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UNIVERSIDADE SANTA ÚRSULA

IPP – INSTITUTO DE PSICOLOGIA E PSICANÁLISE


DEPARTAMENTO DE GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA

Bruno Beranger

ANGÚSTIA DE CONSUMO:
Fenomenologia Social Atual

Rio de Janeiro
2008.1
2

Bruno Beranger

ANGÚSTIA DE CONSUMO:
Fenomenologia Social Atual

Monografia apresentada à Coordenação


de Graduação em Psicologia do IPP –
Instituto de Psicologia e Psicanálise da
Universidade Santa Úrsula como requisito
parcial para a conclusão do curso de
Psicologia.

Orientador: André Soares Pereira Avelar

Rio de Janeiro
2008.1
3

Beranger, Bruno

Angústia de consumo: Fenomenologia social atual – Bruno Beranger – Rio de


Janeiro, 2008.

59 f.

Orientador acadêmico: André Soares Pereira Avelar. Monografia (Graduação em


Psicologia). USU – Universidade Santa Úrsula. IPP – Instituto de Psicologia e
Psicanálise. Curso de Graduação em Psicologia.

Título em inglês: Consumption Angst, Actual Social Fenomenology

Rio de Janeiro, Brasil.

1. Angústia. 2. Consumismo. 3. Descartável. 4. Sociedade.


4

Bruno Beranger

ANGÚSTIA DE CONSUMO:
Fenomenologia Social Atual

Monografia apresentada à Coordenação


de Graduação em Psicologia do IPP –
Instituto de Psicologia e Psicanálise da
Universidade Santa Úrsula como requisito
parcial para a conclusão do curso de
Psicologia.

Avaliada em ___/ ___/ ______

Conceito: ___________________________________________

BANCA EXAMINADORA:

__________________________________________________.
Presidente da Mesa – André Soares Pereira Avelar. Professor. SPID. IPP/USU.

__________________________________________________.
1º. Avaliador – Marisa Speranza dos Santos. Professora. IPP/USU.

__________________________________________________.
2º. Avaliador – Camila Drubscky. Doutora em psicologia clínica. PUC/RJ. IPP/USU.
5

Dedico este trabalho à minha família e a todos


aqueles que percebem a importância dos laços e
das relações humanas com a esperança de que
este seja uma ferramenta útil à manutenção e
preservação das mesmas.
6

AGRADECIMENTOS

Sou imensamente grato à minha mãe, Maria das Graças Lima Ribeiro, pelo
suporte e incentivo que me foi dedicado ao longo do curso. Sua capacidade de
perseverança e fé, assim como a confiança em mim depositada, foram exemplos
para que eu fosse capaz de alcançar meus objetivos.

Sou muito grato ao meu irmão, Yves Ribeiro de Moraes, por seu
companheirismo, senso de humor e seu carinho para comigo tanto nas horas difíceis
quanto nas horas mais tranqüilas e descontraídas.

Agradeço André Soares Pereira Avelar pela atenção e orientação que me fora
dada ao longo do trabalho para o desenvolvimento e conclusão do mesmo.

Agradeço, também, o auxílio dos professores José Roberto e Sérgio para o


desenvolvimento do mesmo através de suas opiniões acerca do tema.

Sou grato aos grandes professores que tive; Henrique Rodrigues, Ruth
Goldenberg, José Roberto Bastos, Adriana Brites, Marcos Portela, Marisa Speranza,
Marisa Ferreira, Benita Lousada e André Avelar entre outros, não menos
importantes, por me mostrarem o quão profunda, rica e abrangente é nossa
profissão.

Por último, com exímia importância, agradeço à minha grande companheira,


amiga e amada Vânia Paraizo por tudo que ela significa para mim e por todas as
adversidades que esta me auxiliou a atravessar, bem como a confiança que me fora
depositada.
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“Há duas tragédias na vida:


uma a de não satisfazermos os nossos desejos,
a outra a de os satisfazermos.”
(Oscar Wilde)
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RESUMO

Este trabalho aborda as relações interpessoais em seu contexto social atual,


abordando a relação direta entre o consumismo os processos de identificação
cultural com seus reflexos nas relações interpessoais.

São também abordadas a angústia e a ansiedade derivada de tais interações,


bem como a objetalização das relações, o desejo social e individual. É colocada em
evidência a evolução das necessidades da sociedade, partindo de suas
necessidades, passando por seus desejos e culminando em seu querer, e o
consumismo positivado dentro do contexto atual.

Palavras-chave: Angústia. Ansiedade. Consumismo. Sociedade. Relações


interpessoais.
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ABSTRACT

This work is about interpersonal relationships on the actual social context,


approaching the direct relationship between consumption and the cultural
identification processes with its reflexes on interpersonal relationships.

It is also seen on this work, the angst and anxiety produced by such
interactions, as well as the objectification of the relations, the social and individual
desire. It’s put in evidence the evolution of the society’s needs, beginning from it’s
necessities, going through it’s desires and culminating on it’s wants to, and the
positivated consumption inside the actual context.

Keywords: Angst. Anxiety. Consumption. Society. Interpersonal relationships.


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SUMÁRIO

CAPÍTULO I – INTRODUÇÃO ............................................................................. 11

CAPÍTULO II – OS MECANISMOS DO PRAZER-DESPRAZER ....................... 14


2.1 O Imediato ..........................................................................................16

CAPÍTULO III - A Angústia .................................................................................. 18


3.1 Angústia de Consumo ....................................................................... 21
3.2 Angústias Diferenciadas .................................................................... 24

CAPÍTULO IV – O DESCARTÁVEL DENTRO DO CONSUMO .......................... 25


4.1 Sociedade Imediatista ........................................................................ 29
4.1.1 Oferta e Demanda de Amor ................................................... 31
4.1.2 O Desejo Pelo Desconhecido ................................................. 32
4.1.3 O Desejo do Amor .................................................................. 33
4.1.4 Desejo Social .......................................................................... 34
4.1.5 Desejo Psicanalítico ............................................................... 36
4.2 Sociedade Desejante ......................................................................... 39
.
CAPÍTULO V – DESEJO INDIVIDUAL ................................................................ 41

CAPÍTULO VI – NECESSIDADE, DESEJO E QUERER .....................................46

CAPÍTULO VII – CONSUMISMO POSITIVADO ................................................. 48


7.1 Desejo e Objeto Positivado .................................................................. 51

CAPÍTULO VIII – CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................53

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 58


11

CAPÍTULO I

INTRODUÇÃO

O tema aqui apresentado trata da relação que pode ser observada no


contexto social atual, entre a angústia advinda do confronto de um indivíduo com
sua castração e a efemeridade e fragilidade dos vínculos, experiências e sensações.

O indivíduo, na sociedade contemporânea, encontrara no consumo uma


forma de apaziguar os conflitos decorrentes de seu confronto com a castração. O
ato de consumir seria dessa forma um modo de apaziguamento da angústia
decorrente de sua neurose.

Ao Desviar seu foco dessa impossibilidade ele procura alguma forma de


aplacar essa angústia. E é nesta atual forma encontrada para se aplacar a angústia,
maciçamente difundida, que nos leva a cultura do descartável e a uma angústia de
consumo.

A cultura do descartável é reflexo de um determinado funcionamento


psíquico, presente no paradigma contemporâneo; é um reflexo de uma tendência
atual: a pouca tolerância à frustração.

Esta temática chama à atenção por se tratar de um fenômeno social atual,


que pode ser caracterizado, conforme anteriormente mencionado, através dos
valores que são massivamente difundidos e reforçados pela mídia globalizada,
assim como também pela sociedade, que dizem como você deve ser, o que deve
vestir, o que deve usar e o que deve comer para estar bem consigo mesmo e ser
feliz.

Enfatiza-se acentuada e freqüentemente o consumismo como uma das


fórmulas ou caminhos certos para se alcançar à felicidade, sendo que tal tendência
12

termina por se estender, também, às relações interpessoais; do mesmo modo que


algumas pessoas trocam de carro a todo ano por cobiçarem algo novo (seja o bem
ou a sensação), por não se satisfazerem com seus respectivos carros atuais ou até
mesmo por se decepcionarem com o que possuem; também os relacionamentos
interpessoais parecem ter adquirido um prazo de validade. Além de terem se
tornados, aparentemente, mais frágeis ou fugazes.

Relacionamentos podem ser hoje considerados longos ao atingirem uma


marca que costuma variar, aproximadamente, de um a três anos de duração, em
contraposição a uma ou duas décadas atrás onde era consideravelmente comum
observar relacionamentos que duravam uma vida inteira. Neste ponto, é valido
lembrar, também, que não existia o divorcio no Brasil.

Podemos constatar também que melhores amigos são eleitos tão fácil e
rapidamente quanto são substituídos, ainda que haja um sentimento ou uma entrega
sincera por parte dos envolvidos. Observa-se que hoje em dia a busca pelo prazer
leva os indivíduos a perseguir as experiências prazerosas de forma quantitativa,
muitas vezes não as valorizando ou as percebendo devidamente dentro de sua
singularidade.

Haja vista que a sociedade está, hoje, organizada e estruturada de acordo


com o padrão consumista que nos é familiar, não podemos nos abster da
responsabilidade que nos cabe, pois são os indivíduos pertencentes à sociedade
que ditam como esta deve se estruturar, e não o contrário.

