Você está na página 1de 7

A PERSONAGEM NO ROMANCE MODERNO *

Oscar T a c c a **

P o d e r - s e - i a dizer q u e a história d o r o m a n c e m o d e r n o é a história das


suas personagens. Poucas perspectivas apresentam u m a c o n v e r g ê n c i a m a i s
nítida e reveladora de f u n d o e f o r m a . C o m efeito, n i n g u é m i g n o r a o papel
e m i n e n t e m e n t e instrumental que desempenha a p e r s o n a g e m . E n i n g u é m i g n o -
ra t a m b é m q u e é nelas que v i v e o r o m a n c e . S e m separar a m b o s os c o n -
ceitos ( f u n d o e f o r m a ) c o m o fazia a antiga preceptiva, s e m i d e n t i f i c á - l o s f a -
zendo de a m b o s uma coisa única, c o m o abusivamente p r e t e n d i a o intuicionis-
m o croceano, é evidente que através d o d i f e r e n t e t r a t a m e n t o da p e r s o n a g e m
se f o i acrescentado a riqueza c a m b i a n t e d e s t e g ê n e r o v o r a z . Ou d i t o e m lin-
guagem mais habitual e didática: cada n o v o c o n t e ú d o exigiu novas f o r m a s ,
sendo e n t r e estas a relação a u t o r - p e r s o n a g e m (autonûmia, i d e n t i f i c a ç ã o , r e -
beldia, distância, procura, c o n f l i t o , c a t a r s e ) a que, de m o d o m a i s e f i c a z p e r -
m i t i u i r instaurando e m cada caso essa d i f e r e n t e explicação, apresentação
ou c o r r e ç ã o d o m u n d o e da v i d a que é o r o m a n c e .

S e esta n ã o é, c o m o se disse, n e m o q u e acontece na alma d o autor ( l í -


r i c a ) n e m o q u e acontece a outras personagens ( t e a t r o ) senão essencialmen-
te a r e a ç ã o de certos seres f r e n t e a d e t e r m i n a d o s acontecimentos, resulta
c l a r o o p a p e l ao m e s m o t e m p o subsidiário e capital da p e r s o n a g e m . S u b s i -
diário, enquanto a dita p e r s o n a g e m p o d e r á ser i g u a l m e n t e v a l e n t e e c o v a r d e ,
sábio ou idiota, u m herói o u u m t r a p a c e i r o . Capital, enquanto o r o m a n c e n ã o
f o r senão esse espelho-consciência que se d e t é m e m u m caminho.

Durante todo o século X I X o autor utilizou-se da personagem para m o s -


trar algumas ações ou acontecimentos excepcionais, que exigiam de alguma
maneira seres excepcionais. Todas as personagens de Balzac são pessoas de
exceção. Ainda em sua insignificância, excepcionais eram as ocorrências de
M a d a m e B o v a r y e de R o j o y N e g r o , extraídos da crónica policial. Persona-
* Traduzido do Espanhol por Nair Nodoea Takeuchi, Auxiliar de Ensino de Língua
Espanhola no Departamento de Letras Estrangeiras Modernas da Universidade
Federal do Paraná.

Professor de Teoria Literária, Oscar Tacca é auto.r de vários trabalhos entre os


quais se destacam La Historia Literaria (Madrid, Gredos, 1968, 204 p . ) e Las
voces de la novela (Madrid, Gredos, 1973, 205, p . ) . Atualmente, exerce também
as funções de Diretor do Instituto de Letras da Facultad de Humanidades de la
Universidad Nacional del Nordeste em Resistencia, Argentina.

