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Alta escola militar inclui livro de olavista em sua bibliografia

Por Rubens Valente, colunista do UOL 19/07/2020

Olavo de Carvalho histriônico

R ES U M O D A NOTÍ C IA

 Livro que prega contra esquerda, universidades, classe artística e jornalistas integra
lista de leituras da Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais;
 A coluna obteve, pela Lei de Acesso à Informação, as bibliografias de três das principais
escolas militares do país;
 Escolas militares defendem a excelência do seu ensino e dizem que não há
alinhamento com ideias de autores.

O livro de um seguidor do escritor bolsonarista Olavo de Carvalho é listado como bibliografia


básica de uma das principais escolas militares do país voltada para o aperfeiçoamento de
oficiais da ativa. Ao mesmo tempo, a escola não considera nem Amazônia nem povos
indígenas em seu Plano de Disciplinas e, por isso, não inclui livros sobre os dois assuntos.

A coluna solicitou, por meio da Lei de Acesso à Informação, as bibliografias básicas das três
principais escolas do Exército nos campos da história militar, Amazônia, geopolítica, relações
internacionais, povos indígenas e ciências políticas. As referências bibliográficas podem ou não
ser usadas, pelos professores, na elaboração das aulas. Por constarem das bibliografias, os
livros podem ser encontrados mais facilmente nas bibliotecas das instituições.

As três instituições responderam: Aman (Academia Militar das Agulhas Negras), EsAO (Escola
de Aperfeiçoamento de Oficiais) e Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército).

Aberta em 1920, a EsAO é apelidada de "a Casa do Capitão" e tem a missão de "atualizar e
ampliar os conhecimentos dos jovens oficiais do Exército", oferecendo cursos de pós-
graduação lato sensu e capacitação "para situações de guerra" dentro da "Doutrina Militar
Terrestre", segundo a escola. Também atua na formação de oficiais da Marinha, da FAB (Força
Aérea Brasileira), de policiais militares nos Estados e de militares estrangeiros. Até 2018, ela
havia formado 29.805 oficiais do Exército, 746 da Marinha, 20 da FAB, 38 PMs e 1.100 oficiais
de 21 países.

O livro do olavista Flávio Gordon "A corrupção da inteligência" (editora Record, 2017) integra a
bibliografia da EsAO no campo da "história militar" - ao todo, foram citados 21 obras nessa
disciplina. No livro, Gordon faz diversos ataques aos professores universitários, artistas,
jornalistas, petistas e até a militares das Forças Armadas, sugerindo que eles "subestimaram" a
esquerda. Ele apresenta a esquerda como o grande problema do país e argumenta que ela
promove uma "guerra cultural".

'Maior intelectual brasileiro vivo'

Carvalho, escritor radicado nos EUA e influenciador do clã Bolsonaro, é citado 25 vezes no
livro. Gordon o chama de "o maior intelectual brasileiro vivo" e diz nos agradecimentos que
não consegue "estimar a dívida intelectual para com o professor Olavo de Carvalho. Para além
do conteúdo de seus ensinamentos, e do leque de referências bibliográficas e culturais que me
abriu, com ele aprendi a ter algo que, na ausência de melhor termo, gosto de chamar de
altivez intelectual, sem o que toda atividade da inteligência fica comprometida".

O trecho de um livro de Olavo é transcrito por Gordon: "Jornalistas, cineastas, músicos,


psicólogos, pedagogos infantis e conselheiros familiares representam uma tropa de elite do
exército gramsciano. Sua atuação informal penetra fundo nas consciências, sem nenhum
intuito político declarado, e deixa nelas as marcas de novos sentimentos, de novas reações, de
novas atitudes morais que, no momento propício, se integrarão harmoniosamente na
hegemonia comunista".

Um ex-aluno de Olavo, que pediu para não ter o nome publicado por temer retaliações, disse
que o livro de Gordon, formado em Antropologia no Rio e nascido em 1979, é muito citado por
olavistas e sempre teve o apoio de Olavo. "Basicamente o livro apresenta e recicla as ideias do
Olavo, ao dizer que a esquerda dominou as universidades e há toda uma classe jornalística,
artística, moralmente corrompida, voltada para destruição dos valores. Ele dá uma motivação
para as pessoas ocuparem o espaço da esquerda."