O estudo de tais contingências a respeito do que é chamado aqui de cultura


do descartável tem como objetivo a conscientização dos mecanismos deste
processo, de forma que nos possibilite repensar, reestruturar, ressignificar, e até
mesmo transformar, as relações interpessoais bem como nossas metas e objetivos
particulares, para que conseqüentemente haja uma maior capacitação no que diz
respeito à melhor representação, a forma com que se lida com a angústia e o
confronto com as impossibilidades que nos cercam; para que seja então possível
vivenciar qualitativamente, e não mais quantitativamente, as experiências singulares
com as quais nos defrontamos diariamente.
13

Estarei trabalhando o conceito de Angústia segundo a Psicanálise, de


acordo com Sigmund Freud, assim como os conceitos de Prazer (o estado de não-
tensão) e Desprazer, bem como a relação entre ambos, dentro da visão também
psicanalítica, com base em textos de Freud como “O Mal-Estar na Civilização”, “O
Futuro de uma Ilusão” e “O Ego e o Id”, entre outros. O conceito de descartável será
apresentado tendo-se como base o autor Zygmunt Bauman em “Amor Líquido”. Será
também abordado o conceito de consumismo a partir de José Durval Cavalcanti de
Albuquerque em “Consumir é uma Necessidade Fisiológica”.
14

CAPÍTULO II

OS MECANISMOS DO PRAZER – DESPRAZER

Freud descreve o Princípio de Prazer como o desejo de gratificação


imediata, onde tal desejo impulsiona o indivíduo a buscar o prazer e evitar o
desprazer. Em contraposição ao princípio do prazer, encontramos o Princípio de
Realidade, que é caracterizado pelo adiamento da gratificação almejada pelo Id;
gratificação esta expressa pelo princípio de prazer, dada a impossibilidade, no
momento, de se atingir o prazer desejado, dado fatores físicos, sociais ou mesmo
ambientais.

Conforme o indivíduo vai se desenvolvendo, ele aprende a suportar a dor,


assim como o adiar da gratificação almejada, passando assim, a impor o princípio da
realidade (que engloba as possibilidades físicas, sociais e ambientais) ao Id, que é
nossa parte desejante, originária do princípio do prazer. Faz parte do
amadurecimento normal do indivíduo aprender a suportar a dor e adiar a
gratificação.

Na medida em que este processo vai se desenvolvendo ao longo da vida do


indivíduo, este passa a ponderar mais sobre seus objetos de desejo, considerando
as circunstâncias nas quais seu desejo pode ser atendido e quando o mesmo pode
ser atendido. Eis, então, que o princípio da realidade, ainda que se encontre a
serviço do princípio do prazer, desempenham um papel mais ativo ao regular as
demandas do Id.

Dentro do contexto abordado temos como sujeito uma sociedade desejante


cujos anseios urgem por serem atendidos de imediato, ainda que o próprio objeto de
desejo seja obscuro diante daqueles que o perseguem.
15

O objeto de desejo, por nunca ser alcançado, é a fonte geradora da angústia


que acomete os indivíduos da sociedade contemporânea (assim como a não
contemporânea). O sistema capitalista que movimenta esta sociedade faz com que a
maior parte dos indivíduos procure aplacar suas angústias através do consumismo,
o que cria um novo problema a partir do momento em que os indivíduos que se
encontram impossibilitados de atingir determinadas metas ou objetivos, ou até
mesmo quando não possuem uma condição econômica mínima necessária para
adquirir supostos objetos de desejo que são eleitos e divulgados pela mídia, acabam
agravando seu estado de angústia, muitas vezes transformando uma angústia
realística em angústia neurótica. A mídia globalizada ganha cada vez mais espaço e,
conseqüentemente, força para influenciar as sociedades em geral.

A angústia gera a demanda que recai sobre o consumo, que por sua vez
influencia a oferta.

A cultura do consumismo é reflexo de uma mudança na relação do sujeito


com o objeto de consumo. O que se consome não é apenas o objeto, mas sua
representação, seu status, tão ou mais importante que seu valor funcional.

Um ponto muito importante que não pode ser excluído, é que ainda que a
mídia seja uma ferramenta formadora de idéias e opiniões, esta é tão somente a
expressão da sociedade contemporânea.

Quebrando as fronteiras territoriais e culturais, novos estímulos e sensações


são prometidos e oferecidos como alternativas para saciar o desejo latente em cada
um de nós. A mídia, ainda que não invente a falta e a angústia, procura encontrar
esse circuito e identificar o desejo.
16

2.1 O IMEDIATO

A sociedade em que vivemos tende a ser prática e imediatista, conforme


será abordado mais adiante. Conseqüentemente, se não tudo, a maior parte das
ações da mesma tem como objetivo proporcionar esta praticidade, além de permitir
que as coisas ocorram da forma mais rápida o possível.

Os próprios indivíduos são os responsáveis por conduzir a sociedade desta


forma, haja vista que é a sociedade o reflexo daqueles que a compõe, e não o
contrário.

É gerada a necessidade de facilidades e praticidade em todos os campos


pertinentes à vida do indivíduo; no trabalho a divulgação de memorandos e
comunicados internos através do correio eletrônico disponível da intranet, a
disponibilidade dos bancos em se conferir a própria conta bancária on-line, bem
como realizar transações e pagamentos.

Em relação à vida social pode-se comprar ingressos de cinema sem que se


tenha de sair de casa, escolhendo, além do horário da sessão desejada, também o
assento desejado.

Lojas de modo geral proporcionam ao consumidor todas as facilidades de


aquisição de bens, assim como a garantia da satisfação no que diz respeito ao que é
adquirido. No caso de um produto que não seja satisfatório, garante-se a devolução
integral do valor pago pelo mesmo.

Até mesmo os jornais impressos ou televisivos, os meios de comunicação


em geral, dão suporte a este tipo de pensamento.

Ainda assim, a tecnologia não é responsável pela banalização ou


efemeridade dos vínculos; o que ocorre é que ela reflete a necessidade da
sociedade no que é pertinente à satisfação imediata.
17

A relação do indivíduo com o objeto de consumo; quer este seja um objeto


de fato ou não, é o determinante da efemeridade que é passível de afligir as
relações do mesmo. As facilidades oferecidas pela tecnologia são decorrentes das
necessidades dos indivíduos, e não o oposto.

A efemeridade da relação entre o sujeito e o objeto torna-se decorrente da


não satisfação do desejo, isto é, decorre do princípio do prazer.
18

CAPÍTULO III

A ANGÚSTIA

Em alguns textos Freud chamou a atenção sobre a angústia definindo-a da


seguinte forma:

"É um estado afetivo... combinação de determinados sentimentos da série prazer-


desprazer, com as correspondentes enervações de descarga, e uma percepção dos
mesmos, mas, provavelmente, também como um precipitado de um determinado evento
importante, incorporado por herança..." (Freud, 1976)

Infere-se, a partir de então, sua semelhante a um ataque histérico


individualmente adquirido.

Freud nomeia a angústia de duas formas: como angústia realística, sendo


esta compreensível frente aos perigos e danos que vêm de fora, tal qual a angústia
advinda da preocupação pertinente a contas em atraso, ou uma situação de risco
como um assalto; e angústia neurótica, que seria enigmática e, em princípio,
despropositada.

A angústia neurótica apresentar-se-ia de forma livre e flutuante; vinculada a


determinadas idéias e acompanhando sintomas em um estado persistente que não
seria causado por “qualquer base visível em um perigo externo” (Freud, 1976).

A neurose de angústia seria causada pela libido desviada de sua utilização.


Neste sentido, esta angústia seria a “reprodução de um evento antigo que
representou uma ameaça de perigo” (Freud, 1976), onde um indivíduo traria para o
momento presente um evento que ficou marcado no mesmo, fixando a angústia que
se encontra livre e flutuante, conforme mencionado acima, e produzindo, assim, a
angústia neurótica.
19

Em “O Ego e o Id” Freud (1923) introduz os conceitos de Id, Ego e


Superego. Reconhecendo as mudanças, passa a afirmar que é a angústia que
produz o recalque e não o inverso. A angústia é anterior, e a formação dos sintomas
evita a irrupção da mesma.

A angústia é classificada de diversas formas, realística, neurótica e moral. O


nascimento, que antes fora compreendido como um dano passa a ser visto como
situação que imprime à experiência psíquica um estado de excitação intenso,
desprazer impossível de ser elaborado ou mesmo descarregado.

Freud chama de traumático esse momento ante “o qual os esforços do


princípio de prazer malogram” (Freud, 1976). É a emergência desse momento que é
temido. A soma da excitação, sua magnitude, transforma uma impressão em
momento traumático paralisando a função do princípio do prazer, conferindo à
situação de perigo seu valor. “Os recalques primeiros e originais” (Freud, 1976)
teriam surgido de momentos traumáticos nos quais o Ego se deparou com uma
exigência libidinal excessivamente grande.

Podemos encontrar uma dupla origem da angústia, “como conseqüência


direta do momento traumático” e como “sinal que ameaça com uma repetição de um
tal momento” (Freud, 1976).

Destacando na angústia o elemento perigo, Freud o relacionava a algumas


situações: no estágio inicial do Ego, estaria ligado ao desamparo da criança; nos
primeiros anos, ao perigo da perda do objeto; na fase fálica, ao perigo de ser
castrado; e na fase de latência, ao temor do Superego.

Freud sublinha como situações primordiais causadoras de angústia a perda


ou a separação da mãe provedora de todas as necessidades da criança e o advento
da castração. Freud defendia a existência do objeto do desejo, mas, apesar de falar
da angústia como “angústia por algo” (Freud, 1976), para ele, a angústia não tinha
objeto. A angústia estava relacionada à falta.
20

Em Além do Princípio do Prazer Freud exemplifica este fato com as


repetições de jogos e brincadeiras infantis. Nos jogos as crianças encenam e
representam a separação da mãe, passando da passividade para a atividade, para
lidar com ela.

Vulgarmente, nós chamamos de angústia a sensação psicológica


caracterizada por “abafamento”, insegurança, falta de humor, ressentimento, dor e
“feridas na alma”. Na moderna psiquiatria é considerada uma doença que pode
produzir problemas ou sintomas psicossomáticos.

A angústia é também uma emoção que precede algo (um acontecimento,


uma ocasião, circunstância). Também se pode chegar à angústia através de
lembranças traumáticas que dilaceraram ou fragmentaram o ego, ou sempre que a
integridade psíquica se encontrar ameaçada.

Não é incomum a existência de angústia em estados paranóicos onde a


percepção é redobrada, assim como em casos de ansiedade persecutória. A
angústia exerce função crucial na simbolização de perigos reais (situação,
circunstância) e imaginários (conseqüências temidas).

