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Camara-Obscura - Cuarto Obscuro PDF
Camara-Obscura - Cuarto Obscuro PDF
Renato Roque
2008
CÂMARA OBSCURA
Era uma vez um homem que tinha visto tudo. Tinha visto demais, tinha visto o que
não devia ter visto. Foi levado à presença do rei que o condenou a não ver mais
nada durante toda a sua vida. O homem seria encarcerado até à morte numa
câmara obscura, onde não entrasse pinga de luz.
O homem que tudo vira, dentro da câmara obscura via coisas que nunca antes tinha
visto.
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1 Como tudo começou 4
4 A fotografia e o acaso 21
7 A fotografia e a morte 32
8 Em jeito de conclusão 39
3
1 Como tudo começou
Desde que nos foi entregue a tarefa de construir um pequeno portfólio
fotográfico, que eu fui descodificando um conjunto de sinais, que me
pareciam orientar num determinado sentido.
Depois a viagem à Noruega, onde pude regressar aos locais que fotografara
em 2006.
Todos esses sinais pareciam apontar para a missão de fotografar a casa onde
viveram os meus avós e onde eu nasci e que nunca mais tinha visitado,
desde a morte da minha avó há mais de vinte anos.
Por outro lado, o texto paradigmático Câmara Clara de Roland Barthes, foi
sugerido como texto de referência.
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Já tinha portanto duas missões: fotografar a casa dos meus avós para o
portfólio e escrever um pequeno texto de reflexão a partir do mítico texto de
Barthes.
A porta no 18
Para o meu pai
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Entrei no sonho por uma porta e tu entraste por outra. Percorri o sonho
de alto a baixo e de través. Não sabia se te procurava, se fugia de ti.
Sentia a tua presença na casa do sonho. Era como se estivesses por detrás
de mim, mas quando olhava já lá não estavas. Chamei por ti. É estranho
que nos sonhos te trate sempre por tu.
Abri as portadas da varanda, saí, e encostei-me ao gradeamento em ferro,
sobre o rio. O chão em granito debaixo dos meus pés parecia tremer. O
gradeamento balouçava um pouco. Por detrás de mim, os espelhos
reflectiam o fogo de artifício numa noite de S. João. Olhei a rua onde os
miúdos jogavam à bola. Era alto. Tão alto como me conseguia lembrar.
Senti uma vertigem. Voltei à sala, e sentei-me no sofá onde o meu avô
dormia a sesta. Fechei os olhos e entrei noutro sonho. A porta do sonho
era uma porta grande em madeira, pintada de vermelho, com um batente
em ferro.
Bati e o porteiro dos sonhos puxou o cordel que destravou o trinco. Entrei
num espaço escuro e frio de onde partiam umas escadas. Subi. De repente
fui engolido por um barulho ensurdecedor de música e vozes
incompreensíveis. Por vezes parecia distinguir as palavras “...mais uma
viagem...”. As escadas foram invadidas por uma luz cintilante que saltava
para as paredes onde escorria e permitia ver os desenhos do papel que as
forrava. Mais uma vez ouvi distintamente “...mais uma viagem...”. Entrei
num barco à vela com o casco colorido rodeado de borracha. Agarrado
ao mastro atravessei um lago de águas lisas, escuras e brilhantes.
Desembarquei do outro lado num jardim suspenso com vistas sobre o rio.
O meu avô espreitava-me ao cimo de uma escadaria em granito, por
detrás das portadas. Tinha a certeza de estar no teu sonho. Só tu não
estavas lá. De repente percebi que te procurava.
Desta vez bati à porta. O Sr. Francisco, novo morador, abriu e deixou-me
entrar. Lá dentro, percebi que aquela casa pouco tinha a ver com a casa
onde eu nascera e brincara.
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A foto não só nunca é, em essência uma
recordação, como também a bloqueia,
tornando-se em breve uma contra-recordação.
Roland Barthes
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Aquilo que eu tinha imaginado para o portfólio era confrontar a memória
com o exercício da fotografia. Pensei ainda na possibilidade de utilizar
nesse portfólio da memória as fotografias de outra casa da minha infância: a
casa dos outros avós, que continuo a visitar todos os anos no Verão, em
Figueira de Castelo Rodrigo.