letras, Curitiba 1251 : 293 - 299, ¡ut. 1976 2 9 3


TACCA, 0. A personagem no romance moderno

g e m f o i s i n ô n i m o d o herói e a n t i - h e r ó i . I g u a l p r e s t i g i o p a r a o b e m e p a r a o
m a l . D o n Q u i j o t e e L á z a r o . Papá G o r i o t e Julien S o r e l . O autor encarnou e m
sua p e r s o n a g e m uma consciência universal. E a encarnou concreta e m i n u -
ciosamente. O velho Grandet:

era u m h o m e m de uns cinco pés, rechonchudo, quadrado, c o m a


barriga das pernas de d o z e polegadas d e circunferência, c o m j o e -
lhos avultados e largos o m b r o s ; seu r o s t o era redondo, curtido,
m a r c a d o de v a r i o l a ; q u e i x o reto, lábios sem sinuosidade, dentes
brancos, seus olhos tinham a expressão c a l m a e fascinante q u e o
p o v o atribui a o basilisco; e m sua testa, cheia de rugas transversais,
n ã o f a l t a v a m protuberancias significativas; seus cabelos a m a r e l o s
e grisalhos e r a m b r a n c o e ouro, seu nariz, l a r g o na ponta, tinha
u m a v e r r u g a cheia de malícia, i

A encarnação a d q u i r e e m Balzac a c o n v i c ç ã o de uma teoria: a f i s i o n o m i a ,


a m p l a m e n t e exposta p e l o a u t o r . A m i n ú c i a e a p r e c i s ã o n o t r a j a r f a z e m
f a l a r h o j e dc v e s t i n o m o n i a . Conseqüência natural: o retrato- B a l z a c é o m a i o r
retratista de todos os tempos- A C o m é d i a H u m a n a n ã o é senão u m a imensa
" g a l e r i a " . A personagem, f o i , pois, durante o século X I X o que o autor quis
que fosse: u m e x e m p l o ; ou m e l h o r , c o m o dizem os biólogos, u m e x e m p l a r .
E n c a r r e g a d o de e x e m p l i f i c a r - O autor o t r o u x e à cena: f ê - l o passear, f ê - l o
dizer, f ê - l o f a z e r . Q u a n d o alguém lhe p e r g u n t a v a p o r ela, dizia orgulhoso: —
" M a d a m e B o v a r y ? C'est m o i " . E ia-se, p a r a v o l t a r c o m o u t r o d i s f a r c e .

A p e r s o n a g e m f o i pois u m " m o i , u m eu, ao que — p o r isso m e s m o — c o n -


vinha respeitar. D o t a d o á e vida, de energia, de a r b í t r i o , suas ações f o r a m
( c o m o na v i d a ) i m p r e v i s í v e i s . T i p o , m a s n ã o " c a s o " .

Julián M a r í a s distinguía, todavia, n u m a r t i g o s o b r e Galdós, e n t r e p e r s o -


n a g e m e t i p o ( o u c a s o ) , e x e m p l i f i c a n d o c o m f e l i c i d a d e : t i p o ou caso é R o -
binson, o herói que sem a ilha, o papagaio, a bíblia, se desvanece; p e r s o n a -
gens são D o n Q u i j o t e , H a m l e t , p o r q u e ambos, longe de L a Mancha ou de
Elsinor, continuam sendo o que são. M a s c o n v é m separar ainda t i p o e caso,
universal e l i v r e o p r i m e i r o , m a i s particular e d e t e r m i n a d o o segundo. R o -
b e r t R i c a t t e d i f e r e n c i a e m seu l i v r o s o b r e os Goncourt personagens-mito,
personagens-destino e personagens-caso, destacando p a r a os ú l t i m o s " o c a -
i á t e r excepcional e individual de suas paixões i n v e t e r a d a s " . 2

Caso, e m e s m o " c a s o clínico", f o i o q u e f e z da p e r s o n a g e m o a u t o r n a -


turalista. C o m o r o m a n c e experimental, u m r i g o r o s o d e t e r m i n i s m o tira-lhe
toda a l i b e r d a d e . A p e r s o n a g e m deixa d e ser uma mostra, p a r a ser u m a
p r o v a . V e m o s - desde o p r i n c í p i o que Coupeau vai t e r m i n a r na m o r t e e n o
alcoolismo, G e r v a i s e 3 na prostituição. D e s t i n o inelutável c u m p r i n d o i n e x o r a -

1 BALZAC, H. Eugénie Grandet. Paris, Garnier, 1966. p. 19.


2 RICATTE, Robert. La création romanesque chez les Goncourt. Paris, A. Colin,
1953.
3 ZOLA, Emile. L'Assomoir. Paris, Fasquelle, 1971. 495 p.