Freud, em seus estudos sobre a angústia, afirmou que vivemos um conflito


interno entre três instâncias psíquicas fundamentais ao equilíbrio do ser: nossos
desejos (Id) que vivem em constante atrito com nosso instinto repressor (Superego),
cuja mediação é feita pelo Ego, a nossa consciência.

É o Ego que analisa a viabilidade de se por em prática um desejo expresso


pelo Id. Não obstante, tem de controlar o excessivo rigor imposto pelo Superego.

A esse conflito entre o Id, Ego e o Superego; advindo do fato de que nossas
possibilidades de felicidade são restringidas por nossa própria constituição e que
nossa infelicidade é muito menos difícil de experimentar.

O sofrimento que vem a nos ameaçar é oriundo de três fontes principais: do


nosso próprio corpo, que é condenado à decadência e dissolução, do mundo
21

externo que pode voltar-se contra nós impiedosamente, com força esmagadora, e de
nossas próprias relações com outros indivíduos, sendo este último provavelmente a
mais incisiva de todas as fontes.

O produto resultante do nosso conflito com essas forças foi denominado, por
Freud, de angústia.
22

3.1 ANGÚSTIA DE CONSUMO

O que vem aqui a ser denominado como Angústia de Consumo trata


especificamente da angústia neurótica onde o indivíduo se volta para o consumismo
como a principal forma de aplacar a mesma.

Tendo consumismo, inicialmente, definido como o ato de consumir, a priori,


bens materiais, nós passamos a poder observar que o mesmo princípio que rege
este consumismo tradicional acaba se estendendo a outros campos, transformando-
se, assim, em um consumismo de sensações.

É por este fato que observamos uma transformação nas relações


interpessoais, pois muitas delas passaram a ter uma função diferenciada, ou,
simplesmente, a mais que consiste no aplacar da angústia sentida por um indivíduo.
Podemos observar atualmente a crescente tendência de que alguns
relacionamentos são criados ou cultivados com o objetivo de um ganho direto
(quando, por exemplo, nos relacionamos com uma pessoa pelo que ela pode nos
oferecer diretamente – companhia, carinho, atenção, oportunidades) ou indireto
(quando tal relacionamento serve única e exclusivamente para criar uma ponte até o
objetivo almejado) advindos dos mesmos.

Observando o que foi previamente abordado em relação à angústia realística


e neurótica, poderíamos inferir que o que é chamado aqui de angústia de consumo
pode se apresentar com traços característicos de ambas, pois se por um lado essa
angústia gerada pela sociedade de consumo pode parecer, a priori, despropositada
(tal qual podemos indagar por que um indivíduo ficaria tão abalado e desesperado
por não conseguir comprar o tênis de uma determinada marca cujo valor representa
dois meses de seu salário, tendo em vista que em sua casa falta comida), por outro
ela também poderia estar se apresentando em face de um suposto perigo externo e
eminente (fracasso, depreciação por parte de terceiros e perda de oportunidades,
entre vários outros).
23

Ainda assim, a relatividade do ponto de vista do observador acaba por se


tornar o diferencial entre uma, outra ou ambas.

Os reflexos da angústia de consumo, ainda que esta possa ter sua


classificação variando entre uma angústia realística ou neurótica, não são menos
expressivos do que estas. Todos os seus efeitos típicos se manifestam da mesma
forma no indivíduo que se encontra em um estado ou situação propícia a tal.
24

3.2 ANGÚSTIAS DIFERENCIADAS

Dentro do contexto comparativo entre a angústia observada nos indivíduos


que são tomados pelo consumismo, e a angústia do set psicanalítico, podemos
constatar uma diferença básica entre ambas – o caráter pertinente à individualização
do sujeito do desejo.

O contexto da angústia de consumo tem como quadro comum à busca de


um objeto (seja realmente um objeto físico ou abstrato) com base em seu valor
idealizado, em vez de seu valor funcional; isso significa dizer, conforme visto
anteriormente, que um tênis, por exemplo, vem a ser comprado não por que é
confortável, ou por que reduz o impacto sofrido em uma corrida, mas sim porquê
este é investido, por um determinado grupo, de um status social e, portanto, para
fazer parte deste determinado grupo, a aquisição do tênis em questão é um pré-
requisito.

A angústia ou a ansiedade neste caso tende a fazer com que o indivíduo


peca sua singularidade. Seu objeto de desejo seria o mesmo compartilhado por seus
“pares” (ao menos, por aqueles que almejam ser seus pares), e um dos grandes
problemas deste objeto de desejo, é que ele é passível de ser atingido, o que cria
uma nova angústia ou ansiedade no indivíduo em questão: “agora que tenho isso...
o que faço?”. Neste exemplo, vemos a anulação do indivíduo.

Quando analisamos a angústia ou ansiedade dentro de um contexto, ou set,


psicanalítico, vemos que esta fala do sujeito. Seu desejo é, de fato, inalcançável, e
seu sofrimento psíquico (angústia ou ansiedade, neste caso) nos fala da
individualização do sujeito; de sua singularidade.
25

CAPÍTULO IV

O DESCARTÁVEL DENTRO DO CONSUMISMO

Consumismo é o ato de consumir produtos ou serviços, muitas vezes, sem


consciência. Há várias discussões a respeito do tema, entre elas o tipo de influência
que as empresas, por meio da propaganda e da publicidade, bem como a cultura
industrial, por meio da TV e do cinema, exercem nas pessoas. Muitos alegam que
elas induzem ao consumo desnecessário, sendo este um fruto do capitalismo e um
fenômeno da sociedade contemporânea.

A diferença entre o consumo e o consumismo é que no consumo as pessoas


adquirem somente aquilo que lhes é necessário para sobrevivência. Já no
consumismo a pessoa gasta tudo aquilo que tem em produtos supérfluos, que
muitas vezes não é o melhor para ela, porém é o que ela tem curiosidade de
experimentar devido a propagandas na TV, devido a ser um produto de marca. Isso
pode gerar violência, pois as pessoas que cometem crimes na maioria das vezes
não rouba ou furta nada por necessidade, e sim por vontade de ter aquele produto, e
de não ter condições de adquiri-lo.

Muitas vezes o consumismo chega a ser uma patologia comportamental.


Pessoas compram compulsivamente coisas que elas não irão usar ou que não têm
utilidade para elas apenas para atender à vontade de comprar.

A explicação da compulsão pelo consumo talvez possa se amparar em


bases históricas. O mundo nunca mais foi o mesmo após a Revolução Industrial. A
industrialização agilizou o processo de fabricação, o que não era possível durante o
período artesanal. A indústria trouxe o desenvolvimento, num modelo de economia
liberal, que hoje leva ao consumismo alienado de produtos industrializados. Além
disso, trouxe também várias conseqüências negativas por não se ter preocupado
26

com o meio ambiente. Felizmente, hoje, há pensamentos diferentes sobre este


tema, que fizeram surgir novas profissões como, por exemplo, a de Eco-design.

O consumismo tem origens emocionais, sociais, financeiras e psicológicas


onde juntas levam as pessoas a gastarem o que podem e o que não podem com a
necessidade de suprir à indiferença social, a falta de recursos financeiros, a baixa
auto-estima, a perturbação emocional e outros.

Além de conseqüências ruins ao consumista que são processos de


alienação, exploração no trabalho, a multiplicação de supérfluos (que contribuem
para o processo de degradação das relações sociais e entre sociedades) e a
oneomania (que é um distúrbio caracterizado pela compulsão de gastar dinheiro que
é mais comum nas mulheres tomando uma proporção de quatro por um).

Tendo em vista a enorme pressão colocada sobre grande parte dos


indivíduos pela cultura, sociedade e até mesmo por familiares e amigos a respeito
da definição de sucesso e de prazer, tais indivíduos se encontram cada vez mais
buscando prazer e satisfação através de um consumismo desenfreado que é
proveniente de uma fútil tentativa de se tamponar o vazio estrutural que sentem com
objetos e sensações.

Ainda assim, dado o fato de tais objetos e sensações não conseguirem


aplacar a angústia que os aflige, por não tratar de suas questões pessoais em
relação à falta, a sensação inquietante não é extinta e acaba por retornar.

Em sua reincidência, os mesmos objetos e sensações que outrora foram


suficientes para aplacar a angústia infligida, já não são mais suficientes para atingir
o mesmo resultado, levando os indivíduos a procurarem novos estímulos,
proporcionados tanto por objetos quanto pelas sensações propriamente ditas, que
consigam novamente aplacar tal sensação, ainda que, novamente, por pouco tempo.

Existem vários exemplos claros de tal processo, mas um dos exemplos que
se tem relação a isso é visto no campo acadêmico, onde desde cedo a criança é
imbuída, pelos pais ou responsáveis, da obrigação de ser feliz e carrega isso ao
27

longo de sua vida, muitas vezes transmitindo tal preceito a seus próprios filhos: Para
você ser feliz você precisa ser inteligente, para se tornar inteligente você precisa
estudar muito e tirar boas notas, para tirar boas notas você deve abdicar de se
divertir durante determinado tempo.

Neste exemplo é encontrado um paradoxo onde a criança é ensinada que


para ser feliz ela deve não ser feliz durante um período de tempo pré-determinado
por sua situação escolar/acadêmica. Neste processo, a criança desejante do prazer
prometido, vem a se comprometer com este acordo, e durante o tempo em que se
dedica quase que exclusivamente ao estudo sente-se frustrada por ter de recusar
convites e ver seus amigos brincando descontraidamente. Esta frustração por sua
vez gera ansiedade na criança, que por sua vez vem a instaurar, nesta mesma
criança em questão, a angústia.

Tal princípio também é aplicado facilmente em outros campos, como por


exemplo, no campo profissional: Para ser feliz é necessário ter muito dinheiro para
que se possa gastá-lo da melhor forma possível, para se ter muito dinheiro é
necessário trabalhar muito, para trabalhar muito eu tenho de abdicar de certas
coisas (sair com amigos, namorar, etc.).

