoliação urbana é também uma espoliação discursiva

Desse ponto de vista, o sampler, o ato de se apropriar de discursos e signos que circulam
pela cidade

e, ao mesmo tempo, reinserir esses discursos e signos no contexto de um novo discurso

quer dizer, recombiná-los e ressignificá-los no discurso do rap

desse ponto vista, esse gesto poético do sampler

resulta não só num reapossamento discursivo como também num reapossamento da


articulação dos sentidos que figuram as periferias e seus moradores
27

esse gesto restitui como sujeitos do discurso aqueles que foram destituídos da
legitimidade de suas falas

portanto, o sampler é mais que dispositivo técnico

é um reapossamento discursivo que a um tempo é estético e também político

daí talvez a recorrência da expressão “é tudo nosso” – como dizem os rappers

é um ato que desautoriza e confronta os discursos que figuram negativamente as


periferias

é um ato que contesta o monopólio e o sentido dessas figurações

Portanto, reapropriação, recombinação e ressignificação, numa palavra, sampler:

Eis aí uma das mais potentes armas políticas do RAP

como também um de seus princípios estéticos centrais:

princípio estético que aparece no plano morfológico de construção das


palavras:“fudidamente”, “afrodinamicamente”, “avonts”, “playboyzada”, são alguns
exemplos

como também no plano sintático da composição das músicas:

como baladas românticas que servem base pra narrativas truculentas

como ruídos de tiro para figurar o desenlace abrupto e truculento de algumas narrativas

como a locução, em estilo reportagem de jornal, lida em programa policial de rádio, ou


televisivo

de notícias sobre homicídios


28

portanto, muito mais que artefato tecnológico

o sampler consiste em um dispositivo político de combate à expropriação discursiva

como também de dispositivo de subversão das fronteiras que partilham o audível e o


inaudível, a música e o ruído, a gramática e o dialeto, o centro e a periferia.

então por aí, vemos como ressignificação e conflito andam juntos no rap

Mas é necessário que se observe também, que a primeira dissensão que rap coloca é em
relação à própria tradição da canção

historicamente, a formação da canção é baseada no predomínio da melodia sobre o


ritmo

o que corresponde a um predomínio da contemplação auditiva do espírito sobre a


capacidade motora do corpo

trata-se portanto da binaridade cartesiana do predomínio da alma sobre o corpo

o desdobramento social dessa binaridade seria o predomínio do intelectual sobre o


manual

que corresponde ao desdobramento político do predomínio dos governantes sobre os


governados

o rap se rebela contra essa estrutura a um tempo estética e política

o canto declamatórios dos MC´s sobre as bases rítmicas sampleadas pelos DJ´s

implicam não só uma potencial neutralização do elemento melódico como um


predomínio marcante do elemento rítmico
29

é toda uma nova subjetivação estética e política que o rap coloca

já que a passividade contemplativa correspondente ao predomínio melódico

é tensionada pela capacidade ativa de mobilização do corpo correspondente ao


predomínio rítmico

mas não se trata aí de uma estética acéfala como diriam os críticos ao rap

pelo contrário, trata-se de um novo horizonte cognitivo baseado no corpo, na sua


capacidade de mobilização e de interação com outros corpos

a contemplação passiva e solitária da estética romântica, é substituída pela mobilização


coletiva da estética do rap

são os bailes, são as rodas de improviso

é toda uma sociabilidade que promove as alianças entre manos e quebaradas, portanto

é toda uma comunidade estética mas também política que o rap mobiliza e inscreve

É nesse sentido também, que o rap comporta uma tradição dissidente

não só os rappers evocam uma tradição: mano Brow cita o samba, cita Tim Maia e
Jorge Ben

cita a black music americana, as ideias de Malcon X e de Martin Lutter King

como também o próprio princípio composicional da estética do sampler

implica a permanente retomada e atualização de uma linha de tradição

uma tradição dissidente não só porque busca suas referências nos universos minoritários
tanto do ponto de vista racial quanto musical
30

mas também porque comporta uma história da cidade e dos marginalizados que
confronta e ressignifica as narrativas hegemônicas sobre os pobres e as periferias

porque se fundamenta na contestação da legitimidade do monopólio e do sentido dessas


narrativas

E é interessante notar que dissenção se faz não só em relação ao estados e aos playboys

quer dizer, não só em relação à institucionalidade política e as classes privilegiadas pela


ordem urbana e social

como também em relação ao próprio mundo do crime

ao contrário do que a agressividade estética do rap poderia fazer supor

não há necessariamente celebração do crime

Talvez o exemplo mais eloquente dessa dupla dissenção do rap simultaneamente em


relação ao estado e ao crime

portanto, uma dissenção simultaneamente em relação à lei e à ilegalidade

talvez esses exemplo seja a equalização discursiva que o rap opera entre as palavras e as
armas

ou seja, entre o signo liberal-iluminista da democracia – as palavras

e o signo tanto do conflito e da luta violenta por transformação quanto do crime – as


armas

há inúmeras passagens em que essa equalização aparece, por exemplo


31

“ninguém quer ouvir a nossa voz/cheia de razões calibres em punho” – pânico na zona
sul – 1990

