Você está na página 1de 8

A Versatilidade Artística de Radamés Gnattali

A primeira década do século XX foi extremamente profícua para a música erudita


do Rio Grande do Sul. Nesse período nasceram três dos compositores modernos mais
representativos de nosso estado: Armando Albuquerque, em 1901, Radamés Gnattali, em
1906, e Luiz Cosme, em 1908.
Os três tiveram formação musical no então Conservatório de Música do Instituto de
Belas Artes de Porto Alegre (atual Departamento de Música do Instituto de Artes da
UFRGS). Ambos foram músicos que atuaram em orquestras que dramatizavam as cenas
silenciosas do cinema mudo, na década de 1920. Posteriormente, trabalharam nas principais
rádios de Porto Alegre e do Rio de Janeiro.
Ao longo de muito tempo, esses músicos permaneceram ligados ao rádio: Gnattali e
Cosme fixaram residência no Rio de Janeiro, desde o início da década de 1930 até o fim de
suas vidas, o primeiro atuando como pianista, arranjador e compositor de programas
radiofônicos; o segundo, como programador e musicógrafo (Cosme contraiu enfermidade
que o impedia de tocar ou compor); Albuquerque retornou a Porto Alegre, onde trabalhou
na Rádio da Universidade e, posteriormente, assumiu o cargo de professor do
Departamento de Música da UFRGS, onde permaneceu trabalhando até sua morte.
Apesar de intensa atividade radiofônica, os três músicos tornaram-se mais
conhecidos como compositores. Amigos desde jovens, cada qual seguiu um caminho
próprio no campo da criação musical. Albuquerque, que permaneceu em Porto Alegre,
moldou uma linguagem peculiar, independente das tendências mais destacadas do
modernismo brasileiro da primeira metade do século XX, a ponto de ter sua obra
reconhecida nacionalmente somente na década de 1970, quando o compositor santista
Gilberto Mendes escreveu um artigo sobre o quanto tinha ficado impressionado ao escutar a
obra do músico gaúcho.
Luiz Cosme manteve-se ligado às experiências de vanguarda desenvolvidas do Rio
de Janeiro, na década de 1940, aproximando-se do Grupo Música Viva e praticando “a
técnica dos doze sons, sem, entretanto, descaracterizar a atmosfera brasileira”, conforme
afirmava. Cosme é também considerado o primeiro compositor erudito a empregar temas
populares do Rio Grande do Sul nas suas obras, o que acontece na lenda-bailado
Salamanca do Jarau (1935), que tem na narrativa de Simões Lopes Neto sua motivação
literária, sendo que a canção folclórica Meu Boi Barroso percorre toda a obra através de
múltiplas transformações de seus motivos melódicos.
Radamés Gnattali foi o mais versátil dos três grandes músicos gaúchos nascidos na
primeira década do século XX, pois atuou tanto no meio da música popular quanto da
música erudita, desenvolveu trajetórias como múltiplo instrumentista (pianista, violinista e
violista), como arranjador, orquestrador e foi um dos compositores brasileiros mais
profícuos de sua geração. Se Albuquerque desenvolveu um estilo fortemente pessoal e
Cosme se encaminhou para as linhas de vanguarda, Gnattali seguiu mais de perto a
trajetória da corrente nacionalista, com aproveitamento de elementos estilísticos advindos
do populário de várias regiões do Brasil e com a incorporação de técnicas de harmonização
e orquestração derivadas do jazz.
Sua atuação como arranjador de música popular e o emprego de técnicas jazzísticas
em sua produção musical, levou alguns críticos a considerarem Gnattali como um
compositor de menor importância no ambiente da música erudita de então. Até mesmo um
musicólogo aberto às mais diversas experiências estético-musicais, como Luiz Heitor
Corrêa de Azevedo, refere-se com desdém à versatilidade de Gnattali. Em seu livro 150
Anos de Música no Brasil (1950), Azevedo refere-se ao músico da seguinte forma:
“Durante alguns anos, pouco se ouve falar no jovem Radamés Gnattali, que para ganhar a
vida toca em orquestrinhas de dança ou de estações de rádio [...]. Como o compositor
alcançou grande notoriedade no mundo radiofônico, com os seus arranjos de música
popular ou partituras especialmente escritas para programas famosos, é preciso distinguir,
na sua bagagem, dois tipos de música completamente diversos: a que ele escreve para
vender, e que lhe assegura fulgor de primeira grandeza na constelação do broadcasting
nacional, e a que escreve para seu prazer e prestígio de seu nome de artista”. Nota-se o