Novamente incorrendo no paradoxo de abdicar do prazer para conquistar um


suposto prazer duradouro mais à frente.

As armadilhas encontradas na busca pelo prazer são inúmeras, e a mídia


constantemente bombardeia a sociedade com as idéias pré-construidas (e aceitas)
do modelo de sucesso que proporciona prazer, uma vez que o indivíduo não
consegue representar o foco de sua angústia: o carro mais rápido para você poder
sentir o prazer de ultrapassar a todos, o carro mais elegante e luxuoso para você ter
o prazer de ser cobiçado pelas mulheres, o computador mais rápido para você ter o
melhor desempenho em jogos de modo que tenha o prazer de ser melhor que os
outros, o computador mais potente para que você consiga realizar trabalhos que
seus concorrentes não consigam, de modo a ter o prazer de ser o melhor naquilo
que faz, comidas exóticas para você ter o prazer de desfrutar um delicioso jantar em
sua casa, o fast-food que lhe proporciona o prazer de se deliciar com um suculento
28

sanduíche ou um delicioso lanche sempre que você estiver com fome e com
pressa...

Existe uma infinidade de alternativas são oferecidas para que se consiga


obter prazer, mas o problema é que, como o vazio que é sentido não é preenchido
com tudo o que é oferecido, novas sensações são constantemente cada vez mais
necessárias; carros mais velozes, computadores mais rápidos e, até mesmo, novas
pessoas.

Outro grande problema causado pela massificação das idéias acerca do


ideal de sucesso é que a proposta de tais ideais, além de não serem suficientes para
aplacar de forma satisfatória e duradoura a angústia, faz com que o fracasso ao se
atingir os mesmos torne-se um fator produtor de considerável angústia, fazendo com
que o indivíduo que falhou em atingir tal objetivo torne-se frustrado e infeliz pela
impossibilidade de se mostrar apto a integrar tal realidade conceitual. A infelicidade
decorrente do fracasso e frustração termina por acrescentar e acentuar ainda mais a
angústia já possuída pelo indivíduo, fazendo com que o mesmo desloque mais ainda
o foco de sua angústia, procurando soluções paliativas para contornar a sensação
inquietante que o aflige, incorrendo, novamente, no círculo vicioso que é instaurado
pela busca do bem-estar e do prazer.
29

4.1 SOCIEDADE IMEDIATISTA

A sociedade em que vivemos atualmente é uma sociedade globalizada,


cujas fronteiras, tanto físicas quanto culturais, são cada vez menores e, por vezes,
inexistentes.

A facilidade com a qual as informações trafegam ocorre quase que


instantaneamente, ao passo que a velocidade com a qual a tecnologia é
desenvolvida e aperfeiçoada segue em um ritmo de crescimento exponencial. Tal
fato, por sua vez, é um reflexo da demanda imposta pelas pessoas; a informação
tem de vir de imediato, o lucro tem de ser imediato, a diversão tem de vir
imediatamente, assim como a fome e a sede têm de ser saciadas imediatamente.
Isso cria a demanda por carros mais velozes, computadores mais rápidos e
potentes, televisões maiores e com maior resolução, sistemas de delivery (tanto de
comida e bebida quanto de malotes e encomendas) mais rápidos e confiáveis, etc.

O acompanhamento desta evolução por parte dos indivíduos que anseiam, e


que muitas vezes precisam desta praticidade e agilidade de serviços, faz com que
se tornem por muitas vezes dependentes daquilo que usam e da forma como usam.
Alguém que possua um carro 1.8 se sentirá extremamente desconfortável ao ser
obrigado a utilizar um carro 1.0, da mesma forma que um programador que
necessite de um computador com uma determinada especificação se sente
prejudicado, muitas vezes não conseguindo sequer operar um computador com as
especificações inferiores as do que ele usava.

As pessoas desenvolvem um mal-estar similar em situações sociais; aqueles


que costumam freqüentar determinadas círculos sociais sentem-se mal quando
alguma restrição lhes é imposta de modo que são obrigadas a mudar de círculo
social ou impedidas de freqüentar aqueles que estão acostumados.

Tal situação de desagrado tem como característica em comum a demanda,


por parte do indivíduo que se sente prejudicado, de uma mudança ou retorno à
30

condição prévia em que se encontravam. O não atendimento desta demanda é fonte


causadora de grande angústia e ansiedade.

Outro ponto reflexo da situação acima é a exigência imposta não pelo


indivíduo a ele próprio, mas, como facilmente observado em empresas de pequeno,
médio e grande porte, do superior ao seu subordinado.

Vivemos, hoje, em um contexto onde o consumismo anda lado a lado com a


necessidade do imediato, dos prazeres passageiros e satisfações instantâneas.
Resultados práticos, que não exijam maiores esforços (e em alguns casos, esforço
algum) são buscados, assim como a garantia total de sucesso através de fórmulas e
receitas comprovadamente eficazes.
31

4.1.1 OFERTA E DEMANDA DE AMOR

Bauman (2004) nos diz, em relação à capacidade de amar, que a


abundância, juntamente a disponibilidade de experiências amorosas alimentam a
convicção de que amar é uma habilidade que pode ser adquirida da mesma forma
que o domínio de tal habilidade aumenta com a prática e a assiduidade do próprio
exercício de amar.

Um problema encontrado com o “exercício” do ato de amar, é que o mesmo


acaba tendo o efeito oposto ao desejado, pois o que tende a ficar registrado em
nosso inconsciente é que o amor seria em essência composto por episódios
intensos, impactantes e de curta duração, o que culminaria com uma implícita
fragilidade a respeito de sua própria essência.

O exercício de amar exercido por um indivíduo tem reflexo em todos aqueles


com quem ele se relaciona, que por sua vez podem – e provavelmente irão –
imprimir tal reflexo em suas próprias relações, caso estas venham a incidir no
padrão previamente encontrado. A urgência pelo novo, ou até mesmo, em alguns
casos, para esquecer a relação anterior, faz com que muitas vezes não se percebam
os fatores envolvidos que levaram ao desfecho indesejado, abrindo, deste modo,
uma possibilidade de que o evento siga o mesmo padrão.

Em última análise, a repetição do “exercício” do ato de amar, mais conduz a


uma proficiência no encerrar rapidamente um evento e começar rapidamente outro,
retroalimentando uma cadeia cíclica onde a demanda gera a oferta que gera nova
demanda; e é este aspecto que estamos abordando tendo em vista relacionamentos
amorosos que acaba abrangendo, também, os relacionamentos interpessoais.

Se considerarmos que em todo amor, em toda relação amorosa, existem


pelo menos dois seres – amado e amante, reciprocamente ou não – podemos
entender um pouco melhor o mecanismo do desinteresse que permeia a sociedade,
se levarmos em conta, paralelamente, que nossa sociedade é consumista e
imediatista.
32

4.1.2 O DESEJO PELO DESCONHECIDO

O status de incógnita, de desconhecido, da parte da relação que esteja em


questão tende a ser objeto de curiosidade, e por sua vez, de desejo da contraparte
da mesma, o que funciona, mais especificamente falando, como o combustível da
relação amorosa; onde uma parte encontra-se sempre ardente por descobrir o outro,
maravilhado e entretido na aventura de se aventurar, explorar e até mesmo
descobrir, algumas vezes, os enigmas de seu objeto de amor. Tal desejo, quando
envolve indivíduos em uma relação amorosa ou não, muitas vezes é tomado por
amor. Quando se descobre ou se conhece a outra parte da relação, não é incomum
observar que se perde o “encanto” do desconhecido.

O mesmo é facilmente validado para as relações consumistas; os jogos de


videogame perdem a graça quando acabam seus segredos e são rapidamente
substituídos por outros novos (e desconhecidos), computadores perdem parte de
sua graça quando não se consegue explorar ou descobrir novos recursos do
mesmo, empregos tornam-se maçantes quando não são vislumbradas novas
possibilidades dentro deste, seja a mérito de desenvolvimento profissional (onde o
novo status proporcionaria novos desafios) ou a mérito de mudança de ambiente ou
equipe.

No Banquete de Platão, a profetisa Diotima de Mantinéia ressalta que o


amor não se dirigiria ao belo, mas sim a geração e ao nascimento do mesmo, o que
traduz este amor como um impulso criativo. Restaria-nos, entretanto, aprender a
amar também o que é belo, tendo em vista que amamos seu desenvolvimento e
concepção.
33

4.1.3 O DESEJO DO AMOR

Zygmunt Bauman (2004) estabelece um paralelismo entre desejo e amor ao


dissertar sobre a sociedade atual, onde coloca ambos como forças opostas e
complementares: de um lado, temos o amor como a vontade de cuidar e de
preservar o objeto cuidado, tal qual um impulso centrífugo, ao contrário do impulso
do desejo, centrípeto, onde o anseio é pelo processo em si, não por seu produto,
conforme visto mais acima. O amor impulsionaria o indivíduo a expandir-se e ir além,
a absorver e assimilar o sujeito no objeto, vendo o mesmo como uma pessoa de
emoções, sensações e vontade.

O desejo iria pelo caminho contrário, tomando o sujeito como seu objeto,
ignorando seus traços pessoais e particulares, em vista da suplência de suas
próprias necessidades. Enquanto o amor quer possuir, o desejo visa consumir.

Ainda assim, tal qual o desejo, o amor é uma ameaça ao seu objeto. O
desejo destrói seu objeto, destruindo a si mesmo no processo, enquanto o amor,
através da trama cuidadosamente tecida em torno de seu objeto, o escraviza e o
enclausura. Ambos possuem sua própria práxis em relação a seus respectivos
objetos, e ainda assim ambos estão intrinsecamente ligado um ao outro; o amor se
empenha em perpetuar o desejo, à medida que o desejo se empenha em fugir dos
grilhões do amor.
34

4.1.4 DESEJO SOCIAL

Em contraposição à idéia de Bauman quanto à definição de desejo, temos o


conceito psicanalítico do mesmo onde o desejo nunca é capaz de ser atendido, o
que termina por propiciar o movimento de busca pela satisfação do mesmo e a
própria vida psíquica do indivíduo.