2 9 4 letras, Curitiba 1251 : 293 - 299, ful- 1976


TACCA, 0. k personagem no romance moderni

v e l m e n t e as leis da herança, o álcool, a m i s é r i a . Destino n ã o m u i t o d i f e r e n t e


d o que c u m p r e , c m d e f i n i t i v o , a p e r s o n a g e m d o r o m a n c e d e tese: e m i s s á r i o
do autor, sacerdote, t e s t a - d c - f c r r o , a l c o v i t e i r o e m á r t i r do romancista, e n -
c a r r e g a d o de consumar, ou dc q u e nele se c o n s u m a m os d e s e j o s d a q u e l e .
Paul Bourget e O Discípulo. A d r i e n S i x t e e R o b e r t Greslou, a m b o s c o r r o b o -
r a n d o Q . E . D . , c o m o costumam t e r m i n a r os t e o r e m a s .

Os p r i m e i r o s anos d o nosso século v i r a m nascer uma p e r s o n a g e m d i f e -


í e n t e : L a f c á d i o , 4 p a r e n t e p r ó x i m o , d e f i n i t i v a m e n t e , d e t o d o s os heróis d o
r o m a n c e psicológico, e ainda, d o r o m a n c e sensual de Colette. Uns e o u t r o s
f a z e m suas experiências e m c o n t a c t o c o m os alimentos terrestres. H e r ó i s
que v i v e m a vida c o m o uma aventura apaixonante, às vezes jubilosos, que
s t introspeccionam, que se d e f i n e m na sua mais absoluta singularidade.

M a s Lafcádio, " c h e g a d o à sua maturidade, e t e n d o a b a n d o n a d o as vacila-


ções encantadoras d o adolescente gidiano, se f a z i a c o n q u i s t a d o r d o m u n d o e
a m a n t e d e virtudes brutais" ( A l b é r è s ) . N a s c e o c o m p r o m i s s o . P e l o m e n o s
uma f o r m a de c o m p r o m i s s o . O c o m p r o m i s s o é t i c o . D e u m lado, a p e r s o n a -
g e m desgarrada de M a u r i a c e Bernanos. D o outro, a p e r s o n a g e m aventu-
reira de L a w r e n c e , Malraux, S a i n t - E x u p é r y . O romancista submete a p e r s o -
n a g e m a u m d r a m á t i c o c o n f r o n t o c o m o m a l o u c o m a a ç ã o . A consciência
nasce da ação e não ao contrário, diz M a l r a u x . O b e m se g e r a muitas v e z e s
n o mal, diz p o r seu lado M a u r i a c . O r o m a n c i s t a decanta sua experiência
no r o m a n c e . V o l t a a v i v e r p o r p r o c u r a ç ã o

O conceito d o h o m e m j á v a r i o u . Já n ã o se pensa q u e este se d e f i n e e m


sua mais estrita individualidade, e m seu isolamento, e m seu retiro, longe
de t o d o m ó v e l p r á t i c o ou utilitário. Os romancistas da ação acreditam, ao
contrário, que o h o m e m não se conhece a si m e s m o na solidão, m a s e m c o n -
tacto c o m os outros h o m e n s . O h o m e m só é uma enteléquia. D e nada v a l e
c o n t e m p l a r - m e e d e f i n i r - m e a sós c o m o valente, f r a n c o e generoso, se a ação
p r o v a que sou egoísta, f a l s o e c o v a r d e . A introspecção psicológica é u m a
ancestral f o r m a de engano. O h o m e m n ã o é o que diz, m a s o q u e f a z . N ã o
se d e f i n e de dentro, m a s de f o r a .