esforço em diferenciar duas espécies de música, na produção de Gnattali, como se uma
fosse mais artística do que a outra.
Filho do músico italiano Alessandro Gnattali e da pianista brasileira Adélia Fonseca
Gnattali, Radamés iniciou seus estudos musicais aos seis anos de idade sob orientação
familiar: aprendia piano com a mãe e violino com a prima Olga Fossatti. Posteriormente,
ingressou como aluno do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre, onde aperfeiçoou sua
técnica pianística com o professor Guilherme Fontainha, diplomando-se com o grau
máximo (medalha de ouro) e sendo o primeiro aluno do Instituto de Belas Artes a obter o
prêmio Araújo Vianna, em 1924.
Paralelamente à formação clássica, Gnattali interessou-se desde cedo pelas canções
que escutava dos músicos de rua. Por essa razão, dedicou-se a aprender o cavaquinho e o
violão, instrumentos que, segundo aqueles que conviveram com ele, chegou a tocar com
bom domínio de suas possibilidades técnicas e expressivas.
Antes mesmo de completar o curso do Instituto de Belas Artes de Porto Alegre,
Gnattali já tocava no Cinema Colombo e em orquestras de baile. Em 1924, apresentou-se
como recitalista no Instituto Nacional de Música e foi solista à frente da Orquestra do
Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sob regência de Francisco Braga, o músico brasileiro
mais respeitado da época. Conta-se que, nestas viagens ao Rio de Janeiro, Gnattali
conheceu pessoalmente Ernesto Nazareth, cuja música admirava e certamente o influenciou
na decisão de seguir caminho na música popular brasileira.
Entre os anos de 1925 e 1929, Gnattali participou de concertos em Porto Alegre,
São Paulo e Rio de Janeiro, tanto como pianista quanto como violista do Quarteto
Henrique Oswald, juntamente com os irmãos Luiz e Sotero Cosme, nos violinos, e Carlos
Krommel, ao violoncelo. Simultaneamente às atividades de solista e camerista, Gnattali
tocava música popular na Rádio Clube do Brasil.
Nesta época, suas primeiras composições foram apresentadas em concerto no
Theatro São Pedro, em 17 de setembro de 1930, onde foram interpretados seus Prelúdios
para piano solo. Posteriormente, no dia 21 outubro de 1931, em uma ‘Noite Brasileira’,
foram apresentadas obras de Radamés Gnattali e Luiz Cosme, na Sala Beethoven de Porto
Alegre. Nesta ocasião, foram tocadas duas peças de Cosme, Sambalelê e Vamo, Maruca,
que foram, posteriormente, destruídas pelo compositor por considerá-las imaturas.
Estes dois músicos porto-alegrenses mudaram-se definitivamente para o Rio de
Janeiro no início da década de 1930, certamente influenciados pela leva de intelectuais
gaúchos que fixaram residência na Capital da República, nos primórdios do governo de
Getúlio Vargas.
Na sua primeira estada no Rio de Janeiro, em 1925, Radamés Gnattali aperfeiçoou
seus conhecimentos de harmonia com Agnelo França. Posteriormente, quando fixou
residência nesta cidade, no início dos anos 30, Gnattali voltou a estudar piano com
Guilherme Fontainha, seu antigo professor de Porto Alegre, que era, agora, diretor do
Instituto Nacional de Música.
Logo no início da experiência de Gnattali no Rio de Janeiro, sua música teve boa
receptividade por parte do público. Em 1931, sua Rapsódia Brasileira foi publicada pelas
Edições Ricordi e apresentada na Associação Brasileira de Música, pela pianista Dora
Bevilacqua. Esta apresentação é considerada pelos biógrafos como o marco inicial da
trajetória do compositor em âmbito nacional. Como pianista acompanhador, Gnattali ainda
participou, em 1934, de recitais ao lado da cantora Bidu Saião, a mais importante soprano
brasileira da época, que se dedicava à estréia de obras de compositores brasileiros
contemporâneos.
O diferencial na produção musical de Radamés Gnattali, com relação aos seus
contemporâneos, é o fato de que, enquanto se apresentava como pianista, violinista e
compositor erudito, também atuava como instrumentista, compositor e arranjador de
música popular. Neste meio, trabalhava com os músicos mais importantes, como
Pixinguinha, Lamartine Babo, Ari Barroso, Zequinha de Abreu e Orlando Silva, entre
outros. A conhecida gravação deste cantor para a gravadora Victor, incluindo as canções
Carinhoso e Rosa de Pixinguinha, entre outras, têm orquestração assinada por Gnattali.
Uma das características mais marcantes da produção de Gnattali como arranjador de
música popular é o fato de ter sido o principal renovador das técnicas e conceitos de
