Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Trabalho Benzedeiras MT PDF
Trabalho Benzedeiras MT PDF
2006
Resumo
Resumo: O ‘benzimento’ é forma antiga no tratamento de várias doenças, utilizada na Europa desde a Idade Média. No Brasil,
os benzedores surgiram a partir do século XVII. Interpretações dos conhecimentos, uso tradicional dos recursos
vegetais e manejo realizado por benzedores, raizeiros e parteiras são fonte de pesquisa nos estudos etnobotânicos.
Benzedores indicam plantas para efeito de cura ou como amuletos protetores, com a presença destas formas de uso
da flora na cultura popular. Este estudo foi realizado em Juruena, Mato Grosso, com aplicação de técnicas de observação
participante, entrevistas semi-estruturadas (questões abertas/fechadas) gravadas e amostras intencionais e a realizção
de coleta de material botânico, depositado no Herbário da Universidade Federal do Mato Grosso (UFMT). Teve o
objetivo de compreender a importância das benzedeiras, identificar etnobotanicamente as plantas utilizadas, formas de
prescrição e manipulação. Foram entrevistadas quatro benzedeiras no período de setembro de 2002 a novembro de
2003, as quais demonstraram um conhecimento etnobotânico expressivo. Estas benzem, preparam e receitam chás,
garrafadas, banhos e ungüentos. As enfermidades tratadas foram agrupadas em duas categorias: doenças físicas (dor-
de-dente, dor-de-barriga, verminoses, cobreiro, arca-caída, rendidura, erisipela etc) e doenças espirituais (quebranto,
mau-olhado, pessoas carregadas, encosto). Foram relatadas 87 etnoespécies, distribuídas em 31 famílias botânicas,
dentre as quais se salientam erva-de-Santa-Maria (Chenopodium ambrosioides L.), chapéu-de-couro (Echinodorus
macrophyllus MIq.), quina-do-mato (Strychnos sp St.Hil.), ipê-roxo (Tabebuia heptaphylla (Vell.) Toledo), arruda (Ruta
graveolens L.), guiné (Petiveria alliacea L.) e comigo-ninguém-pode (Dieffenbachia picta L). A medicina popular
praticada pelas benzedeiras vem ao encontro dos anseios das pessoas que buscam alívio para seus males, com valores
e herança cultural inseridos nesta prática de benzimento, que se mantém viva em Juruena.
Palavras-chave
alavras-chave: Etnobotânica. Benzedeiras. Recursos vegetais. Mato Grosso.
I
Universidade do Estado de Mato Grosso. Campus de Tangará da Serra. Professora. Tangará da Serra, Mato Grosso, Brasil
(marciamaciel.tl@bol.com.br).
II
Universidade Federal de Mato Grosso. Instituto de Biociências. Departamento de Botânica e Ecologia. Cuiabá, Mato Grosso, Brasil
(guarim@ufmt.br).
1
Trabalho apresentado no 54º Congresso Nacional de Botânica, Belém, Pará.
61
Um olhar sobre as benzedeiras de Juruena (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar
Abstract: Quack benediction has been used in Europe since the middle ages to treat lots of illness. In Brazil the bezendores
appeared during the XVII century and interpretation of their knowledge, traditional use and management of plant
resources are commonly addressed in ethnobotanical studies. Braziliam bezendores prescribe plants that can be used
as medicine or as an amulet for personal protection. This use of plant material are present in the national popular
culture. The present study was carried out at the municipality of Juruena, in Mato Grosso state, and it aimed to
understand the importance of benzedeiras, to identify the plants used by them and how they are prescribed and
manipulated. To reach the objectives we used techniques of participant-observation, semi-structured interviews and
intentional samples. Additionally botanical material were collected and is deposited in the UFMT Herbarium. Four
benzedeiras were interviewed between Septembrer/2002 and November of 2003 and they revealed an expressive
botanical knowledge relating to quack benediction. They can benzer, prepare and prescribe teas, bottle preparative,
medicinal baths and unguents. The illness cited by the benzedeiras was grouped as physical (for example, toothache,
bellyache), and spiritual. A total of 87 ethno-species was mentioned arranged in 31 botanical families and between
them it is important to pointing out erva-de-Santa-Maria (Chenopodium ambrosioides L.), chapéu-de-couro (Echinodorus
macrophyllus Miq.), quina-do-mato (Strychnos sp.), ipê-roxo (Tabebuia heptaphylla (Vell.) Toledo), arruda (Ruta graveolens
L.), guiné (Petiveria alliacea L.), comigo-ninguém-pode (Dieffenbachia picta L.). The popular medicine practiced by
bezendeiras meets the necessities of people that is looking for the cure for its own problems. Values and cultural
heritage are inserted in the “benzimento” and this culture is alive at Juruena.
