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Araranguá
2018
FLÁVIA LAURINDO DA ROSA
Araranguá
2018
FLÁVIA LAURINDO DA ROSA
A todas as pessoas que pesquisam e se
empenham no estudo multidisciplinar do
direito, especialmente aos que se dedicam no
entendimento dos fenômenos da psicologia e
sua aplicação, para garantir a proteção de
crianças conforme a Constituição Federal.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao Deus que existe dentro de mim, por toda força e
energia positiva emanada.
Aos meus pais pela vida e por todos os valores morais ensinados.
À UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina, especialmente na figura da
Katiussi Costa Custódio, por ter me apresentado essa Universidade antes do ingresso no
Curso de Direito, e também pela amizade e auxílio.
À todas as pessoas que compõem o Núcleo de Práticas Jurídicas – Unidade
Araranguá, pela oportunidade do primeiro estágio na área jurídica, por todo aprendizado,
carinho e amizade.
À todos os integrantes da Polícia Civil de Araranguá pela recepção como
estagiária, pelo aprendizado, pela amizade e incentivo na carreira acadêmica.
Ao professor e orientador do trabalho, Dr. Diego Archer de Haro, Delegado
Regional de Polícia de Araranguá, que exerce uma profissão a qual admiro muito, e por ser
um exemplo de profissional, por ter acolhido a proposta desse trabalho e pelas orientações
recebidas.
Às colegas de faculdade que viraram amigas no decorrer desses anos, pelo
companheirismo e incentivo.
E de forma muito especial, meu agradecimento a Rafael Maciel Mota, amor da
minha vida, meu namorado e amigo, por todo carinho, compreensão e apoio. Essa pequena
conquista, que é muito importante para mim, foi possível por tê-lo comigo, ao longo dessa
jornada, me auxiliando e dando força em todos meus passos, principalmente nesse trabalho de
conclusão de curso.
“A diferença entre as falsas memórias e as verdadeiras é a mesma das jóias: são
sempre as falsas que parecem ser as mais reais, as mais brilhantes” (Salvador Dalí).
RESUMO
O presente trabalho, tem como escopo principal, analisar sob o aspecto jurídico, a influência
das falsas memórias quando presentes nos depoimentos de crianças em casos de violência
sexual. Para esta análise, realizou-se a pesquisa bibliográfica e documental, com uma
metodologia dedutiva, iniciando pela contextualização do processo penal, através dos
sistemas processuais penais, bem como pela enumeração de princípios aplicados ao processo
penal, de forma a orientar todos os operadores do direito, principalmente quando do momento
probatório. Ainda, busca-se analisar a problemática envolvendo a memória no processo penal,
para a reconstrução do possível evento delituoso, uma vez que, na maioria dos crimes sexuais
– visto que são praticados na clandestinidade –, resta somente a palavra da vítima como um
meio de prova, valendo-se ela, de sua memória, que é passível de contaminações,
principalmente quando se trata de crianças, fomentando para a formação do fenômeno das
falsas memórias. Esse fenômeno é compreendido por recordações de informações ou eventos
que não ocorreram na realidade. Conclui-se o prejuízo tanto para a criança, quanto para o
acusado, e por consequência para o próprio processo penal quando o depoimento está
contaminado por falsas memórias. Dessa forma, é necessário um conhecimento técnico para a
inquirição desses infantes, diminuindo o conflito entre o que é estabelecido pelo atual Código
de Processo Penal e os direitos fundamentais da criança e do adolescente.
The main purpose of this study is to analyze, under the juridical aspect, the influence of the
falses memories when presents in the testimonies of children in cases of sexual violence. For
this analyse, a bibliographic and documentary research was carried out, with a deductive
methodology, starting with the contextualization of the criminal process, through the criminal
procedural systems, as well as the enumeration of principles applied to the criminal process,
in order to guide all the right, especially at the time of probation. It also seeks to analyze the
problem of memory in the criminal process for the reconstruction of the possible criminal
event, since in most sex crimes - since they are practiced in the underground - there is only the
victim's word as a means of proof, using it, of the memory her, which it is susceptible of
contaminations, especially when it comes to children, fomenting to the formation of the
phenomenon of the false memories. This phenomenon is comprised of memories of
information or events that did not occur in reality. Concludes that harm to the child and for
the accused, and consequently for the criminal proceedings itself when the testimony is
contaminated by false memories. Thus, a technical knowledge is necessary for the inquiry of
these infants, reducing the conflict between what is established by the current Code of
Criminal Procedure and the fundamental rights of children and adolescents.
1 INTRODUÇÃO................................................................................................................. 10
2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS ........................................................................... 13
2.1 INQUISITÓRIO .............................................................................................................. 13
2.2 ACUSATÓRIO ................................................................................................................ 14
2.3 MISTO ............................................................................................................................. 15
3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO PENAL .................................. 17
3.1 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ......................................................... 17
3.2 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA .................................... 18
3.3 PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ ............................................................ 19
3.4 PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO ........................................ 21
4 PROVAS NO PROCESSO PENAL ................................................................................ 22
4.1 CONCEITO DE PROVA ................................................................................................ 22
4.2 VERDADE FORMAL E VERDADE REAL .................................................................. 23
4.3 EXAME DE CORPO DE DELITO NOS CRIMES SEXUAIS ...................................... 26
4.4 PROVA TESTEMUNHAL ............................................................................................. 28
4.5 O ESTADO VIOLENTADOR ........................................................................................ 30
4.5.1 A criança como autora da prova................................................................................ 31
4.5.1.1 A obrigatoriedade da inquirição da vítima ................................................................. 33
4.5.2 Contaminação da prova .............................................................................................. 35
5 MEMÓRIA NO PROCESSO PENAL............................................................................ 37
5.1 CLASSIFICAÇÃO DA MEMÓRIA ............................................................................... 37
5.2 MEMÓRIA E SUAS DIMENSÕES ................................................................................ 38
5.3 MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO ............................................................................... 40
6 FALSAS MEMÓRIAS ..................................................................................................... 42
6.1 ESTUDOS RELACIONADOS ÀS FALSAS MEMÓRIAS ........................................... 43
6.2 TEORIAS EXPLICATIVAS DAS FALSAS MEMÓRIAS............................................ 44
6.3 FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL .......................................................... 45
6.4 FORMAÇÃO DAS FALSAS MEMÓRIAS ................................................................... 46
6.4.1 A contribuição da mídia para a formação das falsas memórias ............................. 47
6.4.2 O viés do entrevistador para a formação das falsas memórias ............................... 49
6.4.3 A contribuição do meio social da criança para a formação das falsas memórias . 50
6.5 SUGESTIONABILIDADE E VULNERABILIDADE DO DEPOIMENTO INFANTIL
53
6.6 TÉCNICAS DE ENTREVISTA PARA A COLHEITA DO DEPOIMENTO INFANTIL
54
6.6.1 Medidas de redução de danos nas entrevistas infantis ............................................ 56
7 ANÁLISE DO PROJETO DEPOIMENTO SEM DANO ............................................ 58
8 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 61
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 64
ANEXOS ................................................................................................................................. 69
ANEXO A – CASO ESCOLA BASE DE SÃO PAULO ..................................................... 70
10
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos anos, o cenário jurídico sofreu algumas alterações com a busca de
técnicas e análises de testemunhos de crianças dentro do processo penal. Há, inclusive, alguns
projetos vigorando com o intuito de repensar justamente a sua contribuição para a prova
penal.
O primeiro projeto que é denominado Depoimento sem Dano, teve início no
estado do Rio Grande do Sul com o Projeto de Lei Estadual nº 4.126/2004, que consiste em
realizar as escutas de crianças e adolescentes de forma especial, através de psicólogos ou
assistentes sociais.
No ano de 2006, houve a substituição do Projeto de Lei supracitado, para o
Projeto nº 7.524/2006, que foi dirigido ao Senado Federal, como uma recomendação de lei
nacional.