Além de Gordon, outro autor muito querido por Olavo de Carvalho integra a bibliografia da
EsAO, o general de brigada reformado Sérgio Augusto de Avellar Coutinho (1932- 2011). Ele
apresenta uma tese na linha da exposta por Gordon a partir de interpretação de escritos do
filósofo marxista Antonio Gramsci (1891-1937). O livro referenciado pela EsAO se chama "A
Revolução Gramscista no Ocidente: A Concepção Revolucionária de Antônio Gramsci em os
Cadernos do Cárcere" (ed. Biblioteca do Exército, 2012).
'Obras limitadas e desatualizadas'

A coluna submeteu as bibliografias de EsAO, Eceme e Aman a quatro professores universitários


- dois preferiram não ver os nomes publicados porque também dão aulas para militares e
temem uma saia justa a partir das críticas.

O historiador Carlos Fico, professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro) e


especializado na história da ditadura militar (1964-1985), considerou as indicações
bibliográficas das três escolas, "em termos gerais, bastante limitadas e, sobretudo,
desatualizadas".

"Mesmo se pretendendo uma abordagem conservadora - como é o caso - há autores


contemporâneos que poderiam ser incluídos", disse Fico. Ele salientou que autores
conservadores citados, como Samuel Huntington (1927-2008) e Henry Kissinger (1923-),
"merecem ser lidos", no entanto "caberia adotar outros, nem tão marcados pela Guerra Fria".

"A Eceme também recomenda manuais ultrapassados de metodologia da História. No caso da


Aman, a bibliografia sobre História Militar é pífia, sobretudo considerando-se os bons autores
brasileiros sobre o tema. No caso da EsAO, isso se verifica nas indicações referidas às Relações
Internacionais. Haveria, também no caso da EsAO, a possibilidade de enriquecimento e
atualização, embora se verifique a presença de bons historiadores, como Marco Antonio Villa
[1955-] e Thomas Skidmore [1932-2016]."

O livro de Villa incluído na bibliografia é "Ditadura à brasileira: 1964-1985: a democracia


golpeada à direita e à esquerda" (Leya, 2014). O de Skidmore, "Brasil: de Castelo a Tancredo"
(Paz e Terra, 1988).

Fico ressaltou a importância de se jogar luz sobre a formação educacional dos militares no
país. "Há, entre alguns analistas, a ideia de que os militares são 'bem preparados' - o que
justificaria sua ida para o atual governo, por exemplo. A verdade, entretanto, é que a formação
militar é bastante limitada e constrangida por enfoques que ainda guardam o ranço do mundo
bipolarizado entre capitalismo e comunismo."

'Dificuldade de se discutir o Brasil'

Paulo Rodrigues Ribeiro da Cunha, professor e pesquisador do tema militar, doutor em


ciências sociais pela Unicamp, disse ver "uma abertura maior do que você poderia esperar",
mas "ainda dentro de um eixo conservador, não há inclusão muito grande de autores no
campo crítico, que poderiam gerar uma reflexão importante".
Sobre ausência de obras específicas a respeito da Amazônia e povos indígenas, Cunha disse ver
"ainda uma dificuldade de se discutir o Brasil". "Atépor que o índio é elemento central em
defesa da Amazônia dentro do projeto estratégico brasileiro. E o índio não é considerado? Isso
realmente fica faltando."

Das três escolas, Aman e EsAO informaram que tanto "Amazônia" quanto "povos indígenas"
não são "assuntos abordados no Plano de Disciplinas". A Eceme não fez essa observação, mas
nenhum dos livros citados trata diretamente dos dois assuntos. Nas três escolas, não há
nenhum livro escrito por um indígena ou um ambientalista civil de renome. Na Eceme e na
Aman, a maior referência possível ao Norte do país se encontra na obra de um militar que
tratava de geopolítica, o general de divisão Carlos de Meira Mattos (1913-2007), mencionado
com cinco obras.

Cunha se surpreendeu com a presença, na bibliografia da EsAO, do militar e historiador Nelson


Werneck Sodré (1911-1999), do campo da esquerda, que teve os direitos políticos cassados e
foi preso por quase dois meses após o golpe militar de 1964. "Dá para ver uma certa
oxigenação que atribuo um pouco a uma nova geração de militares que anda participando
mais dos debates, ligados à Associação Brasileira de Estudos de Defesa [Abed], muitos
militares estão fazendo mestrado e doutorado."

Criada em 2005, a Abed é uma associação "de caráter científico cuja finalidade é congregar
pesquisadores que desenvolvam estudos e pesquisas sobre defesa nacional, segurança
nacional e internacional, guerra e paz, relações entre forças armadas e sociedade, ciência e
tecnologia no âmbito da defesa nacional e questões militares em geral". O livro de Werneck
Sodré incluído pela EsAO na sua bibliografia é do livro "História militar do Brasil" (ed.
Civilização Brasileira, 1968).