Keywods
eywods: Ethnobotany. Benzedeiras. Plant resources. Mato Grosso.
62
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 61-77, set-dez. 2006
63
Um olhar sobre as benzedeiras de Juruena (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar
através dos chás, banhos, ungüentos, tinturas nas rezas, segredos dos vários usos acerca das plantas,
caseiras ou nas benzeções. No Brasil é comum tanto para fins medicinais na busca da cura de doenças
a troca de receitas que envolvem plantas na cura do corpo, como para ‘banhos’ visando à cura de
de enfermidades. Geralmente tais fórmulas ‘doenças da alma’. Ressalta-se, aqui, que corpo e
foram elaboradas por pessoas mais idosas que alma são ressignificados em universo plural, holístico,
experimentaram, testaram e aprovaram estas receitas. cósmico.
Estas pessoas guardam consigo os segredos da cura Assim, o presente estudo realizado no município de
através de suas ‘mezinhas’ preparados medicinais já Juruena, Mato Grosso, tem como objetivo
discutidos por Carneiro (1994). São as avós, tias, compreender a importância das benzedeiras neste
comadres, benzedeiras e rezadores, xamãs, que município, identificar etnobotanicamente as plantas
mantêm esse milenar hábito de uso das plantas na utilizadas, formas de prescrição, manipulação e
medicina não oficial da cultura brasileira, e em muitas principais doenças tratadas pelas mesmas.
localidades é o único auxílio ‘médico’ existente,
especialmente em áreas onde centros de atendimento Caracterização do município de Juruena
médico são inexistentes ou muito distantes. A história da ocupação do território mato-grossense
A Etnobotânica, um campo interdisciplinar que pelo não-índio remonta ao século XVIII e está ligada
compreende estudos e interpretações dos à expansão territorial da colônia e ao extrativismo
conhecimentos como significado cultural, manejo e mineral. Desde então, a região vem chamando a
uso tradicional da flora, tem ligações com este atenção pela exuberância de sua natureza e por suas
universo de rezas e poções que envolvem plantas e riquezas naturais (NETO, 2003).
pessoas. Seu principal objeto é o estudo das Já no século XIX, a região que compõe o
sabedorias botânicas tradicionais, compreendendo município de Juruena foi muito movimentada por
o estudo das interpretações e conhecimento, o exploradores aventureiros e seringueiros. Com o
significado cultural, manejo e uso tradicional dos desenvolvimento da extração da borracha a partir
elementos da flora (BARRERA, 1983). de 1950, também os garimpeiros exploram os rios,
Atualmente, o estudo do manejo e tipos de uso dos em busca de ouro e diamantes. As principais
recursos vegetais, em particular os relacionados à atividades econômicas estão ligadas ao extrativismo
plantas medicinais, merecem atenção especial por vegetal e mineral, atividades pecuárias e agricultura
parte dos estudiosos que se preocupam com o de subsistência (FERREIRA, 2001).
potencial e riqueza dos recursos vegetais. O O município de Juruena foi desmembrado da área
conhecimento empírico sobre o tratamento de territorial do município de Aripuanã, criado pela Lei
diferentes males que perturbam o homem é nº 5.3113, de 4 de outubro de 1988, composto da
geralmente evidenciado em conversas com pessoas sede e do distrito de Cotriguaçu (posteriormente
idosas, que por vários motivos carregam consigo desmembrado e emancipado) e cujo número de
informações preciosas. O resgate dessas habitantes está em torno de 5.464 habitantes, dos quais
informações faz-se necessário, pois as mesmas 3.311 são eleitores (FERREIRA, 2001; IBGE, 2000).
servem de subsídios para o conhecimento do
Juruena está há 880 km de Cuiabá, com coordenadas
potencial da flora nacional (GUARIM NETO, 1987).
10º 19' 46'’ latitude sul 58º 29' 43'’ Oeste Gr, com
Neste contexto, inserem-se rezadores, erveiros, extensão territorial de 3.368,81 km2. Na localização
benzedores e benzedeiras, estes como especialistas, geográficaestá inserida na mesoregião norte Mato-
que mantêm através de suas fórmulas e simbolismo grossense, microrregião Aripuanã. Limita-se com os
64
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 61-77, set-dez. 2006
65
Um olhar sobre as benzedeiras de Juruena (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar
composição quanto em diversidade (PRANCE; comunidade, onde seres humanos de diferentes regiões
LOVEJOY, 1985 apud FERREIRA, 2001). passaram a habitar e a conviver com os recursos nativos
da floresta, incorporando, ainda, o conhecimento que
Devido à sua grande área de superfície, a Amazônia
trouxeram das suas regiões de origem.