arranjo, ao longo de décadas. No final da década de 1930, suas concepções de arranjo
escandalizaram o público conservador, devido ao emprego de conjunto de saxofones e
flautas em arranjos de marchas de carnaval. Conta-se que o ritmo concebido por Gnattali
para acompanhar a canção Meu Consolo é Você, gravada por Orlando Silva, teria motivado
a criação de Aquarela do Brasil, escrita por Ary Barroso e conhecida pelo arranjo de
Gnattali, que se caracteriza por ser um daqueles arranjos em que se reconhece a canção já
nas primeiras notas da introdução instrumental.
Na década de 1940, outra inovação na concepção de arranjo, proposta por Gnattali,
produziu forte reação da crítica por haver incorporado conjuntos de instrumentos de sopro
de metal (saxofones, trombones e trompetes) e bateria em seus métodos de orquestração por
influência da música norte-americana que chegava às casas de disco do Brasil. Gnattali foi
acusado de desfigurar a música brasileira com o emprego de sonoridades “alienígenas”,
conforme a critica da época. Mesmo um músico atento como Cláudio Santoro, que havia
participado dos movimentos de vanguarda no início da década de 1940, escrevia, em 1948:
“a tragédia é que, sendo o rádio um instrumento importante de propaganda, transmite pelo
interior do país, toda esta arte estandartizada e comercial, influenciando os nossos cantores,
deformando toda aquela pureza e frescura ingênua nos improvisos dos conjuntos regionais.
Tive esta prova quando assisti, há uns 3 anos atrás, a uma audição na Escola Nacional de
Música com gravações colhidas no interior de Minas pelo serviço de Folclore. A música era
uma canção colhida na rua, de autêntico conjunto regional: uma voz, um violão e uma
clarineta. Quando a clarineta começou a fazer o seu improviso à maneira regional, qual não
foi a minha surpresa ao notar a semelhança com o que se chama hot no jazz”.
Ainda no final da década de 1940, Radamés Gnattali produziria outra viravolta na
concepção de arranjo, na música popular brasileira, ao orquestrar as canções Copacabana e
Barqueiros do São Francisco, para um disco de Dick Farney produzido pela gravadora
Continental, com uma combinação inusitada de instrumentos de arco com oboé, violão,
piano e bateria. Essa formação terminou por influenciar a bossa-nova, na década seguinte,
sendo que foi exatamente Radamés Gnattali quem realizou a orquestração da Sinfonia do
Rio de Janeiro, composta por Antônio Carlos Jobim e Billy Blanco. O próprio Jobim
referiu-se a Gnattali, em sua última entrevista, para a revista Qualis (1994), como sendo um
de seus ídolos de juventude; depois prosseguia: “O Radamés é uma coisa formidável, a
generosidade... O Radamés orquestrou a música brasileira toda. Fez muita música erudita
muito boa”.
Além de elaborar arranjos para discos de cantores e compositores conhecidos no
meio radiofônico da época, Gnattali também compunha música popular, tanto em gêneros
vocais quanto instrumentais. Suas criações foram interpretadas e gravadas por Lúcio Alves,
Trio Melodia, Jamelão, pelos violonistas mais destacados, como Aníbal Sardinha (Garoto),
Laurindo de Almeida e Rafael Rabelo, além do pianista Fritz Jank, Jacó do Bandolim e a
Camerata Carioca, entre tantos outros.
No início da década de 1960, Gnattali formou um sexteto para apresentar suas
criações instrumentais na Europa. O Sexteto de Radamés, como era chamado, tocou em
Paris, Frankfurt, Londres e Roma, entre outras cidades européias, com grande aceitação do
público, segundo as referências da crítica especializada da época.
Em 1963, Gnattali passou a trabalhar na televisão, como regente e principal
arranjador da TV Excelsior, a qual abandonou, em 1967, para atuar na TV Globo com as
mesmas funções. Nesta empresa, trabalhou até o final de sua vida, realizando arranjos e
escrevendo música incidental para os mais variados programas.
Sua atuação na música popular brasileira rendeu-lhe um estigma do qual
dificilmente conseguiu se livrar, pois o meio da crítica musical especializada da época
demonstrava ser bastante conservador, mesmo entre os críticos mais abertos às renovações
da música de vanguarda. José Maria Neves, um dos mais importantes divulgadores das
transformações da música erudita brasileira do século XX, em sua obra Música
Contemporânea Brasileira (1977), considera que “Gnattali, compositor de excelente
