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UNIVERSIDADE DO SUL DE SANTA CATARINA

FLÁVIA LAURINDO DA ROSA

AS FALSAS MEMÓRIAS PRESENTES NOS DEPOIMENTOS DE CRIANÇAS EM


CASOS DE VIOLÊNCIA SEXUAL

Araranguá
2018
FLÁVIA LAURINDO DA ROSA

AS FALSAS MEMÓRIAS PRESENTES NOS DEPOIMENTOS DE CRIANÇAS EM


CASOS DE VIOLÊNCIA SEXUAL

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Curso de Graduação em Direito da
Universidade do Sul de Santa Catarina, como
requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Direito.

Orientador: Prof. Diego Archer de Haro, Esp.

Araranguá
2018
FLÁVIA LAURINDO DA ROSA
A todas as pessoas que pesquisam e se
empenham no estudo multidisciplinar do
direito, especialmente aos que se dedicam no
entendimento dos fenômenos da psicologia e
sua aplicação, para garantir a proteção de
crianças conforme a Constituição Federal.
AGRADECIMENTOS

Agradeço primeiramente ao Deus que existe dentro de mim, por toda força e
energia positiva emanada.
Aos meus pais pela vida e por todos os valores morais ensinados.
À UNISUL – Universidade do Sul de Santa Catarina, especialmente na figura da
Katiussi Costa Custódio, por ter me apresentado essa Universidade antes do ingresso no
Curso de Direito, e também pela amizade e auxílio.
À todas as pessoas que compõem o Núcleo de Práticas Jurídicas – Unidade
Araranguá, pela oportunidade do primeiro estágio na área jurídica, por todo aprendizado,
carinho e amizade.
À todos os integrantes da Polícia Civil de Araranguá pela recepção como
estagiária, pelo aprendizado, pela amizade e incentivo na carreira acadêmica.
Ao professor e orientador do trabalho, Dr. Diego Archer de Haro, Delegado
Regional de Polícia de Araranguá, que exerce uma profissão a qual admiro muito, e por ser
um exemplo de profissional, por ter acolhido a proposta desse trabalho e pelas orientações
recebidas.
Às colegas de faculdade que viraram amigas no decorrer desses anos, pelo
companheirismo e incentivo.
E de forma muito especial, meu agradecimento a Rafael Maciel Mota, amor da
minha vida, meu namorado e amigo, por todo carinho, compreensão e apoio. Essa pequena
conquista, que é muito importante para mim, foi possível por tê-lo comigo, ao longo dessa
jornada, me auxiliando e dando força em todos meus passos, principalmente nesse trabalho de
conclusão de curso.
“A diferença entre as falsas memórias e as verdadeiras é a mesma das jóias: são
sempre as falsas que parecem ser as mais reais, as mais brilhantes” (Salvador Dalí).
RESUMO

O presente trabalho, tem como escopo principal, analisar sob o aspecto jurídico, a influência
das falsas memórias quando presentes nos depoimentos de crianças em casos de violência
sexual. Para esta análise, realizou-se a pesquisa bibliográfica e documental, com uma
metodologia dedutiva, iniciando pela contextualização do processo penal, através dos
sistemas processuais penais, bem como pela enumeração de princípios aplicados ao processo
penal, de forma a orientar todos os operadores do direito, principalmente quando do momento
probatório. Ainda, busca-se analisar a problemática envolvendo a memória no processo penal,
para a reconstrução do possível evento delituoso, uma vez que, na maioria dos crimes sexuais
– visto que são praticados na clandestinidade –, resta somente a palavra da vítima como um
meio de prova, valendo-se ela, de sua memória, que é passível de contaminações,
principalmente quando se trata de crianças, fomentando para a formação do fenômeno das
falsas memórias. Esse fenômeno é compreendido por recordações de informações ou eventos
que não ocorreram na realidade. Conclui-se o prejuízo tanto para a criança, quanto para o
acusado, e por consequência para o próprio processo penal quando o depoimento está
contaminado por falsas memórias. Dessa forma, é necessário um conhecimento técnico para a
inquirição desses infantes, diminuindo o conflito entre o que é estabelecido pelo atual Código
de Processo Penal e os direitos fundamentais da criança e do adolescente.

Palavras-chave: Falsas memórias. Depoimento infantil. Processo penal.


ABSTRACT

The main purpose of this study is to analyze, under the juridical aspect, the influence of the
falses memories when presents in the testimonies of children in cases of sexual violence. For
this analyse, a bibliographic and documentary research was carried out, with a deductive
methodology, starting with the contextualization of the criminal process, through the criminal
procedural systems, as well as the enumeration of principles applied to the criminal process,
in order to guide all the right, especially at the time of probation. It also seeks to analyze the
problem of memory in the criminal process for the reconstruction of the possible criminal
event, since in most sex crimes - since they are practiced in the underground - there is only the
victim's word as a means of proof, using it, of the memory her, which it is susceptible of
contaminations, especially when it comes to children, fomenting to the formation of the
phenomenon of the false memories. This phenomenon is comprised of memories of
information or events that did not occur in reality. Concludes that harm to the child and for
the accused, and consequently for the criminal proceedings itself when the testimony is
contaminated by false memories. Thus, a technical knowledge is necessary for the inquiry of
these infants, reducing the conflict between what is established by the current Code of
Criminal Procedure and the fundamental rights of children and adolescents.

Keywords: False memories. Child testimonial. Criminal proceedings.


SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO................................................................................................................. 10
2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS ........................................................................... 13
2.1 INQUISITÓRIO .............................................................................................................. 13
2.2 ACUSATÓRIO ................................................................................................................ 14
2.3 MISTO ............................................................................................................................. 15
3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO PENAL .................................. 17
3.1 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA ......................................................... 17
3.2 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA .................................... 18
3.3 PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ ............................................................ 19
3.4 PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO ........................................ 21
4 PROVAS NO PROCESSO PENAL ................................................................................ 22
4.1 CONCEITO DE PROVA ................................................................................................ 22
4.2 VERDADE FORMAL E VERDADE REAL .................................................................. 23
4.3 EXAME DE CORPO DE DELITO NOS CRIMES SEXUAIS ...................................... 26
4.4 PROVA TESTEMUNHAL ............................................................................................. 28
4.5 O ESTADO VIOLENTADOR ........................................................................................ 30
4.5.1 A criança como autora da prova................................................................................ 31
4.5.1.1 A obrigatoriedade da inquirição da vítima ................................................................. 33
4.5.2 Contaminação da prova .............................................................................................. 35
5 MEMÓRIA NO PROCESSO PENAL............................................................................ 37
5.1 CLASSIFICAÇÃO DA MEMÓRIA ............................................................................... 37
5.2 MEMÓRIA E SUAS DIMENSÕES ................................................................................ 38
5.3 MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO ............................................................................... 40
6 FALSAS MEMÓRIAS ..................................................................................................... 42
6.1 ESTUDOS RELACIONADOS ÀS FALSAS MEMÓRIAS ........................................... 43
6.2 TEORIAS EXPLICATIVAS DAS FALSAS MEMÓRIAS............................................ 44
6.3 FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL .......................................................... 45
6.4 FORMAÇÃO DAS FALSAS MEMÓRIAS ................................................................... 46
6.4.1 A contribuição da mídia para a formação das falsas memórias ............................. 47
6.4.2 O viés do entrevistador para a formação das falsas memórias ............................... 49
6.4.3 A contribuição do meio social da criança para a formação das falsas memórias . 50
6.5 SUGESTIONABILIDADE E VULNERABILIDADE DO DEPOIMENTO INFANTIL
53
6.6 TÉCNICAS DE ENTREVISTA PARA A COLHEITA DO DEPOIMENTO INFANTIL
54
6.6.1 Medidas de redução de danos nas entrevistas infantis ............................................ 56
7 ANÁLISE DO PROJETO DEPOIMENTO SEM DANO ............................................ 58
8 CONCLUSÃO ................................................................................................................... 61
REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 64
ANEXOS ................................................................................................................................. 69
ANEXO A – CASO ESCOLA BASE DE SÃO PAULO ..................................................... 70
10

1 INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, o cenário jurídico sofreu algumas alterações com a busca de
técnicas e análises de testemunhos de crianças dentro do processo penal. Há, inclusive, alguns
projetos vigorando com o intuito de repensar justamente a sua contribuição para a prova
penal.
O primeiro projeto que é denominado Depoimento sem Dano, teve início no
estado do Rio Grande do Sul com o Projeto de Lei Estadual nº 4.126/2004, que consiste em
realizar as escutas de crianças e adolescentes de forma especial, através de psicólogos ou
assistentes sociais.
No ano de 2006, houve a substituição do Projeto de Lei supracitado, para o
Projeto nº 7.524/2006, que foi dirigido ao Senado Federal, como uma recomendação de lei
nacional.
Assim, em 2017, foi promulgada a Lei n.º 13.431 que entrou em vigor no mês de
abril do corrente ano, estabelecendo garantias de crianças e adolescentes, quando vítimas ou
testemunhas de crimes, regulamentando o procedimento de escuta especializada e do
depoimento especial.
Esses projetos, como o depoimento especial ou depoimento sem dano, e outros
que estão sendo aplicados em algumas comarcas brasileiras, são medidas para garantir a
proteção de crianças e adolescentes, em situações que foram vítimas ou testemunhas de
violências.
Ainda, servem também, para minimizar a formação das falsas memórias (que é
compreendida por recordações de informações ou eventos que não ocorreram na realidade),
nos depoimentos de infantes, com a intenção de protegê-los e evitar a revitimização no
processo penal.
Entretanto, em que pese estas mudanças, é possível visualizar que os operadores
do direito ainda não estão preparados para essa técnica. Isso porque, na maioria das vezes,
seus métodos de coleta de depoimentos contribuem ou propiciam a formação de falsas
memórias.
Nesse contexto, percebe-se o quão complexo é o diálogo, entre as garantias
constitucionais da criança e a fase probatória do processo penal, uma vez que o Código de
11

Processo Penal é datado de 1941, cuja realidade social é diversa dos dias atuais, bem como da
realidade da Constituição Federal. Enquanto a Carta Magna preconiza uma série de direitos a
serem seguidos, com o intuito de resguardar crianças/adolescentes, o Código de Processo
Penal sequer os considera como sujeitos detentores de direitos e os trata apenas, como objetos
de prova no curso do processo.
Ainda que a Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do
Adolescente, façam previsão expressa para garantir a proteção de crianças/adolescentes, não
raras são as vezes, em que tais garantias são desrespeitadas, refletindo a realidade atual do
procedimento.
Dessa forma, a problemática central é identificar a influência das falsas memórias
no processo penal, em casos de violência sexual, envolvendo crianças. Para isso, utiliza-se a
pesquisa bibliográfica e documental, a partir de materiais já publicados, com a metodologia
dedutiva, com o objetivo de analisar, sob o aspecto jurídico, a influência desse fenômeno,
valendo-se muitas vezes, da psicologia jurídica para esta análise, com o intuito de demonstrar
a existência dele e identificar o prejuízo, tanto para a criança, quanto para o acusado, e por
consequência para o próprio processo penal, quando o depoimento é fruto das falsas
memórias.
Antes de iniciar a análise da influência das falsas memórias no processo penal,
realiza-se a contextualização do processo, com os sistemas processuais penais, e a divergência
doutrinária quanto a eles, bem como a enumeração de alguns princípios que são aplicados ao
processo penal, de forma a orientar todos os operadores do direito, e garantir o devido
processo legal.
Por conseguinte, menciona-se os dois principais meios de prova nos casos de
delitos sexuais, que são os exames periciais e as provas testemunhais, com uma atenção
especial para esse último meio probatório, no intuito de demonstrar como o Estado conduz,
tanto as testemunhas, quanto as vítimas (incluindo a valoração de seus depoimentos) dentro
do processo penal.
Assim, inicia-se a análise da problemática envolvendo a memória no processo
penal, para a reconstrução do possível evento delituoso, uma vez que, a maioria dos crimes
sexuais são praticados na clandestinidade, restando somente a palavra da vítima como um
meio de prova.
12

Surgindo também, os questionamentos quanto a busca pela verdade real


(principalmente nesses casos, diante de tamanho repúdio que causa perante a sociedade) e se
essa verdade realmente existe, ou se é possível de alcançá-la através do processo penal. Dessa
forma, desenvolve-se o trabalho com a demonstração que a criança é vulnerável, e portanto,
sugestionável, significando que o seu depoimento pode ser fruto das falsas memórias, que
pode ter formação através de diferentes fatores.
Esses fatores que contribuem para a formação do fenômeno das falsas memórias,
podem ser tanto internos, inerente ao desenvolvimento infantil, quanto externos, como, por
exemplo, com a contribuição da mídia, com o viés do entrevistador nas conduções das
entrevistas infantis, e com o próprio meio social onde a criança está inserida, para que esses
relatos não correspondam a realidade.
Assim, entendendo a participação da criança no processo penal e a importância do
seu testemunho, e considerando a realidade das condenações penais brasileiras, que são
pautadas quase que exclusivamente em provas testemunhais, devido a uma carência de
recursos suficientes para provas periciais, têm-se uma grande responsabilidade na colheita do
depoimento infantil.
Por isso, o Projeto Depoimento sem Dano é apresentado secundariamente, como
uma das alternativas para assegurar os direitos de crianças no decorrer dos procedimentos
legais a que são submetidas, a fim de obter maior fidedignidade em seus depoimentos. Com o
Projeto, a inquirição dessa criança será realizada de um modo eficaz, minimizando as
contaminações.
Por consequência, o projeto Depoimento sem Dano configura-se também, uma
proteção para o acusado de um delito de natureza sexual. Isso porque, ele pode ser inocente,
porquanto, conforme elencado acima, as contaminações que as crianças sofrem, podem
contribuir para as falsas memórias.
13

2 SISTEMAS PROCESSUAIS PENAIS

A palavra sistema significa “conjunto ou combinação de coisas ou partes de modo


a formarem um todo complexo ou unitário” (SISTEMA, 2008, p. 808).
Assim, adaptando esse conceito para o sistema processual penal, entende-se que
nada mais é que um conjunto de princípios e regras pautados na Constituição Federal, de
acordo com cada momento político e histórico vivido pela sociedade, cabendo ao Estado
estabelecer todas as diretrizes necessárias para a aplicação do direito penal, variando em cada
caso concreto (RANGEL, 2017, p. 47).
O sistema processual penal brasileiro passou por diversas mudanças, de acordo
com as épocas, alterando-se entre dois sistemas processuais, quais sejam, o sistema processual
penal acusatório e o sistema processual penal inquisitório. Para Ramidoff (2017, p. 36), “em
períodos mais democráticos, o processo penal tende a ser mais acusatório, e em períodos mais
autoritários, mais inquisitório”.
Nesse mesmo ínterim, ressaltando a mudança histórico-social pela qual passou o
processo penal, Lopes Júnior (2014, p. 63), argumenta que “os sistemas processuais
inquisitivo e acusatório são reflexos da resposta do processo penal frente às exigências do
Direito Penal e do Estado da época”.
Vejamos a seguir os dois sistemas processuais penais citados, que já foram
aplicados no Brasil, bem como suas características, a fim de especificar qual é o sistema
adotado pelo Código de Processo Penal.

2.1 INQUISITÓRIO

O sistema processual penal inquisitório confunde-se com a ação de uma única


pessoa que tem, as prerrogativas de acusar e julgar. Assim, o mesmo que acusa, é aquele que
pune. Ramidoff (2017, p. 42), expõe que:

Historicamente, o sistema inquisitório é derivado do modo com que a Inquisição, ou


Tribunal do Santo Ofício, instituiu seus processos durante o período da lei da Igreja
sobre a lei dos homens. Resumidamente, em sua pureza, o sistema se constitui na
aglutinação de todos os atos do processo – investigação e busca da prova, decisão e
execução da sentença – nas mãos de uma só pessoa: o juiz.
14

Algumas características são marcantes nesse sistema. Doutrinadores como Capez


(2017, p. 81), Ramidoff (2017, p. 42) e Rangel (2017, p. 48) apontam três características em
comum. A primeira é que o processo é marcado pelo sigilo, portanto, longe dos olhos da
sociedade. A segunda – e principal – é que não existe nem o contraditório, tampouco a ampla
defesa nesse sistema, porque, como dispõe Capez (2017, p. 81-82), “o réu é visto nesse
sistema como mero objeto da persecução, motivo pelo qual práticas como a tortura eram
frequentemente admitidas como meio para se obter a prova-mãe: a confissão”. E, por fim, o
sistema de provas era o da prova tarifada, tendo por consequência a confissão como a “rainha
das provas”.
Ainda sobre a confissão e o modo para obtê-la, Lopes Júnior (2014, p. 70),
referindo-se de como eram realizadas as torturas entre meados do século XII até o XIV, expõe
que:

Tendo em vista a importância da confissão, o interrogatório era visto como um ato


essencial, que exigia uma técnica especial. Existiam cinco tipos progressivos de
tortura, e o suspeito tinha o “direito” a que somente se praticasse um tipo de tortura
por dia. Se em 15 dias o acusado não confessasse, era considerado como
“suficientemente” torturado e era liberado. Sem embargo, os métodos utilizados
eram eficazes e quiçá alguns poucos tenham conseguido resistir aos 15 dias. O pior é
que em alguns casos a pena era de menor gravidade que as torturas sofridas.

Desse modo, percebe-se que o sistema supracitado é incompatível com as


garantias constitucionais que devem existir – e existem hoje – em um Estado Democrático de
Direito, uma vez que mínimas garantias fundamentais, como respeito à dignidade da pessoa
humana, além de outras garantias referente ao devido processo legal, não eram fornecidas ao
imputado.

2.2 ACUSATÓRIO

Diferentemente do sistema inquisitório, no sistema acusatório têm-se as


prerrogativas de acusar, defender e julgar em órgãos distintos, e não mais concentrados na
figura do Estado-Juiz. Com isso, alguns princípios fundamentais são garantidos ao imputado
(além da separação das prerrogativas elencadas acima), surgindo assim, a imparcialidade do
julgador. Ainda, há a publicidade dos atos processuais (admitindo-se o sigilo em casos
específicos). Existem também outras diferenças, como a existência do contraditório e da
15

ampla defesa. E por fim, o sistema de provas é o do livre convencimento motivado


(RANGEL, 2017, p. 51).
Existe divergência doutrinária quando se aborda qual o sistema adotado pelo
Código de Processo Penal. O doutrinador Avena (2017, p. 13), argumenta que o sistema
acusatório foi adotado, uma vez que o artigo 129 da Constituição Federal elenca as funções do
Ministério Público, sendo precipuamente a de acusar e a questão das garantias fundamentais
que devem ser respeitadas, sendo arguidas por um defensor. Ainda, em alguns incisos do
mesmo diploma legal, o princípio da imparcialidade do julgador (que deve se manter distante
das partes), também se estabelece, indicando claramente a separação das funções de acusar,
defender e julgar.
O entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre o sistema processual penal
também é esse, ao julgar uma medida cautelar em uma ação direta de inconstitucionalidade,
no ano de 2017, constou-se que “a Constituição Brasileira de 1988 consagrou, em matéria de
processo penal, o sistema acusatório, atribuindo a órgãos diferentes as funções de acusação e
julgamento” (BRASIL, STF, 2017).
Contudo, há severas críticas quanto à aplicação única do sistema acusatório. Para
os doutrinadores que discordam, como Tourinho Filho (2013, p. 118),

no Direito pátrio, o sistema adotado, pode-se dizer, não é o processo acusatório puro,
ortodoxo, mas um sistema acusatório com laivos de inquisitivo, tanto são os poderes
conferidos àquele cuja função é julgar com imparcialidade a lide, mantendo-se
equidistante das partes.