Daí ao r o m a n c e a m e r i c a n o da década de quarenta, u m só passo. A p e r -


sonagem é representada através da sua conduta, do seu comportamento.
Behaviorismo, que C l a u d e - E d m o n d e M a g n y d e f i n e c o m o " u m p a r t i - p r i s de
considerar real, na vida psicológica de u m h o m e m ou de u m animal, s o m e n t e
aquilo que poderia perceber u m o b s e r v a d o r p u r a m e n t e exterior, r e p r e s e n t a d o
e m última instância pela o b j e t i v a d e u m a câmara f o t o g r á f i c a " . O romance
rhegará a ser " o c o n t o de u m idiota c h e i o d e r u í d o e de f ú r i a , s e m s i g n i f i c a d o "
(Faulkner).

4 GIDE, André. Les caves du Vatican. Paris, Gallimard, 1970 . 253 p.

Letras, Curitiba (25) : 293 - 299, jul. 1976 2 9 5


TACCA, 0. A personagem no romance moderno

E m nosso t e m p o , o a u t o r t e m se distanciado m a i s d e sua p e r s o n a g e m ,


dessa p e r s o n a g e m q u e f o i i n c o r r e n d o e m r e b e l i ã o p r i m e i r o , e m desacato d e -
pois, e m tirania finalmente: t e m - l h e tirado, p o u c o a pouco, quase t u d o : in-
teligência, c o r a g e m , prestígio, beleza, d i n h e i r o . A t é l h e t e m usurpado a c é -
dula de identidade, d e i x a n d o - o e m p r e c á r i a c o n d i ç ã o legal, c o m u m n o m e
sem s o b r e n o m e , c o m u m s o b r e n o m e sem o n o m e , c o m u m m o t e , u m a p e l i d o
ou u m inicial: K , E r ó s t r a t o , o A n ã o . N ã o s a t i s f e i t o c o m o d e s p o j o d e seus
b e n s tradicionais, o angustia, o persegue, o acurrala. A longa série d e a c o s -
sados p r o v a a o m e s m o t e m p o a constância e a d i v e r s i d a d e d o f a t o : acossa-
m e n t o f í s i c o e policial c m O T e r c e i r o H o m e m de G r a h a m Greene, p o l í t i c o e m
O Z e r o e o I n f i n i t o d e K o e s t i e r , p s i c o l ó g i c o e m o r a l e m Pascual D u a r t e de
Cela, m e t a f í s i c o e m E r ó s t r a t o de S a r t r e e O E s t r a n g e i r o d e Camus, r e l i g i o s o
e m B a r r a b á s de P a r L a g e r q v i s t . E n ã o só está o h o m e m acossado, m a s a
m u l h e r t a m b é m : a Adriana Mesurât de Julien Green, a Cecília d e B o n j o u r
Tristesse ( F r a n ç o i s e S a g a n ) .

M a s o r o m a n c i s t a n ã o so persegue, f u s t i g a e aparta a p e r s o n a g e m , como


t a m b é m a processa. E s t e é o sintoma q u e d e f i n e toda u m a novelística de
pré-guerra e pós-guerra. P a r a isso, r e c o r r e t a n t o à minuciosa retícula da
Justiça c o m o a o a p a r e l h o tosco, g r o s s e i r o e abusivo da l e i .