Assim, em 2017, foi promulgada a Lei n.º 13.431 que entrou em vigor no mês de
abril do corrente ano, estabelecendo garantias de crianças e adolescentes, quando vítimas ou
testemunhas de crimes, regulamentando o procedimento de escuta especializada e do
depoimento especial.
Esses projetos, como o depoimento especial ou depoimento sem dano, e outros
que estão sendo aplicados em algumas comarcas brasileiras, são medidas para garantir a
proteção de crianças e adolescentes, em situações que foram vítimas ou testemunhas de
violências.
Ainda, servem também, para minimizar a formação das falsas memórias (que é
compreendida por recordações de informações ou eventos que não ocorreram na realidade),
nos depoimentos de infantes, com a intenção de protegê-los e evitar a revitimização no
processo penal.
Entretanto, em que pese estas mudanças, é possível visualizar que os operadores
do direito ainda não estão preparados para essa técnica. Isso porque, na maioria das vezes,
seus métodos de coleta de depoimentos contribuem ou propiciam a formação de falsas
memórias.
Nesse contexto, percebe-se o quão complexo é o diálogo, entre as garantias
constitucionais da criança e a fase probatória do processo penal, uma vez que o Código de
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Processo Penal é datado de 1941, cuja realidade social é diversa dos dias atuais, bem como da
realidade da Constituição Federal. Enquanto a Carta Magna preconiza uma série de direitos a
serem seguidos, com o intuito de resguardar crianças/adolescentes, o Código de Processo
Penal sequer os considera como sujeitos detentores de direitos e os trata apenas, como objetos
de prova no curso do processo.
Ainda que a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente, façam previsão expressa para garantir a proteção de crianças/adolescentes, não
raras são as vezes, em que tais garantias são desrespeitadas, refletindo a realidade atual do
procedimento.
Dessa forma, a problemática central é identificar a influência das falsas memórias
no processo penal, em casos de violência sexual, envolvendo crianças. Para isso, utiliza-se a
pesquisa bibliográfica e documental, a partir de materiais já publicados, com a metodologia
dedutiva, com o objetivo de analisar, sob o aspecto jurídico, a influência desse fenômeno,
valendo-se muitas vezes, da psicologia jurídica para esta análise, com o intuito de demonstrar
a existência dele e identificar o prejuízo, tanto para a criança, quanto para o acusado, e por
consequência para o próprio processo penal, quando o depoimento é fruto das falsas
memórias.
Antes de iniciar a análise da influência das falsas memórias no processo penal,
realiza-se a contextualização do processo, com os sistemas processuais penais, e a divergência
doutrinária quanto a eles, bem como a enumeração de alguns princípios que são aplicados ao
processo penal, de forma a orientar todos os operadores do direito, e garantir o devido
processo legal.
Por conseguinte, menciona-se os dois principais meios de prova nos casos de
delitos sexuais, que são os exames periciais e as provas testemunhais, com uma atenção
especial para esse último meio probatório, no intuito de demonstrar como o Estado conduz,
tanto as testemunhas, quanto as vítimas (incluindo a valoração de seus depoimentos) dentro
do processo penal.
Assim, inicia-se a análise da problemática envolvendo a memória no processo
penal, para a reconstrução do possível evento delituoso, uma vez que, a maioria dos crimes
sexuais são praticados na clandestinidade, restando somente a palavra da vítima como um
meio de prova.
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2.1 INQUISITÓRIO
2.2 ACUSATÓRIO
no Direito pátrio, o sistema adotado, pode-se dizer, não é o processo acusatório puro,
ortodoxo, mas um sistema acusatório com laivos de inquisitivo, tanto são os poderes
conferidos àquele cuja função é julgar com imparcialidade a lide, mantendo-se
equidistante das partes.
Isso indica, que não é somente esse sistema aplicado no processo penal, sugerindo
a existência de um sistema processual penal misto.
2.3 MISTO
O sistema misto é separado por duas fases dentro do procedimento penal, quais
sejam, as fases de instrução preliminar e a fase judicial, uma representando o sistema
inquisitório e a outra o sistema acusatório.
A fase de instrução preliminar é aquela pré-processual, com a presença do
inquérito policial dirigido pela Autoridade Policial, conforme preconiza a Constituição
Federal. Já a fase judicial, revela a presença do órgão acusador, que em regra, é o Ministério
16
Assim, pelo exposto, fica evidenciado que existem duas fases diferentes,
marcadas por procedimentos diversos, não refletindo única e exclusivamente nenhum sistema,
mas ora um, ora outro.
Veremos a seguir os princípios que regem o Código de Processo Penal, elencados
expressamente, em sua maioria, na Constituição Federal, orientando todos os operadores do
direito.
17
O artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal dispõe que: “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL,
CRFB, 2018).
Assim, está consagrado na Carta Magna o princípio da presunção de inocência –
ainda que relativizado muitas vezes (como a decisão recente do Supremo Tribunal Federal, ao
julgar o habeas corpus nº 126.292 de São Paulo, que firmou entendimento para permitir a
execução provisória da pena, após a confirmação da condenação criminal em segunda
instância, ou seja, não esgotando todas as vias recursais para o trânsito em julgado) –, e dessa
forma,
Esse princípio reflete uma proteção ao acusado para que, no momento da prolação
da sentença (se houver dúvidas sobre sua culpabilidade) o juiz aplique a máxima do direito,
qual seja, “in dubio pro reo”, cujo reflexo será a absolvição dele. Importante dizer, ainda, que
o referido princípio exista também para que o Estado não restrinja a liberdade de um
indivíduo, por exemplo, tão somente por uma suspeita infundada de envolvimento em um
crime, uma vez que a regra – para todos – é a liberdade.
Isso não quer dizer que o acusado ou investigado não poderá ser preso
preventivamente e/ou temporariamente. Tais prisões não ferirão o princípio da presunção de
inocência, uma vez que as prisões são utilizadas de acordo com disposições legais, em casos
excepcionais. Importante destacar, também, que essas prisões não são consideradas
“sentenças de culpabilidade” (pelo menos não aos olhos da legislação), possuindo funções
específicas dentro do processo.
O princípio da presunção de inocência, garantido na Constituição Federal, dispõe
que o acusado de um crime não será considerado culpado, senão após esgotar todos os
recursos cabíveis. Ou seja, ele não será considerado culpado, até a confirmação da
condenação criminal em todas as instâncias que possa recorrer juridicamente, para então advir
o trânsito em julgado, quando não há mais que se falar em recurso da sentença penal
condenatória.
estará agindo inspirado em valores sociais e éticos, que refletem os anseios da própria
sociedade.
o Juiz, em face das provas existentes nos autos, tem inteira liberdade na sua
apreciação. Pode desprezar o depoimento de quatro testemunhas, por exemplo, e
respaldar sua decisão num único depoimento. Este é o princípio do livre
convencimento. Confere-se ao Juiz inteira liberdade na apreciação das provas,
conquanto fundamente sua decisão. Ele só pode proferir uma decisão com
fundamento em prova colhida sob o crivo do contraditório, nada o impedindo de
reforçar seu entendimento respaldado em provas cautelares não repetíveis e
antecipadas.
Entende-se por prova algo que serve para demonstrar uma verdade. Há inúmeras
formas de demonstrar essa verdade, seja através de documentos, demonstração visual, entre
outras.
O Código de Processo Penal disciplinou em um título próprio o que serve como
prova dentro da ação penal. São as perícias, o interrogatório e/ou confissão do acusado, o
depoimento do ofendido e das testemunhas, bem como os documentos apresentados ao longo
do processo.
Contudo, sabe-se que a legislação supracitada encontra-se desatualizada, não
devendo restringir a admissão de provas tão somente ao que o Código mencionou, uma vez
que a sociedade se transforma rapidamente, e com isso podem surgir novos meios probatórios
não incluídos no rol do Código de Processo Penal. Dessa forma, Avena argumenta (2017, p.