Isso indica, que não é somente esse sistema aplicado no processo penal, sugerindo
a existência de um sistema processual penal misto.

2.3 MISTO

O sistema misto é separado por duas fases dentro do procedimento penal, quais
sejam, as fases de instrução preliminar e a fase judicial, uma representando o sistema
inquisitório e a outra o sistema acusatório.
A fase de instrução preliminar é aquela pré-processual, com a presença do
inquérito policial dirigido pela Autoridade Policial, conforme preconiza a Constituição
Federal. Já a fase judicial, revela a presença do órgão acusador, que em regra, é o Ministério
16

Público, na figura de um Promotor de Justiça, que atua durante o processo (RAMIDOFF,


2017, p. 44).
Ainda, a principal diferença entre as duas fases, segundo Rangel (2017, p. 53), é
que,

[...] b) na fase preliminar, o procedimento é secreto, escrito e o autor do fato é mero


objeto de investigação, não havendo contraditório nem ampla defesa, face à
influência do procedimento inquisitivo; c) a fase judicial é inaugurada com acusação
penal feita, em regra, pelo Ministério Público, onde haverá um debate oral, público e
contraditório, estabelecendo plena igualdade de direitos entre a acusação e a defesa.

Desse modo, os sistemas inquisitório e acusatório compõem o sistema misto,


sendo que muitos doutrinadores defendem que este é o real sistema adotado pelo Código de
Processo Penal Brasileiro.
De acordo com Tourinho Filho (2013, p. 118):

A fase processual propriamente dita é precedida de uma fase preparatória, em que a


Autoridade Policial procede a uma investigação não contraditória, colhendo, à
maneira do Juiz instrutor, as primeiras informações a respeito do fato infringente da
norma e da respectiva autoria. Com base nessa investigação preparatória, o
acusador, seja o órgão do Ministério Público, seja a vítima, instaura o processo por
meio da denúncia ou queixa. Já agora, em juízo, nascida a relação processual, o
processo torna-se eminentemente contraditório, público e escrito (sendo que
inúmeros atos são praticados oralmente, tais como debates em audiências ou sessão).

Assim, pelo exposto, fica evidenciado que existem duas fases diferentes,
marcadas por procedimentos diversos, não refletindo única e exclusivamente nenhum sistema,
mas ora um, ora outro.
Veremos a seguir os princípios que regem o Código de Processo Penal, elencados
expressamente, em sua maioria, na Constituição Federal, orientando todos os operadores do
direito.
17

3 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS NO PROCESSO PENAL

Antigamente havia um desequilíbrio na relação processual penal entre o Estado e


o imputado, uma vez que o Estado concentrava em suas mãos todo o poder jurisdicional,
como visto no sistema inquisitório. De tal modo, foi necessária a criação de garantias que
estabelecessem um equilíbrio processual nessa relação, para que o imputado pudesse se
defender, servindo esse equilíbrio como uma limitação da punição – até então realizada pelo
poder estatal, sem controle e/ou fiscalização externa. Atualmente, a atividade jurisdicional é
realizada pelo Estado, na figura de um juiz de direito, que deve ser imparcial, bem como para
exercer a função de acusar, em regra, é através da representação do órgão do Ministério
Público, na figura de um promotor de justiça, e a defesa sendo exercida por um advogado ou
defensor (BRITO; FABRETTI; LIMA, 2015, p. 13).
Alguns princípios pertinentes ao processo penal serão abordados neste trabalho. A
maioria deles está contida, de forma expressa, na Constituição Federal, os quais são
fundamentais para o devido processo legal.

3.1 PRINCÍPIO DA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

O artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal dispõe que: “ninguém será
considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” (BRASIL,
CRFB, 2018).
Assim, está consagrado na Carta Magna o princípio da presunção de inocência –
ainda que relativizado muitas vezes (como a decisão recente do Supremo Tribunal Federal, ao
julgar o habeas corpus nº 126.292 de São Paulo, que firmou entendimento para permitir a
execução provisória da pena, após a confirmação da condenação criminal em segunda
instância, ou seja, não esgotando todas as vias recursais para o trânsito em julgado) –, e dessa
forma,

cabe ao Estado provar a “culpa” do indivíduo, ou seja, demonstrar a autoria de


determinado delito, cumprindo à acusação – seja ela pública exercida pelo
Ministério Público ou privada exercida pela vítima – demonstrar os fatos articulados
com tal finalidade, visto que, constitucionalmente, o indivíduo é inocente (BRITO;
FABRETTI; LIMA, 2015, p. 15).
18

Esse princípio reflete uma proteção ao acusado para que, no momento da prolação
da sentença (se houver dúvidas sobre sua culpabilidade) o juiz aplique a máxima do direito,
qual seja, “in dubio pro reo”, cujo reflexo será a absolvição dele. Importante dizer, ainda, que
o referido princípio exista também para que o Estado não restrinja a liberdade de um
indivíduo, por exemplo, tão somente por uma suspeita infundada de envolvimento em um
crime, uma vez que a regra – para todos – é a liberdade.
Isso não quer dizer que o acusado ou investigado não poderá ser preso
preventivamente e/ou temporariamente. Tais prisões não ferirão o princípio da presunção de
inocência, uma vez que as prisões são utilizadas de acordo com disposições legais, em casos
excepcionais. Importante destacar, também, que essas prisões não são consideradas
“sentenças de culpabilidade” (pelo menos não aos olhos da legislação), possuindo funções
específicas dentro do processo.
O princípio da presunção de inocência, garantido na Constituição Federal, dispõe
que o acusado de um crime não será considerado culpado, senão após esgotar todos os
recursos cabíveis. Ou seja, ele não será considerado culpado, até a confirmação da
condenação criminal em todas as instâncias que possa recorrer juridicamente, para então advir
o trânsito em julgado, quando não há mais que se falar em recurso da sentença penal
condenatória.

3.2 PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO E DA AMPLA DEFESA

Assumindo o processo penal como dialético, o princípio do contraditório dispõe


que, para que haja uma defesa, é necessário o conhecimento prévio da acusação que é
imputada a alguém. Isso significa que o acusado irá participar do processo, compondo aquela
relação processual. Vale lembrar que esse princípio não existia no sistema inquisitório, como
visto no capítulo anterior.
Assim, segundo Lopes Júnior (2014, p. 145),

o contraditório pode ser inicialmente tratado como um método de confrontação da


prova e comprovação da verdade, fundando-se não mais sobre um juízo potestativo,
mas sobre o conflito, disciplinado e ritualizado, entre partes contrapostas: a acusação
(expressão do interesse punitivo do Estado) e a defesa (expressão do interesse do
acusado [e da sociedade] em ficar livre de acusações infundadas e imune a penas
arbitrárias e desproporcionadas). É imprescindível para a própria existência da
estrutura dialética do processo.
19

Dessa feita, a ampla defesa está intimamente ligada ao próprio contraditório. Na


medida em que, o acusado sabendo previamente qual crime está sendo imputado como de sua
autoria, pode se defender, utilizando de todos os recursos dispostos tanto na Constituição
Federal, como no Código de Processo Penal, além de todas as outras legislações e princípios a
ele inerentes. Essa defesa pode ser exercida pessoalmente, a chamada autodefesa, e através de
advogado, que é conhecida como defesa técnica, sendo indispensável para o prosseguimento
da ação penal.
Tal afirmativa, refere que o acusado deve estar sempre acompanhado de advogado
no processo penal. Contudo, na inércia dele, cabe ao juiz intimar a Defensoria Pública, ou, na
ausência dela, nomear um advogado para a realização de defesa técnica, e assim, garantir a
igualdade de armas e estabelecer o equilíbrio processual, em face ao Ministério Público
(GESU, 2014, p. 70).
Gesu (2014, p. 68), dispõe que a defesa não pode ser obrigada a praticar
determinado ato processual, e assumirá o risco dessa omissão. Porém, o juiz tem o dever de
cientificar ambas as partes (vítima e réu), e garantir que a informação seja dada. Isso porque,
o contraditório consiste no direito de informação que o réu tem, bem como, o direito de
participar no processo.

O contraditório é imprescindível para que a reconstrução da pequena história do


delito seja feita com fundamento nas versões da acusação e da defesa. Destarte,
haverá processo sempre que houver o procedimento realizando-se em contraditório
entre os interessados, sendo a essência deste a simetria de paridade de participação
nos atos preparatórios do provimento (GESU, 2014, p. 70).

Assim, forma-se a relação processual dialética, composta de uma tese e uma


antítese, de um dizer, e um contradizer, significando as garantias constitucionais, de
contraditório e ampla defesa.

3.3 PRINCÍPIO DA IMPARCIALIDADE DO JUIZ

O princípio da imparcialidade do juiz não consta expressamente na Constituição


Federal, mas em seu texto, a Carta Magna elenca, nas prerrogativas do Magistrado, os deveres
e direitos que possuem quando do exercício jurisdicional. Podem ser citados como exemplos
de direitos: a vitaliciedade, inamovibilidade, irredutibilidade de subsídio, entre outros. Já os
deveres, extraindo do Código de Ética da Magistratura Nacional, têm-se como exemplos de
20

deveres: a imparcialidade, a cortesia, a transparência, a prudência, entre outros. Ainda, o


magistrado deve primar pelo respeito à Constituição Federal e pelas demais leis do país,
fortalecendo os valores democráticos na sociedade, garantindo a dignidade da pessoa humana,
promovendo a solidariedade e a justiça (CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA, Código de
Ética da Magistratura, 2008).
O princípio da imparcialidade do juiz é intrínseco a sua própria função. Cabe
mencionar que o Código de Processo Penal prevê as hipóteses em que o profissional pode ser
afastado de um processo, por exemplo, em situações de suspeição ou impedimento. Isso
ocorre para garantir justamente a sua imparcialidade, uma vez que, não ocorrendo o
afastamento, pode caracterizar uma nulidade processual.
O juiz imparcial é aquele que é inerte, neutro, que não possui interesse no
processo e nem no julgamento, o que também é uma garantia para as partes da relação
processual. Contudo, há doutrinadores que realizam severas críticas a esse princípio, uma vez
que ao mesmo tempo em que ele é vigente, é mitigado pelos atos de ofício que o magistrado
pode praticar em um processo.
Conforme Lopes Júnior (2014, p. 317-318), a imparcialidade impõe ao juiz um
afastamento em relação a atividade que é desenvolvida pelas partes, qual seja, de acusar e
defender. Para o autor, a imparcialidade do juiz fica comprometida, quando se está diante de
um juiz-instrutor, ou quando é atribuído a ele, os poderes de iniciativa probatória, visto que
quebra-se a inércia, que é a principal característica do julgador, na medida em que se
estabelece uma posição ativa.
Isso porque, no processo penal, o juiz pode decretar a produção de provas de
ofício, decretar prisões preventivas (quando já iniciada a ação penal), medidas cautelares,
entre outros atos.
Baldoino (2018), menciona que essa determinação de ofício do juiz para a
produções de provas, é um mero desdobramento do princípio da busca da verdade, o que
justifica essa atuação, visto que é pertinente para elucidar o fato criminoso, ainda que venha
beneficiar alguma das partes. Como visto acima, Lopes Júnior discorda, porque isso mitiga o
princípio da imparcialidade.
Atos de ofício podem ser entendidos também como atos para impulsionar o
processo, para sanar dúvidas do magistrado quando do momento do julgamento. Assim, ele
21

estará agindo inspirado em valores sociais e éticos, que refletem os anseios da própria
sociedade.

3.4 PRINCÍPIO DO LIVRE CONVENCIMENTO MOTIVADO

O juiz é livre para apreciar as provas produzidas no decorrer do processo, devido a


sua discricionariedade. Contudo, em que pese vigorar a busca pela verdade real no processo
penal (e não aquela verdade formal, constituída de elementos dentro dos autos), ele precisa
fundamentar sua decisão em provas produzidas no transcurso do processo, sob o crivo do
contraditório.
Para Tourinho Filho (2013, p. 67),

o Juiz, em face das provas existentes nos autos, tem inteira liberdade na sua
apreciação. Pode desprezar o depoimento de quatro testemunhas, por exemplo, e
respaldar sua decisão num único depoimento. Este é o princípio do livre
convencimento. Confere-se ao Juiz inteira liberdade na apreciação das provas,
conquanto fundamente sua decisão. Ele só pode proferir uma decisão com
fundamento em prova colhida sob o crivo do contraditório, nada o impedindo de
reforçar seu entendimento respaldado em provas cautelares não repetíveis e
antecipadas.

Cabe mencionar que referente às provas colhidas no decorrer do inquérito policial,


se não forem repetidas em juízo, não pode o magistrado condenar com fundamentação
unicamente nelas. Isso é o que indica o art. 155 do Código de Processo Penal, em que consta:
“o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório
judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos
colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”
(BRASIL, CPP, 2018).
Observa-se que a legislação concretiza uma ressalva importante, qual seja, desde
que as provas não possam ser renovadas em juízo, como por exemplo, a realização de perícias
(como o exame de corpo de delito), buscas e apreensões realizadas no decorrer do inquérito,
entre outras provas, é que o juiz não poderá fundamentar exclusivamente sua condenação
pautado nelas.
Assim, ao concluir este capítulo que abordou os princípios que norteiam o
processo penal, já podemos adentrar ao meio probatório, em que tais princípios também
devem se mostrar presentes.
22

4 PROVAS NO PROCESSO PENAL

Entende-se por prova algo que serve para demonstrar uma verdade. Há inúmeras
formas de demonstrar essa verdade, seja através de documentos, demonstração visual, entre
outras.
O Código de Processo Penal disciplinou em um título próprio o que serve como
prova dentro da ação penal. São as perícias, o interrogatório e/ou confissão do acusado, o
depoimento do ofendido e das testemunhas, bem como os documentos apresentados ao longo
do processo.
Contudo, sabe-se que a legislação supracitada encontra-se desatualizada, não
devendo restringir a admissão de provas tão somente ao que o Código mencionou, uma vez
que a sociedade se transforma rapidamente, e com isso podem surgir novos meios probatórios
não incluídos no rol do Código de Processo Penal. Dessa forma, Avena argumenta (2017, p.
425):

Na atualidade, é preciso ter em mente que a regulamentação dos meios de prova


existente no Código de Processo Penal não é taxativa, podendo ser aceitos meios de
provas atípicos ou inominados, vale dizer, sem regulamentação expressa em lei,
amplitude esta que se justifica na própria busca da verdade real que, sempre, será o
fim do processo penal. Enfim, desde que não importe em violação à Constituição
Federal e às normas processuais gerais, essa categoria de provas despida de
regulamentação própria terá, em tese, o mesmo valor das provas consideradas típicas
ou nominadas (objeto de regulamentação legal), ou seja, um valor relativo,
condicionado ao exame conjunto dos elementos de convicção incorporados ao
processo.

A seguir veremos o conceito de prova para os doutrinadores e a problemática


referente a busca pela verdade real no processo penal.

4.1 CONCEITO DE PROVA

Prova significa “aquilo que serve para estabelecer uma verdade por verificação ou
demonstração” (PROVA, 2008, p. 709). Por sua vez, o verbo provar denota “demonstrar com
provas (documentos, fatos, razões, testemunhas)” (PROVAR, 2008, p. 709).
Então, pode-se concluir que provar para o processo penal significa demonstrar
uma verdade através de documentos, fatos, razões, testemunhas. De acordo com Nucci
(2015), no campo jurídico, a prova está relacionada, particularmente, à “demonstração
23

evidente da veracidade ou autenticidade de algo. Vincula-se, por óbvio, à ação de provar, cujo
objetivo é tornar claro e nítido ao juiz a realidade de um fato, de um acontecimento ou de um
episódio”.
Isso porque, considerando que o destinatário da prova é o juiz, a prova serve para
auxiliá-lo na sua convicção quanto aos fatos narrados na denúncia, independente se verídicos
ou não, a partir das demonstrações realizadas no decorrer da fase de instrução no processo
penal (AVENA, 2017, p. 425).
Para Feitoza (2008, p. 114), a palavra prova possui vários sentidos. Citamos
abaixo apenas algumas das divisões que o autor faz com os vários sentidos da prova, quais
sejam, a prova como fonte, a prova como manifestação da fonte e a prova como atividade
probatória, vejamos:

A prova como fonte se refere às pessoas e coisas utilizadas como prova,


consideradas como fontes dos estímulos sensoriais que chegam à percepção da
entidade decisora (por exemplo, o juiz) sobre um fato.
A prova como manifestação da fonte refere-se à prova pessoal, na qual podemos
distinguir entre a pessoa (por exemplo: a testemunha) e sua manifestação (por
exemplo: o testemunho, as declarações ou depoimento da testemunha).
A prova como atividade probatória é o ato ou conjunto de atos tendentes a formar a
convicção da entidade decisora sobre a existência ou inexistência de um fato. Por
exemplo, quando nos referimos a interrogatório como prova, estamos considerando
a prova como atividade, ou seja, concentrando-nos no ato judicial de interrogar. Mas
podemos nos referir a outros aspectos desse ato como a pessoa (o réu) e sua
manifestação (as declarações do réu) (grifo do autor).

O processo penal é baseado em fatos que ocorreram no passado. O objetivo da


prova, no processo, é obter a verdade sobre os fatos ocorridos, em um determinado evento que
pode ter sido criminoso, buscando-se reconstruir o histórico de um delito. A busca pela
verdade em um processo, principalmente na esfera penal, é de suma importância. Contudo, há
uma diferença para os doutrinadores no que concerne à verdade formal e à verdade real.

4.2 VERDADE FORMAL E VERDADE REAL

Para adentrar no tema da busca pela verdade no processo penal, cabe destacar a
sua função, ou seja, como esse instrumento processual é capaz de dar uma solução para uma
lide, através de uma sentença, podendo ser condenatória ou absolutória. Segundo Grubba
(2017, p. 131),
24

mais do que solucionar uma lide, o processo penal é o ramo do Direito que pode
interferir na liberdade do ser humano, por meio de uma sentença condenatória, ou
mesmo tem o condão de estigmatizá-lo perante a sociedade. Daí parece emergir a
grande importância da noção de verdade no âmbito do processo penal: como
condenar um ser humano à restrição da liberdade e à estigmatização que lhe é
correspondente e intrínseca sem uma certeza ou verdade quanto ao cometimento do
delito? Se não houver um conhecimento verdadeiro, parece que o suposto autor deve
ser absolvido em razão da dúvida, que encontra sua máxima na expressão latina in
dubio pro reo.