O ovo
Para a minha avó
Era uma vez um pequeno ovo de galinha que vivia com os outros ovos,
seus primos e irmãos, numa grande cesta de verga por debaixo do móvel
da sala de estar, numa casa onde vivia uma velha senhora. À velha
senhora só a vira uma vez, quando ela o colocara na cesta, junto dos
outros ovos. Desde então tinha apenas espreitado com curiosidade e
ansiedade os seus pés, quando ela se movia na sala, através da nesga de
espaço entre o móvel e o chão. O ovo só conhecia o canto da capoeira
onde tinha sido posto e aquela cesta para onde tinha sido trazido.
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Durante a viagem, da capoeira para a sala, olhara com sofreguidão à sua
volta, mas mal tinha acordado e a rapidez da viagem como que o
entontecera, e pouco tinha discernido: Apenas uma profusão de formas e
cores que não conseguira compreender, mas que fora suficiente para
fazer nascer nele aquela sede de viagem, aquela sede de aventura. Cada
vez que espreitava os pés da velha senhora sonhava com uma viagem,
com a possibilidade de partir à descoberta.
Naquele dia fora surpreendido por dois pés que desconhecia. Pareciam
uns pés de miúdo. Calçavam sandálias, sem meias e como usava com
certeza calções podia observar-lhe as pernas quase até aos joelhos. Ouviu
uma conversa entre o miúdo e a velha senhora, mas infelizmente não
conseguia perceber a fala dos humanos. Pouco depois viu os pés da velha
senhora aproximarem-se do móvel e espantado deu de caras com a cara
rugosa da velha senhora que se dobrava e estendia um braço para a cesta
dos ovos. Procurou chamar-lhe a atenção chocalhando a gema. Sentiu o
calor dos seus dedos e sentiu-se erguer no ar. A senhora levava-o consigo.
Olhou à sua volta maravilhado. Sentiu-se embriagado pela riqueza de
formas e cores. Olhou a velha senhora nos olhos e foi surpreendido pelo
seu olhar firme mas ao mesmo tempo terno, um olhar cavado por rugas
profundas de tempo lavrado ao sol e ao vento. Observou a sala. Era
pequena. A principal peça de mobiliário era o móvel, por debaixo do
qual, a cesta com os ovos estava escondida. Em cima do móvel observou
algumas fotografias antigas a preto e branco e uma velha boneca em
porcelana que representava uma menina de chapéu que parecia correr
com uma cesta no braço. Nas paredes, mais algumas fotografias, e um
relógio de pêndulo que marcava sete horas. Era a hora de partir para a
viagem. De súbito a velha senhora voltou-se e saiu da sala. O ovo viu um
corredor, umas escadas em madeira e entrou numa cozinha escura
iluminada pela lareira acesa. A senhora colocou-o em cima da banca e
então pôde observar com pormenor as prateleiras onde repousavam
objectos metálicos de todas as formas e tamanhos e que o ovo não
conseguia identificar. Eram objectos estranhos para um ovo que apesar
de instruído, nunca tinha saído da cesta, enfiado debaixo do móvel da
saleta do andar térreo. A senhora colocou um dos objectos metálicos na
lareira, e sentou-se durante alguns minutos num pequeno banco de
madeira. Levantou-se de seguida e caminhou até à banca e pegou de novo
no ovo. Levou-o até junto do fogo e bateu com ele no rebordo do objecto
metálico que tinha colocado na fogueira alguns minutos atrás. O ovo
sentiu a clara e a gema estremecerem. A casca estalou e o ovo assustado
sentiu-se escorregar no vazio, mergulhando num líquido quente que
parecia estalar. Era uma sensação agradável. O ovo sentiu-se mais firme,
mais seguro de si. O medo tinha apenas durado um momento e
transformara-se num prazer profundo. Enquanto deitado naquele líquido
quente, o ovo observou um profundo túnel negro de que não descortinava
o fim que se abria por cima da sua cabeça. Seria um daqueles buracos
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negros de que tinha lido num livro sem no entanto perceber bem do que se
tratava? Estava ainda a meditar nesta possibilidade quando a velha
senhora levantou o objecto metálico onde se encontrava, o inclinou, e o
ovo escorregou para um prato branco de porcelana. No contacto com o
frio da porcelana arrepiou-se: a gema intumesceu-lhe. A senhora
levantou-se com o prato na mão e a viagem do ovo continuou. Atravessou
o corredor no primeiro andar e entrou numa sala bastante maior do que a
sala do andar inferior. Era a sala de jantar. A mesa estava posta. O ovo
olhou para um miúdo de óculos que estava sentado à mesa. Era com
certeza o garoto cujos pés conhecera. O tampo da mesa encobria-lhe os
membros inferiores pelo que não pôde confirmar. A senhora colocou o
prato com o ovo em cima da mesa e o ovo olhou os olhos do miúdo e ao
perceber a gulodice do seu olhar compreendeu que não tinha muito
tempo. Mas não se importou pois percebera que o triste não é não ter
muito tempo mas sim nunca ter tido tempo. Estava a ficar filósofo. Sentiu-
se inchar. A gema quase estalou e se espalhou pelo prato. Ovo-filósofo!