425):
Prova significa “aquilo que serve para estabelecer uma verdade por verificação ou
demonstração” (PROVA, 2008, p. 709). Por sua vez, o verbo provar denota “demonstrar com
provas (documentos, fatos, razões, testemunhas)” (PROVAR, 2008, p. 709).
Então, pode-se concluir que provar para o processo penal significa demonstrar
uma verdade através de documentos, fatos, razões, testemunhas. De acordo com Nucci
(2015), no campo jurídico, a prova está relacionada, particularmente, à “demonstração
23
evidente da veracidade ou autenticidade de algo. Vincula-se, por óbvio, à ação de provar, cujo
objetivo é tornar claro e nítido ao juiz a realidade de um fato, de um acontecimento ou de um
episódio”.
Isso porque, considerando que o destinatário da prova é o juiz, a prova serve para
auxiliá-lo na sua convicção quanto aos fatos narrados na denúncia, independente se verídicos
ou não, a partir das demonstrações realizadas no decorrer da fase de instrução no processo
penal (AVENA, 2017, p. 425).
Para Feitoza (2008, p. 114), a palavra prova possui vários sentidos. Citamos
abaixo apenas algumas das divisões que o autor faz com os vários sentidos da prova, quais
sejam, a prova como fonte, a prova como manifestação da fonte e a prova como atividade
probatória, vejamos:
Para adentrar no tema da busca pela verdade no processo penal, cabe destacar a
sua função, ou seja, como esse instrumento processual é capaz de dar uma solução para uma
lide, através de uma sentença, podendo ser condenatória ou absolutória. Segundo Grubba
(2017, p. 131),
24
mais do que solucionar uma lide, o processo penal é o ramo do Direito que pode
interferir na liberdade do ser humano, por meio de uma sentença condenatória, ou
mesmo tem o condão de estigmatizá-lo perante a sociedade. Daí parece emergir a
grande importância da noção de verdade no âmbito do processo penal: como
condenar um ser humano à restrição da liberdade e à estigmatização que lhe é
correspondente e intrínseca sem uma certeza ou verdade quanto ao cometimento do
delito? Se não houver um conhecimento verdadeiro, parece que o suposto autor deve
ser absolvido em razão da dúvida, que encontra sua máxima na expressão latina in
dubio pro reo.
Sabe-se que o processo penal é composto por diversos conjuntos probatórios aptos
a provar a inocência ou a culpa de determinado indivíduo. Quando ocorre um fato tipificado
como uma infração penal (crime ou contravenção penal), buscam-se provas para ter uma
certeza sobre o acontecimento do delito e o autor dele, iniciando a busca pela materialidade e
a autoria.
Assim, tem-se que a verdade formal é aquela produzida no decorrer da instrução
processual, em que o juiz irá julgar através dos subsídios demonstrados no processo pelas
partes interessadas, não buscando algo exterior. É por esse motivo, que vem a máxima do
processo civil brasileiro no momento do julgamento, “o que não está nos autos, não está no
mundo”.
No entanto, essa verdade não é aplicada no processo penal, uma vez que o juiz
deve buscar a verdade fática, podendo ir além do que foi apresentado no decorrer da instrução
criminal, adentrando no mundo exterior ao processo. Ainda, quando não é suficiente a
produção de provas realizadas pelas partes, ele irá exercer sua competência para determinar a
produção de provas de ofício, podendo proferir a sentença (condenatória ou absolutória) com
fundamento nessas provas.
Isso ocorre, porque o processo penal envolve direitos fundamentais, tanto da
vítima quanto do réu, uma vez que de um lado, está um direito de segurança da sociedade, e
de outro – em regra – a liberdade de um indivíduo. Portanto, o Estado tem interesse na
participação ativa nesse processo. Assim, é necessário buscar a verdade dos fatos, valendo-se
o Estado-Juiz de meios legais para isso, como a expedição de produção de provas. Para
Pacelli (2017, p. 333):
as crenças que o ser humano tem sobre o mundo podem ser bem justificadas, mas
podem ser falsas, pois não parece ser possível um conhecimento verdadeiro sobre o
mundo externo, visto que não se tem acesso direito à realidade.
Parece ser possível afirmar que o processo penal, enquanto instrumento de garantia,
não busca uma verdade formal ou material, mas busca um conhecimento
proposicional bem justificado para ancorar a decisão judicial, conhecimento esse que
26
somente pode ocorrer por meio da linguagem processual e não do acesso ao mundo
exterior.
O exame de corpo de delito é uma perícia técnica, admitida como prova dentro do
processo penal, uma vez que “podem fazer afirmações ou extrair conclusões pertinentes ao
processo penal” (NUCCI, 2015).
Nesse viés, o artigo 158 do Código de Processo Penal dispõe que “quando a
infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto,
não podendo supri-lo a confissão do acusado” (BRASIL, CPP, 2018).
Tal exame busca a materialidade de um crime, sob uma análise técnica e
científica, que possui grandes repercussões na área criminal, principalmente quando é
relacionado a crimes sexuais.
É cabível mencionar que há inúmeras formas previstas em lei que se caracterizam
como crimes contra a liberdade sexual. No entanto, em se tratando de crimes sexuais
praticados contra crianças, é caracterizado em sua maioria pelo estupro de vulnerável, com
previsão expressa no Código Penal.
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coitos anormais (por exemplo, a cópula oral e anal), [...] destinado a satisfazer a
lascívia, o apetite sexual. Cuida-se de conceito bastante abrangente, na medida em
que compreende qualquer atitude com conteúdo sexual que tenha por finalidade a
satisfação da libido (CAPEZ, 2012, p. 34-35).
Com isso, ainda que a perícia técnica seja um instrumento que auxilia o juiz a
formar seu convencimento, é importante ressaltar que não há nulidade processual diante da
ausência de um exame de corpo de delito, para os crimes que não deixam vestígios. É o caso
dos crimes praticados com atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Valendo-se o
magistrado de outros elementos probatórios para embasar sua fundamentação, como por
exemplo, as provas testemunhais.
Esse é o entendimento de Marcão (2017, p. 471), quando dispõe que, o que a lei
não admite, é que o exame pericial seja suprido “exclusivamente pela confissão do acusado,
visto se tratar de prova frágil, insuficiente, quando isolada, para o esclarecimento da verdade”
(grifo do autor).
O mesmo entendimento é firmado pelo Supremo Tribunal Federal, ao prolatar um
acórdão, constando que “quando, no entanto, não for possível o exame de corpo de delito
direto, por haverem desaparecido os vestígios da infração penal, a prova testemunhal – que
materializa o exame de corpo de delito indireto – supre a ausência do exame direto”
(BRASIL, STF, 1992).
Assim, vejamos a seguir questões relacionadas à prova testemunhal e sua
participação no processo penal.
28
Testemunha é aquele terceiro estranho ao processo penal, não sendo vítima nem
autor de um delito. Ela serve para atestar a verdade de um acontecimento, esclarecer algum
fato ou negá-los.
Nos dizeres de Ramidoff (2017, p. 138), “a lei não estabelece condição, requisito
ou pressuposto normativo que possa identificar ou estabelecer qualidade especial para uma
pessoa ser considerada testemunha; logo, toda pessoa poderá ser testemunha, conforme dispõe
o art. 202 do CPP”.
Assim, a pessoa que for arrolada como uma testemunha, tem o compromisso legal
de depor e de dizer a verdade. Contudo, o Código de Processo Penal no artigo 206 elenca
ressalvas de quem pode se recusar a prestar depoimento, como o “ascendente ou descendente,
o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho
adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a
prova do fato e de suas circunstâncias” (BRASIL, CPP, 2018).
Ainda, cabe ressaltar que há proibições expressas na lei de quem são as pessoas
que estão proibidas de depor, conforme o artigo 207 são aquelas que “em razão de função,
ministério, ofício ou profissão, devem guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte
interessada, quiserem dar o seu testemunho” (BRASIL, CPP, 2018).