Sabe-se que o processo penal é composto por diversos conjuntos probatórios aptos
a provar a inocência ou a culpa de determinado indivíduo. Quando ocorre um fato tipificado
como uma infração penal (crime ou contravenção penal), buscam-se provas para ter uma
certeza sobre o acontecimento do delito e o autor dele, iniciando a busca pela materialidade e
a autoria.
Assim, tem-se que a verdade formal é aquela produzida no decorrer da instrução
processual, em que o juiz irá julgar através dos subsídios demonstrados no processo pelas
partes interessadas, não buscando algo exterior. É por esse motivo, que vem a máxima do
processo civil brasileiro no momento do julgamento, “o que não está nos autos, não está no
mundo”.
No entanto, essa verdade não é aplicada no processo penal, uma vez que o juiz
deve buscar a verdade fática, podendo ir além do que foi apresentado no decorrer da instrução
criminal, adentrando no mundo exterior ao processo. Ainda, quando não é suficiente a
produção de provas realizadas pelas partes, ele irá exercer sua competência para determinar a
produção de provas de ofício, podendo proferir a sentença (condenatória ou absolutória) com
fundamento nessas provas.
Isso ocorre, porque o processo penal envolve direitos fundamentais, tanto da
vítima quanto do réu, uma vez que de um lado, está um direito de segurança da sociedade, e
de outro – em regra – a liberdade de um indivíduo. Portanto, o Estado tem interesse na
participação ativa nesse processo. Assim, é necessário buscar a verdade dos fatos, valendo-se
o Estado-Juiz de meios legais para isso, como a expedição de produção de provas. Para
Pacelli (2017, p. 333):

A prova judiciária tem um objetivo claramente definido: a reconstrução dos fatos


investigados no processo, buscando a maior coincidência possível com a realidade
histórica, isto é, com a verdade dos fatos, tal como efetivamente ocorridos no espaço
e no tempo. A tarefa, portanto, é das mais difíceis, quando não impossível: a
reconstrução da verdade (grifo do autor).
25

Inicia-se, então, uma grande discussão em torno da busca da verdade no processo


penal. Para muitos processualistas, a verdade formal é vinculada ao sistema acusatório (que
para a doutrina majoritária é o sistema adotado pelo Código de Processo Penal Brasileiro),
enquanto que a verdade real, relaciona-se com o sistema inquisitorial. Isso porque, no
primeiro sistema o juiz é inerte, sentenciando apenas com elementos apresentados pelas partes
dentro do processo. De modo diferente ocorre no segundo sistema, porque o juiz transcende
para o mundo exterior, buscando elementos para sanar dúvidas, ou para justificar uma
condenação.
Não obstante essa divergência doutrinária, é preciso ressaltar o que é entendido
como uma verdade real. Segundo Grubba (2017, p. 140, grifo da autora),

as crenças que o ser humano tem sobre o mundo podem ser bem justificadas, mas
podem ser falsas, pois não parece ser possível um conhecimento verdadeiro sobre o
mundo externo, visto que não se tem acesso direito à realidade.

Tal afirmação da autora é perfeitamente entendida, vez que não há nem na


investigação científica e também não há epistemologicamente uma verdade absoluta, mas sim
uma aproximação da verdade, uma correspondência com o que realmente aconteceu em uma
situação fática (PEREIRA, 2010, p. 119).
A posição de Grubba também pode ser compreendida frente a discussões
cotidianas da sociedade, em que podem ocorrer diferentes opiniões sobre um determinado
fato, não se podendo restringir um como uma verdade absoluta e outro como falsa, porque no
fundo, cada um tem a sua verdade.
Gesu (2014, p. 92), analisando filosoficamente e juridicamente a questão da
verdade, critica a postura ainda utilizada no processo penal, com essa busca da verdade real.
Para a autora,

a desconstrução do mito da verdade como escopo do processo é de grande valia [...].


Os depoimentos das vítimas e testemunhas de um fato delituoso estão sujeitas [sic] a
contaminações de várias ordens [...]. Além disso, suas recordações não são
fidedignas à realidade devido ao próprio processo mnemônico em si. Inviável,
portanto, continuar falando em verdade no processo, diante da impossibilidade de
reconstrução do fato tal e qual ele aconteceu.

Assim, segundo Grubba (2017, p. 141), a partir dos argumentos elencados:

Parece ser possível afirmar que o processo penal, enquanto instrumento de garantia,
não busca uma verdade formal ou material, mas busca um conhecimento
proposicional bem justificado para ancorar a decisão judicial, conhecimento esse que
26

somente pode ocorrer por meio da linguagem processual e não do acesso ao mundo
exterior.

Isso porque, a acusação (que geralmente é exercida na figura do Promotor de


Justiça, ou do querelante em caso de queixa crime) possui um convencimento sobre um fato,
muitas vezes totalmente diferente do que a defesa. Tratando-se da busca pela verdade, não é
possível taxar uma única como verdadeira, mas sim identificar elementos que corroborem
com as versões apresentadas pelas partes, aproximando-se do que realmente aconteceu no dia
apontado como delituoso. Cabe à acusação e à defesa produzir as provas no sentido que
acreditam, para convencer o julgador, que terá uma impressão sobre o que foi alegado,
prolatando uma sentença que expõe, justamente, o seu sentimento frente as provas elencadas
no processo.
Como o objetivo do trabalho envolve crianças em casos de violência sexual, a
seguir, abordaremos tão somente os dois principais meios de prova que mais possuem
pertinência com o tema, que são os exames periciais e as provas testemunhais.

4.3 EXAME DE CORPO DE DELITO NOS CRIMES SEXUAIS

O exame de corpo de delito é uma perícia técnica, admitida como prova dentro do
processo penal, uma vez que “podem fazer afirmações ou extrair conclusões pertinentes ao
processo penal” (NUCCI, 2015).
Nesse viés, o artigo 158 do Código de Processo Penal dispõe que “quando a
infração deixar vestígios, será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto,
não podendo supri-lo a confissão do acusado” (BRASIL, CPP, 2018).
Tal exame busca a materialidade de um crime, sob uma análise técnica e
científica, que possui grandes repercussões na área criminal, principalmente quando é
relacionado a crimes sexuais.
É cabível mencionar que há inúmeras formas previstas em lei que se caracterizam
como crimes contra a liberdade sexual. No entanto, em se tratando de crimes sexuais
praticados contra crianças, é caracterizado em sua maioria pelo estupro de vulnerável, com
previsão expressa no Código Penal.
27

Conforme o caput do art. 217-A, do diploma legal supracitado, entende-se por


estupro de vulnerável “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14
(catorze) anos” (BRASIL, CP, 2018).
Há que se registrar, que essa não é a única hipótese do estupro de vulnerável, isso
porque, o parágrafo primeiro do art. 217-A do Código Penal, dispõe da vulnerabilidade de
pessoas que, “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento
para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”
(BRASIL, CP, 2018).
Porém, como exposto, o estupro de vulnerável pode ser caracterizado não só por
conjunção carnal, mas também por algum ato libidinoso. Sabe-se que não há perícia técnica
para os atos libidinosos, que são entendidos por

coitos anormais (por exemplo, a cópula oral e anal), [...] destinado a satisfazer a
lascívia, o apetite sexual. Cuida-se de conceito bastante abrangente, na medida em
que compreende qualquer atitude com conteúdo sexual que tenha por finalidade a
satisfação da libido (CAPEZ, 2012, p. 34-35).

Com isso, ainda que a perícia técnica seja um instrumento que auxilia o juiz a
formar seu convencimento, é importante ressaltar que não há nulidade processual diante da
ausência de um exame de corpo de delito, para os crimes que não deixam vestígios. É o caso
dos crimes praticados com atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Valendo-se o
magistrado de outros elementos probatórios para embasar sua fundamentação, como por
exemplo, as provas testemunhais.
Esse é o entendimento de Marcão (2017, p. 471), quando dispõe que, o que a lei
não admite, é que o exame pericial seja suprido “exclusivamente pela confissão do acusado,
visto se tratar de prova frágil, insuficiente, quando isolada, para o esclarecimento da verdade”
(grifo do autor).
O mesmo entendimento é firmado pelo Supremo Tribunal Federal, ao prolatar um
acórdão, constando que “quando, no entanto, não for possível o exame de corpo de delito
direto, por haverem desaparecido os vestígios da infração penal, a prova testemunhal – que
materializa o exame de corpo de delito indireto – supre a ausência do exame direto”
(BRASIL, STF, 1992).
Assim, vejamos a seguir questões relacionadas à prova testemunhal e sua
participação no processo penal.
28

4.4 PROVA TESTEMUNHAL

Testemunha é aquele terceiro estranho ao processo penal, não sendo vítima nem
autor de um delito. Ela serve para atestar a verdade de um acontecimento, esclarecer algum
fato ou negá-los.
Nos dizeres de Ramidoff (2017, p. 138), “a lei não estabelece condição, requisito
ou pressuposto normativo que possa identificar ou estabelecer qualidade especial para uma
pessoa ser considerada testemunha; logo, toda pessoa poderá ser testemunha, conforme dispõe
o art. 202 do CPP”.
Assim, a pessoa que for arrolada como uma testemunha, tem o compromisso legal
de depor e de dizer a verdade. Contudo, o Código de Processo Penal no artigo 206 elenca
ressalvas de quem pode se recusar a prestar depoimento, como o “ascendente ou descendente,
o afim em linha reta, o cônjuge, ainda que desquitado, o irmão e o pai, a mãe, ou o filho
adotivo do acusado, salvo quando não for possível, por outro modo, obter-se ou integrar-se a
prova do fato e de suas circunstâncias” (BRASIL, CPP, 2018).
Ainda, cabe ressaltar que há proibições expressas na lei de quem são as pessoas
que estão proibidas de depor, conforme o artigo 207 são aquelas que “em razão de função,
ministério, ofício ou profissão, devem guardar segredo, salvo se, desobrigadas pela parte
interessada, quiserem dar o seu testemunho” (BRASIL, CPP, 2018).
Por fim, segundo o artigo 208 do Código de Processo Penal, não serão
compromissados com a verdade “doentes e deficientes mentais e aos menores de 14
(quatorze) anos, nem às pessoas a que se refere o art. 206” (BRASIL, CPP, 2018).
Com relação à classificação das testemunhas, Capez (2017, p. 447-448), Messa
(2017, p. 618) e Abade et. al (2014), fazem algumas divisões uníssonas, quando afirmam que
as testemunhas são: Numerárias (arroladas pelas partes); extranumerárias (arroladas por
iniciativa do juiz); informantes (não prestam o compromisso de dizer a verdade); referidas
(aquelas que foram mencionadas por outras testemunhas, e não foram arroladas pelas partes
anteriormente); próprias (aquelas que relatam sobre a acusação do réu); impróprias (relatam
fatos secundários, atos relacionados ao processo); diretas (aquelas que presenciaram os fatos),
e por fim, as indiretas (aquelas que relatam o que ouviram alguém dizer).
29

Todas essas pessoas que poderão ser arroladas como testemunhas, sejam aquelas
que presenciaram o cometimento do delito ou aquelas que relatam o que ouviram de terceiros,
podem ter seus relatos contaminados. Tais contaminações podem ter diversas fontes: uma
condução errônea por parte dos operadores do direito quando colhem depoimentos, a indução
e o viés do entrevistador, a própria memória do indivíduo que é falível, as falsas memórias
(podendo estar presente no seu relato) e o transcurso do tempo do evento criminoso até sua
oitiva.
Quando analisamos os julgados de processos criminais nas justiças estaduais
brasileiras, percebemos que a situação é bem complexa. As condenações são baseadas (quase
que exclusivamente) em provas testemunhais. Nesse sentido, Gesu (2014, p. 93), assim
dispõe:

A prova produzida no processo, principalmente no que concerne à Justiça Estadual,


é eminentemente testemunhal. Milhares de feitos são julgados com base unicamente
no depoimento de testemunhas, aliados a um indício qualquer. Diante dessa
realidade, imprescindível abordamos tanto a fragilidade deste meio probatório,
através do estudo da memória e à possibilidade de formação de falsas memórias
(patologia), quanto à maneira como a doutrina e a própria legislação enfrentam a
problemática.

Daí surge a importância de se analisar a forma com que é colhido o depoimento de


uma testemunha no processo penal brasileiro. Sabe-se que há uma carência enorme de
perícias técnicas nos estados brasileiros, o que faz com que se valorizem as provas
testemunhais, também legais, uma vez que dispostas no Código de Processo Penal. O que não
é admissível, é a continuidade de condenações em processos criminais, baseados na maioria
das vezes, em provas testemunhais frágeis, desconhecendo os operadores do direito, que
aqueles relatos podem estar contaminados, e não tomando nenhuma iniciativa, quanto a
colheita desses depoimentos de forma a minimizar essas contaminações.
Marcão (2017, p. 524) coaduna, afirmando que,

a prova testemunhal é largamente utilizada, sendo raros os processos em que não se


verifica sua produção. Mais raro ainda é encontrar ação penal que tenha sido julgada
procedente sem que o autor tenha se utilizado de testemunha para a prova de suas
alegações. Em razão das peculiaridades que cercam o depoimento de testemunha, é
preciso que o juiz esteja atento quando de sua colheita e valoração.

Isso porque, sabe-se que uma única testemunha pode fazer prova o suficiente para
uma decisão condenatória, quando seu depoimento é corroborado com os demais elementos
probatórios contidos no processo (MESSA, 2017, p. 617). Ainda, cabe ressaltar que se
30

tratando de crimes sexuais, muitas vezes a única testemunha é a própria vítima, visto que a
maior parte desses crimes, é praticada na clandestinidade, podendo não deixar vestígios para
periciar.
Vejamos, a seguir, como o Estado conduz as testemunhas-vítimas (com a
valoração de seus depoimentos) dentro do processo penal.

4.5 O ESTADO VIOLENTADOR

Com o advento da Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do


Adolescente de 1990, detalhando as garantias constitucionais, os infantes e adolescentes,
passaram a serem vistos como sujeitos detentores de direitos, e não mais como objetos de
intervenção estatal.
Contudo, o Código de Processo Penal encontra-se desalinhado em muitos casos ao
que dispõe a Constituição Federal e a legislação esparsa, encarando esses infantes como
objetos de provas de um determinado crime, ou colaboradora para a prática da própria
infração. Isso é o que se depreende do artigo 59 do Código Penal, quando dispõe que “o juiz,
atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos
motivos, às circunstâncias e conseqüências [sic] do crime, bem como ao comportamento da
vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do
crime” (BRASIL, CP, 2018, grifo nosso).
Nesse viés, o Código Penal e o Código de Processo Penal não acolhem as vítimas
como detentoras de direitos, tampouco as crianças-vítimas com garantias pautadas na
Constituição Federal.
Isso porque, conforme Bitencourt (2009, p. 41):

A vítima foi esquecida e tratada sempre como um objeto que apenas deve colaborar
com a investigação criminal. Não foi diferente com o Direito Penal, que é um direito
punitivo-sancionador, ou com o Processo Penal, que limitou a participação da vítima
à condição de testemunha-informante objetivando colaborar no esclarecimento do
fato, ou, inclusive, com a Política Criminal, que procura prevenir o crime
trabalhando o potencial infrator, mas esquece de oferecer programas e medidas
eficazes contra a potencial vitimização e revitimização.

Assim inicia-se o processo de revitimização estatal ou, para alguns doutrinadores,


a vitimização secundária. Primeiramente aquele infante foi vítima de um crime perante a
31

sociedade, e quando ingressa no sistema penal, é vítima novamente, mas tendo como parte
autora o Estado.
Isso talvez tenha explicação pela busca equivocada da verdade real dentro do
processo penal, que como vimos anteriormente, é utópica. Desse modo, ignoram-se, muitas
vezes, políticas de redução de danos para a colheita de depoimentos. Tais medidas servem
para evitar ou reduzir novos danos que podem ser causados quando a criança ingressa no
sistema de investigação policial e, posteriormente, judicial, uma vez que são frágeis e
passíveis de sugestionabilidade.
Com relação a esse processo de revitimização, Bitencourt (2009, p. 2), explica que

podemos verificar outro tipo de vitimização, onde a violência é causada pelo sistema
de justiça que viola outros direitos, vitimizando novamente a criança ou adolescente.
Essa revitimização denomina-se vitimização secundária, que outra coisa não é senão
a violência institucional do sistema processual penal, fazendo das vítimas novas
vítimas, agora do estigma processual-investigatório; podendo dificultar (senão até
inviabilizar) o processo de superação do fato, provocando ainda uma sensação de
impotência, desamparo e frustração com o sistema de controle social, provocando
descrédito e desconfiança nas instituições de justiça criminal.

Isso quer dizer que a vítima-testemunha sofre pela ausência de tratamento


específico, desconsiderando sua personalidade em desenvolvimento (visto que são crianças).
Tal situação ocorre pela falta de conhecimentos de psicologia jurídica pela maioria dos
operadores do direito, que, utilizando de linguagem inadequada, induzem – ainda que de
forma inconsciente – as respostas daqueles infantes, desconsiderando sua formação
psicossocial.
Ainda, não obstante essa revitimização estatal, o próprio procedimento penal
atribui uma responsabilização indireta por uma eventual condenação à criança, uma vez que
ela é vista como a autora da prova (considerando que em muitos crimes sexuais não há
testemunhas e não deixaram vestígios). A palavra da criança é o único elemento probatório
restante.

4.5.1 A criança como autora da prova

Primeiramente cabe destacar quem é entendido como criança para a legislação


atual. O artigo 2º do Estatuto da Criança e do Adolescente dispõe que “considera-se criança,
32

para os efeitos desta Lei, a pessoa até doze anos de idade incompletos” (BRASIL, ECA,
2018).
O entendimento supracitado vigora apenas neste âmbito nacional. Isso porque,
para o artigo 1º da Convenção Internacional dos Direitos da Criança datada de 1989 e
ratificada no ano seguinte pelo Brasil, considera-se criança “todo ser humano com menos de
dezoito anos de idade, a não ser que, em conformidade com a lei aplicável à criança, a
maioridade seja alcançada antes” (BRASIL, Convenção Sobre os Direitos da Criança, 2018).
Contudo, para Bitencourt (2009, p. 18),

ambas são pessoas em desenvolvimento físico e mental, definidos como um ser em


condições de receber cuidados especiais e que passam a ser considerados cidadãos,
com direitos pessoais e sociais garantidos pela Constituição Federal de 1988 e pelo
Estatuto da Criança e do Adolescente. Ocorre que crianças e adolescentes
representam uma grande parte da população brasileira e são o segmento mais
exposto à violência, em especial à violência sexual, pois encontram-se em uma fase
da vida que, devido à sua fragilidade, dependência e falta biológica de maturação
nos níveis emocional, social e cognitivo, estão mais suscetíveis de abusos.

É importante ressaltar, que os crimes praticados contra a dignidade sexual de


crianças, observam o procedimento ordinário, disciplinado no Código de Processo Penal,
tramitando em varas criminais, e não em varas específicas, dedicadas a crianças e
adolescentes. Assim, como são varas diferentes, possuem magistrados com dedicação e
conhecimentos diversos, que não acolhem da mesma forma uma criança, em uma vara
criminal, como em uma especializada.
Geralmente, este é o cenário para o qual a criança terá de se dirigir, para prestar
depoimentos e se submeter a esclarecimentos: Delegacia de Polícia, Assistência Social,
Instituto Geral de Perícia, Ministério Público e o Fórum. Considerando que esses ambientes
não são adaptados para esse público, a fim de que sejam recebidos de forma acolhedora e
tampouco possuem operadores do direito preparados para essa demanda que é, cada vez mais
crescente, a situação fica ainda pior, gerando um processo de revitimização estatal contra a
criança.
Nesse viés, Bitencourt (2009, p. 90), assim se manifesta:

As inadequadas intervenções do aparato estatal acabam produzindo nova (re)


vitimização, e até a destruição de eventuais provas dos fatos imputados ao acusado.
Desafortunadamente, o Estado não está equipado com recursos materiais e humanos
capazes de proteger e preservar a vítima em sua integridade moral, psicológica e
socioafetiva. Trata-se de um sistema dirigido a adultos, sem pessoal especializado a
intervir com crianças e adolescentes frágeis e vulneráveis, sem estrutura adequada a
33

possibilitar que essas vítimas sejam preservadas de novos abusos e corretamente


informadas dos procedimentos adotados. Referimo-nos a falta de delegacias
especializadas, do despreparo do pessoal encarregado do atendimento a vítima
infanto-juvenis, ausência de estrutura para exames físicos periciais necessários,
carência de médicos peritos especializados em crimes sexuais que envolvam vítimas
infanto-juvenis, e, por fim, inabilidade dos operadores do direito em geral para lidar
com vítimas especiais e falta de estrutura física para recepcionar e ouvir tais vítimas
em processo judicial. O percurso da vítima de crime sexual traduz-se num sistema
estatal de violência.