O desejo social, os anseios pela satisfação imediata, muitas vezes são


tomados por puro impulso, tal qual uma ida ao shopping onde a maior parte dos
consumidores não compra para satisfazer um desejo, e sim pelo simples impulso de
comprar.

Levando-se em conta de que na época em que vivemos, onde o longo prazo


é cada vez mais curto, o desejo precisa de tempo para germinar, crescer e
amadurecer, a velocidade desta maturação do desejo resiste de modo obstinado à
aceleração. O tempo necessário para o investimento no cultivo do desejo para dar
lucros parece cada vez mais irritante e insustentavelmente longo. Aproveitando o
exemplo acima, observamos que os shopping centers de hoje tendem a ser
planejados tendo-se em mente o súbito despertar e rápida extinção dos impulsos, e
não a incômoda e prolongada criação e maturação dos desejos.

O único desejo que poderia, e deveria, ser implantado por meio da visita a
um shopping é o de repetir, incontáveis vezes consecutivas, o momento estimulante
de abandonar-se aos impulsos e permitir que estes comandem o espetáculo sem
que haja um cenário pré-definido.

A curta expectativa de vida é o trunfo que dos impulsos possuem, dentro do


contexto social, sobre os desejos. Render-se aos impulsos, ao contrário de seguir
um desejo, é algo que se sabe ser transitório, mantendo-se a esperança de que não
deixará conseqüências duradouras capazes de impedir novos momentos de êxtase
prazeroso.
35

Abordando o contexto dos relacionamentos e das parcerias (podendo-se


enfatizar dentro deste contexto às parcerias sexuais em particular como o campo
onde melhor se observa isto) seguir os impulsos em vez dos desejos significa deixar
as portas escancaradas a novas “possibilidades românticas” que poderiam, em
teoria, ser mais satisfatórias e completas.

Vemos, de acordo com Bauman que:

“(...) a ação por impulso profundamente incutida na conduta cotidiana


pelos supremos do mercado de consumo, seguir um desejo é como
caminhar constrangido, de modo desastrado e desconfortável, na
direção do compromisso amoroso”. (BAUMAN, 2004)

Em sua versão mais ortodoxa, o desejo precisa ser desenvolvido, cultivado e


preparado; fato que demanda do indivíduo desejante cuidados, barganhas e, como o
pior de tudo, concessões diversas. Tais pré-requisitos que giram em torno do desejo
acabam impondo que a satisfação seja retardada, um fato consideravelmente
evitado que causa sérios desagrados aos indivíduos imersos no mundo que respira
e vive em alta velocidade.

Quando observamos as parcerias guiadas pelo impulso, estas tendem a


seguir um padrão similar ao do consumidor que vai ao shopping center, não exigindo
de seus integrantes mais do que um “nível mediano” que atenda a pré-requisitos
mais básicos. Do mesmo modo que vários outros bens de consumo, eles têm de
“consumir” o outro instantaneamente, não sendo necessários maiores treinamentos
para tal ou sequer uma preparação anterior, tornando os próprios relacionamentos,
quando não os próprios integrantes deste, eminentemente descartáveis.

As promessas de compromisso, a longo prazo, se tornam irrelevantes.


36

4.1.5 DESEJO PSICANALITICO

O desejo, tal como é entendido pela psicanálise, não é a mesma coisa que a
necessidade. Enquanto a necessidade é um conceito biológico, natural, implica uma
tensão interna que impele o organismo numa determinada direção no sentido de
busca de redução dessa tensão ou satisfação, logo, a autoconservação (ex.: a
necessidade causada pela fome faz com que o indivíduo comida), o desejo, sendo
de ordem puramente psíquica, é desnaturado e como tal pertence à ordem
simbólica.

Enquanto a necessidade é biológica, instintiva e busca objetos específicos


(comida, água, etc) para reduzir a tensão interna do organismo, o desejo não implica
uma relação com esses objetos concretos, mas sim, com o fantasma ou fantasia. Ou
seja, tal fantasma é, ao mesmo tempo, efeito do desejo arcaico inconsciente e matriz
dos desejos atuais, conscientes e inconscientes.

A demanda e o desejo fazem aparecer outro registro da falta; "a falta-a-ser".


Acontece que, a satisfação do desejo é sempre adiada e nunca atingida, portanto,
no fundo, o desejo busca o impossível. Restando-lhe sempre insatisfação, o desejo
se vê obrigado a buscar outro caminho, a realização. Através de meios-objetos
como a fantasia do seio, o sintoma, um beijo, o gozo da droga, o gozo do poder
político, o gozo do discurso teórico da fé, o gozo do rico que priva o outro de
também ter, o gozo de quem imputa sofrimento a outrem etc.

Todas essas formas de realização são marcadas por insatisfações primitivas


que se atualizam. O sujeito vive em estado de excitação contínua: prazer e
desprazer ao mesmo tempo. A pulsão e o desejo nos diferenciam dos animais, uma
vez que estes são seres de puro instinto, seres de necessidade. Os seres humanos
por serem desejantes, seres de linguagem são condenados a sentir, primeiro mal-
estar e angústia, depois por serem impulsionados para algo que se supõe trazer a
felicidade, um estado de completude de não falta.
37

O desejo, no fundo, sempre procura realizar a nostalgia do objeto perdido,


que habita no inconsciente, isto é, no lugar do "não-sabido". Então, o objeto não-
sabido e recalcado do desejo está condenado a repetir na atualidade o que no
passado remoto possivelmente foi prazer e depois virou gozo (um estado que fica
além do prazer; ou, para retomarmos os termos de Freud, ele é uma tensão, uma
tensão excessiva, um máximo de tensão, ao passo que, inversamente, o prazer é
um rebaixamento das tensões).

Tal como entende a psicanálise, o desejo implica num desvio ou perversão


da ordem natural ou biológica. Deixando de ser instintivos, os humanos se orientam
pela ‘ordem’ pulsional e desejante, ou seja, não somos mais movidos pela força
instintiva, que é apenas matriz do comportamento dos animais ditos irracionais.
Somos seres simbólicos, marcados pela desnaturalização empreendida pela cultura.
Somo movidos sempre por ‘outra coisa’.

Se fôssemos somente instinto e necessidade, seríamos como os animais,


que parecem felizes quando cumprem com seu ciclo biológico de fome e sexo. O
animal satisfeito deve  ser feliz. Mas, o mesmo não acontece com os seres
humanos. Podemos ter ‘tudo’ e ao mesmo tempo sentir vazio existencial; podemos
sentir prazer e ao mesmo tempo colher desprazer em nossos atos demasiadamente
humanos.

Se estivéssemos presos ao instinto, ainda teríamos cio, faríamos sexo


somente em determinada época do ano apenas para procriar; comeríamos apenas
para matar a fome e não para degustar para comida de um famoso restaurante e
beber um vinho de uma safra ‘x’, servido em um copo especial, etc... Entretanto, a
condição humana de ser desnaturalizado, desejante, cultural, complica a sua
conquista para ser feliz, embora possamos eventualmente experimentar alguns
momentos  de felicidade, como o gozo sexual, o recebimento de uma promoção no
trabalho, ganhar um prêmio, ver nascer um filho...

Essa distinção é importante porque, além de distinguir a categorias da


“satisfação” e da “realização”, tem importantes conseqüências na condução da
clínica psicanalítica, na política e na concepção sobre a construção da civilização.
38

Uma psicoterapia baseada na satisfação das necessidades dos pacientes constitui


um grave equívoco, é enganação, e pode abrir caminho para a perversão da relação
profissional, chamada por Freud (1974) de “psicanálise selvagem”. No centro da
teoria e da prática psicanalíticas está o desejo, diz Freud. Não é a necessidade, mas
o desejo. Ao final de um processo de psicanálise onde estava o “isso” [id] o “eu”
[ego] deve advir.

Este princípio possui correspondência até mesmo no campo político. Uma


ideologia política movida apenas para proporcionar a ‘satisfação da necessidade
coletiva’ começa por confundir o que é necessidade, desejo e demanda. Ela  poderia
proporcionar bem-estar coletivo, saúde física, boa educação, mas poderia ser um
fracasso quanto à realização das potencialidades subjetivas. As experiências do
socialismo real demonstram o quanto às pessoas podem ser gratas ao sistema
sustentar uma boa saúde e boa educação, mas, com medo, reclamam sobre a falta
de liberdade para ser.

É certo que a necessidade quando preenchida leva o sujeito a obter a


sensação de satisfação. Mas, não o leva o leva sentir-se feliz. Isto acontece porque
o desejo, jamais é satisfeito.
39

4.2 SOCIEDADE DESEJANTE

Voltamos a ver neste ponto, a influência da globalização mundial sobre a


sociedade. Dada a velocidade com a qual a informação é difundida ao redor do
globo, é importante observar qual tipo de informação está sendo transmitida. Tão
importante quanto à informação que está sendo vendida (queda da bolsa, eventos
políticos, criminalidade, esportes...)

O desejo social, conforme anteriormente visto, é voltado para várias coisas,


e sua origem é tão, ou mais, variado quanto seu objeto.

A sociedade sabe o que deseja, mas não necessariamente sabe o porquê


de seu desejo; enquanto temos, por um lado, o advogado que troca de carro todo
ano porquê sabe que o carro que ele possui é um reflexo de seu status, e que seu
status, por sua vez, reflete o quão bom ele é, está visando alcançar novos
patamares sociais, de forma que possa ser melhor remunerado por seus préstimos,
o adolescente que fica em cima de seus pais constante e incansavelmente para que
estes comprem para ele um tênis de marca, sabe que precisa deste para pertencer a
determinado grupo de seu interesse, ainda que não saiba o porquê deste grupo ter
como exigência que seus integrantes sejam usuários de determinadas marcas e
grifes.