Por fim, segundo o artigo 208 do Código de Processo Penal, não serão
compromissados com a verdade “doentes e deficientes mentais e aos menores de 14
(quatorze) anos, nem às pessoas a que se refere o art. 206” (BRASIL, CPP, 2018).
Com relação à classificação das testemunhas, Capez (2017, p. 447-448), Messa
(2017, p. 618) e Abade et. al (2014), fazem algumas divisões uníssonas, quando afirmam que
as testemunhas são: Numerárias (arroladas pelas partes); extranumerárias (arroladas por
iniciativa do juiz); informantes (não prestam o compromisso de dizer a verdade); referidas
(aquelas que foram mencionadas por outras testemunhas, e não foram arroladas pelas partes
anteriormente); próprias (aquelas que relatam sobre a acusação do réu); impróprias (relatam
fatos secundários, atos relacionados ao processo); diretas (aquelas que presenciaram os fatos),
e por fim, as indiretas (aquelas que relatam o que ouviram alguém dizer).
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Todas essas pessoas que poderão ser arroladas como testemunhas, sejam aquelas
que presenciaram o cometimento do delito ou aquelas que relatam o que ouviram de terceiros,
podem ter seus relatos contaminados. Tais contaminações podem ter diversas fontes: uma
condução errônea por parte dos operadores do direito quando colhem depoimentos, a indução
e o viés do entrevistador, a própria memória do indivíduo que é falível, as falsas memórias
(podendo estar presente no seu relato) e o transcurso do tempo do evento criminoso até sua
oitiva.
Quando analisamos os julgados de processos criminais nas justiças estaduais
brasileiras, percebemos que a situação é bem complexa. As condenações são baseadas (quase
que exclusivamente) em provas testemunhais. Nesse sentido, Gesu (2014, p. 93), assim
dispõe:
Isso porque, sabe-se que uma única testemunha pode fazer prova o suficiente para
uma decisão condenatória, quando seu depoimento é corroborado com os demais elementos
probatórios contidos no processo (MESSA, 2017, p. 617). Ainda, cabe ressaltar que se
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tratando de crimes sexuais, muitas vezes a única testemunha é a própria vítima, visto que a
maior parte desses crimes, é praticada na clandestinidade, podendo não deixar vestígios para
periciar.
Vejamos, a seguir, como o Estado conduz as testemunhas-vítimas (com a
valoração de seus depoimentos) dentro do processo penal.
A vítima foi esquecida e tratada sempre como um objeto que apenas deve colaborar
com a investigação criminal. Não foi diferente com o Direito Penal, que é um direito
punitivo-sancionador, ou com o Processo Penal, que limitou a participação da vítima
à condição de testemunha-informante objetivando colaborar no esclarecimento do
fato, ou, inclusive, com a Política Criminal, que procura prevenir o crime
trabalhando o potencial infrator, mas esquece de oferecer programas e medidas
eficazes contra a potencial vitimização e revitimização.
sociedade, e quando ingressa no sistema penal, é vítima novamente, mas tendo como parte
autora o Estado.
Isso talvez tenha explicação pela busca equivocada da verdade real dentro do
processo penal, que como vimos anteriormente, é utópica. Desse modo, ignoram-se, muitas
vezes, políticas de redução de danos para a colheita de depoimentos. Tais medidas servem
para evitar ou reduzir novos danos que podem ser causados quando a criança ingressa no
sistema de investigação policial e, posteriormente, judicial, uma vez que são frágeis e
passíveis de sugestionabilidade.
Com relação a esse processo de revitimização, Bitencourt (2009, p. 2), explica que
podemos verificar outro tipo de vitimização, onde a violência é causada pelo sistema
de justiça que viola outros direitos, vitimizando novamente a criança ou adolescente.
Essa revitimização denomina-se vitimização secundária, que outra coisa não é senão
a violência institucional do sistema processual penal, fazendo das vítimas novas
vítimas, agora do estigma processual-investigatório; podendo dificultar (senão até
inviabilizar) o processo de superação do fato, provocando ainda uma sensação de
impotência, desamparo e frustração com o sistema de controle social, provocando
descrédito e desconfiança nas instituições de justiça criminal.
para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos” (BRASIL, ECA,
2018).
O entendimento supracitado vigora apenas neste âmbito nacional. Isso porque,
para o artigo 1º da Convenção Internacional dos Direitos da Criança datada de 1989 e
ratificada no ano seguinte pelo Brasil, considera-se criança “todo ser humano com menos de
dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a
maioridade seja alcançada antes” (BRASIL, Convenção Sobre os Direitos da Criança, 2018).
Contudo, para Bitencourt (2009, p. 18),
O artigo 201 do Código de Processo Penal dispõe que “sempre que possível, o
ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou
presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas
declarações” (BRASIL, CPP, 2018).
Para alguns doutrinadores, essa previsão é uma exigência, e não uma
possibilidade. Isso é o que demonstra Capez (2017, p. 456), quando diz que “o ofendido não
precisa ser arrolado pelas partes para ser ouvido, devendo o juiz determinar, de ofício, a sua
oitiva (dever jurídico)”. Pelo contrário, se o juiz não o fizer, caracteriza-se como uma
nulidade relativa, podendo a parte que se sentiu prejudicada, arguir essa matéria para anular o
feito.
No momento da oitiva da criança, conforme prevê o artigo, o juiz deverá
perguntar sobre as circunstâncias da infração. Logo, faz-se com que a vítima relembre – o que
não deseja mais –, o modo que ocorreu a violência, o lugar, a postura do agressor, entre outros
elementos.
34
Mesmo que o parágrafo 5º do artigo 201 faça previsão de que o juiz poderá
encaminhar a vítima para tratamentos, principalmente em áreas psicossociais, assistência
jurídica, etc. (BRASIL, CPP, 2018), a regra, em conformidade com o Código de Processo
Penal é que as perguntas devem ser realizadas por ele. Todavia, como já observamos,
inúmeras são as consequências negativas para as crianças-vítimas, que são inquiridas por
profissionais que não possuem conhecimento técnico e específico, como se espera que tenham
os assistentes sociais e psicólogos.
Não obstante já ter sido vítima de um crime, a criança sofre a revitimização dentro
do processo, por meio dos constrangimentos pelos quais passa nos locais onde terá de narrar
os fatos e pelo despreparo dos profissionais, etc.
Sabe-se que durante a atuação do juiz em um processo, rege o princípio da
imparcialidade. Existe a obrigatoriedade do afastamento daquele julgador com as partes
(vítima e autor). Porém, para uma inquirição infantil, o ideal é uma aproximação daquela
criança, tornando o ambiente acolhedor. Inicia-se, assim, uma discussão em torno do assunto,
se tal situação poderia caracterizar uma parcialidade do julgador, passível de uma nulidade
processual.
Isso porque, se o julgador aproxima-se da criança, de modo a deixá-la mais
confortável, ele poderá ser observado pela defesa do réu como um confidente. Portanto,
poderá ser considerado como suspeito na condução do processo, justamente pelo princípio da
imparcialidade.
Contudo, tal situação pode fragilizar a confiabilidade da declaração daquela
vítima. Aliado a isso, o decurso do tempo entre uma oitiva e outra, tendem a enfraquecer os
seus relatos e diga-se, não só o de crianças, mas o de todas as pessoas que presenciaram ou
foram vítimas de um delito. Importante salientar, que tantas intervenções produzem e/ou
podem produzir diversos danos, como vimos anteriormente, o da vitimização secundária.
Há um prejuízo maior, uma vez que diante desse enfraquecimento de memória
pelo lapso temporal, algumas contaminações podem ocorrer implantando situações na
memória que, de fato, não ocorreram. Sobre isso, Gesu (2014, p. 180), assim se manifesta:
declarativa. Agora, a parte emocional, o susto que isto nos daria, o terror que isto
nos causaria (não necessariamente ligado ao teto que cai, mas ligado ao que
aconteceu no momento); é armazenada pela amígdala e provavelmente pelo córtex
corticomedial do área prefrontal [sic] no homem.