O simples n ú m e r o dos processados m o s t r a p o r si q u e o r o m a n c e d o n o s -


so t e m p o deixou de s e r o l a b o r a t ó r i o e x p e r i m e n t a l dos naturalistas, o p a r -
que de diversões de L a f c á d i o , o g r a n d e t e a t r o do m u n d o d e Proust, o c a m p o
tíe desportos de S a i n t - E x u p é r y e M a l r a u x , p a r a passar a s e r u m a g r a n d e
rala de audiências na qual o l e i t o r é o público, a p e r s o n a g e m n o b a n q u i n h o
e o autor é o juiz, às vezes só o escrivão, quase nunca o d e f e n s o r , a m i ú d e o
f i s c a l . U m a longa série de acusados a g u a r d a seu t u r n o e m calabouços ú m i -
dos e m a l cheirosos: José K ( E l p r o c e s s o de K a f k a ) , M a c i a s ( C a r a a l a
m u e r t e de E m m a n u e l R o b l e s ) , Meursault ( E I e x t r a n j e r o de C a m u s ) , P a b l o
I b b i e t a E I m u r o de S a r t r e ) , Pascual D u a r t e ( L a f a m i l i a d e Pascual Duarte d e
C a m i l o J. C e l a ) , el cura Juan ( E l p o d e r y la g l o r i a d e G r a h a m G r e e n e ) , R u -
b a s h o v ( E l c e r o y el i n f i n i t o d e A r t h o u r K o e s t i e r ) , B a r r a b á s ( B a i T a b á s d e
Pär Lageskvist)...

F a t o curioso: e n t r e eles não há valentes, e — m a i s curioso ainda —


ninguém é inocente. M a s , — p a r a d o x a l m e n t e , e p a r a d i z ê - l o c o m p a l a v r a s
de K a f k a e m O P r o c e s s o — n e m t o d o s t ê m culpa: " o s acusados são, p r e c i -
samente, os m a i s belos; n ã o p o d e ser a sua falta o que os embeleza, p o i s
n e m t o d o s eles são c u l p a d o s " . E não há f u g a . N e m há indulto. Todos, p o r
igual, condenados à m o r t e . Desde José K a q u e m a f i n c a m três vezes a f a c a e
que e x c l a m a : — C o m o u m cão! ( " e r a c o m o se a v e r g o n h a devesse s o b r e -
v i v e r - l h e " ) até Rubashov, c o m u m t i r o na nuca, o u t r o na orelha, a c o l h i d o
p o r u m r u m o r de m a r " c o m o u m e n c o l h i m e n t o de o m b r o s da e t e r n i d a d e " ;
desde Meursault, que só d e s e j a m u i t o s espectadores e g r i t o s d e ó d i o na
execução, até o p a d r e Juan, que pergunta quanto dura u m segundo d e dor,

2 9 6 letras, Curitiba 1251 : 293 - 299, ful- 1976


TACCA, 0. A personagem no romance moderno

e cai c r i v a d o p o r u m a dúzia d e balas; desde Pascual Duarte, q u e " t e r m i -


nou seus dias cuspindo e esperneando, s e m cuidado nenhum dos circuns-
tantes, e da maneira p i o r e m a i s baixa que u m h o m e m possa t e r m i n a r ;
d e m o n s t r a n d o a todos seu m e d o à m o r t e " até B a r r a b á s que " s e n t i n d o che-
g a r a m o r t e , a q u e tanto t e m e r a , disse e n t r e as. trevas, c o m o s e a elas
falasse: — A ti e n c o m e n d o m e u e s p í r i t o . E e n t r e g o u sua a l m a " .

M a s u m n o v o assédio aguardava a p e r s o n a g e m . Quando m e n o s e s p e r a -


va, e m p l e n o sol e à h o r a da sesta, q u a n d o ia radiante d e sensações e v a z i o
de "psicologia", na v i r a d a de u m a esquina absurda é assaltada p a r a o des-
p o j o d o pouco que lhe restava. Já não resiste, n e m cospe, n e m b l a s f e m a .
O e s c r i t o r d o r o m a n c e o b j e t i v o deixou d e acreditar na p e r s o n a g e m . S a b e
que a era da dupla suspeita começou, segundo o denunciara N a t h a l i e S a r -
raute: desconfiança d o l e i t o r c o m r e s p e i t o ao autor, desconfiança d o autor
c o m respeito ao l e i t o r .