“a informação é uma grande arma/mais poderosa que qualquer PT carregada” – negro


limitado – 1992

“não quero te matar, somente te alertar /apenas uma frase pode te derrubar./uma frase
feita com sabedoria, /scrash, batidas e rimas” – quem procura acha – 2009

Essa dupla dissenção diz muito das dinâmicas sociais processadas na estética do rap

diz muito também do sentido da politicidade contida nessa estética

por um lado, o rap se constitui a partir da falência histórica do projeto de integração


social e de expansão da cidadania via assalariamento

por outro, o rap se constitui também do esvaziamento da politicidade da relação


sociedade civil e Estado

politicidade que como a gente apontou

foi em grande parte convertida na gestão de “políticas de segurança”

quer dizer, sobrevivendo tanto à violência privada do “mundo do crime” quanto à


violência pública dos aparelhos de Estado

a gramática política do RAP não fala a língua da ordem institucional-legal, dos


movimentos, partidos, eleições, órgãos estatais

mas também tampouco fala a lingua da sociabilidade violenta em processo de


intensificação, ou a língua dos desdobramentos dessa sociabilidade em crime

ao contrário, o rap se apropria de ambas, dessas duas dinâmicas


32

sem que ele coincida totalmente com nenhuma delas

então podemos dizer que a estética do rap é composta de conflito político e


agressividade

que a ressignificação da política pelo crime – palavras convertidas em armas –


e do crime pela política – armas convertidas em palavras

deixa entrever o fio da navalha em que se equilibra o potencial político do rap

A esfera pública evocada pelo RAP, portanto,

não rende tributo à estatização da política, não aposta em setores “bem intencionados”
da sociedade civil,

tampouco derrapa na mitificação messiânico-vingadora do crime

Seja qual for a politicidade que aí se principia,

não há dúvida de que o potencial de conflito implicado nos arroubos estéticos de


agressividade

de que a disposição ao dissenso frente à ordem comum das coisas e dos signos,

colocam um horizonte em que se impõe a (re)politização do discurso estético e a


ressignificação da ação política

parece ser essa a implicação mais forte do rap

parece ser essa a tarefa política que ele coloca

Para terminar, eu gostaria de observar que

se o rap é uma estética que tangencia tanto as fronteiras do estado como as do crime
33

isso talvez se deva ao fato de que ele mesmo constitua uma fronteira

talvez ele mesmo corresponda a uma experiência social fronteiriça

quer dizer, o rap é uma matriz discursiva que atribui sentido á experiência social de toda
uma geração de jovens da periferia

a experiência da e do vida loka

quer dizer, a experiência de sobreviver na adversidade dos conflitos entre as esferas do


formal e do informal, do lícito e do ilícito, do legal e da ilegalidade

e sem dúvida, a experiência do combate aos estereótipos e estigmas que resulta desses
conflitos

Os contornos desse sentido que o rap atribuí a essa experiência da vida loka e do vida
loka

sem dúvida ainda é algo ainda a ser explorado, pesquisado

certamente é um sentido que ressiginifica e instaura um dissenso em relação aos


estigmas imputados a essa geração

e nessa medida, é um sentido que reconfigura os parâmetros de narratividade da cidade

de narratividade desses grupos

o que, por si só, já é uma precondição para a luta contra toda e qualquer subalternidade

Nessa mesma linha, se a gente considerar a hipótese analítica de que toda lógica de
composição estética corresponde a uma lógica de composição do social
34

quer dizer, de que a sintaxe da forma estética corresponde a uma certa sintaxe das
relações sociais, corresponde a certas modalidades de vínculos entre os sujeitos

caberia perguntar então, qual figuração de comunidade, qual regime de sociabilidade

o rap traz contido nesse processo de enunciação do sentido da experiência dos jovens da
periferia?