As lembranças de fatos passados nos causam estímulos que, muitas vezes, não são
registrados em nossa memória com detalhes, pelo contrário, são registradas somente as
emoções.
De fato, muitas memórias necessitam ser esquecidas. Isso porque, algumas
recordações causam perturbações, como aquelas que provocam medos e humilhações. Outras
são prejudiciais, devido a fobias, ou perseguem a mente de um indivíduo, como o que
acontece em casos de estresse pós-traumático (IZQUIERDO; BEVILAQUA;
CAMMAROTA, 2006, p. 2).
41
Contudo, é justamente dessa memória (que é falível) que o processo penal precisa
para a reconstrução do fato delituoso, diante da ausência de demais provas técnicas como
perícias, exames de DNA, colheita de digitais, entre outras. Assim, é ideal se conhecer essa
situação.
Ainda sobre o esquecimento, Ost (2005, p. 57-58), elenca os quatro paradoxos da
memória. Primeiramente ele dispõe que a memória é social e não individual, e dessa forma,
para uma recordação, são necessários os costumes e as tradições do meio social ao qual
pertença o indivíduo. Para o autor, o segundo paradoxo é que a memória está longe de resultar
do passado, operando a partir do presente. Portanto, não é possível reter uma informação do
passado, mas sim reproduzi-la, com a lembrança de um evento que foi reconstruída. O
terceiro paradoxo é uma análise do segundo. Isso porque, a memória opera a partir do
presente (e não do passado, como visto), significando dizer que ela é ativa e voluntária.
O último paradoxo da memória é diretamente relacionado sobre o esquecimento,
isso porque, para Ost (2005, p. 60), “longe de se opor ao esquecimento, a memória o
pressupõe”. Então, só é possível obter-se recordações, a partir de reconstruções do que foi
esquecido.
42
6 FALSAS MEMÓRIAS
não são mentiras ou fantasias das pessoas, elas são semelhantes às MV [memórias
verdadeiras], tanto no que tange a sua base cognitiva quanto neurofisiológica. No
entanto, diferenciam-se das verdadeiras, pelo fato de as FM [falsas memórias] serem
compostas no todo ou em parte por lembranças de informações ou eventos que não
ocorreram na realidade. As FM [falsas memórias] são frutos do funcionamento
normal, não patológico, de nossa memória.
direito. Dessa forma, é inviável, muitas vezes, a constatação concreta de que um depoimento
está contaminado por esse fenômeno. O primordial é conhecê-lo e entendê-lo, para minimizar
os seus efeitos no depoimento de crianças, principalmente em casos de delitos sexuais, por ser
um crime que gera diversos prejuízos para esses indivíduos que precisam de resguardo.
Segundo Neufeld; Brust e Stein (2010, p. 23) e também para Gesu (2014, p. 127),
os primeiros estudos sobre as falsas memórias foram conduzidos por Alfred Binet, em 1900,
na França. Os estudos de Binet direcionavam para a contribuição das sugestões internas e
externas na incorporação ou recordação de uma informação falsa que o indivíduo relata como
verdadeira.
como esta, a fim de comprovar a violência sexual ou o fenômeno das falsas memórias (GESU,
2014, p. 133).
Não se pretende sugerir que todas as memórias são falsas. Pelo contrário, procura-
se identificar e conhecer a problemática envolvendo a memória, para trabalhar com ela no
meio jurídico, buscando relatos mais fidedignos, com maior qualidade e, portanto, mais
confiáveis.
Tanto para Gesu (2014, p. 138), quanto para Neufeld; Brust e Stein (2010, p. 27),
são três as principais teorias explicativas das falsas memórias, quais sejam: Teoria do
Paradigma Construtivista, Teoria do Monitoramento da Fonte e a Teoria do Traço Difuso.
Vejamos, a seguir, cada uma delas.
A primeira teoria, que é do paradigma construtivista “entende que uma
informação nova é integrada a informações prévias que o indivíduo possui, podendo distorcer
ou sobrepor-se à memória inicial e assim gerar uma FM [falsa memória]” (NEUFELD;
BRUST; STEIN, 2010, p. 28).
Essa teoria compreende a memória como um sistema único, que é construído a
partir de interpretações que as pessoas fazem de eventos. A memória, fruto dessa construção,
será aquilo que as pessoas entendem sobre a experiência. Portanto, a cada nova informação é
realizada uma construção, ou reconstrução, com base em experiências prévias (GESU, 2014,
p. 138).
Já a teoria do monitoramento da fonte, refere-se ao local, pessoa ou situação, de
onde é oriunda uma informação e, segundo essa teoria,
Por fim, com relação à última teoria, dispõem as autoras que a teoria do traço
difuso busca responder algumas críticas e lacunas das teorias acima (construtivismo e
monitoramento da fonte).
Essa teoria considera que a memória é composta por dois sistemas que são
independentes de armazenamento e recuperação da informação (NEUFELD; BRUST; STEIN,
2010, p. 27).
Vejamos a seguir, a influência das falsas memórias no processo penal, e seus
reflexos nas crianças.
sociedade) e também os profissionais com quem a criança entra em contato para narrar o
evento delituoso.
Gesu (2014, p. 155), dispõe que,
Os fatores que podem contribuir para a formação das falsas memórias são vários,
podendo ocorrer, por exemplo, fatores internos e externos no decorrer da formação desse
fenômeno, variando de acordo com cada indivíduo.
As crianças, quando possuem tenra idade, devido a sua vulnerabilidade e
sugestionabilidade, não têm um compromisso com a realidade, na medida em que tendem a
fantasiar acontecimentos, o que é caracterizado como um fator interno, inerente ao seu
desenvolvimento.
Já os fatores externos, podem ocorrer através das contaminações de terceiros, ou
com métodos de questionamento errôneo, ou ainda com o emprego de linguagem inadequada
para com a criança (BITENCOURT, 2009, p. 122).
47
A mídia possui um importante poder frente à sociedade e isso não é recente; suas
pressões com forças suficientes para repercutir em crimes, também não é. Isso foi exatamente
o que aconteceu em São Paulo, em 1994, com o caso nacionalmente conhecido da Escola
Base (consta em anexo os detalhes da investigação, e a participação da imprensa no crime,
inclusive com a probabilidade de ter ocorrido falsas memórias nos depoimentos das crianças).
Dessa forma, é necessário que todos os profissionais que tenham contato com a
criança, para a colheita de declarações, possuam aptidão para isso e capacidade de neutralizar
a sua presença, para afastar um medo ou uma insegurança dela. É preciso de cuidado,
também, para que a linguagem utilizada não contamine o depoimento do infante. Para o autor,
esse profissional “deve manter a mente aberta e ser autêntico quanto àquilo que é relatado,
com consciência de que o seu próprio comportamento pode influenciar de maneira indelével a
declaração da criança” (TRINDADE, 2014, p. 445).
Isso porque, os relatos das crianças podem ser frágeis, variando de acordo com a
condução sua entrevista. Aliado a isso, como na maioria das vezes o único elemento
probatório restante no processo penal é a palavra da vítima, ou de alguma testemunha, o
magistrado profere uma sentença (geralmente condenatória) com base nesse depoimento. O
objetivo não é inutilizar essa prova, mas demonstrar que, dependendo do contexto, ela pode
não ser suficiente para uma condenação por, talvez, não ter acontecido o delito e o relato ser
fruto de falsas memórias.
6.4.3 A contribuição do meio social da criança para a formação das falsas memórias
Assim, da mesma forma que ocorre com os profissionais que irão entrevistar a
criança, a partir do momento em que os familiares aderem à teoria que ocorreu um abuso
sexual, eles tendem a colher as declarações daquele ponto de vista, procurando ratificar as
suas hipóteses, ao invés de observarem, claramente, o contexto das declarações. Restringem-
se a visão, oitiva e percepção, naquilo que confirma a sua ótica adotada, de que houve uma
violência.