A personagem j á não se olha, p r o p r i a m e n t e , n e m de d e n t r o n e m d e f o -


r a . Busca, ele m e s m o ( o u s e j a d e d e n t r o ) v e r - s e a si m e s m o ( o u s e j a de
f o r a ) . Mas, c l a r o está, j á n ã o c r ê nos espelhos. P r o c u r a v e r - s e — c o m o
Mathias, 5 nas coisas que o obsessionam: na f o r m a d o o i t o repetida, n o p e -
daço de corda, n o o l h o da g a i v o t a . Fala, m a s é c o m o se falasse o p o l í c i a
q u e o segue. A p e r s o n a g e m deixa de ser u m caráter, u m d o c u m e n t o - l i m i t e .
A " p e r s o n a l i d a d e " se dilui e m u m a série de estados psicológicos, c a m b i a n -
tes, contraditórios, escorregadiços. U m h o m e m n ã o é u m caráter, nem,
m e n o s ainda, tuna história, n e m u m c o n j u n t o d e hábitos: é o v a i - v e m i n -
cessante e b r a n d o entre o particular e o geral, disse S a r t r e 6 a p r o p ó s i t o de
N a t h a l i e Sarrau t e .

P a r a o p o n t o de vista tradicional, quase todos os protagonistas d o ro-


mance o b j e t i v o p a r e c e m personagens secundários. O culto exclusivo d o " h u -
m a n o " deixou lugar a u m a t o m a d a de consciência m a i s vasta, m e n o s an-
tropocêntrlca.7

A personagem, é claro, n ã o é tudo n o r o m a n c e . M a s sua t r a j e t ó r i a r e -


v e l a c o m especial nitidez a d o g ê n e r o . É através da d i f e r e n t e revelação dia-
lética autor-personagem-leitor q u e o r o m a n c e m u d a d e f o r m a e sentido.
N ã o há p e r i g o de anemia ou e m p o b r e c i m e n t o neste enfoque, u m a v e z q u e as
personagens n ã o são u m a cadeia independente da vida, n ã o se e n g e n d r a m
e m si m e s m o s . D i t o de outra m a n e i r a : as personagens n ã o t ê m descendên-
c i a . Se declarados ( c o m o Esplandián. filho d e A m a d í s d e G a u l a ) , os des-
cendentes são fracos, se e x t i n g u e m . Se adúlteros ( c o m o os L á z a r o s ) , pior.

5 ROBBE-GRILLET, Alain. Le voyeur. Paris, Ed. de Minuit, 1959 . 255 p.


6 SARTRE, J. P. Préface. In: SARRAUTE, Nathalie. Portrait d'un inconnu.
Paris, Union Générale d'Éditions, 1956. p. 13.
7 ROBBE-GRILLET, Alain. Pour un nouveau roman. Paris, Gallimard, 1964. p. 33.

letras, Curitiba 1251 : 293 - 299, lui. 1976 2 9 7


TACCA, 0. A personagem no romance moderno

As personagens são c o m o os anões, u m a raça criada p e l o s h o m e n s . Podem


dizer t a m b é m , c o m o O A n ã o de L a g e r q v i s t , substituindo anões p o r perso-
sagens:

N ó s os personagens n ã o g e r a m o s filhos, p o i s s o m o s estéreis. N ã o


nos o c u p a m o s e m p e r p e t u a r a vida, n e m t a m p o u c o o d e s e j a m o s .
E n ã o necessitamos ser fecundos p o r q u e a p r ó p r i a espécie h u -
m a n a p r o d u z suas personagens; n ã o há, pois, que p r e o c u p a r - s e
c o m isso. D e i x a m o s que nos g e r e m essas orgulhosas criaturas, e
q u e tenham as dores d o parto, q u e são as m e s m a s p a r a t o d o s .
N o s s a raça se perpetua c o n s t a n t e m e n t e através das outras, e é
assim, e não de o u t r o m o d o , c o m o v i e m o s a este m u n d o . E s t a
é a razão p r o f u n d a da nossa e s t e r i l i d a d e . Conseqüentemente, p e r -
t e n c e m o s e n ã o p e r t e n c e m o s a nossa r a ç a . S o m o s hóspedes d e
v i s i t a . A n t i g o s hóspedes cheios d e rugas c u j a visita se p r o l o n g a há
milhares de anos. 8

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

BALZAC, H . Eugénie Grandet. Paris, Gamier, 1966 . 373 p.