ainda possui vastas extensões cobertas por florestas
úmidas, sendo, juntamente com o cerrado, o bioma Vale salientar que a literatura registra contribuições
que possui as maiores taxas de conversão de florestas eficientes quando se trata de seres humanos e ambiente
em uso agropecuário. Outras pressões sobre este e da relação que se estabelece a partir de atividades
ecossistema vêm se agravando ao longo do tempo, cotidianas exercitadas no âmbito da comunidade.
como as derrubadas praticadas pelas indústrias
Nesse sentido, buscando a partir da literatura
madeireiras, o garimpo do ouro, os megaprojetos
clássica, vale ressaltar as contribuições de Wagley
agropecuários que ocasionam incêndios, destruição
(1957), Galvão (1976), Cândido (1987), Furtado
da flora e fauna, erosão, contaminação dos cursos
(1987, 1993) e, mais recentemente, Diegues
d’ água por agrotóxicos, destruição de reservas etc.
(2000), Diegues e Moreira (2001), que mostram
É importante salientar, também, a mineração
a forma como, em ambientes diferenciados, se
industrial, onde a degradação da paisagem, poluição
manifesta uma relação entre pessoas e ambiente,
e impactos socioeconômicos são agravantes
propiciando formas diversificadas de entendimento
(FERREIRA, 2001).
e respeito. Ao mesmo tempo, é possível retirar
A Amazônia possui extensa área densa de floresta desses autores indicadores perfeitos para ações
tropical, alta diversidade de espécies animais e vegetais, que visem à conservação e à manutenção de
distribuídas numa diversidade de ecossistemas saberes, nos seus mais diferentes componentes:
terrestres e aquáticos, traduzindo em um enorme biológico, social, cultural e na dimensão humana
potencial econômico e de recursos genéticos que pode ser vislumbrada quando se adentra em
(REVILLA, 2001). uma comunidade.
Pasa (1999) afirma que a Amazônia teve e tem grande Em Juruena, este saber tradicional pode ser
importância no desenvolvimento e compreensão da desvelado através da prática de suas benzedeiras,
relação comunidade e meio ambiente, em especial as quais mesclam códigos, símbolos, crenças em
no que refere às estratégias de sobrevivência e uma atividade que mostra a aura que emana a partir
estrutura social. dos seus gestos e atitudes no momento mágico
das benzeções.
Nesse universo vegetacional, Juruena aparece como
um local onde a floresta – o verde – tem importante
papel no cotidiano de seus moradores, mesmo MÉTODOS E TÉCNICAS
daqueles que habitam a área urbana.
Em Juruena, a prática da benzeção é um atributo de A abordagem metodológica:
pessoas que têm respeito e aceitação da o caminho percorrido
comunidade. São pessoas, em geral, muito simples, ...Deve-se ter uma metodologia geradora de dados...
mas que carregam consigo uma aura que faz com (POSEY, 1987).
que sejam consideradas especiais, mesmo quando
não exercendo a atividade de benzer. Existem várias modalidades de técnicas de pesquisa
das falas, estas mais ou menos flexíveis ou abertas,
A busca pela cura através das rezas e benzeções opiniões, representações, idéias ou concepções dos
provavelmente estabelece um elo muito forte na informantes ou seres humanos pesquisados.
66
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 61-77, set-dez. 2006
Segundo Noda (2000), a abordagem etnoecológica Outras técnicas também foram utilizadas, como a
é instrumento de campo utilizado para investigar o observação participante, que, segundo Neto
conhecimento a respeito do uso que uma população (1994), se processa através do contato direto do
faz dos recursos naturais existentes. pesquisador com o fenômeno observado, visando
Para Posey (1977), o maior problema que qualquer a obtenção de maiores informações acerca da
investigador defronta ao lidar com outras culturas é realidade local e atendendo aos pressupostos de
impor suas próprias idéias e categorias culturais a Greenwood (1973), quando da descrição densa
seus informantes ou consultores culturais, como do fato observado. Becker (1993) complementa
descrença, desagrado e reprovação. Este autor ainda com a afirmação de que o observador participante
alerta para a sempre necessária observação da coleta dados através de sua participação na vida
qualidade e não da quantidade de dados e aponta cotidiana do grupo ou organização que estuda,
uma grande desvantagem dos pesquisadores em como feito neste estudo em Juruena.
campo, quando estes já trazem suas hipóteses
Segundo Thiollent (1994), em pesquisa convencional,
de pesquisas formuladas, em que conceitos
etnocêntricos podem estar inseridos. ao planejarem amostras de pessoas informantes, os
pesquisadores costumam recorrer às amostras
Seguindo o mesmo pensamento, Viertler (2002) intencionais. Estas amostras tratam de um pequeno
comenta que a técnica onde se usa o questionário é número de pessoas escolhidas intencionalmente
fechada aos dados êmicos que, por ser desenvolvida devido à sua função relevante em relação a um
pelo pesquisador no gabinete e não no campo, ‘dá
determinado tema, técnica também empregada
primazia’ aos dados éticos, ou seja, às idéias, hipótese
neste estudo, onde as benzedeiras constituíram as
e categoria do mundo cultural do pesquisador.
amostras intencionais.