Sabe-se que a inquirição da vítima tem por objetivo o esclarecimento do crime, e


também o combate à impunidade do autor quando não existem outras provas para corroborar
com os relatos.
A própria sociedade espera a sua palavra e clama por justiça para as autoridades.
Contudo, o sistema penal que a recebe atribui uma responsabilidade de condenação – quase
que exclusivamente – a ela. Se existir somente sua palavra, essa será a prova que conduzirá o
destino do processo, e, consequentemente decidirá o destino de indivíduos.
Isso gera uma pressão psicológica na criança, o que é prejudicial para sua
formação psíquica.

4.5.1.1 A obrigatoriedade da inquirição da vítima

O artigo 201 do Código de Processo Penal dispõe que “sempre que possível, o
ofendido será qualificado e perguntado sobre as circunstâncias da infração, quem seja ou
presuma ser o seu autor, as provas que possa indicar, tomando-se por termo as suas
declarações” (BRASIL, CPP, 2018).
Para alguns doutrinadores, essa previsão é uma exigência, e não uma
possibilidade. Isso é o que demonstra Capez (2017, p. 456), quando diz que “o ofendido não
precisa ser arrolado pelas partes para ser ouvido, devendo o juiz determinar, de ofício, a sua
oitiva (dever jurídico)”. Pelo contrário, se o juiz não o fizer, caracteriza-se como uma
nulidade relativa, podendo a parte que se sentiu prejudicada, arguir essa matéria para anular o
feito.
No momento da oitiva da criança, conforme prevê o artigo, o juiz deverá
perguntar sobre as circunstâncias da infração. Logo, faz-se com que a vítima relembre – o que
não deseja mais –, o modo que ocorreu a violência, o lugar, a postura do agressor, entre outros
elementos.
34

Mesmo que o parágrafo 5º do artigo 201 faça previsão de que o juiz poderá
encaminhar a vítima para tratamentos, principalmente em áreas psicossociais, assistência
jurídica, etc. (BRASIL, CPP, 2018), a regra, em conformidade com o Código de Processo
Penal é que as perguntas devem ser realizadas por ele. Todavia, como já observamos,
inúmeras são as consequências negativas para as crianças-vítimas, que são inquiridas por
profissionais que não possuem conhecimento técnico e específico, como se espera que tenham
os assistentes sociais e psicólogos.
Não obstante já ter sido vítima de um crime, a criança sofre a revitimização dentro
do processo, por meio dos constrangimentos pelos quais passa nos locais onde terá de narrar
os fatos e pelo despreparo dos profissionais, etc.
Sabe-se que durante a atuação do juiz em um processo, rege o princípio da
imparcialidade. Existe a obrigatoriedade do afastamento daquele julgador com as partes
(vítima e autor). Porém, para uma inquirição infantil, o ideal é uma aproximação daquela
criança, tornando o ambiente acolhedor. Inicia-se, assim, uma discussão em torno do assunto,
se tal situação poderia caracterizar uma parcialidade do julgador, passível de uma nulidade
processual.
Isso porque, se o julgador aproxima-se da criança, de modo a deixá-la mais
confortável, ele poderá ser observado pela defesa do réu como um confidente. Portanto,
poderá ser considerado como suspeito na condução do processo, justamente pelo princípio da
imparcialidade.
Contudo, tal situação pode fragilizar a confiabilidade da declaração daquela
vítima. Aliado a isso, o decurso do tempo entre uma oitiva e outra, tendem a enfraquecer os
seus relatos e diga-se, não só o de crianças, mas o de todas as pessoas que presenciaram ou
foram vítimas de um delito. Importante salientar, que tantas intervenções produzem e/ou
podem produzir diversos danos, como vimos anteriormente, o da vitimização secundária.
Há um prejuízo maior, uma vez que diante desse enfraquecimento de memória
pelo lapso temporal, algumas contaminações podem ocorrer implantando situações na
memória que, de fato, não ocorreram. Sobre isso, Gesu (2014, p. 180), assim se manifesta:

O tempo, além de contribuir para o esquecimento, oportuniza a contaminação


daquilo que a testemunha ou vítima efetivamente viu e ouviu, na medida em que
passa a ter contato com outras pessoas, com outros entrevistadores, havendo uma
confusão entre aquilo que sabe e o que lhe foi dito posteriormente. De outra banda,
35

uma entrevista neutra tem o potencial de reforçar a memória. Sabemos que


dificilmente as entrevistas são neutras.

Diante da obrigatoriedade da inquirição da vítima, como dispõe o Código de


Processo Penal, o ideal é que todos os profissionais possuam conhecimento técnico para lidar
com a situação de vulnerabilidade infantil. Principalmente os policiais, visto que, na maior
parte das vezes, a denúncia formal é realizada, primeiramente no âmbito policial, onde haverá
uma maior probabilidade de produção de prova robusta com declaração neutra, sem
sugestões.
Ainda que haja discussões de aproximação dos profissionais (como o magistrado
com uma das partes) e, neste caso, com a vítima, que para alguns poderia estar “relativizando”
o princípio da imparcialidade, tal atuação é plenamente entendida. Aquele servidor estará
agindo com compromisso com a efetividade da função estatal, principalmente a jurisdicional.

4.5.2 Contaminação da prova

Inúmeras são as formas de contaminação da prova, principalmente aquelas


produzidas por crianças. Como visto anteriormente, podem ocorrer sugestões e/ou induções,
através de inquirições errôneas, sendo expressadas, na maioria das vezes, por um viés
acusatório do entrevistador.
Seguidamente, o transcurso do tempo também é um fator de contaminação da
prova. A realidade do tempo que dura um processo brasileiro – principalmente o penal –, é
procrastinatória. Esse tempo é diferente do tempo em que fatos acontecem na sociedade, que
se dão de forma acelerada. O processo penal, então, não acompanha o tempo do crime.
Na opinião de Gesu (2014, p. 170),

quanto menor o intervalo de tempo entre o fato delituoso e as declarações das


vítimas e das testemunhas, menor será a possibilidade de haver esquecimento e
menor a possibilidade de influências externas. Tudo isso aliado a uma entrevista
forense realizada com qualidade.

Sabemos que o Código de Processo Penal dispõe de produção de provas


antecipadas, prisões cautelares, absolvição sumária, com o intuito justamente de aproximar-se
do tempo social. Não se defende a ideia de mitigar princípios inerentes ao procedimento,
tampouco suprimir direitos de vítima e réu, pelo contrário, o ideal é prevalecer o princípio de
36

duração razoável do processo, expressamente contido no artigo 5º da Constituição Federal de


1988.
Dando continuidade à disposição acerca da contaminação da prova, sem dúvidas,
o hábito e a rotina de lidar com crimes, por parte de profissionais que possuem uma larga
experiência e atuam na prevenção ou repressão de delitos, podem alterar a percepção de um
acontecimento, justamente por agir de modo quase que inconsciente, já que, rotineiramente,
são relatados os mesmos fatos.
Gesu (2014, p. 176), utiliza-se da seguinte argumentação:

O viés do entrevistador tem grande potencial de influenciar (negativamente) aquilo


que a vítima e a testemunha efetivamente sabem sobre o delito, ao manipular os
questionamentos, a fim de adequá-los à sua hipótese, comumente acusatória.

Há, por certo, as contaminações de provas oriundas de terceiros estranhos ao


processo. A mídia, os familiares, a sociedade em geral, que, interessados em processos
(principalmente os criminais), expõem suas impressões acerca de delitos, ainda que
infundadas.
De outro lado, encontram-se as contaminações oriundas da própria mente humana,
aquelas que podem se manifestar através de sentimentos e ser refletidos por emoções ou com
oscilações entre o real e o imaginário (principalmente tratando-se de crianças). E, por fim,
através das falsas memórias.
37

5 MEMÓRIA NO PROCESSO PENAL

O fundamento do processo penal é punir o indivíduo que cometeu um delito


através do devido processo legal, fornecendo-o todas as garantias previstas em lei. Para que
ocorra a punição, é necessário entender o cometimento do crime, e isso se dá a partir das
provas.
Como visto nos capítulos anteriores, as palavras de testemunhas e de vítimas, no
processo penal, são meios probatórios admitidos no direito. Com relação aos crimes sexuais, a
palavra da vítima, assume uma relevância ainda maior sendo, presumidamente, admitida
como verdadeira.
Utiliza-se a atividade recognitiva para fazer uma retrospectiva do que ocorreu no
dia do delito, como uma forma de prova. Quando não há o que periciar – ou diante da
carência de provas técnicas no Brasil –, os testemunhos são os únicos meios de prova restante
(GESU, 2014, p. 103).
Vários julgamentos no Brasil são fundamentados, quase que exclusivamente, nas
palavras das testemunhas (incluindo as vítimas). Para isso, as pessoas que depõem precisam
se valer de suas memórias, com o intuito de reproduzir o que aconteceu no dia delituoso.
Veremos a seguir, algumas classificações da memória, para compreender o seu
funcionamento.

5.1 CLASSIFICAÇÃO DA MEMÓRIA

Inicialmente, é necessário destacar qual é o significado de “memória”. Izquierdo


(2011, p. 9), afirma que é “aquisição, formação, conservação e evocação de informações”.
Já no que se refere à classificação da memória, Gesu (2014, p. 106), dispõe que
elas são classificadas de acordo com suas funções, com o tempo de duração e, em razão de
seu conteúdo.
Elencaremos neste trabalho algumas divisões e subdivisões da memória que têm
pertinência com o tema, uma vez que o ponto central não é o aprofundamento de todas as
classificações.
Os tipos de memória relativos ao seu conteúdo, dividem-se em duas espécies: as
declarativas e procedurais. Na opinião de Izquierdo (2011, p. 27), “as memórias que registram
38

fatos, eventos ou conhecimento se chamam declarativas, porque nós, os seres humanos,


podemos declarar que existem e podemos relatar como as adquirimos” (grifo do autor).
Nesse viés, está dentro da espécie das memórias declarativas, aquelas que se
referem a eventos dos quais participamos ou presenciamos. As memórias declarativas,
subdividem-se, ainda, em episódicas ou autobiográficas.
Vale destacar, que são justamente essas as memórias que as vítimas e/ou
testemunhas se valem quando prestam depoimentos, quer seja na fase policial ou na fase
judicial. Isso porque elas relatam os fatos a partir do que presenciaram ou ouviram algo a
respeito.
Já as memórias procedurais, são aquelas “de capacidade ou habilidades motoras e
sensoriais e o que comumente chamamos de “hábitos”” (IZQUIERDO, 2011, p. 27).
Existem ainda, outras divisões da memória, como as explícitas e implícitas.
Izquierdo (2011, p. 28), explica que “as memórias adquiridas sem a percepção do processo
denominam-se implícitas. As memórias adquiridas com plena intervenção da consciência se
chamam de explícitas”. Gesu (2014, p. 108) complementa que “as memórias implícitas, por
exemplo, podem durar a vida toda, enquanto que as memórias de trabalho ou explícitas
podem perdurar por alguns minutos” (grifo da autora).
Cabe destacar mais um ponto importante sobre as memórias. Izquierdo (2011, p.
34), afirma que muitas delas são “adquiridas por meio da associação de um estímulo a outro
ou a uma resposta”.
Assim, conforme repete-se o estímulo, aquilo será um hábito para o indivíduo.
Esse hábito fará com que ocorra a fixação daquele determinado estímulo em sua memória.
Essa aquisição de memória pode ocorrer, por exemplo, mediante um estímulo
incorreto na tomada de depoimentos de vítimas, originando as falsas memórias, que veremos
adiante.

5.2 MEMÓRIA E SUAS DIMENSÕES

No processo penal, há uma dificuldade, no que se refere à análise dos


testemunhos, em identificar o que é um relato real de um relato imaginário. Isso porque os
depoimentos podem estar contaminados com induções, sugestões, emoções e falsas memórias.
39

Gesu (2014, p. 113-114), destaca que

a “verdade” do processo é sempre colocada em cheque, pois é difícil mensurar até


que ponto não há fatos ou apenas interpretações das interpretações. Não se nega a
possibilidade de a prova ter algum elo de ligação com a realidade; contudo, não se
pode olvidar de toda a problemática posta em questão, não só no direito, mas
também na história e demais campos do saber. A realidade do crime é percebida de
uma forma e pode ser transmitida de outra.

A própria neurologia destaca a possibilidade de a memória se modificar, entre o


período de aquisição de um determinado fato, imagem, ou voz, e a consolidação disso na
memória. Assim, entre um fato delituoso, até o relato na esfera policial ou judicial, podem
ocorrer alterações na lembrança da testemunha e/ou vítima, devido a fatores internos e
externos (GESU, 2014, p. 108).
Convém mencionar, que as memórias são adquiridas de diversas formas. Algumas
em pouco tempo, outras precisam de um tempo maior. Umas memórias são visuais, outras
apenas olfativas. Pode-se dizer que algumas memórias dão prazer e outras são horríveis
(IZQUIERDO, 2011, p. 18).
Tudo isso serve para desmistificar que várias pessoas possuem “memórias
fotográficas”, uma vez que, dependendo da situação e do indivíduo, as memórias são
adquiridas de formas diferentes.
Quebrando esse paradigma de que a memória é fotográfica, Damásio (2018, p.
118), esclarece que

as imagens não são armazenadas sob a forma de fotografias fac-similares de coisas,


de acontecimentos, de palavras ou de frases. O cérebro não arquiva fotografias
Polaroid de pessoas, objetos, paisagens; nem armazena fitas magnéticas com música
e fala; não armazena filmes de cenas de nossa vida; nem retém cartões com “deixas”
ou mensagens de teleprompter do tipo daquelas que ajudam políticos a ganhar a
vida. Em resumo, não parecem existir imagens de qualquer coisa que seja
permanentemente retida, mesmo em miniatura, em microfichas, microfilmes ou
outro tipo de cópias. [...] Se o cérebro fosse como uma biblioteca convencional,
esgotaríamos suas prateleiras à semelhança do que acontece nas bibliotecas (grifo do
autor).

Portanto, nossa memória guarda, em síntese, emoções e, dependendo do tipo de


acontecimento, teremos reações com emoções diversas. Izquierdo (2018), exemplifica que

se neste momento cair o teto em nossas cabeças, ou algo do estilo, e sairmos


correndo, nos lembraremos sempre desse episódio. A parte que é informacional ou
cognitiva do episódio, ou seja, a visão do teto caindo, nossa corrida, etc.
seguramente se registrará no hipocampo, na área entorrinal, etc. e a partir daí que ela
será armazenada ou não. Seguramente ela será armazenada como uma memória
40

declarativa. Agora, a parte emocional, o susto que isto nos daria, o terror que isto
nos causaria (não necessariamente ligado ao teto que cai, mas ligado ao que
aconteceu no momento); é armazenada pela amígdala e provavelmente pelo córtex
corticomedial do área prefrontal [sic] no homem.

Contextualizando essa situação para a seara criminal, envolvendo delitos sexuais,


é cristalino que esse tipo de delito gera um trauma, provocando uma grande emoção, em
testemunhas e vítimas e isso pode dificultar a lembrança de detalhes que não são emocionais,
ou seja, o que seria justamente crucial para as investigações (GESU, 2014, p. 111).
Quando se recorda de algo, seja de um objeto, de um rosto, de uma cena, não há o
alcance de uma reprodução exata, mas uma reconstrução a partir de uma interpretação do que
ocorreu, envolvendo todo o processo de armazenamento da memória, com a influência de
inúmeros fatores, como por exemplo, a idade e a experiência com o acontecimento
(DAMÁSIO, 2018, p. 118-119).
Dessa forma, considerando que o armazenamento da memória não é absoluto e
nem completo e que as provas constantes dentro do processo penal, em sua maioria, são
testemunhais, com indivíduos relatando suas interpretações e seus sentimentos acerca do fato
delituoso, conclui-se que são provas deficitárias. Ora, não se nega a possibilidade dessas
provas relatarem o que realmente ocorreu, porém, não se pode esquecer dessa problemática ao
analisar um depoimento.

5.3 MEMÓRIA E O ESQUECIMENTO

As lembranças de fatos passados nos causam estímulos que, muitas vezes, não são
registrados em nossa memória com detalhes, pelo contrário, são registradas somente as
emoções.
De fato, muitas memórias necessitam ser esquecidas. Isso porque, algumas
recordações causam perturbações, como aquelas que provocam medos e humilhações. Outras
são prejudiciais, devido a fobias, ou perseguem a mente de um indivíduo, como o que
acontece em casos de estresse pós-traumático (IZQUIERDO; BEVILAQUA;
CAMMAROTA, 2006, p. 2).
41

Vimos, anteriormente, que a lembrança passa por um procedimento, desde a sua


aquisição até a sua consolidação, podendo sofrer alterações no decorrer desse processo de
memorização.
De acordo com Izquierdo (2011, p. 37), “pode-se afirmar, com certeza, que
esquecemos a imensa maioria das informações que alguma vez foram armazenadas”. Dessa
forma, é necessário ressaltar que é possível o esquecimento natural de um
acontecimento/evento.
Para Virilio (2006, p. 98),

o conteúdo da memória é função da velocidade do esquecimento. Isso quer dizer que


a memória é o que resta quando nós esquecemos, e que não há memória sem
esquecimento. Porém, a rapidez do esquecimento é mais importante, porque se
esquecemos muito rápido, caímos na amnésia, mas se nós não esquecemos ficamos
loucos!

Contudo, é justamente dessa memória (que é falível) que o processo penal precisa
para a reconstrução do fato delituoso, diante da ausência de demais provas técnicas como
perícias, exames de DNA, colheita de digitais, entre outras. Assim, é ideal se conhecer essa
situação.
Ainda sobre o esquecimento, Ost (2005, p. 57-58), elenca os quatro paradoxos da
memória. Primeiramente ele dispõe que a memória é social e não individual, e dessa forma,
para uma recordação, são necessários os costumes e as tradições do meio social ao qual
pertença o indivíduo. Para o autor, o segundo paradoxo é que a memória está longe de resultar
do passado, operando a partir do presente. Portanto, não é possível reter uma informação do
passado, mas sim reproduzi-la, com a lembrança de um evento que foi reconstruída. O
terceiro paradoxo é uma análise do segundo. Isso porque, a memória opera a partir do
presente (e não do passado, como visto), significando dizer que ela é ativa e voluntária.
O último paradoxo da memória é diretamente relacionado sobre o esquecimento,
isso porque, para Ost (2005, p. 60), “longe de se opor ao esquecimento, a memória o
pressupõe”. Então, só é possível obter-se recordações, a partir de reconstruções do que foi
esquecido.
42

6 FALSAS MEMÓRIAS

Nos últimos anos, o tema das falsas memórias despertou o interesse de


profissionais ligados não só à área da saúde, visto que é um fenômeno da psicologia, mas
também de operadores do Direito que iniciaram alguns estudos acerca desse fenômeno, com a
análise do seu reflexo no processo penal.
Para adentrar nessa temática, é preciso entender o que são as falsas memórias.
Neufeld; Brust e Stein (2010, p. 22), explicam que elas

não são mentiras ou fantasias das pessoas, elas são semelhantes às MV [memórias
verdadeiras], tanto no que tange a sua base cognitiva quanto neurofisiológica. No
entanto, diferenciam-se das verdadeiras, pelo fato de as FM [falsas memórias] serem
compostas no todo ou em parte por lembranças de informações ou eventos que não
ocorreram na realidade. As FM [falsas memórias] são frutos do funcionamento
normal, não patológico, de nossa memória.