Como último, e talvez mais curioso exemplo, temos os impulsos


consumistas, que compelem o indivíduo a consumir sem um motivo aparente, como
no caso da mulher que compra vários pares de sapato ou bolsas, ainda que tenha
em casa várias peças que nunca foram usadas.

O desejo da sociedade expressa vários aspectos da mesma; podemos citar


a ascensão ou aceitação social, a ostentação de poder, ou o preenchimento de um
vazio interno (definido dentro do conceito psicanalítico de desejo, conforme
abordado anteriormente) como alguns dos fatores principais e mais comuns.
40

Quando analisamos este aspecto social do ponto de vista econômico,


encontramos o sistema capitalista como uma das principais fontes de movimento
deste processo. O acúmulo de capital, por implicar poder e posição social, é
almejado por todos, ainda que somente poucos possam, de fato, deter uma parcela
significativa deste poder econômico, todos o desejam; e o fracasso em integrar esta
parcela da população detentora de poder, é fonte geradora de grande angústia.

O objeto de consumo da população, de modo geral, passou a abranger uma


gama muito ampla, tanto de objetos quanto de situações. Objetos e pessoas são
igualmente consumidos, até mesmo com semelhanças entre as respectivas
finalidades deste consumo.

Em todas as situações é almejado o prazer e a satisfação imediata; o


comprometimento com algo (ou alguém) para cuja promessa de prazer é admitida
somente mediante determinados cuidados e pré-requisitos, que por seu turno
determinam que este prazer ou satisfação será somente atingido a posteriori, torna-
se impensável e, muitas vezes, impraticável.

É válido lembrar que existe, também, um grande grupo de pessoas que não
detém poder aquisitivo algum. É uma grande parcela da população que é hipnotizada
pela mídia, tem o convite universal ao consumo, mas são todos excluídos por não terem
poder de compra. Essa frustração renovada é uma das causas da violência urbana, que
banaliza a vida do ser humano, a ponto de valer menos do que um tênis. A frustração
também causa a “doença dos nervos” que se manifesta nos corpos e no psiquismo dos
enquadrados, dos que se resignam.
41

CAPÍTULO V

DESEJO INDIVIDUAL

Para Freud, o desejo é o que põe em movimento o aparelho psíquico e o


orienta segundo a percepção do agradável e do desagradável. O desejo nasce da
zona erógena do corpo, e sem se reduzir ao corpo (soma) somente pode se
satisfazer apenas parcialmente. Ele realiza-se no movimento de querer mais e mais.

O desejo é sempre o desejo de um outro desejo. É algo sempre adiado, é


intervalar e vive de sua insatisfação.

O desejo jamais é satisfeito porque tem origem e sustentação da falta


essencial que habita o ser humano, daquilo que jamais será preenchido e, por isso
mesmo o faz sofrer, mas também o impulsiona para buscar realização (ou satisfação
parcial) no mundo objetivo ou na sua própria subjetividade (sonhos, artes, projetos
utópicos, fé no absoluto...).

O que entendemos por sujeito é construído desse circuito onde a libido


sempre tem um excesso que sustenta o movimento desejante. O sujeito em
psicanálise é dividido; o sujeito não é o indivíduo.

É válido lembrar que a psicanálise se refere ao “sujeito” e não, por exemplo,


ao “indivíduo” enquanto objeto da sociologia. Ou seja, o sujeito, na sua condição de
“sujeito dividido”, pode ser feliz; fato que não ocorre com o “indivíduo”.

No ponto mesmo em que o indivíduo sofre, o sujeito é feliz. Quaisquer que


sejam os seus infortúnios, ao nível do inconsciente ele é sempre feliz. Por
conseguinte, o sujeito do inconsciente é feliz.

Com o sujeito, faz surgir uma história com seus atos de melhoria e
transformação.
42

"É pela ação de assimilar o objeto que o homem se vê como oposto


ao mundo exterior. O primeiro desejo é um desejo sensual: o desejo
de comer, por exemplo, através do qual o homem procura suprimir ou
transformar o objeto assimilando-o” (Garcia-Roza, 1983, p. 141)

A afirmação freudiana que diz que “o mundo é movido pela fome e pelo
amor” também traz sérias conseqüências práticas, para além da biologia, da
psicologia, da política, etc.

Evidentemente, o sujeito humano sempre buscou, para si e para todos,


primeiro, a sobrevivência física e, depois, a realização de alguns projetos para além
da necessidade, representados pelos sonhos, a arte e os projetos políticos utópicos;
a priori, o homem se sustentaria em sua existência por cultivar utopias.

O homem não seria um ser feliz, absolutamente; sua felicidade reside e


resiste na busca diária da felicidade.

Ainda que este, até à morte busque a felicidade, ao final, ele estará certo de
que foi apenas relativamente feliz e de que poderia ter sido muito mais, guardando
em si um desejo absoluto de felicidade. Ou seja, enquanto brilhar no ser humano a
esperança, a felicidade é possível. Não como algo objetivado no futuro, mas como
algo que acontece no dia a dia, ainda que nem sempre seja possível aperceber.

Entretanto, é preciso reconhecer que é na dimensão onírica que o desejo se


realiza, por meio do disfarce. Só assim ele pode se realizar. Porque, na dimensão
concreta da realidade, jamais o sujeito poderá conquistar a felicidade. A realidade do
mundo, dos acontecimentos e dos fatos, sempre frustra nossa capacidade desejante
de preenchimento ou a sensação de ser feliz. 

Portanto, não podemos associar a satisfação das necessidades com a


felicidade. A arte, a política, a fé religiosa ou laica, prometem, mas não cumprem a
aspiração de proporcionar felicidade ‘realista’ao ser humano, porque ele está a priori
43

condenado a insatisfação, a angústia e deve se contentar apenas com os momentos


de satisfação parcial ou realização ilusória.

Talvez, o sujeito humano pudesse estar mais próximo da felicidade quando


sonha ou elabora projetos de uma vida feliz. Desde Agostinho, passando por
Leibniz, e Spinoza, a falta essencial está associada ao “mal radical” do ser humano
(Garcia-Roza, 1990).

Não porque este seria um ser diabólico, mas porque é um ser eternamente
propenso a buscar. Este estado de ‘mal-estar’ do ser humano constitui o núcleo
responsável pela fundação da cultura ou civilização. Imperfeita em todos os
aspectos, esta civilização faz surgir movimentos diversos visando melhorá-la ou
destruí-la, para reconstruí-la em outras bases. O mal-estar de nossa civilização nada
mais é, segundo Freud, que o reconhecimento de que estamos condenados a uma
economia libidinal. Tal qual a mais-valia que sustenta a economia capitalista, em
Marx. É na repetição que o sujeito goza, e, enquanto goza, é feliz.

A psicanálise não ensina o sentido da vida, mas ao questionar sua história e


suas escolhas, permite ao sujeito encontrar um sentido para sua vida, do que possa
ser as felicidades possíveis, sendo ele o autor de sua própria história.

Embora pareça pessimista a afirmação psicanalítica, esta não impede que


continuemos tendo como objetivo, uma vida feliz, ou, no mínimo, agradável e
satisfatória; não a maneira do desejo dos outros, que sempre estão prontos para nos
empurrar sua filosofia, ciência, fé, ou ideologia política totalitária, fazendo de nossa
vida um inferno.

Os recentes estudos sobre a felicidade apontam que ela será inventada por
um sujeito que aprendeu a conhecer melhor a si próprio e o mundo em que vive.

O conhecimento a respeito de si próprio tende a ser uma grande valia para a


felicidade, tanto para termos noção mais concreta de nossas potencialidades quanto
para sabermos dos nossos defeitos.
44

O procedimento da auto-análise, sem dúvida, pode conduzir o sujeito para


desenvolver a coragem de construir um estilo de vida com autocrítica e
compromisso de melhorar alguns aspectos da própria vida e dos outros, também.
Alguns estudos confirmam antigas sentenças filosóficas que já apontavam sobre o
melhor caminho para a felicidade: o  altruísmo e a manutenção das amizades. De
acordo com Aristóteles, “ninguém pode ser feliz sem amigos. As pessoas felizes de
nossa época são aquelas que ajudam o próximo”.

Não seria mais indicado, em vez de ficar obsessivamente buscando “a”


felicidade, sustentar certa “alegria de viver” no nosso próprio eu, e que pudesse ser
irradiada para também animar o próximo?

Esta concepção sobre a “alegria de viver” aparece numa rara entrevista de


Freud, no auge de usa trajetória como pensador e clínico. Diz ele:

“Setenta anos ensinaram-me a aceitar a vida com serena humildade


(...). Não, eu não sou pessimista, não enquanto tiver meus filhos,
minha mulher e minhas flores! Não sou infeliz – ao menos não mais
infeliz que os outros”. (Freud, 1978)

Abordando outro ponto de vista em relação ao desejo, podemos observar o


aspecto de dois grupos em particular: o dos fabricantes e o dos consumidores.

Quando percebemos que a produção e o consumo das coisas passaram a


ter valor à medida que se referiam à felicidade dos fabricantes e dos consumidores.

No caso dos fabricantes, a excelência moral consistia em produzir coisas


que enriquecessem a realidade da qual faziam parte, tendo, seus produtos, ainda
que subsistir a sua própria morte.

No caso dos consumidores, o foco consiste em usufruir o prazer que se


pode extrair da vida.
45

Podemos ver algumas premissas comuns a maioria das explicações do


consumismo, dentre elas destacamos a prática econômica que deu origem ao hábito de
consumir, se sustentando na demanda emocional por prazer e ausência de dor e que por
sua vez resulta na insatisfação psicológica permanente do consumidor
46

CAPÍTULO VI

NECESSIDADE, DESEJO E QUERER

“A história do consumismo é a história da quebra e descarte de


sucessivos obstáculos ‘sólidos’ que limitam o vôo livre da fantasia e
reduzem o ‘princípio do prazer’ ao tamanho ditado pelo princípio da
realidade’”. (BAUMAN, 2004, p. 89)

Com este trecho, Bauman (2004) vem a ilustrar a progressão da construção


da relação entre o indivíduo e o objeto até os dias atuais. O conceito de necessário
torna-se relativo quando analisamos o que é essencialmente necessário em
contraposição com o que é socialmente necessário.