Contudo, Trindade (2014, p. 440), alerta que os erros frequentes dos familiares,
quando indagam essas crianças, são:
Desse modo, primordial é que as inquirições das crianças sejam realizadas por
profissionais capacitados, com medidas alternativas para a realização das inquirições, com o
intuito de diminuir a vitimização secundária. Como a Lei n.º 13.431/2017, entrou em vigor no
mês de abril do corrente ano, ainda não se tem notícias acerca de sua aplicabilidade. Portanto,
a seguir, serão abordados outros métodos, com o intuito de diminuir os danos nas escutas
infantis, que já são utilizadas em algumas comarcas brasileiras.
56
exemplo: diga como ocorreu o acidente. Esse comando aberto motiva a narrativa
ampla, sem uma resposta predefinida, certa ou errada.
2) Perguntas fechadas: implicam uma escolha entre alternativas, seja para selecionar
uma delas (a camisa da vítima era azul, verde ou amarela?), seja para dicotomizar
(sim ou não?), ou para identificar (onde você estava no dia do acontecimento?).
Perguntas fechadas são mais sugestivas do que questões abertas, devendo-se ter
especial cuidado para não induzir a resposta de modo manipulativo, o que faz
lembrar a clássica pergunta: qual era a cor do cavalo branco de Napoleão?
8 CONCLUSÃO
Dentre os inúmeros crimes que são praticados, através de diferentes formas, sem
dúvidas, os delitos sexuais são os que geram maior indignação social. Portanto, uma vez
suscitada a suspeita de um abuso sexual, principalmente envolvendo crianças, as autoridades
passam a investigar rapidamente, colhendo provas, na tentativa da localização do autor, com o
intuito, também, de dar uma resposta para essa indignação da sociedade, que clama por
justiça.
Segue-se o procedimento legal, com os órgãos de repressão aos crimes, iniciando
as investigações para buscarem os elementos suficientes de autoria e materialidade, para
embasar uma denúncia e, consequentemente, uma condenação penal. Contudo, nesse
caminho, há o envolvimento de crianças, que serão submetidas a diversas declarações, em
diferentes órgãos oficiais.
Essas repetições de declarações, nesses diferentes órgãos, são tomadas em regra,
por profissionais que não possuem aptidão na colheita de declaração infantil e que propiciam
a formação das falsas memórias, gerando insegurança em todos os envolvidos.
Os fenômenos que ocorrem na memória humana são capazes de distorcer ou
recordar de fatos que na realidade, nunca existiram. A intenção não é afirmar que todas as
memórias de crianças, quando relatam crimes sexuais, a que foram vítimas ou testemunhas,
são falsas, pelo contrário, sabe-se que, diariamente, são praticados crimes de cunho sexual,
contra crianças.
Dessa forma, deve-se buscar a identificação do autor, através das investigações e a
condenação dele, através do devido processo legal. Porém, busca-se evidenciar que as
abordagens errôneas realizadas nas repartições públicas a que as crianças são submetidas,
geram uma vitimização secundária para elas, devido à carência de recursos para lidar com
essa situação.
Esses recursos incluem a ausência de profissionais capacitados para entrevistar
um infante, vítima ou testemunha de um crime e incluem também os recursos financeiros para
propiciar um ambiente diferenciado para a recepção deles. Considera-se a criança um
indivíduo vulnerável, sujeito a contaminações de diversas ordens, visto que são altamente
62
Conhecer sobre esse fenômeno é um convite que se faz também, aos profissionais
do cenário jurídico, a fim de que possam abandonar posicionamentos taxativos, que são
reiterados, quase como “dogmas”, e migrarem para um campo também de incertezas, mas
onde existem reflexões permanentes, com o intuito de romper paradigmas, associados não só
aos delitos sexuais, mas em torno do que acontece na própria sociedade, diariamente.
64
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68
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo penal. 35. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
TRINDADE, Jorge. Manual de psicologia jurídica para operadores do direito. 7. ed. rev.
atual. ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014.
ANEXOS
70
Por questões de didática, resolveu-se citar o caso da Escola Base de São Paulo,
sendo que esse repercutiu e repercute até hoje, em estudos envolvendo as falsas memórias, a
nível nacional.
Gesu (2014, p. 207-220), expôs em sua obra, o inquérito policial do estado de São
Paulo, que dispunha sobre a falsificação da memória pela via da indução. Constam relatos
sucintos das acusações e o desfecho do caso, com breves comentários. Todos os grifos e as
citações a seguir, são da autora.
1 – Caso escola base de São Paulo
1.1.1 A notícia-crime
Compareceram à 6ª Delegacia de Polícia, do 6º Distrito Policial da capital São
Paulo, em 27 de março de 1994, Lúcia Eiko Tanoue e Cléa Parente de Carvalho, mães de dois
alunos da Escola Infantil de Base, de propriedade dos casais Icushiro Shimada (Ayres), Maria
Aparecida Shimada (Cida), Maurício Monteiro Alvarenga e Paula Alvarenga, localizada no
bairro da Aclimação, zona Sul de São Paulo, ocasião em que noticiaram à autoridade policial
terem seus filhos sido vítimas de abuso sexual por parte dos donos, em comunhão de esforços
com professores e com o casal Saulo da Costa Nunes e Mara Cristina França Nunes, pais de
Rodrigo, também aluno do estabelecimento. Os abusos consistiam em levar as crianças ao
apartamento do aludido casal, obrigando-as a assistir filmes pornográficos, presenciar a
prática de relação sexual, bem como cometer com elas atos libidinosos, enquanto eram
fotografadas por Maurício.
1.1.2 A investigação
Diante da velocidade da abertura e do arquivamento do inquérito (menos de três
meses), bem como das informações desastrosas veiculadas na mídia, imprescindível a
apresentação de um cronograma do caso1:
26 de março de 1994, sábado: Lúcia conversa com o seu filho Fábio e surge a
história do suposto abuso.
27 de março, domingo: Lúcia procura Cléa, mãe de Cibele. Registram a ocorrência
na 6ª Delegacia de Polícia.
28 de março, segunda-feira: inicia-se a apuração do caso. A polícia faz buscas na
casa de Saulo e Mara e na Escola Base. O Diário Popular tomou conhecimento da
1
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 167.
71
O Caso Escola Base de São Paulo, a nosso ver, foi um dos mais paradigmáticos
sobre os excessos praticados conjuntamente pela imprensa e pela polícia, de modo a
influenciar e induzir milhares de pessoas sobre um escândalo sexual que nunca existiu. Trata-
se, sob nossa ótica, de um dos maiores exemplos, no Brasil, sobre o fenômeno das falsas
memórias, devido a sua dimensão. É importante recorrer a um acontecimento extremamente
patológico, no qual, embora não tenha havido processo, mas tão somente uma investigação
(arquivada em menos de três meses) gerou um imenso prejuízo para os imputados, decorrente
da falsificação da lembrança das crianças-vítimas.
72
2
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003.
3
Os nomes das crianças foram trocados no livro com o intuito de preservar a identidade.
4
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 20.
73
Paula, sócia da escolinha – teria agredido o pequeno a tapas”5. Por fim, “uma mulher de traços
orientais fazia com que ele virasse de bruços para passar mertiolate e pomada em suas
nádegas. Ardia muito, foi o que o garoto disse à sua mãe. E uma mulher e um homem
ficariam ‘colados’ na frente dele”6.
A acusação de violência sexual teve início com a inquirição feita por uma mãe ao
filho de 4 anos, depois que ele fez um movimento com suposta conotação sexual. Frisamos o
fato de a inquirição ter sido realizada pela mãe, no quarto do garoto, sem que ninguém a
presenciasse. Como já sabemos o final dessa história verídica, suscitamos a hipótese de o
menor ter assistido a uma cena de romance em um filme, em uma novela ou até mesmo ter
visto os pais em um momento íntimo e tê-la imitado para sua mãe. Ou então, nem sequer ter
havido gesto nenhum, sendo absolutamente tudo fruto da imaginação dela.