técnica, sobretudo no domínio da orquestração, perdeu-se justamente por seu excessivo
apego à estruturação e às sonoridades jazzísticas. Ainda que ele afirme fazer absoluta
distinção entre sua produção destinada ao consumo imediato no rádio e no disco e sua obra
propriamente artística, os vícios de linguagem estão sempre presentes, inclusive em obras
mais recentes, criando uma barreira para sua aceitação por parte do público mais exigente.
De fato, falta-lhe a força primitiva dos nacionalistas mais puros e seu populismo já não é
mais admissível. Por outro lado, este compositor encontra-se em posição incômoda, pois
que é considerado demasiadamente erudito pelos compositores de música popular, que já
não mais o disputam como o orquestrador perfeito, e demasiadamente popular pelo público
de música erudita”. Tanto neste ensaio de Neves, como naquele de Azevedo citado
anteriormente, percebe-se uma distinção entre música artística e música não-artística que se
torna insustentável, atualmente.
Radamés Gnattali considerava esta separação entre música erudita e música popular
como sendo mera formalidade exterior à prática artística, “porque, para mim, só tem dois
tipos de música: a boa e a ruim”, conforme gostava de dizer. A versatilidade de atuação em
diferentes campos musicais, que atualmente se configura como uma qualidade específica da
produção de Gnattali, incomodava os críticos da época, pois aparentemente tinham
dificuldade em classificar sua obra em gêneros preestabelecidos.
De qualquer forma, apesar das críticas desdenhosas com relação à sua atuação em
diferentes campos da música brasileira, também a produção de Radamés Gnattali como
compositor erudito foi amplamente divulgada, tanto no Brasil como no exterior. Já em
1939, seu Poema, para violino e orquestra sinfônica, era apresentado pela Orquestra da
Rádio de Berlim, tendo Georg Wach como regente; seu Concerto nº 2, para piano e
orquestra sinfônica, foi apresentado em diferentes cidades do Estados Unidos, em 1943,
tendo o pianista Arnaldo Estrela como solista; sua Brasiliana nº 1 foi gravada pela
Orquestra Sinfônica da BBC, de Londres, sob a regência de Clarence Reybould. A música
de Gnattali foi publicada por importantes editoras, no Brasil e no exterior; estão, entre elas,
a Max Eschig, editora francesa das obras dois principais compositores modernos, inclusive
Villa-Lobos, e a Ricordi, maior editora italiana de música internacional.
Radamés Gnattali escreveu em todos os gêneros da música de concerto (maneira
como se referia à música erudita). Constam, de sua produção, algumas sinfonias e diversos
concertos – sendo um dos compositores brasileiros que mais se dedicou ao gênero, escreveu
um total de vinte e seis concertos para os mais variados instrumentos solistas. Gnattali
escreveu inúmeras peças para piano solo e para violão solo; compôs música de câmara com
ampla variedade de formações instrumentais, em que foram aproveitados instrumentos de
música popular em combinação com instrumentos tradicionais europeus, em formações
com saxofone, violão elétrico e piano; também em seus concertos foram combinados
violão, gaita ou bandolim com orquestra sinfônica. Gnattali ainda escreveu canções de
câmara e uma cantata sacra intitulada Maria Jesus dos Anjos, em 1965.
Radamés Gnattali, que foi membro fundador da Academia Brasileira de Música e
membro da Academia de Música Popular Brasileira, faleceu no Rio de Janeiro, em
fevereiro de 1988.
Músico de índole inquieta e especulativa, dizia: “Tenho hoje, aos setenta anos, as
mesmas inquietações que tinha aos dezoito”.

Post-Scriptum: Neste ano em que se comemoram 250 anos do nascimento de


Wolfgang Amadeus Mozart, em todo o mundo, também se comemoram os 100 anos de
nascimento de Radamés Gnattali, um dos mais versáteis músicos brasileiros. Curiosamente,
os dois nasceram no mesmo dia: Mozart veio ao mundo em 27 de janeiro de 1756; Gnattali,
em 27 de janeiro de 1906.
Dentre as comemorações do centenário de nascimento de Radamés Gnattali, em que
constam recitais e concertos em várias cidades do Brasil, destaca-se o CD Reminiscências,
que contém uma homenagem a Gnattali através da gravação da sua Brasiliana nº 13, com
interpretação impecável do violonista Thiago Colombo que faz jus à memória deste grande
criador da música brasileira.

Fernando Lewis de Mattos


Compositor
Professor do Departamento de Música/UFRGS.

Você também pode gostar