A pesquisa em Etnobotânica baseia-se em dois
O contato com os informantes da comunidade de
pontos principais: a coleta de plantas e a coleta de
informações sobre o uso destas plantas. Quanto Juruena foi facilitado pelo Instituto Pró-Natura, o
mais detalhadas forem as informações, maiores as qual funcionou, em um primeiro momento, como
chances da pesquisa oferecer subsídios interessantes agente sensibilizador, apresentando a equipe aos
para avaliar a eficácia e a segurança do uso de informantes que desempenhavam diferentes
plantas para os diversos fins (AMOROZO, 1996). funções na comunidade. Tais informantes foram
Ainda, as coletas de informações etnobotânicas indicando outros e, assim, o que é denominado
baseiam-se em procedimentos de campo, comuns por Becker (1993) de “bola de neve”, ocorreu e
na pesquisa antropológica, como a observação as benzedeiras foram efetivamente localizadas entre
participante, o uso de formulários e entrevistas a população. Este tipo de amostragem facilita o
(anotadas ou gravadas). acesso de forma conveniente, onde se conhece
Partindo destes pressupostos, neste estudo aplicou- alguém que pode ser observado ou entrevistado e
se a técnica de entrevistas gravadas com auxílio de este indivíduo o apresenta aos outros, ou seja, será
questionário-guia, que foram organizadas de forma o seu fiador. Sendo o pesquisador conhecido, o
semi-estruturada com questões fechadas ou abertas. acesso e a confiabilidade dos demais estará facilitada.
Alguns tópicos foram fixados previamente, outros O autor ainda salienta que é prudente revelar seus
redefinidos in loco e anotações complementares propósitos de pesquisa, porque suas perguntas
ocorreram durante a permanência no local, com exigirão explicação e isto aumentará a confiabilidade
conseqüente registro em diário de campo. entre as partes.
67
Um olhar sobre as benzedeiras de Juruena (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar
68
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 61-77, set-dez. 2006
aliviar os mais diversos males daqueles que as tradicionais no Vale do rio Negro, no Amazonas.
procuram. As enfermidades tratadas foram agrupadas Em Juruena tal fato é compreendido quando se
em duas categorias: doenças físicas e doenças observada a intensa procura pelas benzedeiras, pois
espirituais (Tabela 1). mesmo quando ocorria uma entrevista, as
benzedeiras sempre interrompiam para atender
As benzedeiras de Juruena declararam não cobrar
aqueles que as procuravam.
pelas ‘benzições’ que realizam, apenas podem aceitar
pequenos presentes ofertados pelas pessoas que o Amorozo (1996, 1999) define doença como
fazem ‘de bom grado’, pois se cobrarem o evento que desestrutura a ordem cotidiana, trazendo
benzimento pode não ‘surtir efeito’, ou seja, não sempre consigo insegurança. Salienta que a benzição
funcionar. Dessa forma, o não cobrar está ligado ao serve para uma gama de doenças/sintomas cujas
‘dom’, que lhes for concedido ‘de graça’, deve, causas são reconhecidas como naturais e por
portanto, ser dado. Isto é salientado tanto pelas doenças/sintomas com causas não-naturais. Dentre
benzedeiras de Juruena quanto pelos rezadores de os males, a autora destaca, quebranto, arca-caída,
Bofete, conforme Cândido (1987), que dizem não dor-de-cabeça, ventre-virado, dor-de-ouvido, dor-
cobrar e também aceitar apenas alguns “mimos dados de-dente etc., sendo também estas enfermidades
de coração”. detectadas e tratadas pelas benzedeiras em Juruena
(Tabela 1). Nos relatos feitos pelas benzedeiras em
No depoimento de uma das benzedeiras de Juruena,
Juruena, a aplicação terapêutica das plantas, na cura
pode-se ter a sustentabilidade das afirmações acima
de vários tipos de doenças do corpo ou do espírito,
referidas:
é evidente e demonstra, assim, uma estreita ligação
... eu não cobro não, mas se quisé me dar alguma entre os seres humanos e as plantas nativas e exóticas.
coisinha de bom coração, eu pego. Cobrar não,
Jesus nunca cobrou nada, foi cura todo dia!