As coisas essencialmente necessárias compreendem aqueles itens que


atendem as necessidades básicas e as condições mínimas necessárias para a vida,
tais como alimentação, moradia, etc., ao passo que o que é socialmente necessário
engloba várias outras coisas que poderiam ser classificadas como supérfluas, como
condução (carros, ônibus, metrô...), eletrodomésticos e assim por diante. O que se
faz necessário a um indivíduo, não necessariamente é necessário a outro.

O conceito de necessidade, dentro de um contexto social, torna-se relativo


dada à particularidade de sua implicação para cada indivíduo.

“A ‘necessidade’, considerada pelos economistas do século XIX como


a própria epítome da ‘solidez’ – inflexível, permanentemente
circunscrita e finita – foi descartada e substituída durante algum tempo
pelo desejo, que era muito mais ‘fluido’ e expansível que a
necessidade por causa de suas relações meio ilícitas com sonhos
plásticos e volúveis sobre a autenticidade de um ‘eu íntimo’ à espera
de expressão”. (BAUMAN, 2004, p. 89)
47

O necessário, descrito acima por Bauman como algo rígido, perdeu espaço
para o desejo, graças ao fato deste ser mais fluido e maleável, o que permite que
este abranja, melhor do que o que é “simplesmente necessário” à necessidade
social. A rigidez imposta por aquilo que é “necessário”, ao excluir o supérfluo,
restringindo, conforme dito acima, o princípio do prazer única e exclusivamente ao
espaço que lhe é conferido pelo princípio da realidade.

A sociedade por ansiar mais do que o necessário substitui este pelo desejo,
que atende a suas necessidades do que a própria.

“Agora é a vez de descartar o desejo. Ele sobreviveu à sua utilidade:


tendo trazido o vício do consumidor a seu Estado presente, não pode
mais ditar o ritmo. Um estimulante mais poderoso, e, acima de tudo,
mais versátil é necessário para manter a demanda do consumidor no
nível da oferta. O ‘querer’ é o substituto tão necessário; ele completa a
libertação do princípio do prazer, limpando e dispondo dos últimos
resíduos dos impedimentos do ‘princípio de realidade’” (BAUMAN,
2004, p. 89)

Adentramos, então, o contexto atual. É chegado o momento onde o próprio


desejo não da conta da necessidade da sociedade. Este é retratado por Bauman,
conforme ilustrado acima, como tendo por finalidade, em uma última análise, a
indução do indivíduo ao vício de desejar e, conseqüentemente, consumir.

A partir de determinado ponto, o desejo não mais consegue acompanhar o


ritmo do desejar da sociedade, e eis que, então, se dá a necessidade de um
substituto ao mesmo: o querer.

O querer toma o lugar do desejo e passa a permear e conduzir as relações


entre o indivíduo e objeto, abrindo para o princípio do prazer, todo o espaço que ele
procura, vindo, assim, a adequar o princípio da realidade a sua vontade.
48

CAPÍTULO VII

CONSUMISMO POSITIVADO

Ainda que, conforme visto acima, o consumismo seja o ato de consumir


produtos ou serviços, muitas vezes supérfluos e, em algumas situações, sem a
consciência de que o estão fazendo, existe um outro lado do consumismo onde o
indivíduo consegue aplacar, ainda que temporária ou momentaneamente, a
ansiedade que lhe atormenta.

Muitas vezes, as pessoas que se encontram angustiadas ou ansiosas,


sentem certo alívio quando são levadas pelo consumismo, mas ocorre que este não
consegue sustentar este estado de não tensão, pois logo se vê “obrigado” ou
compelido a eleger um novo objeto de desejo.

Seja pelo fato de se darem um pouco de atenção, ao cuidarem um pouco de


si ao se permitirem uma “extravagância”, seja esta um simples sorvete que tire o
indivíduo de sua dieta, ou um casaco novo de uma loja cuja grife não é de acesso
popular para que se sinta um pouco mais elegante; ou pelo fato de auxiliar o
indivíduo a desviar seu foco para algo que o tire deste estado de ansiedade,
distraindo-o, o fato é que esta forma de consumismo vem a se mostrar útil em
algumas circunstâncias, permitindo que o indivíduo possa desempenhar suas tarefas
de modo mais tranqüilo ou, ao menos, funcional.

Podemos observar, de pessoas extremamente angustiadas e ansiosas,


comentários como: “engraçado... eu estava nervoso(a), mas fui passear no
shopping, e depois que comprei aquela calça, fiquei tão feliz que nem lembrava mais
que estava nervoso(a) há alguns minutos atrás...”. Estas se encontram tão
dependentes do consumismo, que somente através dele conseguem tamponar suas
próprias angústias.
49

Do mesmo modo que alguns pacientes possuem a necessidade de


medicação para conseguirem desempenhar suas funções sociais, pode-se
estabelecer um paralelo com aqueles que dependem do consumismo para o mesmo
fato, conforme ilustrado acima. Não é incomum observarmos que algumas pessoas
procuram suprir suas faltas através do ato de consumir, de modo que possam
continuar levando suas vidas da forma mais funcional possível.

Podemos observar homens que se dedicam a cuidar e fazer melhorias em


seu carro (compram aparelhos de som mais potentes, aerofólios e etc.) para
deslocar o foco da mulher que está sempre o criticando, da mesma forma que
podemos observar as mulheres que tem por hábito idas freqüentes ao shopping para
comprar perfumes, bolsas e roupas (ainda que possua um guarda-roupa com várias
peças que sequer foram usadas) para suprir a falta de carinho ou atenção de seu
companheiro.

Ainda que os casos de consumismo inconsciente existam, estes são bem


menos comuns. A grande maioria das pessoas, ainda que comprem por impulso,
fazem tal compra conscientemente. Não procuram se esconder por trás de
desculpas para justificar o porquê do que fizeram. Na grande maioria dos casos,
simplesmente dirão que sempre quiseram um daqueles itens, que gostaram da peça
e acharam o preço irresistível, que, de fato, precisavam do item e assim por diante.

Há de se atentar, no entanto, que a freqüência e incidência são dados


importantes a serem observados. Se por um lado, o eventual ceder ao impulso
(entenda-se, aqui, impulso como simplesmente o ato de ser compelido a uma ação
seja esta pensada ou não) consumista pode significar o alívio de um sintoma de
angústia ou ansiedade, por outro, a dependência do consumismo como única forma
de se aplacar esses sintomas pode incorrer em uma patologia.

Quando o impulso consumista cria a dependência do ato de consumir para


aplacar a angústia ou ansiedade, desenvolve-se, a partir de então, a compulsão pelo
consumismo.
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”Há (...) razões mais do que suficientes para ‘ir as compras’. Qualquer
explicação da obsessão de comprar que se reduza a uma causa única
está arriscada a ser um erro. As interpretações comuns do comprar
compulsivo como manifestação da revolução pós-moderna dos
valores, a tendência a representar o vício das compras como
manifestação aberta de instintos materialistas e hedonistas
adormecidos, ou como produto de uma ‘conspiração comercial’ que é
uma incitação artificial (...) à busca do prazer como propósito máximo
da vida capturam na melhor das hipóteses apenas parte da verdade.
Outra parte, e necessário complemento de todas essas explicações é
que a compulsão-transformada-em-vício de comprar é uma luta morro
acima contra a incerteza aguda e enervante e contra um sentimento
de insegurança incômodo e estupidificante”. (BAUMAN, 2004, p. 95)

Pode-se inferir, a partir dos dados apresentados, que o consumismo se


tornou um processo de identificação cultural, onde o sujeito, caso não esteja (ou se
mostre) constantemente insatisfeito, corre o risco de se tornar anti-social ou de ser
colocado a margem, pois este não estaria de acordo com as normas veladas que
regem a sociedade. A partir do momento em que este não se predispõe a adquirir os
bens necessários, pré-requisitos, para integrar determinado grupo, passa a não
pertencer ao mesmo, passando, também, a ser rejeitado pelo mesmo.
51

7.1 DESEJO E OBJETO POSITIVADO

Em termos psicanalíticos, o desejo fala sobre o sujeito. O sujeito deseja porque se


encontra na falta de algo que ele próprio vem a desconhecer. E esta falta vem a gerar uma
inquietação no mesmo. O desejo instaurado pela falta é um sinal de que o indivíduo não está
satisfeito com sua situação atual. A falta instiga no sujeito o desejo, a avidez por mudanças; a
não obtenção de tais mudanças é fonte de angústia e ansiedade, e estas servem ao indivíduo
como elementos motivacionais, que o compele a correr atrás de um estado de prazer ou, ao
menos, não desprazer.

Eis que em última analise, temos o desejo como causador de sofrimento e força auto-
atualizadora que busca uma situação ideal ou mais adequada ao indivíduo dentro de sua
conjuntura em particular. E uma vez que este desejo não é alcançado, a falta deve permanecer
recalcada; o que nos leva a analisar a dialética do desejo e da falta: ela deveria permitir ao
sujeito se deparar, mesmo que minimamente, com a falta, para poder desejar.

O desejo cria a falta que faz com que o sujeito almeje alcançar seu desejo, que
quando não atingido, conforme dito anteriormente, mantém em foco a falta.

O que passa a se estabelecer, em última análise, é a necessidade contínua de dar cabo


da falta e instaurar o novo objeto de desejo, e um dos engodos em questão é que o
consumismo, à primeira vista, nos ilude e faz supor que haveria um sujeito consumidor e um
objeto consumido. Estamos aí, mais uma vez, estabelecendo os dois pólos estruturais –
sujeito/objeto – que embasam, mais claramente desde a modernidade, a posição do homem
separado de seu objeto.

Entretanto, o que ocorre é que não há como não se dar conta de que essa separação
sujeito – objeto fica cada vez mais amorfa diante da experiência do sujeito imerso na cultura
do consumo contínuo e que não pode parar.