'Não há alinhamento da escola com autor'

Em nota à coluna, a EsAO afirmou que sua biblioteca "possui 15.000 volumes, entre livros,
periódicos e documentos, incluindo obras e títulos raros, de destacados autores nacionais e
estrangeiros, de variadas escolas e épocas, fornecendo amplo enfoque sobre inúmeras áreas
do conhecimento. Nesse contexto se insere o livro de Flávio Gordon, ou seja, mais uma opção
de leitura sugerida aos alunos, dentre tantas outras. Não há alinhamento da Escola com o
pensamento de nenhum autor específico".

O pedido feito pela Lei de Acesso não tratou dos livros que constam das bibliotecas das
escolas, mas sim da bibliografia básica em cada área do conhecimento mencionada no
requerimento.
Na nota, a EsAO disse ainda que "é um estabelecimento de ensino superior pertencente à linha
de ensino militar bélico, tendo iniciado suas atividades em 8 de abril de 1920, como um espaço
de discussão, atualização e divulgação da Doutrina Militar Terrestre, por onde são capacitados
para situações de guerra todos os capitães de carreira do Exército Brasileiro. É reconhecida
internacionalmente como um centro de excelência de ensino militar, com nível de pós-
graduação lato sensu".

A direção da escola disse que seu corpo docente é formado por "especialistas militares e civis"
e hoje conta com 463 alunos, dos quais 15 são estrangeiros. "O reconhecimento internacional
e a tradição da EsAO, aliadas à diversidade de títulos constantes de sua biblioteca e a
capacitação de seus especialistas civis e militares, demonstram a atualidade e a potencialidade
de ensino da Doutrina Militar Terrestre do Exército Brasileiro".

'A Eceme é centro de estudos de excelência'

Também procurada pela coluna, a Eceme (Escola de Comando e Estado-Maior do Exército)


afirmou que "tem construído uma reputação de excelência no ensino militar ao longo de mais
de cem anos de história. É o estabelecimento de ensino de mais alto nível do Sistema de
Educação e Cultura do Exército".

A escola afirmou que sua abordagem metodológica "não se restringe àquela necessária para o
planejamento das operações militares". "A integralidade da educação vivenciada pelos alunos
da Eceme compreende o estudo de variados assuntos, que suscitam questões para as quais se
aplica apropriado método de análise diante da ampla variedade de problemas a solucionar,
muitos deles inéditos."

A Eceme mencionou que sua biblioteca tem 36.366 volumes, dos quais "219 considerados
históricos, além de estar ligada a outras bibliotecas no país e no exterior, sendo especializada
em Ciências Militares".

"A projeção da Eceme no cenário internacional é bastante expressiva, pois cerca de 700 oficiais
de nações amigas, de todos os continentes, têm frequentado o Curso de EstadoMaior há
décadas, alcançando cargos relevantes em seus países e demonstrando o elevado nível de
preparação fornecido. Em 2020, há sete oficiais estrangeiros frequentando o curso, cerca de
metade da média anual devido à pandemia."

A escola conta com professores civis e militares, dos quais 10 professores doutores, nos cursos
de mestrado acadêmico e de doutorado em ciências militares.
"A criação do Instituto Meira Mattos e o reconhecimento dos cursos de seu Programa de
Pesquisa e Pós-graduação em Ciências Militares pela Capes completam o papel desempenhado
pela Eceme como centro de estudos de excelência. Essa iniciativa provocou o aprimoramento
da pesquisa acadêmica conduzida pela Escola e fomentou a celebração de acordos e parcerias
com instituições nacionais e estrangeiras."

Sobre a ausência de obras a respeito dos indígenas e da Amazônia na bibliografia, a Eceme


afirmou que "o ensino por competências conduzido nas escolas do Exército atribui grande
relevância às experiências vivenciadas por seus alunos militares".

"Portanto, a questão da Amazônia, particularmente em temas indígenas e ambientais, é algo


que faz parte da própria cultura profissional do Exército. Vale a lembrança de um dos maiores
ícones do indigenismo brasileiro, o marechal Cândido Mariano da Silva Rondon. De origem
indígena, esse soldado brasileiro, por certo, é uma das maiores referências mundiais entre os
estudiosos do tema. Suas virtudes de soldado e cidadão, precursor das políticas indigenistas
contemporâneas, servem de inspiração aos militares do Exército Brasileiro em sua atuação no
desenvolvimento, na proteção aos brasileiros de origem indígena e na defesa da soberania
nacional na Região Amazônica."

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Autor:

Rubens Valente

Fonte:

https://noticias.uol.com.br/colunas/rubens-valente/2020/07/19/forcas-armadas-escolas-
bibliografia.htm

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