(Benzedeira, 45 anos) Tabela 1. Principais doenças tratadas e benzidas pelas benzedeiras
em Juruena, Mato Grosso, Brasil.
No entanto, é sabido que em várias regiões do país
Doenças/Benzimento Nº de citações
há pessoas que cobram pelos benzimentos e
consultas espirituais, o que pode ocasionar várias Animal doente 2
visões distorcidas a respeito deste ofício, como o Mau-olhado 4
charlatanismo. Engasgo 3
Dor-de-cabeça 4
Oliveira (1985) salienta que o ofício de benzedeira
Dor-nas-vistas 4
não se limita apenas ao ato de como curar, com o
Arca-caída 4
uso de símbolos religiosos, mas funcionam como
Quebranto 4
instrumento de intervenção no processo histórico-
social, mesmo que estas não sejam conscientes disto. Dor-de-dente 3
Concordando com a autora, acredita-se que além Dor-de-estômago 3
deste processo histórico-social, também as Vento virado 2
benzedeiras são verdadeiras ‘médicas’, pois em Verminose 4
muitas regiões distantes, onde os recursos médicos Erisipela 4
oficiais não alcançam, são elas as únicas opções de Dor-de-ouvido 3
tratamento e cura para várias enfermidades. Uma Espinhela-caída 3
discussão sobre este aspecto é apresentada por Rendidura 2
Santos et al. (2005), quando estudaram as medicinas Empachamento 3
69
Um olhar sobre as benzedeiras de Juruena (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar
Loyola (1984) também cita várias doenças tratadas (2002) descreve o uso de diversas plantas na
por especialistas religiosos, os benzedores e preparação de cerimônias espirituais, usadas sob a
rezadores da comunidade de Nova Iguaçu. Dentre forma de banhos, como a aroeira, alfavaca, alecrim
essas doenças, cita o cobreiro, dor-de-barriga, e angico. Estas plantas são também apontadas para
espinhela-caída, dor-de-ouvido, quebrante, ventre- os processos de cura do corpo e entram no preparo
virado, bronquite etc., que também fazem parte do de chás medicinais em Juruena, locus desta pesquisa.
universo da ‘benzeção’ em Juruena, como observado
Em Juruena foram relatadas 87 etnoespécies,
em trechos dos depoimentos colhidos:
distribuídas entre 30 famílias botânicas (Figura 2)
Vem muita gente benzê de quebrante, dor das vistas, total do qual, 57 espécies foram apontadas pelas
das bichas, dor de dente, vem é muito... benzedeiras como medicinais. As plantas são
(Benzedeira, 64 anos) utilizadas no tratamento de doenças como
Quebranto eu benzo fazendo cruz. (Benzedeira, verminoses, corrimento vaginal, gastrite, malária,
60 anos)
câncer, tosse, diarréia etc. Também possuem
Eu benzo de picada de cobra, de aranha, de tudo!
importância místico-cultural, protegendo as pessoas
(Benzedeira, 45 anos)
contra ‘mau-olhado’, sendo usadas em ‘banhos de
Garlet e Irgang (2001) observaram que algumas descarrego’ (Tabela 2). Santos e Guarim-Neto
plantas são apontadas pelas mulheres trabalhadoras (2002) citam 136 espécies, distribuídas em 71
rurais de Cruz Alta, Rio Grande do Sul, com poderes famílias botânicas, sendo as famílias Asteraceae,
sobrenaturais, que citam guiné para mau olhado e Caesalpiniaceae, Lamiaceae e Rutaceae as mais
manjerona e maçã contra coisas negativas. Ainda representativas entre as utilizadas pelas benzedeiras
dentro deste universo mágico-religioso, Günewald em Alta Floresta, Mato Grosso.
Famílias Botânicas
A – Anacardiaceae E – Aristolochiaceae I – Caesalpiniaceae N – Lamiacea R – Myrtaceae V – Verbenaceae
B – Annonaceae F – Asteraceae J – Chenopodiaceae O – Liliaceae S – Phytolaccaceae
C – Apiaceae G – Begoniaceae L – Cucurbitaceae P – Malvaceae T – Rosaceae
D – Araceae H – Bignoniaceae M – Euphorbiaceae Q – Mimosaceae U – Rutaceae
Figura 2. Principais famílias utilizadas na etnomedicina das benzedeiras de Juruena, Mato Grosso, Brasil.
70
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 61-77, set-dez. 2006
Tabela 2. Universo do conhecimento botânico das benzedeiras de Juruena, Mato Grosso, Brasil; plantas usadas para curar.