Partindo da premissa de que as falsas memórias não são mentiras e sim


lembranças de fatos que não ocorreram, ou que ocorreram de maneira diversa do que foi
relatado, percebe-se que podem ser implantadas por terceiros, que são chamadas de falsas
memórias exógenas. Nas crianças, tal implantação é mais perceptível, devido à
vulnerabilidade e sugestionabilidade delas (TRINDADE, 2014, p. 426).
Isso porque, como visto no capítulo referente às memórias, podem ocorrer
contaminações nas crianças através de sugestões, de forma a influenciá-las nas emoções que
aquele fato provocou, influenciando, por consequência, em seus comportamentos e em seus
depoimentos.
Para os operadores do direito, quando reconhecem a importância de saber desse
fenômeno das falsas memórias e seus reflexos no processo penal, surge uma dúvida
primordial que é: como identificá-las.
Para Trindade (2014, p. 427),

os relatos de falsas memórias podem ser detectados através de rupturas e de


inconsistências do discurso. A modalidade processual e judiciária, a atmosfera
acusatória, formal e persecutória, pode prejudicar a verbalização da criança.
Profissionais impotentes frente à realidade ou sedentos de “justiça” também podem
influenciar a conduta da criança. Uma ótica setorial e alarmista conduz a resultados
pouco confiáveis.

No entanto, as falsas memórias são conhecidas por ser um fenômeno da


psicologia, envolvendo a psiquiatria e a neurologia também, portanto, subjetivo para a área do
43

direito. Dessa forma, é inviável, muitas vezes, a constatação concreta de que um depoimento
está contaminado por esse fenômeno. O primordial é conhecê-lo e entendê-lo, para minimizar
os seus efeitos no depoimento de crianças, principalmente em casos de delitos sexuais, por ser
um crime que gera diversos prejuízos para esses indivíduos que precisam de resguardo.

6.1 ESTUDOS RELACIONADOS ÀS FALSAS MEMÓRIAS

Segundo Neufeld; Brust e Stein (2010, p. 23) e também para Gesu (2014, p. 127),
os primeiros estudos sobre as falsas memórias foram conduzidos por Alfred Binet, em 1900,
na França. Os estudos de Binet direcionavam para a contribuição das sugestões internas e
externas na incorporação ou recordação de uma informação falsa que o indivíduo relata como
verdadeira.

Uma das importantes contribuições deste pesquisador foi categorizar a sugestão na


memória em dois tipos: autossugerida (isto é, aquela que é fruto dos processos
internos do indivíduo) e deliberadamente sugerida (isto é, aquela que provém do
ambiente). As distorções mnemônicas advindas desses dois processos foram
posteriormente denominadas de FM [falsas memórias] espontâneas e sugeridas
(NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 23).

Contudo, foi posteriormente, já em 1986, com Elizabeth Loftus que iniciou


estudos específicos acerca das falsas memórias. A autora realizou pesquisas de campo com
diversas pessoas. Um desses estudos, envolveu Beth Rutherford, em 1992, no Missouri.
Vejamos:

Um conselheiro de igreja ajudou Beth Rutherford a se lembrar, durante terapia, que


o seu pai, um clérigo, a tinha estuprado regularmente dos sete aos catorze anos e que
a sua mãe às vezes o ajudava segurando-a. Sob a direção do terapeuta, Rutherford
desenvolveu recordações de seu pai engravidando-a duas vezes e forçando-a a
abortar o feto ela mesma com um cabide. O pai teve que resignar do posto de clérigo
quando as alegações se tornaram públicas. Mais tarde um exame médico da filha
revelou, porém, que ela ainda era virgem aos 22 anos e nunca tinha estado grávida.
A filha processou o terapeuta e recebeu 1 milhão de dólares de indenização em 1996
(LOFTUS, 2018).

Essa distorção da realidade, só foi possível de ser percebida, porque existiu um


fato, contradizendo os relatos. No caso exposto acima, a menina, embora acreditasse ter sido
violentada pelo seu genitor, inclusive tendo ficado grávida dele por duas vezes, segundo laudo
médico, ainda era virgem. Contudo, na maioria dos delitos, não se tem uma prova material
44

como esta, a fim de comprovar a violência sexual ou o fenômeno das falsas memórias (GESU,
2014, p. 133).
Não se pretende sugerir que todas as memórias são falsas. Pelo contrário, procura-
se identificar e conhecer a problemática envolvendo a memória, para trabalhar com ela no
meio jurídico, buscando relatos mais fidedignos, com maior qualidade e, portanto, mais
confiáveis.

6.2 TEORIAS EXPLICATIVAS DAS FALSAS MEMÓRIAS

Tanto para Gesu (2014, p. 138), quanto para Neufeld; Brust e Stein (2010, p. 27),
são três as principais teorias explicativas das falsas memórias, quais sejam: Teoria do
Paradigma Construtivista, Teoria do Monitoramento da Fonte e a Teoria do Traço Difuso.
Vejamos, a seguir, cada uma delas.
A primeira teoria, que é do paradigma construtivista “entende que uma
informação nova é integrada a informações prévias que o indivíduo possui, podendo distorcer
ou sobrepor-se à memória inicial e assim gerar uma FM [falsa memória]” (NEUFELD;
BRUST; STEIN, 2010, p. 28).
Essa teoria compreende a memória como um sistema único, que é construído a
partir de interpretações que as pessoas fazem de eventos. A memória, fruto dessa construção,
será aquilo que as pessoas entendem sobre a experiência. Portanto, a cada nova informação é
realizada uma construção, ou reconstrução, com base em experiências prévias (GESU, 2014,
p. 138).
Já a teoria do monitoramento da fonte, refere-se ao local, pessoa ou situação, de
onde é oriunda uma informação e, segundo essa teoria,

distinguir a fonte de uma informação implica processos de monitoramento da


realidade vivenciada. Portanto, as FM [falsas memórias] ocorrem quando
cometemos erros no monitoramento ou quando são realizadas atribuições
equivocadas de fontes que podem ser resultado da interferência de pensamentos,
imagens ou sentimentos que são erroneamente atribuídos à experiência original
(NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 31).

Assim, ela enfatiza o julgamento da fonte de uma informação, para a memória do


indivíduo.
45

Por fim, com relação à última teoria, dispõem as autoras que a teoria do traço
difuso busca responder algumas críticas e lacunas das teorias acima (construtivismo e
monitoramento da fonte).

Duas considerações foram importantes para expandir o campo explicativo da TTD


[teoria do traço difuso]: a primeira refere-se à relação entre aspectos semânticos e
processos de memória; e a segunda surgiu em função da base consistente de
resultados de pesquisas sobre o desenvolvimento do raciocínio humano e as
diferenças nas habilidades de memória. [...] ao contrário do que teorias tradicionais
preconizavam, o nosso processamento cognitivo busca caminhos que facilitem e
agilizem a compreensão. Dessa forma, as pessoas preferem a simplificação de
trabalhar com o que é essencial da experiência, o significado por traz do fato, em vez
de ter de processar informações específicas e detalhadas. Segundo esta Teoria, como
o próprio nome difuso sugere, o intuitivo, o não delimitado especificamente, o não
lógico, é a base do raciocínio (NEUFELD; BRUST; STEIN, 2010, p. 33).

Essa teoria considera que a memória é composta por dois sistemas que são
independentes de armazenamento e recuperação da informação (NEUFELD; BRUST; STEIN,
2010, p. 27).
Vejamos a seguir, a influência das falsas memórias no processo penal, e seus
reflexos nas crianças.

6.3 FALSAS MEMÓRIAS NO PROCESSO PENAL

Os caminhos para a denúncia de uma situação de violência sexual, podem ter


início em diferentes locais, como: escolas, hospitais, clínicas médicas, Conselhos Tutelares,
delegacias de polícia, Ministério Público, etc., e o percurso que a criança e os seus familiares
terão de passar para formalizar a denúncia, pode ser traumático.
No geral, esses locais não possuem tratamento diferenciado para recepcionar
crianças, quiçá vítimas ou supostas vítimas de um delito sexual. Os referidos locais não são
familiares aos infantes e dispõem de profissionais que utilizam uma linguagem de difícil
compreensão, gerando um grande desconforto para aqueles que terão que relatar eventos
íntimos.
Não é raro encontrar dificuldades na fase probatória de constatação de um delito
sexual, restando, na maioria das vezes, somente o testemunho da vítima como um meio de
prova. Daí surge a problemática com as induções, que podem ser realizadas por várias
pessoas, sejam os familiares, os amigos, a mídia (devido ao delito ter notoriedade perante a
46

sociedade) e também os profissionais com quem a criança entra em contato para narrar o
evento delituoso.
Gesu (2014, p. 155), dispõe que,

a indução ou sugestionamento pode acontecer tanto na oitiva das vítimas e na


inquirição das testemunhas, através de questionamentos com viés eminentemente
acusatório, como também através da mídia, a qual procura sempre fazer do crime um
espetáculo.

Em que pese o processo penal ter mecanismos e regras específicas quando da


produção da prova (sendo o contraditório uma dessas regras), o problema da indução gera
uma deficiência na colheita da prova, sendo possível identificar isso devido ao despreparo de
profissionais em lidar com a vulnerabilidade infantil e com a temática das falsas memórias
(GESU, 2014, p. 136).
A partir da percepção das falsas memórias dentro do processo penal, é
imprescindível a aptidão dos operadores do direito para minimizar esse fenômeno nos
ambientes em que inserem as crianças. É preciso lidar com essa situação, através de medidas
alternativas para a colheita de depoimentos dos infantes, reduzindo os danos que podem lhes
ocorrer, evitando a formação das falsas memórias e seus reflexos negativos para elas. Por
consequência, poderá ser evitado também, que várias sentenças condenatórias continuem
sendo proferidas com base unicamente nessa prova, que é passível de falsas recordações.

6.4 FORMAÇÃO DAS FALSAS MEMÓRIAS

Os fatores que podem contribuir para a formação das falsas memórias são vários,
podendo ocorrer, por exemplo, fatores internos e externos no decorrer da formação desse
fenômeno, variando de acordo com cada indivíduo.
As crianças, quando possuem tenra idade, devido a sua vulnerabilidade e
sugestionabilidade, não têm um compromisso com a realidade, na medida em que tendem a
fantasiar acontecimentos, o que é caracterizado como um fator interno, inerente ao seu
desenvolvimento.
Já os fatores externos, podem ocorrer através das contaminações de terceiros, ou
com métodos de questionamento errôneo, ou ainda com o emprego de linguagem inadequada
para com a criança (BITENCOURT, 2009, p. 122).
47

O uso de termos técnicos, expressões muito rebuscadas (incluindo o uso do


“juridiquês”), frases acompanhadas de um gesto contraditório, ou formulação de perguntas em
um tom acusatório, agressivo, (tudo contrariamente ao esperado), induzem,
inconscientemente, uma vítima e testemunha, para diversos tipos de erros, inclusive na
memória (TRINDADE, 2014, p. 284).
Aliás, nas duas situações elencadas acima podem ocorrer danos aos infantes e
serem prejudiciais à falsificação da memória. Nesse contexto, Izquierdo (2011, p. 17) ensina
que a “nossa memória pessoal e coletiva descarta o trivial e, às vezes, incorpora fatos irreais
[...] vamos incorporando, ao longo dos anos, mentiras e variações que geralmente as
enriquecem”.
Outra possível contribuição para a formação das falsas memórias é o
reconhecimento fotográfico, que é um trabalho utilizado em diligências policiais, através do
qual, busca-se dar o início de uma investigação, mediante a apresentação de fotografias de
pessoas, (que na maioria das vezes, possuem passagens policiais) à vítima, para que ela
reconheça o autor (GESU, 2014, p. 158).
O inciso I do artigo 226 do Código de Processo Penal dispõe que “quando houver
necessidade de fazer-se o reconhecimento de pessoa, proceder-se-á pela seguinte forma: [...] a
pessoa que tiver de fazer o reconhecimento será convidada a descrever a pessoa que deva ser
reconhecida” (BRASIL, CPP, 2018).
Isso porque, tanto a vítima quanto a testemunha, não conseguirão identificar o
acusado, se não o conhecem, uma vez que a imagem dele não estará em suas memórias.
Contudo, se forem induzidas, por fotografias quando do reconhecimento, talvez se recorde
não daquele acusado, mas sim daquele que foi mostrado no decorrer das imagens (GESU,
2014, p. 106).
Desse modo, veremos a seguir outros fatores que contribuem para a formação das
falsas memórias.

6.4.1 A contribuição da mídia para a formação das falsas memórias

Os crimes sexuais, sem dúvidas, causam repúdio na sociedade. Quando as vítimas


são crianças, a repulsa é ainda maior – e não é para menos –, uma vez que se tratam de
48

crianças, vulneráveis, portanto, e que precisam de proteção e apoio para um desenvolvimento


saudável.
Assim, a mídia cria um elo entre a sociedade e o mundo jurídico, divulgando as
fases policial e judicial para os pares, enquanto que a sociedade remete seus anseios através
dela, clamando por justiça que, na maioria das vezes, corresponde à prisão do acusado.
Gesu (2014, p. 185), tratando sobre os crimes contra a vida, que podem ser
interpretados com analogia neste trabalho aos crimes sexuais com vítimas crianças, menciona
que

a mídia acaba por familiarizar – melhor dizendo, massacrar – a população com as


investigações policiais, com as decisões acerca de buscas e apreensões, prisões
cautelares, concessões de liminares em habeas corpus, entre outras, induzindo-a,
sempre de forma parcial – pois apenas trechos são revelados – sem que se tenha
conhecimento acerca dos autos, gerando um imenso grau de contaminação. Pelo
conteúdo das matérias veiculadas na televisão, os réus dos delitos contra a vida, sem
sombra de dúvidas, culpados ou inocentes, já foram condenados pelo Júri Popular,
mesmo antes do término das investigações. E o grau de contaminação é tal que nem
sequer o desaforamento solucionaria o problema.

É inegável que a carga de sensacionalismo e emotividade que a mídia repassa às


pessoas contribuem para que elas sejam induzidas com a formulação de um juízo de valor
prévio, mesmo não conhecendo, com detalhes, o cometimento do delito. Inclusive, os
envolvidos no cenário jurídico também enfrentam esse problema, como por exemplo, a
polícia.
Essa instituição enfrenta uma pressão pública ainda maior, visto que precisam
identificar com rapidez o autor de uma situação de violência sexual. A sociedade atribui aos
policiais uma responsabilidade, com uma pressão de que, se o autor desse crime ficar impune,
fazendo outras crianças vítimas de outros delitos, é por “culpa” deles. Assim, podem
acontecer diversos erros cognitivos e profissionais no decorrer dessas investigações
(TRINDADE, 2014, p. 444).
Carnelutti (2018, p. 45), elenca diversos envolvidos na investigação que sofrem
com essa pressão,

policiais e magistrados, de vigilantes se tornam vigiados pela equipe de voluntários


prontos a apontar cada movimento, a interpretar cada gesto, a publicar cada palavra
deles. As testemunhas são encurraladas como lebre de cão de caça; depois, muitas
vezes sondadas, sugestionadas, assalariadas. Os advogados são perseguidos pelos
fotógrafos e pelos entrevistadores. E muitas vezes, infelizmente, nem os magistrados
logram opor a este frenesi a resistência que requeira o exercício de seu mister
austero.
49

A mídia possui um importante poder frente à sociedade e isso não é recente; suas
pressões com forças suficientes para repercutir em crimes, também não é. Isso foi exatamente
o que aconteceu em São Paulo, em 1994, com o caso nacionalmente conhecido da Escola
Base (consta em anexo os detalhes da investigação, e a participação da imprensa no crime,
inclusive com a probabilidade de ter ocorrido falsas memórias nos depoimentos das crianças).

6.4.2 O viés do entrevistador para a formação das falsas memórias

Um dos reflexos que a pressão da mídia provoca na condução da investigação de


um delito sexual é a busca incessante pelo autor do crime, que muitas vezes pode se dar de
formas equivocadas, devido à rapidez com que é necessário encontrá-lo, para dar uma
resposta à sociedade.
Assim, presume-se que o crime ocorreu e, quando há a localização de um
suspeito, a entrevista dele e da vítima poderão ser moldadas, para obter respostas condizentes
com a convicção inicial, desprezando aquelas que não são compatíveis com a primeira
hipótese (de que o crime ocorreu e que determinado indivíduo é o autor) (GESU, 2014, p.
177).
Segundo Gesu (2014, p. 135), “há uma tendência, por parte daquele que interroga
o imputado e colhe declarações das vítimas e testemunhas, se houver, em explorar unicamente
a hipótese acusatória, induzindo os questionamentos”.
Alguns profissionais utilizam uma “técnica” quando realizam inquirições, com a
pretensão de auxiliar as crianças a relatarem o suposto delito sexual, adjetivando
negativamente o acusado, ou contando para a criança que sabe que algo ruim aconteceu, na
tentativa de oferecer a ela um ambiente “encorajador” para o relato. Tal situação amolda-se à
exposição do viés do entrevistador (GESU, 2014, p. 181).
Ainda, quando colhem o depoimento da vítima ou da testemunha, alguns
profissionais, em determinados casos, costumam repetir os questionamentos, para tentar obter
outras informações delas, ou por considerarem a primeira resposta insuficiente. Contudo, para
Gesu (2014, p. 180-181), “a reiteração da pergunta não é entendida dessa forma pelas
crianças, isto é, como forma de obtenção de dados adicionais. A tendência infantil é cooperar
50

e, com frequência, adivinham as respostas; contudo, a incerteza desaparece após várias


repetições”.
De outro lado, pode ocorrer na esfera judicial, por exemplo, a partir de cada
questionamento formulado à criança, um contraquestionamento realizado pela defesa do réu,
com o intuito de desqualificar muitas vezes, o depoimento dela. Trindade (2014, p. 282),
ensina que

(a) no questionamento, procura-se obter uma declaração (construção); (b) no


contraquestionamento, pretende-se promover a desconstrução (destruição) dessa
mesma declaração, fazendo com que a testemunha se contradiga por suas próprias
palavras, com a finalidade de fragilizar o seu relato sobre os fatos.