O fato é que a genitora do menor não somente induziu o filho, mas outras mães de
alunos e a própria imprensa a acreditar em um abuso sexual que não existiu, gerando uma
falsa memória.
As crianças, conforme os estudos realizados nos capítulos anteriores, são mais
suscetíveis à indução, assim como procuram corresponder às expectativas do adulto
entrevistador e, geralmente, ao serem indagadas sobre um determinado assunto, não dizem
que não sabem. As outras mães também sugestionaram seus filhos a acreditar terem sido
violados, arrancando destes relatos escabrosos. E a imprensa, por sua vez, aproveitou a
oportunidade para ganhar audiência e vender jornais, pois era feriado de Páscoa e não havia
nenhuma notícia bombástica a ser veiculada.
Segundo o relato de Fábio, conforme a versão apresentada pela mãe, outros
menores também participaram da orgia, dentre eles, Cibele. A indução à lembrança de um
fato não vivenciado foi tão significativa que Lúcia, a mãe de Fábio, procurou a mãe de Cibele,
5
Ibidem. Na Rede Banderantes de Rádio e Televisão (Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente a
transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 05),
Lúcia Eiko declarou: “- A mulher beijou a boca dele, né, e..., a mulher beijou a boca dele e deitou em cima
dele enquanto o outro tirava foto, né?! Ai ele pegou e falou que foi filmado, né, e..., ele...falou assim que o
homem deitava em cima duma outra menininha que se chamava Iara... (corte de edição).”
6
Idem, p. 21. Na Rede Record (Conforme o laudo nº 01.030.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de
videocassete, realizado pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 12), Lúcia declarou: “- É,
Merthiolate e uma pomada no bumbum dele, ele falava que ardia, ardia muito, você está entendendo? Então
ele falou assim, eu falei assim, ‘mas por que, Felipe?’ Ele falou: “mãe, para arder o corpo todinho.”
74
Cléa, instruindo-a a conversar com a menina sobre a ocorrência do abuso7. Vários parentes de
Cléa envolveram-se no fato, sem ao menos saber do que se tratava. A primeira pessoa a falar
com Cibele foi a cunhada de Cléa, Eliana, a qual procurou criar uma “atmosfera
encorajadora”, ou melhor, acusadora, a fim de que a menina se sentisse mais à vontade pra
relatar o crime. Questionou-a: “Quando eu era criança e estava na escolinha, alguns
amiguinhos queriam me levar para ver coisa feia, mas eu não ia”8. A menina respondeu, de
forma inconsistente que também não ia, que não saía da escola.
Cléa, da mesma forma que Lúcia, inquiriu sua filha sozinha, “jogando verde para
colher maduro”. Utilizou, mesmo sem ter conhecimento, a técnica da “pressão de pares”, na
qual o entrevistador sugere que um amigo do entrevistado, no caso em apreço, Fábio, teria
passado por situação similar de abuso, induzindo-a a acreditar que o fato também ocorreu com
ela. A criança crê ter sido violada, também pelo desejo de se inserir no grupo. Nesse sentido,
Cléa “falou para sua filha que havia encontrado o Fábio na rua, e ele o contara que fora à casa
de Rodrigo. Lá era muito legal, havia brinquedos e bicicleta. Cibele, segundo sua mãe, irritou-
se e disse que nunca tinha ido à casa do Rodrigo. A mãe estranhou: ela disse que Fábio, e não
a filha havia estado na casa de Rodrigo. Voltou à carga: - Mesmo que você tivesse ido a casa
do Rodrigo, não teria problema, porque lá é legal. Tem fitas de desenho. Cibele, segundo sua
mãe, perdeu a paciência: - Lá não tem fita de desenho. Tem fita de mulher pelada”9.
A partir da história contada pela mãe de Fábio, Cléa passou a criar uma falsa
lembrança na filha, induzindo-a através de perguntas altamente sugestivas: “- O que você
fazia na casa de Rodrigo? Tirava fotos? – Sim. – Você tirava fotos de roupa, de uniforme? –
De vestido. Ainda não convencida, Cléa testou uma vez mais. – E a Iracema, como ela tirava
as fotos? – Sem roupa”10. A menina pôs fim ao assunto. Entretanto, diante da insistência da
mãe, passou a fantasiar: “Cibele então contou que dormiu umas dez vezes na casa do Rodrigo,
7
Há coincidência entre os relatos de Lúcia e Cléa. Esta concedeu entrevista à Rede Globo de Televisão
(Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado
pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 11), ocasião em que disse: “(...) também foram tiradas fotos
eróticas de adultos com ela em um hotel, porque ela me disse que ela havia ido em hotel, que tinha uma cama
redonda, vídeo, televisão, enfim, bem alto, num lugar alto, e que lá eles davam coisa pra comer, beber suco e
dormiam.”
8
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 21.
9
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 22.
10
Idem, p. 23.
75
e, certa vez, o tio Maurício a teria segurado pelo ombro e depois jogado no chão. Ela bateu a
cabeça depois fugiu. Cibele também dissera a mãe que teria introduzido em seu ânus um
objeto esquisito, que ela não sabia descrever. Assistia filmes de mulheres peladas e era
fotografada nua. Os tios ficam sem roupas e deitavam em cima dela”11.
Evidente a falsificação da lembrança, tanto de Fábio, quanto de Cibele, pois não
houve nenhum indício material a contrapô-la: não houve apreensão de fitas pornográficas no
apartamento do casal, nem na escola; do mesmo modo, a descrição do apartamento feita pelas
crianças não correspondia à realidade, e nenhuma fotografia supostamente tirada foi
encontrada. Ademais, a mãe de Cibele certamente saberia se a filha realmente dormiu na casa
de Rodrigo “dez vezes”, como afirmou.
O fumus comissi delicti foi baseado nos relatos das vítimas e naquilo que as mães
deles acreditavam ter acontecido, bem como em um laudo provisório do IML, exame de corpo
de delito realizado em Fábio e Cibele.
É preciso ressaltar o amadorismo da investigação. A polícia, ao cumprir o
mandado de busca e apreensão no apartamento dos suspeitos, permitiu que as vítimas e
genitoras participassem da diligência. Um fato interessante – além de nada ter sido apreendido
– foi que as crianças supostamente “abusadas” brincaram alegremente no local onde teriam
sofrido a violência sexual e, ao serem confrontadas com o suposto abusador – Saulo – não
demonstraram ódio ou medo.12 Contudo, a polícia e as mães dos menores, cegas e sedentas
por justiça, sequer prestaram atenção para esses “detalhes”.
O primeiro delegado a investigar o caso, Antonino Primante, e o primeiro jornal a
ter acesso à acusação, o Diário Popular, foram prudentes. Não houve prisão em flagrante, nem
requerimento de temporária, assim como não foi divulgada a notícia, diante da absoluta
ausência de indícios de materialidade.
As mães ficaram inconformadas diante da negativa do delegado Primante em
realizar novas buscas – pois não tinha mandado para tanto –, bem como com a troca de turno
dos policiais.
O caso começou para valer, isto é, adquiriu notoriedade, quando elas resolveram
chamar a Rede Globo. Somado a isso, ainda houve a troca do delegado “prudente” pelo
11
Ibidem.
76
delegado “estrela”, bem como um telex do IML adiantando o resultado do exame de corpo de
delito feito no menino Fábio, o qual resultou “positivo” à prática de atentado ao pudor.