TÁXONS ETNOESPÉCIES FORMA DE USO ETNOINDICAÇÃO
Acanthaceae
Justicia pectoralis Jacq. novalgina/anador chá dor-de-cabeça
Alismataceae
Echinodorus macrophyllus Miq. chapéu de couro chá diurética
Anacardiaceae
Mangifera indica L. manga chá gripe
Spondia purpurea L. siriguela suco gripe
Annonaceae
Annona muricata L. graviola chá emagrecer
Apiaceae
Petroselinum crispum L. salsa no óleo infecção no ouvido, hepatite
Pimpinella anisum L. erva-doce chá aumentar leite, dor de barriga (criança)
Aristolochiaceae
Aristolochia sp. cipó-mil-homem chá diurética, apencidite
Asteraceae
Brickelia brasiliensis (Spreng.) Robinson arnica chá próstata
Bidens pilosa L. picão chá, banho hepatite
Matricaria chamomilla L. camomila chá limpar intestino infantil
Tanacetum vulgare L. catinga-de-mulata macerado água machucadura
Vernonia polianthes L. caferana chá abortiva
Begoniaceae
Begonia aconitifolia A.DC. begônia banho-de-assento corrimento vaginal
Bignoniaceae
Jacaranda decurrens Cham. carobinha tintura depurativo
Tabebuia caraiba (Mart.) Bur. ipê-amarelo banho ferida/útero
Tabebuia hepthaphyla (Vell.) Toledo ipê-roxo xarope, lavagem pulmão, tosse, ferida no útero
Boraginaceae
Symphytum officinale L. confrei chá inflamação
Caricaceae
Carica papaia L. mamão suco, macerado/água limpar pele, verminoses, má digestão
Celastraceae
Maytenus ilicifolia Mart. cancerosa chá câncer
Chenopodiaceae
Chenopodium ambrosioides L. erva-de-Sta Maria macerado água/ leite verminose de criança, susto de criança
Cucurbitaceae
Sechium edule SW chuchu chá pressão alta
Momordica charantia L. melão-de-São Caetano chá verminose/criança
Cucumis sativus L. pepino suco pressão alta
Euphorbiaceae
Chamaesyce coecorum (Boiss) Croizat. ponta-lívia chá pontada, gripe, calmante
Manihot esculenta L. mandioca torrada desnutrição
Phyllanthus orbiculatus L. quebra-pedra chá pedra nos rins
71
Um olhar sobre as benzedeiras de Juruena (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar
Tabela 2. Continuação.
TÁXONS ETNOESPÉCIES FORMA DE USO ETNOINDICAÇÃO
Lamiaceae
Mentha piperita L. hortelã chá/macerado/ verminose/susto criança
óleo/leite
Mentha pulegium L. poejo chá acalmar criança
Ocimum basilicum L. alfavaca chá, emplastro gripe, pancada,verme
Rosmarium offcinale L. alecrim chá, garrafada no vinho quebranto criança,
recaída/mulher, infecção, coração
Salvia officinalis L. sálvia chá recaída mulher, gripe, infecção
Lauraceae
Cinamomum zeylannicum Breyn. canela garrafada vinho infecção interna
Liliaceae
Allium sativum L. alho xarope, ao natural tosse, verminose
Lytraceae
Cuphea carthagenensis (Jacq.) L. sete-sangrias chá diarréia de criança
Caesalpiniaceae
Bauhinia glabra Jacq. tripa-de-galinha chá hemorróida
Bauhinia sp. pata-de-vaca chá rins, estômago
Copaifera langsdorffii Desf. copaíba xarope, chá, lavagem ferida
Hymenaea stignocarpa Mart. jatobá xarope, lavagem tosse, ferida/útero
Mimosaceae
Stryphnodendron adstringens (Mart.) Coville barbatimão banho de assento, ferida/útero
garrafada
Fabaceae
Amburana cearensis (Fr. All.) A. C. Smith cerejeira chá gripe
Malvaceae
Gossypium herbaceum L. algodão chá infecção
Meliaceae
Cedrela odorata Linn. cedro chá malária
Myrtaceae
Eugenia uniflora L. pitanga chá diarréia, pressão baixa
Myrciaria cauliflora L. jaboticaba chá gripe, diarréia
Psidium guajava L. goiaba chá diarréia
Syzygium aromaticum L. cravo garrafada/vinho infecção
Phytoloccaceae
Petiveria alliacea L. guiné banho, emplastro reumatismo
Piperaceae
Piper nigrum L. pimenta natural depressão
Plantaginaceae
Plantago major L. tansagem garrafada/vinho, infecção útero, machucadura
macerada/ água
ou álcool
Rosaceae
Rosa sinensis L. rosa-branca banho, chá refrescar feridas, lavar as vistas
72
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 61-77, set-dez. 2006
Tabela 2. Continuação.