Se a gente considerar que o sampler implica uma lógica de composição estética calcada
na reapropriação e recombinação permanente dos signos

então a gente pode dizer que estamos diante de um princípio composicional fortemente
coletivizante

em que a composição estética implica um tecido social tramado por relações


horizontalizadas entre iguais

uma horizontalidade por onde flui as trocas e compartilhamentos concretizados no


sampler

portanto, essa experiência coletiva significada pelo rap se apresenta como uma forma de
sociabilidade fortemente avessa a hierarquizações internas

Sendo assim, as interações tecidas na lógica composicional do rap

parecem inscrever uma composição do social dificilmente redutível à paxis política


hegemônica

e fortemente dissensual frente à lógica unitária, centralista e hierarquizante da


institucionalidade de partidos, de sindicatos e do Estado.
35

algo da ordem de uma máquina de guerra hip hop1, em que as performances estéticas e
as interações sociais

processam-se mediante alianças entre “trutas” e “quebradas” as mais diversas

mas que compartilham uma mesma experiência coletiva de combate ao estigma e à


precariedade social.

um regime de interações pautado, portanto, pelos pressupostos da igualdade, do respeito


e da humildade – pela “parceria”, “pelo correr junto” como diriam os rappers

A partir desses dois traços identificáveis no sentido que o rap atribui à experiência da
vida loka:

os novos parâmetros de narratividade da cidade

mais especificamente, da história dos grupos marginalizados na história da cidade

e a circunscrição de uma experiência compartilhada fortemente pautada em valores


igualitários

dá pra gente compreender a penetração e adesão que hip-hop em geral e o rap em


particular possui junto ás novas gerações das periferias

da pra gente também se perguntar, colocar uma reflexão

e com ela eu encerro minha fala

Nesta (re)invenção de um outro pertencimento à cidade

1
Adaptamos à nossa discussão o conceito de máquina de guerra nômade, empregado por Deleuze e
Guattari (1997) em referência às dinâmicas minoritárias de composição do espaço social e geográfico,
caracterizada pelos autores, entre outros aspectos, pela heterogeneidade e distribuição descentrada
dos elementos que compõem uma coletividade, pela multiplicidade e exterioridade, dimensões que
confrontam e desafiam a homogeneidade, a hierarquia e a interioridade unitária do aparelho de Estado.
36

nesse esboço de um novo traçado para a vida coletiva

não residiria um dos sentidos – fortes – dessa tão falada democracia?

Quer dizer, não haveria um aí uma tradição de reinvenção da política, fortemente


democrática?

PARCERIA

de que a sintaxe estética de que toda forma estética inscreve modalidades de vínculos
entre sujeitos

PAREI AQUAI TERMINAR COM MINHA CONCLUSÃO/ E/OU PARTE PRA


TERMINAR ASSINALADA ABAIXO? COMPOSIÇÃO DO SOCIAL
ASSINALADO ABAIXO

Admitindo que, ao menos nesse sentido estrito, talvez não seja exagero afirmar que o
RAP guarda a potência de amarrar o vínculo entre a constituição do sujeito de
significação estética e a do sujeito de significação política da experiência, resta,
entretanto, esboçar o sentido desta virtual politicidade.

Já da pra ver que daí que a abordagem que a gente tem proposto contrasta com Kehl e
caldeira

ISSO PODE IR PRO FINAL ARTICULANDO COM OFERTA DE EXPERIENCIA


VIVIDA GABS P. 51 OU MINHA CONSIDERAÇÃO SOBRE SADERConvido o
leitor a reconhecer aí uma outra tradição, tecida na multiplicidade de falas dissensuais a
37

respeito da história urbana brasileira. Uma contranarrativa da experiência desses grupos,


à medida em que desconstrói o discurso normativo acusatório e constrói interpretações
específica de valores como “paz”, “justiça”, “liberdade” e “igualdade” – peças centrais à
tradição do pensamento político democrático.

Não tem a não ser no inicio o estado como referencia

Anos 70-80 ação política dos movimentos de trabalhadores

Anos 90-2000 “violência urbana”

b) Figurações do rap (passagem de objeto a sujeito):

Política e violência (preenche lacuna na biblio acadêmica, considerações resumo gabs)

c) discussão inicial da introdução coletânea

d) visões sobre o próprio rap (kell e caldeira no artigo henrique) AINDA NÃO
COLOQUEI, COLOQUEI TODOS OS ANTERIORES

e) discussão inicial meu artigo

f) análises do meu artigo

g) sampler e criação de tradição (antecedentes na musica/gêneros; antecedentes duelos


– ritualização da guerra/litígio)

i) forma dissensual de compor o social. Sampler, troca/compartilhamento (artigo


débora) horizontalidade e liderança COLOCAR

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