Dessa forma, é necessário que todos os profissionais que tenham contato com a
criança, para a colheita de declarações, possuam aptidão para isso e capacidade de neutralizar
a sua presença, para afastar um medo ou uma insegurança dela. É preciso de cuidado,
também, para que a linguagem utilizada não contamine o depoimento do infante. Para o autor,
esse profissional “deve manter a mente aberta e ser autêntico quanto àquilo que é relatado,
com consciência de que o seu próprio comportamento pode influenciar de maneira indelével a
declaração da criança” (TRINDADE, 2014, p. 445).
Isso porque, os relatos das crianças podem ser frágeis, variando de acordo com a
condução sua entrevista. Aliado a isso, como na maioria das vezes o único elemento
probatório restante no processo penal é a palavra da vítima, ou de alguma testemunha, o
magistrado profere uma sentença (geralmente condenatória) com base nesse depoimento. O
objetivo não é inutilizar essa prova, mas demonstrar que, dependendo do contexto, ela pode
não ser suficiente para uma condenação por, talvez, não ter acontecido o delito e o relato ser
fruto de falsas memórias.

6.4.3 A contribuição do meio social da criança para a formação das falsas memórias

Em regra, a revelação de um abuso sexual feito pela própria criança ou por


alguma pessoa próxima a ela, antes de ingressar no cenário policial e judicial, passa pelo
“processo” privado, que é a colheita das declarações daquela criança, pelos pais, parentes,
vizinhos ou alguns profissionais conhecidos, como professores, médicos, ou outras pessoas
que aquele infante tem contato.
51

Assim, da mesma forma que ocorre com os profissionais que irão entrevistar a
criança, a partir do momento em que os familiares aderem à teoria que ocorreu um abuso
sexual, eles tendem a colher as declarações daquele ponto de vista, procurando ratificar as
suas hipóteses, ao invés de observarem, claramente, o contexto das declarações. Restringem-
se a visão, oitiva e percepção, naquilo que confirma a sua ótica adotada, de que houve uma
violência.
Contudo, Trindade (2014, p. 440), alerta que os erros frequentes dos familiares,
quando indagam essas crianças, são:

a) levar a pensar que, se uma criança possui um conhecimento em matéria sexual


que o genitor considera inadequado para sua faixa etária, ela só pode ter adquirido
essa informação mediante contato sexual direto com um adulto; b) supor que uma
criança não mente nunca pelo simples fato de ser criança. Portanto, se ela diz que é,
é porque aconteceu, independentemente das evidências que possam existir no
sentido contraditório, pois a ocorrência de ilusão ou fantasia é muito comum no
mundo infantil.

No intuito de criar aquela mesma atmosfera “encorajadora” dos profissionais que


a inquirem, os familiares (porque em regra, são os primeiros a realizar os “interrogatórios” da
criança) acabam utilizando ameaças, subornos e até recompensas, para obter informações
delas, através de diversos meios, que confirmem as suas desconfianças, para que a criança
narre o possível evento delituoso.
Moura (2016, p. 51), alerta que, geralmente, as crianças tendem a dizer “sim”,
para quem as interroga, vendo nessa resposta afirmativa, uma forma de dizer o que aquele
adulto espera.
No entanto, esse método para “encorajar” a criança, põe em risco a confiabilidade
do seu testemunho, porque, em alguns casos, pode ser dúbio. Ao mesmo tempo em que elas
podem criar um tom acusatório, podem contribuir para falsas revelações, de algo que, de fato,
não aconteceu.
Para Gesu (2014, p. 182), os “professores, assistentes sociais, pais, enfim, podem
transmitir um estereótipo negativo acerca de determinada situação ou pessoa, gerando uma
interpretação negativa por parte da criança, fomentando a fabricação de um evento
inteiramente falso”.
52

Convém destacar, que os ambientes em que a criança está inserida, contribuem


para a formação das falsas memórias, ou contribuem para relatos que aparentam ser ricos em
detalhes, porque, as crianças possuem uma

propensão ao imaginário sexual quando convivem em ambientes onde tenham


acesso a conteúdos eróticos por meio de revistas, filmes ou internet, e mesmo cenas
reais presenciadas no ambiente familiar. Isso se dá especialmente pela curiosidade
acentuada ou inexperiência, e por estarem em processo de formação da sua
personalidade e sexualidade. Tais fatores poderão fazer com que se projete
participando de um ato sexual ou sonhe com o que viu sem qualquer maldade ou
senso crítico de reprovabilidade, entendendo o ato como uma brincadeira, fundindo
imaginário e realidade (MOURA, 2016, p. 51).

As falsas memórias podem ocorrer, também, com base em erros de familiaridade.


Isso quer dizer que aquele conhecimento que a pessoa vai adquirindo ao longo da vida,
através de leituras de livros, programas televisivos, etc., fazem com que algo lhe pareça
familiar. Assim, uma criança poderá relatar algo como se fosse vivenciado, que foi baseada
apenas nessa familiaridade, ou seja, advinda de um conhecimento prévio, quando, na
realidade, é fruto de uma falsa memória (WELTER, 2010, p. 194).
53

6.5 SUGESTIONABILIDADE E VULNERABILIDADE DO DEPOIMENTO INFANTIL

Todas as pessoas estão sujeitas às falsas memórias. Contudo, há uma


probabilidade maior, em alguns indivíduos, de terem os seus relatos baseados em uma falsa
memória, que é o caso das crianças.
Alguns estudos demonstraram que as crianças são, historicamente, mais
vulneráveis a sugestões, visto que a tendência delas é corresponder às expectativas do adulto
que as entrevista (GESU, 2014, p. 147).
Barbosa et. al. (2010, p. 136), dispõem que as crianças, “desde muito cedo,
recordam de eventos que, de fato, nunca aconteceram. Essas falsas recordações não podem ser
confundidas com simulações (isto é, mentira) ou fantasias, que frequentemente acontecem
nesta fase”.
Para Gesu (2014, p. 207), as falsas memórias são transportadas para o processo
penal, na medida em que, quando são vítimas ou testemunhas de um crime, as crianças
prestam declarações, mesmo após terem sofrido contaminações, devido a sua
sugestionabilidade.

Comumente observam-se nos processos criminais depoimentos infantis


inflacionados pela imaginação. Não raro, as supostas vítimas de delitos sexuais, em
seus relatos, fazem alusão a “cobras corais” e a “tripas” em referência ao órgão
sexual masculino. Entretanto, o contexto onde vivem e o excesso de imaginação
comprometem a confiabilidade do testemunho, produzindo, todavia, uma prova
insuficiente à quebra da presunção de inocência (GESU, 2014, p. 149).

O despreparo de profissionais e a ausência de um ambiente adequado para as


vítimas serem ouvidas, prejudica toda a condução procedimental e a própria oitiva do infante.
Isto acontece em virtude de abordagens impróprias, no que se refere a sua condição de sujeito
em desenvolvimento. Ainda, o decurso de tempo entre uma inquirição e outra, com
entrevistas e perguntas repetidas várias vezes, por diferentes pessoas, comprometem a
qualidade dos relatos e contribuem para as falsas memórias (WELTER; FEIX, 2010, p. 180).
Nesse viés, como a entrevista infantil tem uma grande importância para o
processo penal, veremos a seguir, técnicas utilizadas no decorrer das inquirições das crianças
e adolescentes, em algumas comarcas brasileiras.
54

6.6 TÉCNICAS DE ENTREVISTA PARA A COLHEITA DO DEPOIMENTO INFANTIL

A legislação processual penal não dispõe de um procedimento especial para a


oitiva de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de um crime. O procedimento é o
mesmo para os adultos, não levando em consideração, a condição peculiar deles, de
desenvolvimento incompleto (BITENCOURT, 2009, p. 94-95).
Contudo, a Lei n.º 13.431/2017, que entrou em vigor no corrente ano, dispõe
acerca da escuta especializada e do depoimento especial, que, conforme o parágrafo 1º,
incisos I e II do artigo 11, “seguirá o rito cautelar de antecipação de prova, quando a criança
ou o adolescente tiver menos de 7 (sete) anos; [...] e em caso de violência sexual” (BRASIL,
Lei 13.431, 2018).
Cabe destacar que a legislação optou por restringir a idade de 7 (sete) anos para o
depoimento especial, o que não faz sentido à luz do próprio Estatuto da Criança e do
Adolescente, visto que, considera-se criança, a pessoa com até 12 (doze) anos de idade
incompletos.
Essa norma trazida com a Lei 13.431/2017, é para assegurar a proteção dos
direitos das crianças e dos adolescentes, quando são vítimas ou testemunhas de violência e
também para prevenir e coibir novas violências, conforme consta do art. 1º da referida lei
(BRASIL, Lei 13.431, 2018).
Isso porque, além de não dispor até então, de normas específicas para a inquirição
de crianças, poucos são os órgãos públicos que possuem um ambiente para recepcionar esses
infantes, supostamente vítimas de um delito sexual, com profissionais aptos para realizar as
entrevistas, como delegacias especializadas, com psicólogos-policiais, e varas judiciais
específicas de proteção à criança e ao adolescente, com assistentes sociais.
Tal afirmação é o que se extrai através da análise do Conselho Nacional dos
Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), na gestão de 2001 até 2005, quando
verificaram que,

os índices de crimes de violência praticados contra crianças e adolescentes são


significativamente maiores do que os crimes de violência praticados por crianças e
adolescentes; [...] mesmo diante dessa constatação pelos órgãos oficiais de
segurança e justiça, o investimento nessa política caminha no sentido do controle e
da repressão aos crimes cometidos por adolescentes. Por exemplo, o número de
Delegacias Policiais de proteção à criança e ao adolescente e de Varas Privativas de
crimes contra crianças e adolescentes no País é insignificante (REDE BRASILEIRA
55

DE INFORMAÇÃO E DOCUMENTAÇÃO SOBRE INFÂNCIA E


ADOLESCÊNCIA, 2018).

Alguns estados brasileiros, como é o caso de Santa Catarina, possuem Delegacias


especializadas no atendimento à crianças e adolescentes, e mesmo sem regulamentação
específica, as escutas especiais já são realizadas por alguns psicólogos que atuam nessas
delegacias.
Contudo, ainda não há a forma de depoimento sem dano, uma vez que são
necessários equipamentos de áudio e vídeo para esse método de tomada de depoimentos dos
infantes, o que precisa ser adquirido com recursos financeiros e esbarra-se na possível
carência de tais recursos.
Sabe-se, porém, que essa não é a realidade do Brasil, porque, em regra, o que se
tem, até então, são ambientes marcados pela formalidade, que não é um atrativo para a criança
e nem propicia uma sensação de conforto e segurança a ela, para relatar eventos traumáticos.
Conforme Colaço (2018), para a implantação de depoimentos gravados e a
capacitação dos condutores para esse depoimento especial, precisa da criação de equipes de
profissionais nas delegacias especializadas de proteção à criança/adolescente, com
atendimento ininterrupto.
Observa-se, que a qualificação dos profissionais que terão contato com a criança,
é importante, em especial para que desenvolvam uma linguagem adequada a ser usada com
ela, porque

se a execução do ritual da oitiva da testemunha-vítima não for bem conduzida, ou


seja, prejudicada pela inaptidão linguística do interlocutor, pelo excesso de
formalismos, inseguranças e crenças pessoais, a falha na condução do ritual pode
gerar consequências desastrosas aos sujeitos processuais mirins (BITENCOURT,
2009, p. 120-121).

Desse modo, primordial é que as inquirições das crianças sejam realizadas por
profissionais capacitados, com medidas alternativas para a realização das inquirições, com o
intuito de diminuir a vitimização secundária. Como a Lei n.º 13.431/2017, entrou em vigor no
mês de abril do corrente ano, ainda não se tem notícias acerca de sua aplicabilidade. Portanto,
a seguir, serão abordados outros métodos, com o intuito de diminuir os danos nas escutas
infantis, que já são utilizadas em algumas comarcas brasileiras.
56

6.6.1 Medidas de redução de danos nas entrevistas infantis

A palavra da vítima, em alguns casos, é a única prova do delito sexual, quando


não há o que periciar, ou quando os vestígios já foram apagados pelo tempo. Assim, é
importante conhecer mecanismos para reduzir os danos que o contato com o procedimento de
investigação policial e a fase judicial podem causar, bem como identificar, se há a influência
das falsas memórias nos depoimentos.
Gesu (2014, p. 151 e 202), sugere a entrevista cognitiva como um meio de
redução de danos, bem como uma forma de minimizar os riscos das falsas memórias, ou a
indução de respostas.
Essa entrevista é formada por quatro técnicas, para a recordação de detalhes de
crimes. Quais sejam:

a) Reinstauração do contexto: esta técnica consiste em reconstruir “mentalmente” o


cenário do crime, através de aspectos físicos e pessoais.
b) Informar sobre tudo: requer-se à testemunha que conte tudo o que recorda,
incluindo as informações parciais ou aparentemente irrelevantes.
c) Mudança de perspectivas: solicita-se a testemunha sair de sua posição de fala, ou
seja, que se coloque em outro lugar da cena do crime e que informe o que teria visto
nessa nova posição, objetivando-se recuperar o maior número de detalhes.
d) Diferente ordem: demanda que a testemunha lembre do fato seguindo ordens
diferentes, do fim para o começo” (GESU, 2014, p. 202).

Já Amendola (2013, p. 101), defende a gravação das entrevistas de crianças. Ela


justifica isso por dois motivos:

[1] possibilidade de se verificar o envolvimento emocional do entrevistador com a


criança e, por conseguinte, perceber se houve indução de respostas por parte do
entrevistador, juntamente com emprego de instrumentos sem suporte científico e [2]
se houve a preservação da criança, deixando de submetê-la a inúmeros depoimentos
e entrevistas, reduzindo seu constrangimento, assim como, evitando a revitimização.

Sabe-se que, a implantação de um método diferenciado para as oitivas,


independente do sistema adotado, será associada a um alto custo. Isso porque, além do
ambiente físico, há o tempo e o treinamento de diversos profissionais que entram em contato
com crianças, envolvendo a rede de ensino, a rede de saúde, como também a segurança
pública e o meio judicial.
Gesu (2014, p. 203), dispõe acerca do assunto, afirmando que,

nessa relação custo/benefício, acreditamos serem os benefícios muito maiores,


considerando, como já referimos em oportunidades anteriores, ser a prova oral um
57

dos principais meios utilizados no processo penal brasileiro. Se a prova técnica


(perícia) não tem muita qualidade, pelo menos que se tente obtê-la na prova
testemunhal, através da entrevista cognitiva. As consequências de um depoimento
mal colhido ou induzido em erro são imensuráveis, custando a vida e a liberdade das
pessoas, sem falar de toda a estigmatização sofrida pelo sujeito passivo por tão
somente responder a um processo criminal.

Todas as medidas que amparem as crianças, com o intuito de tornar o ambiente,


até então formal, em um ambiente acolhedor, são válidas. Assim, abordaremos, então, o
projeto depoimento sem dano, em virtude de ele ser muito parecido com o que dispõe a Lei
n.º 13.431/2017, visto que também é uma dessas alternativas para a redução de danos na
colheita dos depoimentos infantis e possui o intuito de obter relatos mais fidedignos.
58

7 ANÁLISE DO PROJETO DEPOIMENTO SEM DANO

Existem diversas áreas que atuam diretamente e indiretamente quando há


acusações de violência sexual, tratam-se das áreas psicológicas, sociais, médicas e
principalmente, as jurídicas.
O projeto denominado depoimento sem dano cria justamente as condições
psicológicas e jurídicas para que a vítima relate o possível evento criminoso, tentando superar
o dano sofrido.
Tal projeto é uma das medidas alternativas para a inquirição de crianças, vítimas
ou testemunhas de delitos sexuais. Ele iniciou no ano de 2003 em duas Comarcas de Porto
Alegre/RS (GESU, 2014, p. 189/190).
Em resumo, o projeto consiste “em ouvir a vítima na fase judicial na presença de
psicólogo, em sala contígua, por meio de transmissão audiovisual de mão única. Ou seja, o
menor não vê ou ouve os sujeitos processuais em outra sala, mas estes, por sua vez, o veem e
escutam, além de poder formular questionamentos através do magistrado” (MOURA, 2016, p.
18).
Cabe ressaltar que a sala em que a criança prestará as declarações, é em local
diverso de uma sala de audiência, justamente por essa não ser um ambiente acolhedor. Ainda,
terá o acompanhamento de um profissional especializado (em regra, psicólogo ou assistente
social), designado pelo juiz, que fará os questionamentos formulados pelas partes, com a
utilização de linguagem compreensível para a criança. Por fim, é necessário destacar também,
que não há a exclusão dos demais profissionais envolvidos no cenário jurídico, visto que eles
acompanharão a colheita do depoimento, através de equipamento de áudio e vídeo (GESU,
2014, p. 190-192).
O magistrado, promotor de justiça, advogado, réu, e demais serventuários da
justiça, podem interagir com a vítima durante o depoimento, por intermédio dos profissionais
que fazem a entrevista com ela. Nesse novo método de inquirição, continuam presentes todas
as garantias e princípios constitucionais, inclusive do contraditório e da ampla defesa.
Psicólogos são escolhidos para a colheita de depoimentos, porque em tese, eles

têm condições de realizar uma análise sobre a validade/autenticidade do testemunho


das crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual, com ferramentas que a Ciência
da Psicologia pode proporcionar, garantindo o bem-estar emocional das crianças e
adolescentes, durante o seu depoimento ou na produção do laudo
59

psicológico/psiquiátrico pericial, procurando reduzir os efeitos negativos que podem


produzir a rememoração dos fatos (BITENCOURT, 2009, p. 139).

Os objetivos dessa inquirição é proteger a integridade física e psíquica do infante,


visto que é um sujeito em desenvolvimento, bem como evitar a perda da memória dos fatos e
evitar a revitimização por parte do Estado, com diversas inquirições sobre o mesmo fato
(GESU, 2014, p. 190).
O depoimento será gravado em sua íntegra e após a sua realização, será juntado
aos autos, para que as partes possam ter acesso a qualquer tempo, quando surgirem eventuais
dúvidas, e também para que, em havendo recurso da sentença, os demais Tribunais possam ter
acesso às declarações, podendo observar, inclusive, a reação da vítima, que não é possível de
transferir para o papel (CEZAR, 2018, p. 2).
Outro ponto interessante nesse projeto é que a vítima (criança ou adolescente) é
intimada para o comparecimento na audiência, através de seu responsável legal, com uma
antecedência mínima de trinta minutos do seu início, evitando que ela encontre o suposto
autor do crime, ainda que rapidamente, nos corredores dos fóruns. Quando chegam, já são
acolhidos pelos profissionais que lhes prestarão o atendimento, e que explicarão como o
procedimento será adotado, bem como colherão informações para conhecer qual é a
linguagem da criança (CEZAR, 2018, p. 2).
Ainda que as inquirições dessas vítimas sejam realizadas por uma terceira pessoa
(que não o magistrado, promotor, ou defesa), intermediando no processo penal, não há que
prevalecer as críticas acerca de possível violação ao devido processo legal, porque, conforme
dispõe Bitencourt (2009, p. 136),

é necessário humildade intelectual para aceitar o fato de que a visão técnico-jurídica


dos operadores do direito tem limites, portanto, a capacidade profissional do jurista
para ouvir o relato da vítima infanto-juvenil de abuso sexual e também de falar, não
é, regra geral, suficiente, nem eficiente, podendo causar um dano irreparável às
vítimas de abuso sexual.