Algumas denúncias ocorreram primeiro na imprensa e depois na polícia, como foi
a realizada pelo casal Ângela e Ricardo Isber. A notitia criminis era contra Maurício Monteiro
Alvarenga, o motorista da Kombi escolar. O filho do casal, Rogério, também de 4 anos,
sequer estudava na escolinha. Apenas utilizava o mesmo transporte que os demais. A “onda”
de sugestionabilidade foi tão grande que a mãe do menino o fez acreditar que Maurício, o
motorista, teria colocado o “Ptolomeu” para fora e encostado no garoto. “Ptolomeu” era o
nome ensinado ao pequeno para designar o órgão sexual masculino. Segundo a mãe, o filho
chegava em casa cansado, com dores de barriga, de cabeça e bastante sonolento.13
Mas as acusações não pararam por aí. O casal Abraão Nascimento e Sheila Fiorito
fizeram duras acusações, insinuando, inclusive, o homossexualismo infantil, sem qualquer
respaldo e, principalmente, sem registrar ocorrência. Destacamos alguns trechos da entrevista
de Sheila ao Jornal Folha de São Paulo:
12
Idem, p. 30.
13
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 54.
14
Idem, p. 55.
77
15
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 56.
16
Em entrevista, ao vivo, concedida ao Programa Rede Cidade, da Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão
(Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente à transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado
pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 19 e 21), o delegado Edélcio Lemos declarou: “Eu tenho
provas materiais baseadas em um laudo do IML que confirma que um dos meninos sofreu violência sexual”.
Sobre o depoimento da vítima Fábio/Felipe assim referiu: “O depoimento de uma criança deve ser levado
com a máxima credibilidade. As vítimas investigadas não possuem mais de quatro anos, e no meu
entendimento, uma criança nessa faixa de idade não teria uma mente tão sórdida para montar uma história
dessa. Pra gente ele vale e legalmente ele também é valido”.
17
“A última aula da Escola Base”. In: Boletim 12, Novembro-Dezembro de 1996, Instituto Gutemberg.
Disponível em <http://www.igutenberg.org/esbase12.html>. Acesso em 29/03/2007.
18
Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado pelo
Instituto de Criminalística de São Paulo, a notícia acerca do suposto uso de drogas foi veiculada na Rede
Globo, ocasião em que o pai de Fábio declarou que o menino lhe dizia: “Papai, me dá fumaça”, p. 06.
19
Na Rede Globo (Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de
videocassete, realizado pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 17), Cléa Parente fez alusão à
suposta contaminação pelo vírus da AIDS: “Caso ela tenha o..., so..., foi, sofreu algum abuso sexual, é..., é
78
bom fazer por causa dessa onda de AIDS que está tendo e também se teve alguma doença venérea como
sífilis, é bom detectar também porque também uma prova a mais...”
20
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 60-61.
21
“O que a imprensa aprendeu na Escola Base?”. In: Boletim 6, Novembro-Dezembro de 1995, Instituto
Gutemberg. Disponível em <http://www.igutenberg.org/esbase12.html>. Acesso em 29/03/2007.
22
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 49. A entrevista com o menino foi
veiculada na Rede Cultura, na Rede Globo de Televisão, Programa São Paulo Já, conforme o laudo nº
01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado pelo Instituto de
Criminalística de São Paulo, p. 08-09.
79
passou a mentir sozinha, incidindo no mesmo erro ao criar um elo de ligação entre a Escola
Base e a prisão do americano Richard Pedicini, “sob suspeita de ceder o casarão em que
morava, no bairro da Aclimação, para as ‘orgias’ com as crianças”24.
Richard costumava permitir que alguns meninos do bairro tomassem banho em
sua piscina. Possuía a identificação (foto, endereço e telefone) de cada um deles, colados na
porta da geladeira. A polícia revistou a mansão de 6 (seis) pisos e encontrou algumas fotos em
praias de nudismo nos Estados Unidos e no Brasil, inclusive, de crianças desnudas.
Entretanto, não havia conotação sexual. E mais, não existia qualquer conexão entre a
apreensão e o caso Escola Base.
A celeridade da investigação foi altamente prejudicial aos imputados,
considerando que em menos de três dias suas vidas estavam destroçadas. Houve, sem dúvida,
um total atropelo aos direitos individuais, pois na primeira fase da investigação os suspeitos
apresentaram-se espontaneamente, mas não foram ouvidos. Aliás, a polícia e a imprensa
somente davam ouvidos às mães dos menores. Os imputados sequer puderam apresentar suas
versões sobre a acusação.
No final das investigações, inquérito com mais de 800 páginas, o próprio
promotor de justiça atuante no caso, Sérgio Peixoto Camargo, lamentou “a desnecessária
provocação do aparelho policial pela fantasia de pessoas imaturas, ignorantes, apoucadas de
compreensão e destituídas de lógica, que não conseguem visualizar as gravíssimas
consequências de seus atos impensados”25.
A própria polícia, após avaliar os depoimentos de outras mães de alunos, bem
como laudo realizado com Lúcia Eiko – pessoa que deu o start à investigação –, pôs em
xeque o modo como ela obteve as informações do filho.
Nesse sentido, Cristiani Aparecida Próspero, mãe de um colega de Fábio, contou
na polícia ter recebido um telefonema de Lúcia. Esta teria dito que:
Para extrair os fatos do menino precisou fazer uma espécie de chantagem, isto é,
dizia-lhe que se não contasse não o deixaria fazer isso ou aquilo – principalmente
dormir em companhia dela, já que o menino estava acostumado a dormir em
23
“A última aula da Escola Base”. In: Boletim 12, Novembro-Dezembro de 1996, Instituto Gutemberg.
Disponível em <http://www.igutenberg.org/esbase12.html>. Acesso em 29/03/2007.
24
Ibidem.
25
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 141.
80
companhia da mãe. Segundo Lúcia, Fábio ficou assustado e disse que eles saíram em
uma perua escolar, com um tio japonês, e iam para um local grande, onde existiam
camas redondas, espelhos e passavam fitas de mulheres peladas.26
(...) Pelo que foi observado no discurso da mãe, para algumas coisas naturais do
processo de desenvolvimento infantil, a mesma trata as questões com muita fantasia
e temores, ao que parece por tratá-lo de forma muito infantilizada, como se tivesse
medo de perder o seu lugar para o mesmo. (sic).
Fábio, filho de Lúcia Eiko, possuía efetivamente pequenas lesões na região anal,
conforme descrição do auto de exame de corpo de delito:
26
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 139.
27
Idem, p. 140-141.
81
Em que pese a conclusão do laudo ter sido positiva para os vestígios de lesões
corporais compatíveis com a prática de atos libidinosos (fato de que se valeu o delegado
Edélcio para praticamente comprovar a culpa dos suspeitos30), não estabeleceu nexo de
causalidade entre as lesões – repita-se, de natureza leve – com o histórico de abuso sexual
apresentado pela mãe do menor,31 ou seja, não afirmou categoricamente ter o menino sido
violentado. Somado a isso, a declaração de Lúcia Eiko, em entrevista realizada no dia 20 de
abril, aumentou ainda mais a dúvida acerca do suposto atentado violento ao pudor ao relevar
que Fábio sofria de constipação intestinal, sentia dor de barriga desde fevereiro e que
costumava coçar o ânus. Ainda apresentava muita dificuldade para evacuar, reclamando de
dores intensas.32
A pedido do investigador, com o intuito de esclarecer as causas das lesões no ânus
do garoto, sobreveio parecer firmado por dois médicos, o qual, da mesma forma que o
anterior, asseverou não existir elementos suficientes a confirmar a ocorrência dos atos
libidinosos. Pelo oposto, ainda suscitou mais duas hipóteses para as lesões: fezes endurecidas
ou verminoses:
28
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 141.
29
Idem, p. 88.
30
O Delegado Edélcio Lemos referiu em entrevista concedida a Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão (Laudo
nº 01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado pelo Instituto de
Criminalística de São Paulo, p. 21) que “(...) além do que as crianças falaram, também existe uma
confirmação já através de uma prova científica que não admite contestação, um laudo médico que diz que
um deles sofreu violência sexual”.
31
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 88.
32
Idem, p. 142.
82
Acrescentamos também o fato de o menor apresentar prurido anal, que poderia estar
associado a parasitoses intestinais (verminoses). 33
33
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 142.