TÁXONS ETNOESPÉCIES FORMA DE USO ETNOINDICAÇÃO
Rutaceae
Ruta graveolens L. arruda garrafada, chá, recaída de mulher, lavar vistas, verminoses
macerada água
Sterculiaceae
Theobroma grandiflorum L. cupuaçu suco fortificante
Ve r b e n a c e a e
Lippia alba (Mill.) Blume erva-cidreira chá, suco calmante, fortificante
Melissa officinalis L. melissa garrafada vinho infecção, calmante
Zingiberaceae
Zingiber officinallis Rosc. gengibre chá gripe, garganta
Em Juruena pôde-se constatar que o uso medicinal Os recursos vegetais em Juruena, Mato Grosso,
das plantas é marcante, com o relato de diversas estão presentes no cotidiano de seus habitantes, sob
aplicações terapêuticas, como já salientado antes, as várias formas de uso no combate às enfermidades,
e um número expressivo de pessoas que procuram ou com importância místico religiosa. Tais plantas
pelas benzedeiras. Neste estudo isto não foi são usadas no preparo de remédios ‘espirituais’, como
quantificado, no entanto, através das observações os banhos de descarrego ou, ainda, como ‘amuleto
realizadas durante o período de permanência no protetor’ (Figura 3). Estas plantas compõem o
local, o ofício das entrevistadas era constante, universo místico marcante nas benzedeiras e também
mesmo aos finais de semana. Uma das benzedeiras para aqueles que as procuram. Em Juruena os banhos
disse não gostar de “benzer sábados e domingos”, de limpeza ou de descarrego são receitados pelas
mas benzia assim mesmo, pois não poderia deixar benzedeiras que indicam várias ervas, destacando-se
de fazer o bem. entre estas o alecrim (Rosmarinum officinale L.), arruda
(Ruta graveolens L.), guiné (Petiveria alliacea L.) e
O dom de benzer, herdado naturalmente desde
comigo-ninguém-pode (Dieffenbachia picta L.), o que
o nascimento, acarreta uma atividade diária a estas
pode ser observado no trecho do depoimento
mulheres, que muitas vezes têm o seu cotidiano
transcrito a seguir:
voltado essencialmente ao bem-fazer, ao ato
desprendido de curar e aliviar males do corpo e Prá descarrego eu mando ferver guiné, arruda, sálvia,
da alma. comigo-nínguem-pode (macho e fêmea), daí o
alecrim ou uma outra de cheiro, põe três pitadas de
As aplicações das plantas pelas benzedeiras de Juruena sal na água e joga na cabeça... (Benzedeira, 68 anos)
visam, principalmente, à cura de doenças ligadas ao
sistema digestivo e genito-urinário, como diarréias Vários estudos apontam a importância dos vegetais
e infecções. Santos e Guarim Neto (2002) salientam usados em rituais religiosos, como Camargo (1980),
também que as principais doenças tratadas pelas que destaca a presença das plantas na preparação de
benzedeiras de Alta Floresta, Mato Grosso, estão banhos, bebidas, remédios e rituais de iniciação.
relacionadas ao sistema digestivo seguido pelo genito- Guiné (Petiveria alliacea L.) é citada pela autora como
urinário e respiratório, concordando com os dados amuleto protetor contra espíritos obsessores e
aqui obtidos. limpeza espiritual de pessoas e lugares.
73
Um olhar sobre as benzedeiras de Juruena (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar
Figura 3. Plantas utilizadas em banhos de descarrego e proteção do lar. Figura 4. Partes das plantas utilizadas na etnomedicina das
benzedeiras de Juruena, Mato Grosso, Brasil.
No conceito de cosmovisão existe uma inter-relação alecrim e angico. Estas também são apontadas para
entre o mundo espiritual, natural e humano. A relação os processos de cura do corpo, entrando no preparo
do ser humano com o mundo espiritual origina de chás medicinais. Conforme relatos das
grande número de práticas religiosas. Haverkort e benzedeiras em Juruena, observou-se que plantas
Millar (1994) comentam esta importância das plantas como alfavaca, alecrim, arruda, guiné, entre outras
conservadas por serem sagradas. Salientam, ainda, ervas, figuram neste cenário, onde a espiritualidade
que é comum, em várias localidades, manter faz-se presente e se sobressai no universo mágico-
determinadas espécies vegetais próximo aos simbólico que aflora a partir daqueles que têm o
templos. Em Juruena é comum, não só nas casas dom da cura (material e espiritual).