Além do mais, busca-se uma inquirição confiável, com a realização de perguntas


abertas, e não fechadas, como costumeiramente são realizadas. Trindade (2014, p. 286),
descreve como são as perguntas abertas e as fechadas (que não devem acontecer), vejamos:

1) Perguntas abertas: são aquelas que conferem à testemunha ampla liberdade de


descrever o acontecimento. Permitem a livre narrativa. São abertas no sentido de que
estimulam a pessoa a associar livremente o pensamento, expressando, pela
linguagem, todas as lembranças que a memória evoca sobre o que aconteceu. Por
60

exemplo: diga como ocorreu o acidente. Esse comando aberto motiva a narrativa
ampla, sem uma resposta predefinida, certa ou errada.
2) Perguntas fechadas: implicam uma escolha entre alternativas, seja para selecionar
uma delas (a camisa da vítima era azul, verde ou amarela?), seja para dicotomizar
(sim ou não?), ou para identificar (onde você estava no dia do acontecimento?).
Perguntas fechadas são mais sugestivas do que questões abertas, devendo-se ter
especial cuidado para não induzir a resposta de modo manipulativo, o que faz
lembrar a clássica pergunta: qual era a cor do cavalo branco de Napoleão?

Como a legislação processual é ultrapassada e muitas vezes ineficiente, é


importante buscar novos métodos de colheita de depoimentos de crianças, como esse
depoimento sem dano, para tratar os infantes de forma mais humanitária, colocando em
prática o que dispõe a Constituição Federal e o Estatuto da Criança e do Adolescente, no que
refere a sua proteção.
61

8 CONCLUSÃO

Dentre os inúmeros crimes que são praticados, através de diferentes formas, sem
dúvidas, os delitos sexuais são os que geram maior indignação social. Portanto, uma vez
suscitada a suspeita de um abuso sexual, principalmente envolvendo crianças, as autoridades
passam a investigar rapidamente, colhendo provas, na tentativa da localização do autor, com o
intuito, também, de dar uma resposta para essa indignação da sociedade, que clama por
justiça.
Segue-se o procedimento legal, com os órgãos de repressão aos crimes, iniciando
as investigações para buscarem os elementos suficientes de autoria e materialidade, para
embasar uma denúncia e, consequentemente, uma condenação penal. Contudo, nesse
caminho, há o envolvimento de crianças, que serão submetidas a diversas declarações, em
diferentes órgãos oficiais.
Essas repetições de declarações, nesses diferentes órgãos, são tomadas em regra,
por profissionais que não possuem aptidão na colheita de declaração infantil e que propiciam
a formação das falsas memórias, gerando insegurança em todos os envolvidos.
Os fenômenos que ocorrem na memória humana são capazes de distorcer ou
recordar de fatos que na realidade, nunca existiram. A intenção não é afirmar que todas as
memórias de crianças, quando relatam crimes sexuais, a que foram vítimas ou testemunhas,
são falsas, pelo contrário, sabe-se que, diariamente, são praticados crimes de cunho sexual,
contra crianças.
Dessa forma, deve-se buscar a identificação do autor, através das investigações e a
condenação dele, através do devido processo legal. Porém, busca-se evidenciar que as
abordagens errôneas realizadas nas repartições públicas a que as crianças são submetidas,
geram uma vitimização secundária para elas, devido à carência de recursos para lidar com
essa situação.
Esses recursos incluem a ausência de profissionais capacitados para entrevistar
um infante, vítima ou testemunha de um crime e incluem também os recursos financeiros para
propiciar um ambiente diferenciado para a recepção deles. Considera-se a criança um
indivíduo vulnerável, sujeito a contaminações de diversas ordens, visto que são altamente
62

sugestionáveis. A pressão da mídia e, o viés do entrevistador (que, em geral, é acusatório),


influenciam em seus depoimentos, propiciando a formação das falsas memórias.
As falsas memórias podem ocorrer em crianças que sofreram violências sexuais,
mas não do modo como foi relatado, ou em crianças que na realidade, não sofreram os crimes
propriamente ditos, mas acabam sofrendo com os diversos traumas que a vitimização
secundária causa.
Considerando que a maioria dos delitos sexuais é praticada na clandestinidade e
que, muitas vezes, não há vestígios para serem periciados, restando apenas a palavra da vítima
para fazer meio de prova, pensar a colheita do depoimento infantil de forma mais fidedigna,
na tentativa de identificar se há a influência das falsas memórias nos relatos delas é urgente e
necessário, fazendo surgir alguns projetos que já vigoram em nosso país, entre eles, o
depoimento sem dano.
Quer-se com esses projetos a vedação de indução das respostas de crianças,
testemunhas ou vítimas de crimes, como forma de minimizar ou evitar a formação das falsas
memórias, que é algo prejudicial para elas, para o suposto réu e, consequentemente, para o
processo penal.
Infelizmente, sabe-se que esse fenômeno das falsas memórias – ainda que
presente na realidade processual –, não é visto pela maioria dos operadores do direito, como
um fenômeno que precise ser controlado no campo jurídico, como se fossem duas coisas
distintas e afastadas.
Contudo, pelos diversos estudos acerca das falsas memórias, o processo penal
brasileiro não pode mais ignorar essa realidade. Assim, todos os profissionais envolvidos com
o atendimento às crianças, como policiais, delegados, promotores, juízes, advogados,
serventuários da justiça, etc., precisam estar preparados para essa demanda, trabalhando para
evitar essa problemática e minimizar os danos, que são decorrentes, de um delito de natureza
sexual.
Aliado a isso, é necessário cautela quando as memórias de eventos delituosos
chegam até a polícia e ao judiciário, para que não se produza injustiça, nem para a suposta
vítima, nem para o suposto autor do crime, utilizando de maneira adequada as novas
descobertas acerca da memória humana, como formas de minimizar erros de julgamento.
63

Conhecer sobre esse fenômeno é um convite que se faz também, aos profissionais
do cenário jurídico, a fim de que possam abandonar posicionamentos taxativos, que são
reiterados, quase como “dogmas”, e migrarem para um campo também de incertezas, mas
onde existem reflexões permanentes, com o intuito de romper paradigmas, associados não só
aos delitos sexuais, mas em torno do que acontece na própria sociedade, diariamente.
64

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69

ANEXOS
70

ANEXO A – Caso Escola Base de São Paulo

Por questões de didática, resolveu-se citar o caso da Escola Base de São Paulo,
sendo que esse repercutiu e repercute até hoje, em estudos envolvendo as falsas memórias, a
nível nacional.
Gesu (2014, p. 207-220), expôs em sua obra, o inquérito policial do estado de São
Paulo, que dispunha sobre a falsificação da memória pela via da indução. Constam relatos
sucintos das acusações e o desfecho do caso, com breves comentários. Todos os grifos e as
citações a seguir, são da autora.
1 – Caso escola base de São Paulo
1.1.1 A notícia-crime
Compareceram à 6ª Delegacia de Polícia, do 6º Distrito Policial da capital São
Paulo, em 27 de março de 1994, Lúcia Eiko Tanoue e Cléa Parente de Carvalho, mães de dois
alunos da Escola Infantil de Base, de propriedade dos casais Icushiro Shimada (Ayres), Maria
Aparecida Shimada (Cida), Maurício Monteiro Alvarenga e Paula Alvarenga, localizada no
bairro da Aclimação, zona Sul de São Paulo, ocasião em que noticiaram à autoridade policial
terem seus filhos sido vítimas de abuso sexual por parte dos donos, em comunhão de esforços
com professores e com o casal Saulo da Costa Nunes e Mara Cristina França Nunes, pais de
Rodrigo, também aluno do estabelecimento. Os abusos consistiam em levar as crianças ao
apartamento do aludido casal, obrigando-as a assistir filmes pornográficos, presenciar a
prática de relação sexual, bem como cometer com elas atos libidinosos, enquanto eram
fotografadas por Maurício.
1.1.2 A investigação
Diante da velocidade da abertura e do arquivamento do inquérito (menos de três
meses), bem como das informações desastrosas veiculadas na mídia, imprescindível a
apresentação de um cronograma do caso1:

26 de março de 1994, sábado: Lúcia conversa com o seu filho Fábio e surge a
história do suposto abuso.
27 de março, domingo: Lúcia procura Cléa, mãe de Cibele. Registram a ocorrência
na 6ª Delegacia de Polícia.
28 de março, segunda-feira: inicia-se a apuração do caso. A polícia faz buscas na
casa de Saulo e Mara e na Escola Base. O Diário Popular tomou conhecimento da

1
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 167.
71

história, entretanto, decidiu não publicar. Inconformadas, as mães chamaram a Rede


Globo.
29 de março, terça-feira: os seis acusados vão à Delegacia depor, mas não são
ouvidos. Sobreveio telex do IML confirmando o abuso. A primeira reportagem é
levada ao ar pelo Jornal Nacional.
30 de março, quarta-feira: um coquetel molotov é lançado na escola durante a
madrugada. Os jornais impressos anunciaram a notícia do abuso, mas não a do
coquetel. Devido ao tratamento hostil dos populares, os acusados resolveram se
esconder. Nesta ocasião, surgiram acusações do casal Isber e de Sheila Abraão.
31 de março, quinta-feira: pais levantam suspeita sobre o uso de drogas.
1º de abril, sexta-feira Santa: mães suscitam a hipótese de contaminação pelo vírus
da AIDS, e CPI pede a quebra do sigilo bancário dos seis suspeitos. Escola Infantil
Base é depredada durante a madrugada.
2 de abril, sábado: casa de Maurício e Paula sofre represálias, e a polícia, embora
conhecendo os autores, não toma nenhuma atitude.
3 de abril, domingo de Páscoa: os acusados concedem entrevista aos repórteres
Florestan Fernandes Jr., Chico Verani e Regina Terraz, matéria que foi ao ar no
mesmo dia.
5 de abril, terça-feira: o Delegado Edélcio Lemos reúne-se com advogados para
exigir a apresentação dos suspeitos. O juiz Galvão Bruno determina a prisão dos
investigados. Apenas Saulo e Mara foram presos. A cópia do laudo do IML chega às
mãos da imprensa.
6 de abril, quarta-feira: imprensa critica a postura do Delegado Edélcio Lemos.
8 de abril, sexta-feira: o juiz Galvão Bruno determina a soltura de Saulo e Mara. O
Delegado Edélcio Lemos é afastado do caso, sendo substituído pelos Delegados
Gérson de Caralho e Jorge Carrasco.
11 de abril, segunda-feira: o americano Richard Pedicini tem sua casa invadida
pela polícia e ele é preso.
12 de abril, terça-feira: crianças foram até a casa do americano, para
reconhecimento.
13 de abril, quarta-feira: jornais noticiam ter a casa do norte-americano sido
reconhecida. Entretanto, a informação é desmentida pelo Delegado Carvalho, o qual
desfez a ligação entre um caso e outro.
14 de abril, quinta-feira: jornais voltam atrás sobre o reconhecimento.
20 de abril, quarta-feira: Pedicini foi solto, após 9 dias de prisão.
22 de junho, quarta-feira: após a investigação, o Delegado Gérson de Carvalho
sustentou não haver indícios contra os seis acusados.
13 de julho, quarta-feira: o juiz Galvão Bruno arquivou o inquérito contra os seis
suspeitos.
7 de abril de 1995, sexta-feira: foi determinado o arquivamento das investigações
contra Richard Pedicini.

O Caso Escola Base de São Paulo, a nosso ver, foi um dos mais paradigmáticos
sobre os excessos praticados conjuntamente pela imprensa e pela polícia, de modo a
influenciar e induzir milhares de pessoas sobre um escândalo sexual que nunca existiu. Trata-
se, sob nossa ótica, de um dos maiores exemplos, no Brasil, sobre o fenômeno das falsas
memórias, devido a sua dimensão. É importante recorrer a um acontecimento extremamente
patológico, no qual, embora não tenha havido processo, mas tão somente uma investigação
(arquivada em menos de três meses) gerou um imenso prejuízo para os imputados, decorrente
da falsificação da lembrança das crianças-vítimas.
72

Aliás, no caso Escola Base, podemos constatar diversos fatores de contaminação


da prova, tais como a indução por parentes, pela mídia, o viés do entrevistador, tom
sentimental das entrevistas e a pressão de pares. A investigação foi calcada quase que
exclusivamente na palavra dos pequenos ofendidos, com exceção de um laudo provisório do
IML, atestando lesão na região anal de um dos alunos.
Ribeiro2 relata os pormenores do episódio e a dimensão que ele tomou no cenário
nacional: proprietários da escolinha de classe média, supostamente em comunhão de esforços
com um casal – que, por sua vez, possuía um filho estudando no aludido estabelecimento –
foram acusados da prática de orgias sexuais com os menores.
Pontuemos algumas questões importantes:
Tudo começou quando um dos alunos da Escola Base, Fábio, 3 com 04 anos à
época, estava no quarto com sua mãe. Sentou-se na barriga dela e começou a se movimentar
dizendo: “o homem faz assim com a mulher”. A mãe ficou surpresa com o gesto, pois,
segundo ela, o filho nunca havia presenciado um ato sexual. Questionado sobre quem havia
lhe ensinado isso, Fábio aduziu ter sido no “videocassete”, sem esclarecer onde estava o
aparelho.
A mãe interrogou o marido para saber se ele levou a criança em algum lugar onde
tinha filme “de mulher pelada”. Após obter uma resposta negativa, voltou ao quarto.
Ninguém presenciou a inquirição feita pela mãe ao menino. Entretanto, ela saiu de
lá afirmando ter seu filho visto uma fita pornográfica na casa de Rodrigo, um coleguinha da
Escola Base, em “um lugar com portão verde, jardim na lateral, muitos quartos, cama
redonda e aparelhos de televisão no alto”,4 tal como em um motel.
Mas não foi só isso, segundo a “versão” da mãe, Fábio foi “levado a essa casa em
uma perua Kombi, dirigida por Shimada – o Ayres, marido da proprietária da escolinha.
Fábio, teria sido beijado na boca por uma mulher de traços orientais, e o beijo fotografado por
três homens: José Fontana, Roberto Carlos e Saulo, pai do Rodrigo. Maurício – marido de

2
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003.
3
Os nomes das crianças foram trocados no livro com o intuito de preservar a identidade.
4
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 20.
73

Paula, sócia da escolinha – teria agredido o pequeno a tapas”5. Por fim, “uma mulher de traços
orientais fazia com que ele virasse de bruços para passar mertiolate e pomada em suas
nádegas. Ardia muito, foi o que o garoto disse à sua mãe. E uma mulher e um homem
ficariam ‘colados’ na frente dele”6.
A acusação de violência sexual teve início com a inquirição feita por uma mãe ao
filho de 4 anos, depois que ele fez um movimento com suposta conotação sexual. Frisamos o
fato de a inquirição ter sido realizada pela mãe, no quarto do garoto, sem que ninguém a
presenciasse. Como já sabemos o final dessa história verídica, suscitamos a hipótese de o
menor ter assistido a uma cena de romance em um filme, em uma novela ou até mesmo ter
visto os pais em um momento íntimo e tê-la imitado para sua mãe. Ou então, nem sequer ter
havido gesto nenhum, sendo absolutamente tudo fruto da imaginação dela.
O fato é que a genitora do menor não somente induziu o filho, mas outras mães de
alunos e a própria imprensa a acreditar em um abuso sexual que não existiu, gerando uma
falsa memória.
As crianças, conforme os estudos realizados nos capítulos anteriores, são mais
suscetíveis à indução, assim como procuram corresponder às expectativas do adulto
entrevistador e, geralmente, ao serem indagadas sobre um determinado assunto, não dizem
que não sabem. As outras mães também sugestionaram seus filhos a acreditar terem sido
violados, arrancando destes relatos escabrosos. E a imprensa, por sua vez, aproveitou a
oportunidade para ganhar audiência e vender jornais, pois era feriado de Páscoa e não havia
nenhuma notícia bombástica a ser veiculada.
Segundo o relato de Fábio, conforme a versão apresentada pela mãe, outros
menores também participaram da orgia, dentre eles, Cibele. A indução à lembrança de um
fato não vivenciado foi tão significativa que Lúcia, a mãe de Fábio, procurou a mãe de Cibele,

5
Ibidem. Na Rede Banderantes de Rádio e Televisão (Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente a
transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 05),
Lúcia Eiko declarou: “- A mulher beijou a boca dele, né, e..., a mulher beijou a boca dele e deitou em cima
dele enquanto o outro tirava foto, né?! Ai ele pegou e falou que foi filmado, né, e..., ele...falou assim que o
homem deitava em cima duma outra menininha que se chamava Iara... (corte de edição).”
6
Idem, p. 21. Na Rede Record (Conforme o laudo nº 01.030.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de
videocassete, realizado pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 12), Lúcia declarou: “- É,
Merthiolate e uma pomada no bumbum dele, ele falava que ardia, ardia muito, você está entendendo? Então
ele falou assim, eu falei assim, ‘mas por que, Felipe?’ Ele falou: “mãe, para arder o corpo todinho.”
74

Cléa, instruindo-a a conversar com a menina sobre a ocorrência do abuso7. Vários parentes de
Cléa envolveram-se no fato, sem ao menos saber do que se tratava. A primeira pessoa a falar
com Cibele foi a cunhada de Cléa, Eliana, a qual procurou criar uma “atmosfera
encorajadora”, ou melhor, acusadora, a fim de que a menina se sentisse mais à vontade pra
relatar o crime. Questionou-a: “Quando eu era criança e estava na escolinha, alguns
amiguinhos queriam me levar para ver coisa feia, mas eu não ia”8. A menina respondeu, de
forma inconsistente que também não ia, que não saía da escola.
Cléa, da mesma forma que Lúcia, inquiriu sua filha sozinha, “jogando verde para
colher maduro”. Utilizou, mesmo sem ter conhecimento, a técnica da “pressão de pares”, na
qual o entrevistador sugere que um amigo do entrevistado, no caso em apreço, Fábio, teria
passado por situação similar de abuso, induzindo-a a acreditar que o fato também ocorreu com
ela. A criança crê ter sido violada, também pelo desejo de se inserir no grupo. Nesse sentido,
Cléa “falou para sua filha que havia encontrado o Fábio na rua, e ele o contara que fora à casa
de Rodrigo. Lá era muito legal, havia brinquedos e bicicleta. Cibele, segundo sua mãe, irritou-
se e disse que nunca tinha ido à casa do Rodrigo. A mãe estranhou: ela disse que Fábio, e não
a filha havia estado na casa de Rodrigo. Voltou à carga: - Mesmo que você tivesse ido a casa
do Rodrigo, não teria problema, porque lá é legal. Tem fitas de desenho. Cibele, segundo sua
mãe, perdeu a paciência: - Lá não tem fita de desenho. Tem fita de mulher pelada”9.
A partir da história contada pela mãe de Fábio, Cléa passou a criar uma falsa
lembrança na filha, induzindo-a através de perguntas altamente sugestivas: “- O que você
fazia na casa de Rodrigo? Tirava fotos? – Sim. – Você tirava fotos de roupa, de uniforme? –
De vestido. Ainda não convencida, Cléa testou uma vez mais. – E a Iracema, como ela tirava
as fotos? – Sem roupa”10. A menina pôs fim ao assunto. Entretanto, diante da insistência da
mãe, passou a fantasiar: “Cibele então contou que dormiu umas dez vezes na casa do Rodrigo,

