Você está na página 1de 2

Polêmicas teológicas entre cristãos e muçulmanos sob os Abássidas

No Oriente Médio, muito antes das famosas Disputas de Paris, Barcelona e Tortosa,
sécs. XIII ao XV, quando, na Europa Ocidental, judeus e cristãos se antagonizavam em
discussões ordenadas1 sobre temas teológicos, cristãos e muçulmanos no séc. VIII,
organizaram grandes debates teológicos de caráter apologéticos. Muitos desses
ocorriam, à semelhança daqueles judaico-cristãos, em lugares públicos com grande
aglomeração de fiéis de ambos os credos. Outros ocorreram através de correspondência
epistolar (polemica escrita). Durante o Califado Abássida (750-1258) o muçulmano
ʿAbd Allāh al-Hāšimī fez uma polemica escrita na qual questionou os principais dogmas
cristãos, por sua vez o cristão o cristão siro-oriental ʿAbd al-Masīḥ al-Kindī responde
com uma bem fundamentada epistola. Aqui também, referente a argumentação de al-
Hāšimī contra a Santíssima Trindade e a divindade de Jesus, incluímos as respostas do
patriarca da Igreja do Oriente Timóteo o Grande, Ṭimāṯaos Qadmāyā (780 a 823) à
mesma objeção islâmica feita pelo Califa Maomé al-Mahdi, Muhammad ibn Mansur al-
Mahdi (775 a 785). Em sua carta al-Hāšimī faz acusações infundadas aos cristãos:
“Renuncia, maldito, a infidelidade e o prejuízo, a infidelidade e ao tormento, aquela tua
frase confusa, que eu e você conhecemos muito bem, relativa ao Pai, ao Filho e ao
Espírito Santo e a adoração da Cruz que te traz danos e não te beneficia [...] Constatei
que Deus -Bendito seja o Excelso- disse: Em verdade Deus não suporta que outros
venham associar-se a Ele: todo o resto Ele perdoa quem quer” 2 e ainda; “E são ímpios
aqueles que dizem: ‘Deus é o terceiro de três’. Não tem outro deus que um só Deus, e se
não cessam de dizer semelhantes coisas um castigo cruel será destinado àqueles que
assim blasfemam”3. A estas objeções, responde al-Kindī demonstrando a unidade de
Deus na Trindade: “Venhamos à sua afirmação ‘Renuncia a infidelidade e ao retrocesso
em que se encontra a invocação do Pai, do Filho e do Espírito Santo e a adoração da
cruz, nociva e sem nenhum beneficio (Hb 5, 1). Parece, além disso, que considera tudo
aquilo que não entende –Deus te faça melhor- “confusão”, segundo o provérbio “o
homem é inimigo daquilo que desconhece” – Deus me livre disso. A questão, porém,
não é como crede, não deveis pronunciar uma sentença e confirma-la enquanto seu
adversário é ausente. Isso que você chama de “confusão”, tem a audácia de pronunciar
uma semelhante afirmação – é o mistério de Deus (Hb 5, 1); os anjos íntimos, os
profetas e os enviados procuram conhece-Lo e querem compreende-Lo, desde a criação
operada pelas mãos de Deus, o nome Seu seja Bendito e Excelso. Mas pouquíssimo foi
concedido e através de alusões veladas haviam adquirido uma consciência mínima até
que veio o Filho bem amado, o senhor, descido do seio do Pai; ele revelou esse mistério
aos seus amigos e àqueles que o obedeceram. Ele inspirou à eles este conhecimento,
lhes entregou integralmente explicado, interpretado e esclarecido. Disse-lhes
claramente: ‘Ide pois ensinai aos homens o conhecimento perfeito no nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo’4. Os apóstolos receberam este mistério da boca de Jesus e o
1
Gottheil, Richard & Kohler, Kaufmann. Diputations. In Singer, Isidore & Adler, Cyrus (Eds). The Jewish
Encyclopedia. New York: Macmillan Company, 1906; pp. 1247.,
2
Al-Kindi. Apologia del Cristianesimo. Editoriale Jaca Book, 1998; p. 69. Cf. Corão IV, 48.
3
Id.
4
Cf. Mt 28, 18-20.
transmitiram a nós que cremos em Cristo; nós havemos recebido da parte deles como
milagres extraordinários. Nós Lhe seremos fiéis até o fim do mundo” 5. A resposta do
Patriarca Timóteo a esta mesma questão foi a seguinte: “Esses nomes nos indicam as
hipóstases de um único Deus. Da mesma forma que o ‘Comandante dos Crentes’, com
sua palavra e seu espírito, é um e não três califas, sem que sua palavra ou seu espírito se
separem de você, então Deus é, com sua Palavra e seu Espírito, um Deus, não três
deuses; desde eles não estão separados d’Ele, nem a sua Palavra nem o seu Espírito. E
assim o sol, com seus raios e seu calor, é um sol, não três sóis” 6. Outro tema áspero no
diálogo com o Islã, desde seus primórdios, foi a divindade de Jesus, assim al-Hāšimī
escreve: “Certo são ímpios aqueles que dizem: ‘o Cristo, filho de Maria, é Deus’
enquanto o Cristo disse: ‘Ó filhos de Israel! Adorais Deus, meu e vosso Senhor’. É certo
que quem da a Deus companheiros, Deus lhes fecha as portas do paraíso: a sua morada
é o fogo, e os injustos não serão acolhidos” 7. A esta objeção al-Kindī: demonstra a
unidade entre a humanidade e divindade de Cristo: “Deus falou por meio de inspirações
ordenando de informar os povos de quando havia decidido na Sua presciência: Ele em
Seu perfeito amor em relação aos homens enviou Seu Filho amado, aquele que é Seu
Verbo criador, para tomar um corpo humano e transformar-se em homem. A Ele é
devido a glória, a prostração, a obediência da parte dos anjos, dos homens e dos
demônios bem como a sua submissão pela majestade divina unida a Ele pela divindade
que o habita”8. Sobre este tema o Patriarca Timóteo responde: “Por um lado, como
Palavra, Ele nasceu do Pai, de um nascimento eterno, fora do tempo e sem separação
[do Pai]. Por outro lado, no que diz respeito à sua humanidade, ele nasceu da Virgem
Maria, na época, precisa e bem conhecida, sem relações sexuais, nem violação de sua
virgindade”9. De fato o período Abássida foi bastante liberal para os cristãos e,
diferentemente do que aconteceu no Medievo entre cristãos e judeus cujas “disputas”
geraram graves incidentes, estas “disputas” islamo-cristãs possibilitaram um diálogo
entre as duas religiões e os exemplos apologéticos permitiram, de certa forma, que os
muçulmanos conhecessem melhor a doutrina cristã, já então amplamente fundamentada,
e assim manifestassem o consequente respeito.

5
Al-Kindi. Op. cit. pp. 221-2.
6
Paša, Željko (Org.). Patrologia Siriaca II. Dalla chiusura della Scuola di Edessa (489) fino al período dei
Mongoli (XIVº sec.). Antologia dei Testi. Roma: Pontificio Istituto Orientale, 2020; p. 55.
7
Al Kind. Op.cit. p. 69. Cf. Alcorão, sura IV, 48.
8
Ibid. 232.
9
Paša, Željko. Op. cit. p. 54.

Você também pode gostar