Eis que é exposto o aspecto mais árduo da descartabilidade, uma vez que obriga o
sujeito a acorrentar-se a inúmeros objetos, acabando por não poder exercer seu desejo: surge,
52

então, o obediente consumidor preso aos modelos identificatórios, corporificações dos ideais
hábil, implícita e explicitamente veiculados pela indústria cultural.

Se o sofrimento psíquico é, entre outros fatores, conseqüência daquele fosso


instransponível do qual partimos entre um corpo de prazer e uma cultura que, para existir,
exige o sacrifício pulsional, temos aí o mal-estar na civilização que emerge das mais variadas
formas assim como os paliativos para ele.

Deste modo, esse contínuo e inevitável processo de objetificação e fetichização


radical do sujeito engendra nada mais do que um arremedo de ser envolto na busca infatigável
de um recauchutado, potente e alegre novo ‘eu’, pobre consumidor de si mesmo. Se
ele não passa de um simulacro de si próprio

A sociedade coletivamente não se deita no divã, mas o indivíduo ao deitar-se a traz


consigo na sua formação, na sua subjetividade, na sua história, na sua cultura, nas
suas relações sociais. O sintoma fala de um sujeito singular, e desta forma temos,
também, uma insatisfação positivada: esta singulariza o sujeito e o coloca em
movimento no sentido de seu desejo, ainda que este possa se votar para o
consumismo como forma de alívio ao sofrimento causado .
53

CAPÍTULO VIII

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por quanto tempo o princípio da realidade controla o princípio do prazer?

Como o ego vai conseguir administrar e conservar-se competente dentro da


relação ego / id / superego?

Dentre os suscetíveis ao canto sedutor do consumo, quem dispõe de alto


poder aquisitivo consome os originais; quem tem menos consome os genéricos ou
similares. A realidade mostra que no Brasil, assim como na maior parte do mundo, a
maioria da população está concentrada na camada de classes populares, aqueles
que não têm nada, nada alcançam e nada podem.

A mudança determinada pela nova ordem econômica revela que as pessoas


não têm mais tempo e muito menos dinheiro.

A revolução industrial exerceu uma influência de extrema importância na


questão do consumismo, pois até então os objetos eram comprados por serem úteis
e necessários, passando, posteriormente, a serem comprados simplesmente porque
foram produzidos e teriam de ser vendidos.

É levantada a questão da necessidade de um objeto. Quando este pode ser


considerado supérfluo e quando este pode ser considerado necessário, ou até
mesmo essencial?

A relação entre o sujeito e o objeto se faz determinante para responder a


pergunta anterior. Quando admitimos que aquilo que faz um determinado objeto
supérfluo é a finalidade para a qual este fora fabricado, e não sua matéria ou forma,
o mesmo se torna supérfluo quando é comprado simplesmente por ter sido
54

produzido. A relação compulsória entre produção e venda faz com que o comprador
adote, em face de qualquer objeto industrial, a atitude que adota diante daquilo que
genuinamente consome, ou seja, elementos naturais que visam à auto-regulação e à
reprodução biológica.

Isso reflete a velocidade com que adquirimos e nos desfazemos dos objetos
industriais. Quando é dito anteriormente que a postura adotada pelo indivíduo no
consumismo dos objetos industriais se assemelha ao que ele genuinamente
consome, isso faz menção a uma prática social fundada em um acordo tácito entre
produtor e comprador para que todos usem os produtos industriais como se usam os
alimentos.

Ainda assim, não é suficiente somente a produção em larga escala para que
haja o consumismo dos produtos. O aspecto importante a ser analisado aqui é que o
sujeito consome porque aprendeu a associar consumo a felicidade, e este é o fator
decisivo, pois se torna o complemento cultural necessário à implantação do
consumismo.

Segundo Jurandir Freire (2004), podemos entender que a expansão


industrial se somou ao hedonismo utilitarista do prazer e da dor para formar o hábito
do consumo.

Um dos pontos mais interessantes levantados por Jurandir Freire, é que o


indivíduo moderno teria de se sentir constantemente insatisfeito, pois caso viesse a
se satisfazer, ele correria o risco de se tornar anti-social. Isso é advindo do fato de
que se porventura este viesse a se satisfazer, não mais procuraria os objetos que,
enquanto comuns ao outros indivíduos que lhe atribuem determinado valor – não
necessariamente seu valor funcional – lhe permitiriam integrar um grupo específico.

O ideal de ego termina por tornar-se o instrumento de socialização do sujeito


à medida que representa seu desejo de retornar a um estado onipotente que foi
perdido na passagem do narcisismo primário para o secundário e o faz mediante a
aquisição de valores culturais adquiridos no processo de identificação com o objeto.
Quanto mais se insere na cultura seu desejo se expande para os ideais culturais e o
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ideal de ego vai se tornando o meio pelo qual os indivíduos de uma determinada
cultura se relacionam mutuamente em busca da aceitação e proteção.

A sociedade dirigida pelo consumismo adquire uma característica marcante


que é a intolerância para com a insatisfação. A sociedade, bem como seus
indivíduos, quer ser satisfeita, e quer ser satisfeita agora. A impossibilidade de se
atingir tal meta torna-se insuportável, além de se apresentar foco gerador de
angústia e ansiedade.

A partir disto, observamos que os mecanismos que regem o consumismo de


objetos industriais é estendido às relações interpessoais. O que era inicialmente
uma relação sujeito-objeto, agora atinge, também, as relações sujeito-sujeito.
Procura-se obter prazer nas relações interpessoais da mesma forma que este é
almejado nas relações de consumo. Tudo tem de ser imediato, com a aplicabilidade
direta daquele velho ditado que diz “não deixe para amanhã o que você pode fazer
hoje”. Podemos adaptar este ditado para retratar de forma mais precisa a realidade
atual, reescrevendo-o da seguinte forma: “não deixe para amanhã o prazer que você
pode obter hoje”.

As relações interpessoais, de acordo com o que eu pude observar ao longo


de meu trabalho, tornaram-se mais frágeis. Não se tem mais a atenção para com as
relações, de modo que seja prestado o devido cuidado a estas. A necessidade de
manutenção de tais relações, quer sejam entre amigos, quer sejam entre casais, tem
se mostrado cada vez mais cansativa, trabalhosa e, por conseqüência, dispensável.

Porque nos daríamos ao trabalho de cultivar uma relação duradoura e


estável com uma pessoa, cuja “recompensa” é prometida somente a posteriori,
mediante cuidado, atenção e dedicação – o que implica, conforme dito
anteriormente, em trabalho – quando poderíamos obter prazer com uma pessoa,
descartar a mesma, buscar uma nova e repetir todo o processo?

O registro mnêmico de que as relações conjugais não são fontes, única e


exclusivamente, de prazer contribuem para o constante consumo de relações
temporárias.
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Dentro disso, temos um círculo vicioso. A sociedade se mostra como um


reflexo dos indivíduos que a compõe; a mídia divulga ou difunde aos indivíduos da
mesma as idéias e pensamentos que coleta, e estes, por fim, reorganizam a
sociedade com base nos novos dados e informações que foram aceitas ou
introjetadas.

Ainda que o consumir não possa ser classificado como algo atual, haja vista
que se fala em consumir desde os séculos XVII, XVIII e XIX, podemos constatar,
conforme o que vem sendo apresentado aqui, que durante este período ele possui
um sentido totalmente diferente do que vemos hoje em dia.

A sociedade se mostra responsável em relação a este fato, mas ela não


modificou sua estrutura do dia para a noite, essa modificação ocorreu ao longo do
tempo através de uma constante reestruturação e reeducação cultural. Isto advém
de três fatores principais: o aumento da produtividade industrial, a falta de
investimento sócio-cultural, e a conversão (ainda que imaginária) do trabalho à
atividade do labor (isso pode ser ilustrado a exemplo da revolução industrial, que
substituiu todo artesanato pelo labor. Os produtos do labor tem como destino natural
serem consumidos, enquanto os produtos do trabalho cujo destino natural é sua
própria utilização).

A reversão deste quadro obviamente é possível. Investimentos no setor


sócio-cultural, por exemplo, constituem uma das ferramentas que dispomos para tal
reversão; ainda assim, nos sobra ponderar se essa possível reversão do cenário
consumista social atual é algo necessário ou se, ao menos, existe o interesse de
que isso se reverta, uma vez que a maioria dos indivíduos urbanos elegeu o bem-
estar e os prazeres físicos como a “bússola moral” da vida.

Terá o aquecimento da economia, dentro do sistema capitalista, promovido


pela relação entre fabricantes e compradores uma importância tão grande para que
se faça vista grossa a nossa estrutura social?
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Saibamos que o preço a pagar pela cultura do consumismo é alto e custa a


densidade propriamente humana do ser, esvaziada em sua capacidade de subjetivar
o mundo. Se a prática narcísica do consumo em seu espelhamento maravilhado não
cessa de existir, se o entretenimento e o imperativo do gozo que lhe é correlato não
deixam de ser continuamente reconfigurado pela indústria cultural, se o próprio
corpo se torna objeto por excelência da lógica mercadológica, fetiche inescapável,
pouco resta ao sujeito propriamente dito.

O desejo de consumo não existe apenas entre os que detêm o poder de


adquiri-los. O apelo da mídia desperta necessidades de consumo em todas as
camadas sociais. O consumismo desenfreado que parece nivelar a todos na pseudo
democratização do desejo, tem sua face discriminatória e exclui o acesso. Muitos
são chamados e poucos são os escolhidos. Muitos são seduzidos e poucos são os
que podem se satisfazer.

A partir do meu ponto de vista e do que foi aqui exposto; o indivíduo social,
como célula organizadora da própria sociedade, carece de maior atenção e cuidados
pois o “prêmio” que o aguarda a longo prazo é, sem dúvida, notável o suficiente para
que lhe seja dedicado este tempo, já que seus reflexos atingem uma área
extremamente abrangente de todos os aspectos da sociedade.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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