GIDE, André. Les caves du Vatican. Pajis, Gallimard, 1970 . 253 p.
LAGERKVIST, Par. El enano. Buenos Aires, Emecé, 1964. 181 p.
RICATTE, Robert. La création romanesque chez les Goncourt. Paris. A. Colin, 1953.
ROBBE-GRILLET, Alain. Pour un nouveau roman. Paris, Gallimard, 1964. 183 p.
. Le voyeur. Paris, Ed. de Minuit, 1959 . 255 p.
SARRAUTE, Nathalie. Portrait d'un inconnu. Paris, Union Générale d'Editions, 1956.
243 p.
¿OLA, Emile. L'assomolr. Paris, Fasquelle, 1971. 495 p.

Resumo

P o d e r - s e - i a dizer que a história d o r o m a n c e m o d e r n o é a história das


suas personagens. A p e r s o n a g e m d o século X I X era s i n ô n i m o de herói e
a n t i - h e r ó i . A encarnação da consciência universal nas personagens d e B a l z a c
adquire a c o n v i c ç ã o de uma teoria: a fisionomia- Balzac é o m a i o r retratista
dc t o d o s os t e m p o s .
N o r o m a n c e naturalista a p e r s o n a g e m era uma m o s t r a , o u até u m a p r o -
va, c o m o o era n o r o m a n c e d e tese: e m i s s á r i o d o autor, sacerdote, t e s t a - d e -
•lerro, a u c o v i t e i r o e m á r t i r d o r o m a n c i s t a . P e r s o n a g e m d i f e r e n t e nascida n o
início d o século: L a f c á d i o . O romancista v o l t a a v i v e r p o r p r o c u r a ç ã o .
E m nossos dias o a u t o r t e m se distanciado de sua p e r s o n a g e m . S u r g e
uma longa série de acossados, de p r o c e s s a d o s .
A p e r s o n a g e m não é tudo, m a s sua t r a j e t ó r i a r e v e l a c o m especial nitidez
o gênero do romance.

Resumen

P o d r í a decirse que la historia de la novela m o d e r n a es la historia de


sus p e r s o n a j e s . El p e r s o n a j e del s i g l o X I X era s i n ò n i m o d e h é r o e y antihéroe.

8 LAGERKVIST, Pär. El enano. Buenos Aires, Emecé, 1964. p. 78.

2 9 8 Lelras, Curitiba 1251 : 293 - 299, ful. 1976


TACCA, 0. A personagem no romance moderno

L a encarnación de la consciência universal en los p e r s o n a j e s de Balzac ad-


quiere la convicción de una teoria: la f i s i o g n o m o n í a . Balzac es el m á s g r a n d e
retratista de todos los t i e m p o s .

E n la novela naturalista el p e r s o n a j e era una muestra, o hasta una


prueba, c o m o l o era en la novela de tesis: e m i s a r i o del autor, vicario, tes-
taferro, alcahuete y m á r t i r del novelista. P e r s o n a j e d i f e r e n t e nacido en e l
inicio del siglo: L a f c a d i o . El novelista v u e l v e a v i v i r por procuración.

E n nuestros días el autor ha t o m a d o m a y o r distancia de sus p e r s o n a j e s .


Surge una larga serie d e acosados, d e procesados.

E l p e r s o n a j e n o es todo, p e r o su t r a y e c t o r i a revela con especial nitidez


el género de la n o v e l a .

Letras, Curitiba (25) : 293 - 299, jul. 1974 2 9 9

Você também pode gostar