7
Há coincidência entre os relatos de Lúcia e Cléa. Esta concedeu entrevista à Rede Globo de Televisão
(Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado
pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 11), ocasião em que disse: “(...) também foram tiradas fotos
eróticas de adultos com ela em um hotel, porque ela me disse que ela havia ido em hotel, que tinha uma cama
redonda, vídeo, televisão, enfim, bem alto, num lugar alto, e que lá eles davam coisa pra comer, beber suco e
dormiam.”
8
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 21.
9
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 22.
10
Idem, p. 23.
75

e, certa vez, o tio Maurício a teria segurado pelo ombro e depois jogado no chão. Ela bateu a
cabeça depois fugiu. Cibele também dissera a mãe que teria introduzido em seu ânus um
objeto esquisito, que ela não sabia descrever. Assistia filmes de mulheres peladas e era
fotografada nua. Os tios ficam sem roupas e deitavam em cima dela”11.
Evidente a falsificação da lembrança, tanto de Fábio, quanto de Cibele, pois não
houve nenhum indício material a contrapô-la: não houve apreensão de fitas pornográficas no
apartamento do casal, nem na escola; do mesmo modo, a descrição do apartamento feita pelas
crianças não correspondia à realidade, e nenhuma fotografia supostamente tirada foi
encontrada. Ademais, a mãe de Cibele certamente saberia se a filha realmente dormiu na casa
de Rodrigo “dez vezes”, como afirmou.
O fumus comissi delicti foi baseado nos relatos das vítimas e naquilo que as mães
deles acreditavam ter acontecido, bem como em um laudo provisório do IML, exame de corpo
de delito realizado em Fábio e Cibele.
É preciso ressaltar o amadorismo da investigação. A polícia, ao cumprir o
mandado de busca e apreensão no apartamento dos suspeitos, permitiu que as vítimas e
genitoras participassem da diligência. Um fato interessante – além de nada ter sido apreendido
– foi que as crianças supostamente “abusadas” brincaram alegremente no local onde teriam
sofrido a violência sexual e, ao serem confrontadas com o suposto abusador – Saulo – não
demonstraram ódio ou medo.12 Contudo, a polícia e as mães dos menores, cegas e sedentas
por justiça, sequer prestaram atenção para esses “detalhes”.
O primeiro delegado a investigar o caso, Antonino Primante, e o primeiro jornal a
ter acesso à acusação, o Diário Popular, foram prudentes. Não houve prisão em flagrante, nem
requerimento de temporária, assim como não foi divulgada a notícia, diante da absoluta
ausência de indícios de materialidade.
As mães ficaram inconformadas diante da negativa do delegado Primante em
realizar novas buscas – pois não tinha mandado para tanto –, bem como com a troca de turno
dos policiais.
O caso começou para valer, isto é, adquiriu notoriedade, quando elas resolveram
chamar a Rede Globo. Somado a isso, ainda houve a troca do delegado “prudente” pelo

11
Ibidem.
76

delegado “estrela”, bem como um telex do IML adiantando o resultado do exame de corpo de
delito feito no menino Fábio, o qual resultou “positivo” à prática de atentado ao pudor.
Algumas denúncias ocorreram primeiro na imprensa e depois na polícia, como foi
a realizada pelo casal Ângela e Ricardo Isber. A notitia criminis era contra Maurício Monteiro
Alvarenga, o motorista da Kombi escolar. O filho do casal, Rogério, também de 4 anos,
sequer estudava na escolinha. Apenas utilizava o mesmo transporte que os demais. A “onda”
de sugestionabilidade foi tão grande que a mãe do menino o fez acreditar que Maurício, o
motorista, teria colocado o “Ptolomeu” para fora e encostado no garoto. “Ptolomeu” era o
nome ensinado ao pequeno para designar o órgão sexual masculino. Segundo a mãe, o filho
chegava em casa cansado, com dores de barriga, de cabeça e bastante sonolento.13
Mas as acusações não pararam por aí. O casal Abraão Nascimento e Sheila Fiorito
fizeram duras acusações, insinuando, inclusive, o homossexualismo infantil, sem qualquer
respaldo e, principalmente, sem registrar ocorrência. Destacamos alguns trechos da entrevista
de Sheila ao Jornal Folha de São Paulo:

Folha: Por que a senhora denunciou a escola?


Sheila Cristina Fiorito: O filho do meu marido disse que viu seus coleguinhas
ficarem pelados na escola. O comportamento dele e do meu filho mudou. Na semana
passada, ele disse para o pai que era ‘melhorar namorar homem do que namorar
mulher’.
Folha: Quando a senhora percebeu a mudança de comportamento do seu filho?
Sheila: Percebi isso quando surpreendi o meu filho e do meu marido nus no quarto.
Os dois estavam se acariciando como se fossem adultos. 14

Cláudio Roberto Fiorito, ex-marido de Sheila, após a publicação da denúncia nos


jornais, levou o filho a um pediatra e a um psicólogo. Nada foi constatado. Sheila, ao ser
chamada à delegacia para depor, referiu não ter nenhuma reclamação contra o
estabelecimento, bem como que seu filho não havia alterado o comportamento. Perguntada
acerca da entrevista publicada nos jornais, respondeu “que se viu assediada por muitos
repórteres, não se lembrando sequer do que tinha dito”.15
Além disso, os jornais também publicaram denúncias anônimas sem qualquer
credibilidade.

12
Idem, p. 30.
13
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 54.
14
Idem, p. 55.
77

Efetivamente, a imprensa perdeu os freios éticos e morais através de acusações


“fundamentadas” nos depoimentos das mães acusadoras, das crianças e, principalmente, no
estrelismo de um jovem delegado de polícia, encantado com o holofote da televisão: “já nos
primeiros dias a cobertura deveria ter sido aceso o sinal amarelo diante do desequilíbrio do
delegado Edélcio Lemos. Ele assegurava, com convicção de vidente, a culpa dos acusados.16
Não parecia um investigador, mas uma testemunha ocular. Sua única ‘prova’, além do
depoimento titubeante das crianças, devidamente pajeadas pelas mães, era um telex do
Instituto Médico Legal sugerindo a violação sexual de um menino”.17
O caso tomou proporções alarmantes. A imprensa noticiou manchetes altamente
indutiva e pejorativas: “Perua escolar carregava crianças pra orgia”, estampou a Folha da
Tarde, “Kombi era motel na escolinha do sexo”, divulgou o Notícias Populares, “Escola dos
Horrores”, sentenciou a Revista Veja, para além de tantas outras.
Outrossim, os pais dos alunos também suspeitaram que a escolinha “drogava” as
crianças, sendo que a mudança de comportamento advinha do uso de entorpecentes. O pai de
Fábio afirmou ter o menino pedido a ele, enquanto fumava, a “fumaça”, nas palavras do
menino: “- Pai, dá fumaça para mim”.18 Depois, segundo o relato do pai, a criança teria visto
a “tia” usando um pó branco, parecido com talco, sugerindo se tratar de cocaína. O exame
toxicológico feito no menino apresentou resultado negativo. Sem falar na suposta
contaminação pelo vírus da AIDS.19 Tudo foi parar nas primeiras páginas dos jornais.20

15
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 56.
16
Em entrevista, ao vivo, concedida ao Programa Rede Cidade, da Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão
(Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente à transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado
pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 19 e 21), o delegado Edélcio Lemos declarou: “Eu tenho
provas materiais baseadas em um laudo do IML que confirma que um dos meninos sofreu violência sexual”.
Sobre o depoimento da vítima Fábio/Felipe assim referiu: “O depoimento de uma criança deve ser levado
com a máxima credibilidade. As vítimas investigadas não possuem mais de quatro anos, e no meu
entendimento, uma criança nessa faixa de idade não teria uma mente tão sórdida para montar uma história
dessa. Pra gente ele vale e legalmente ele também é valido”.
17
“A última aula da Escola Base”. In: Boletim 12, Novembro-Dezembro de 1996, Instituto Gutemberg.
Disponível em <http://www.igutenberg.org/esbase12.html>. Acesso em 29/03/2007.
18
Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado pelo
Instituto de Criminalística de São Paulo, a notícia acerca do suposto uso de drogas foi veiculada na Rede
Globo, ocasião em que o pai de Fábio declarou que o menino lhe dizia: “Papai, me dá fumaça”, p. 06.
19
Na Rede Globo (Conforme o laudo nº 01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de
videocassete, realizado pelo Instituto de Criminalística de São Paulo, p. 17), Cléa Parente fez alusão à
suposta contaminação pelo vírus da AIDS: “Caso ela tenha o..., so..., foi, sofreu algum abuso sexual, é..., é
78

Ressaltamos que em uma determinada altura dos acontecimentos “toda a imprensa


estabeleceu uma linha direta com as mães acusadoras. Tudo que elas denunciaram passou a
ser publicado antes mesmo do registro no inquérito policial – como a denúncia do casal Isber,
sobre o suposto uso de tóxico e a acusação de contaminação com o vírus HIV”,21 sem que
houvesse o mínimo indicativo de prova. A inflação da imaginação dos parentes das supostas
vítimas, ao suscitar o uso de entorpecentes e, inclusive a contaminação pelo vírus HIV, só
pode ter sido fruto de uma falsa memória espontânea, decorrente da autossugestão, pois até
então, não se haviam suscitado tais hipóteses.
Ribeiro,22 em sua obra, destaca trecho de entrevista realizada por repórter, em
pleno telejornal do meio-dia, na qual houve escancarada indução das respostas:

Repórter: Esta mulher, ela deitava em cima de você?


Fábio: Deitava.
Repórter: O que ela fazia, o que ela queria?
Diante da relutância do garoto, o jornalismo sugeriu a resposta:
Repórter: e beijar a boca?
O garoto respondeu com um aceno de cabeça e o repórter voltou à carga:
Repórter: tinha fotógrafo?
Eles tiravam fotos?

Isso foi só um exemplo de como a imprensa “conduziu” a investigação, objeto de


diversas críticas por parte da própria mídia: “a principal causa da tragédia foi o barbarismo
policial e a conivência da mídia com esse barbarismo. Uma é o espelho canibal da outra. A
polícia não investiga, condena e divulga. A imprensa divulga, condena e não investiga”23, sob
o propósito de não perder a notícia, pois se houvesse a pergunta-chave de como foi que
chegaram a essas conclusões, esvaziar-se-ia todo o sensacionalismo da manchete.
Não é tarefa das mais árduas o encontro de outros casos semelhantes a esse.
Passados apenas alguns dias do Caso Escola Base, a imprensa, dispensando a ajuda da polícia,

bom fazer por causa dessa onda de AIDS que está tendo e também se teve alguma doença venérea como
sífilis, é bom detectar também porque também uma prova a mais...”
20
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 60-61.
21
“O que a imprensa aprendeu na Escola Base?”. In: Boletim 6, Novembro-Dezembro de 1995, Instituto
Gutemberg. Disponível em <http://www.igutenberg.org/esbase12.html>. Acesso em 29/03/2007.
22
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 49. A entrevista com o menino foi
veiculada na Rede Cultura, na Rede Globo de Televisão, Programa São Paulo Já, conforme o laudo nº
01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado pelo Instituto de
Criminalística de São Paulo, p. 08-09.
79

passou a mentir sozinha, incidindo no mesmo erro ao criar um elo de ligação entre a Escola
Base e a prisão do americano Richard Pedicini, “sob suspeita de ceder o casarão em que
morava, no bairro da Aclimação, para as ‘orgias’ com as crianças”24.
Richard costumava permitir que alguns meninos do bairro tomassem banho em
sua piscina. Possuía a identificação (foto, endereço e telefone) de cada um deles, colados na
porta da geladeira. A polícia revistou a mansão de 6 (seis) pisos e encontrou algumas fotos em
praias de nudismo nos Estados Unidos e no Brasil, inclusive, de crianças desnudas.
Entretanto, não havia conotação sexual. E mais, não existia qualquer conexão entre a
apreensão e o caso Escola Base.
A celeridade da investigação foi altamente prejudicial aos imputados,
considerando que em menos de três dias suas vidas estavam destroçadas. Houve, sem dúvida,
um total atropelo aos direitos individuais, pois na primeira fase da investigação os suspeitos
apresentaram-se espontaneamente, mas não foram ouvidos. Aliás, a polícia e a imprensa
somente davam ouvidos às mães dos menores. Os imputados sequer puderam apresentar suas
versões sobre a acusação.
No final das investigações, inquérito com mais de 800 páginas, o próprio
promotor de justiça atuante no caso, Sérgio Peixoto Camargo, lamentou “a desnecessária
provocação do aparelho policial pela fantasia de pessoas imaturas, ignorantes, apoucadas de
compreensão e destituídas de lógica, que não conseguem visualizar as gravíssimas
consequências de seus atos impensados”25.
A própria polícia, após avaliar os depoimentos de outras mães de alunos, bem
como laudo realizado com Lúcia Eiko – pessoa que deu o start à investigação –, pôs em
xeque o modo como ela obteve as informações do filho.
Nesse sentido, Cristiani Aparecida Próspero, mãe de um colega de Fábio, contou
na polícia ter recebido um telefonema de Lúcia. Esta teria dito que:

Para extrair os fatos do menino precisou fazer uma espécie de chantagem, isto é,
dizia-lhe que se não contasse não o deixaria fazer isso ou aquilo – principalmente
dormir em companhia dela, já que o menino estava acostumado a dormir em

23
“A última aula da Escola Base”. In: Boletim 12, Novembro-Dezembro de 1996, Instituto Gutemberg.
Disponível em <http://www.igutenberg.org/esbase12.html>. Acesso em 29/03/2007.
24
Ibidem.
25
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 141.
80

companhia da mãe. Segundo Lúcia, Fábio ficou assustado e disse que eles saíram em
uma perua escolar, com um tio japonês, e iam para um local grande, onde existiam
camas redondas, espelhos e passavam fitas de mulheres peladas.26

Ademais, a psicóloga que entrevistou Lúcia, Marylin Tatton, da 1ª Delegacia da


Mulher, ao tecer considerações acerca da personalidade da entrevista, constatou ser ela uma
pessoa malresolvida sexualmente, projetando suas fantasias e frustrações no menino.
Destacamos alguns trechos do laudo:

(...) Pelo que foi observado no discurso da mãe, para algumas coisas naturais do
processo de desenvolvimento infantil, a mesma trata as questões com muita fantasia
e temores, ao que parece por tratá-lo de forma muito infantilizada, como se tivesse
medo de perder o seu lugar para o mesmo. (sic).

Afirmou com exagero o fato de a criança se acariciar durante o banho. Segundo


ela, por exemplo, Fábio introduzia o dedo no ânus, ou acariciava o ‘pipi’. Muito
provavelmente, as fantasias ou conflitos mal-elaborados em nível de sua sexualidade ela
projetava na criança, criando uma história, ao que parece, muito fantasiosa.
Pela dificuldade de administrar sua relação afetiva e sexual com seu cônjuge, a
mesma faz o movimento de manipulação com esta criança, que satisfaz, de alguma forma, em
nível de suas fantasias.

(...) Pelas respostas observadas da criança e o comportamento desta, apresenta-se a


hipótese de que, provavelmente, ela tenha sido induzida pela mãe a dar a resposta
que lhe impunham.27 (Grifamos).

As conclusões da psicóloga acerca das fantasias sexuais de Lúcia foram


corroboradas no inquérito, através de trecho de seu próprio depoimento:

Fábio estava brincando com o filho do zelador, usando um brinquedo de montar


destes de plástico; que, em um dado momento eu notei que Fábio colocava na boca
uma peça comprida, que tem aparência de um pênis; que, logo de imediato, vendo-o
com aquele objeto na boca, eu cismei alguma coisa, mas não disse nada; que depois
que o coleguinha dele foi embora, eu o chamei e perguntei se ele tinha colocado na
boca o pipi de alguém; que Fábio me respondeu, dizendo que o japonês fez ele
colocar a boca no pipi dele e me disse também que Ângela, que é mulher e está no
jornal fotografada, também colocava a boca no pipi de Fábio. 28

Fábio, filho de Lúcia Eiko, possuía efetivamente pequenas lesões na região anal,
conforme descrição do auto de exame de corpo de delito:

26
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 139.
27
Idem, p. 140-141.
81

Descrição: lesões corporais: equimose (mancha escura, resultante de hemorragia,


sob a pele e as mucosas, e na superfície de órgãos internos) azulada em região anal
de 1x1.
Colocado em posição genupeitoral observamos: ânus apresentando múltiplas
rágadas (ulceração estreita e alongada) de mínimas dimensões e eritema (rubor
congestivo da pele por via de regra temporário, que desaparece momentaneamente à
pressão do dedo) descamativo em toda a borda anal. 29

Em que pese a conclusão do laudo ter sido positiva para os vestígios de lesões
corporais compatíveis com a prática de atos libidinosos (fato de que se valeu o delegado
Edélcio para praticamente comprovar a culpa dos suspeitos30), não estabeleceu nexo de
causalidade entre as lesões – repita-se, de natureza leve – com o histórico de abuso sexual
apresentado pela mãe do menor,31 ou seja, não afirmou categoricamente ter o menino sido
violentado. Somado a isso, a declaração de Lúcia Eiko, em entrevista realizada no dia 20 de
abril, aumentou ainda mais a dúvida acerca do suposto atentado violento ao pudor ao relevar
que Fábio sofria de constipação intestinal, sentia dor de barriga desde fevereiro e que
costumava coçar o ânus. Ainda apresentava muita dificuldade para evacuar, reclamando de
dores intensas.32
A pedido do investigador, com o intuito de esclarecer as causas das lesões no ânus
do garoto, sobreveio parecer firmado por dois médicos, o qual, da mesma forma que o
anterior, asseverou não existir elementos suficientes a confirmar a ocorrência dos atos
libidinosos. Pelo oposto, ainda suscitou mais duas hipóteses para as lesões: fezes endurecidas
ou verminoses:

Gostaríamos de esclarecer que as lesões descritas poderiam ser relacionadas com as


práticas de atos libidinosos, porém a presença de fissuras ou rasgadas é compatível
também com as várias patologias ano-retais e causa natural. Em crianças com
obstipação intestinal, com fezes endurecidas, ocorrem frequentemente fissuras ou
rasgadas anais, seja nos quadrantes anteriores ou nos quadrantes superiores.

28
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 141.
29
Idem, p. 88.
30
O Delegado Edélcio Lemos referiu em entrevista concedida a Rede Bandeirantes de Rádio e Televisão (Laudo
nº 01.060.30643/98, referente a transcrição do áudio de fita de videocassete, realizado pelo Instituto de
Criminalística de São Paulo, p. 21) que “(...) além do que as crianças falaram, também existe uma
confirmação já através de uma prova científica que não admite contestação, um laudo médico que diz que
um deles sofreu violência sexual”.
31
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 88.
32
Idem, p. 142.
82

Acrescentamos também o fato de o menor apresentar prurido anal, que poderia estar
associado a parasitoses intestinais (verminoses). 33

Mesmo não havendo sequer indícios suficientes para justificar a propositura da


ação penal, pois a investigação preliminar foi calcada em frágeis indicativos, destroçaram-se
as vidas de pessoas comprovadamente inocentes. A inocência dos suspeitos veio a justificar o
pedido de arquivamento do inquérito policial. Ressaltamos, inclusive, ter-se chegado à
conclusão de que as vítimas foram induzidas, culminando com uma falsa lembrança de um
fato que nunca existiu.
A alusão à problemática não ficou restrita tão somente à fase pré-processual, na
medida em que as falsas memórias foram objeto de análise pelo Judiciário, de forma expressa.

33
RIBEIRO, Alex. Caso Escola Base – Os abusos da Imprensa, 2003, p. 142.

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