das benzedeiras, mas também em outras residências,
A benzição é importante na medicina popular, pois os
encontrar um vaso na entrada com plantas, como
artifícios e estratégias deste saber empírico são criados
comigo-ninguém-pode, guiné ou arruda, e com a
e reformulados através desta prática. O conhecimento
função de proteção do lar, de afastar mau-olhado,
e uso das plantas, através dos banhos, chás, simpatias,
demonstrando o místico-simbólico-religioso das
massagens, escalda-pés, garrafadas e ungüentos, dentre
pessoas do local.
outras formas de uso, materializam-se nas fórmulas
Em geral, as partes dos vegetais utilizadas no preparo terapêuticas ministradas pelas benzedeiras de Juruena
de remédios são folhas, caule, casca do fruto e tronco, (Figura 5). O uso sob a forma de chá, seja por infusão
semente, flor, além da planta inteira (Figura 4). Santos ou fervura, principalmente quando a parte vegetativa
e Guarim-Neto (2003) verificaram que a parte utilizada é a casca, foi a mais citada entre as benzedeiras.
vegetativa mais utilizada medicinalmente pelas
Portugual (1987) comenta que o uso de folhas,
benzedeiras de Alta Floresta, Mato Grosso, é também
raízes, cascas e frutos é cercado de rituais mágicos,
a folha para a preparação de chás, macerações,
de guias, curandeiros, raizeiros e benzedores. O
garrafadas e banhos.
autor ainda relaciona tal utilidade das plantas a um
Günewald (2002) descreve o uso de diversas plantas passado da medicina oculta da Antiguidade,
na preparação de cerimônias espirituais, utilizadas dominada por sacerdotes e sacerdotisas, os quais
sob a forma de banhos, como a aroeira, alfavaca, receitavam chás e poções e rezavam. Pode-se dizer
74
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 61-77, set-dez. 2006
75
Um olhar sobre as benzedeiras de Juruena (Mato Grosso, Brasil) e as plantas usadas para benzer e curar
76
Bol. Mus. Para. Emílio Goeldi, Ciências Humanas, Belém, v. 1, n. 3, p. 61-77, set-dez. 2006
PASA, M. C.; SOARES, J. J.; GUARIM NETO, G. 2005. Estudo SANTOS, S. dos; GUARIM-NETO, G. 2003. Medicina tradicional
etnobotânico na comunidade de Conceição-Açu (alto da bacia do praticada por benzedeiras de Alta Floresta, Mato Grosso. In:
rio Aricá-Açu, MT, Brasil). Acta Botânica Brasílica, v. 19, n. 2, DESAFIOS da Botânica Brasileira no Novo Milênio, Sistematização
p. 195-207. e Conservação da Diversidade Vegetal. Belém-Pará: [s.n.].
PORTUGUAL, F. 1987. R ezas, folhas, chás de Rituais dos Congresso Nacional, 54. Reunião Amazônica, 3.
Orixás: folhas, sementes, frutos e raízes de uso litúrgico na Umbanda
Orixás THIOLLENT, M. 1994. Metodologia da PPesquisa-
esquisa- Ação. São
esquisa-Ação.
e no Candomblé com uso prático na medicina popular. São Paulo: Paulo: Cortez.
Ed. Tecnoprint. VIERTLER, B. R. 2002. Métodos antropológicos como ferramenta
POSEY, D. A. 1987. Etnobiologia: teoria e prática. Suma para estudo em Etnobiologia, Etnoecologia. In: AMOROZO, M. C.
Brasileira, Etnobiologia. Petrópolis , v. 1.
etnobiológica Brasileira M. et al . Métodos de coleta e análise de dados em
QUEIROZ, M. S. 1980. Feitiço, mau-olhado e susto: seus tratamentos e Etnobiologia, Etnoecologia e disciplinas correlatas . Rio
prevenções: aldeia de Icapara. Religião e Sociedade, v. 5, p. 131-187. Claro: UNESP/CNPq.
REVILLA, J. 2001. Plantas da Amazônia: oportunidades econômicas
e sustentáveis. Manaus: SEBRAE/AM.
SANTOS, A. M. S. et al. 2005. Medicinas tradicionais no vale do rio
Negro (Amazonas, Brasil). Observações sobre etnofarmacologia e
o uso da planta saracura-mirá ( Ampelozizyphus amazonicus ):
atividade farmacológica e/ou eficácia simbólica. Boletim do Museu
Paraense Emílio Goeldi, série Ciências Humanas, v. 1, n. 1,
p. 137-147.
Recebido: 23/02/2005
Aprovado: 15/05/2006
77