Ainda poderia vir a ser famoso como o Ovo de Colombo, cuja fama aliás
nunca percebera.
A casa continua, como sempre foi, ou deveria talvez dizer como não foi,
pois falta a alma da casa, a minha avó. Este foi, colocado na frase de uma
forma natural e sem qualquer premeditação, como veremos, pode ser
interpretado como primeiro um sinal da pertinência do texto de Barthes.
São imagens que o ferem, como ele diz, em particular uma foto, que ele não
mostra, da sua mãe ainda criança, que conduz toda a escrita do ensaio.
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Perante o contratempo, decidi então experimentar o modelo de Barthes:
continuar com o exercício, mas transformar as duas missões numa única
missão. Manias de engenheiro, de optimização de recursos!
Mais uma vez a minha fotografia era o pretexto para pôr em cima do branco
do papel as minhas reflexões, as minhas dúvidas, as minhas perguntas e
porventura também, se as houvesse, algumas respostas.
Nota: as citações que utilizo neste pequeno exercício, para facilidade dos
leitores deste texto, identificam sempre o número da página do livro
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Câmara Clara, de onde foram retiradas, na colecção “Arte &
Comunicação” das “Edições 70”, que utilizei.
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latim: é o studium…é pelo studium que me
interesso por muitas fotografias (46)
13
particular a tal célebre fotografia da sua mãe ainda criança, de que fala
sempre, mas não mostra.
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A questão do peso da realidade, aliada ao argumento da mecanicidade no
processo fotográfico, são questões antigas, colocadas desde a invenção do
processo, em meados do século XIX.
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minimizar os resultados da fotografia: a ausência de cor e a carácter
mecânico do processo. Esta realidade levou muitos fotógrafos pictorialistas
a desenvolver e a defender práticas elaboradas de coloração das fotografias,
como uma forma de ultrapassar essas duas limitações e de conseguir dessa
forma verdadeiras obras de arte. “ O fotógrafo admite a beleza da cor na
pintura e admira-a. O artista admite a veracidade da fotografia e admira a
maravilhosa delicadeza dos detalhes, a autenticidade do desenho e a
perfeição do claro-escuro. Porque razão então uma arte que combina a
verdade de uma com o encanto da outra é assim atacada por artistas e
fotógrafos?” Escrevia Alfred H. Wall, um dos coloristas importantes do
século XIX, queixando-se da incompreensão que recebia quer de fotógrafos
quer de pintores.
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catalão Joan Fontcuberta, ou em projectos como “How photography lost its
virginity on the way to the bank”do fotógrafo americano Duane Michals, ou
ainda no projecto “Seascapes”, uma série de fotografias de mar do fotógrafo
japonês Sugimoto? Seria difícil responder. São todos fotógrafos
contemporâneos, é verdade, mas poderíamos recorrer aos surrealistas ou aos
modernistas das primeiras décadas do século XX, ou mesmo a um clássico
naturalista como Edward Weston.
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A semiologia da fotografia está, pois limitada
às execuções admiráveis de alguns retratistas
(61)
18
tecnológico, químico e mecânico, para registar a realidade. Daguerre define
a fotografia como “um espelho com memória”, ou seja, capaz de
transformar o “isto é” do espelho, num mágico e misterioso “isto foi”,
misturando, tal como argumenta Barthes, a realidade com o passado. É
inegável que a fotografia, quando surge, está mais ligada à tecnologia e aos
processos de transformação industrial e tecnológica, do final do século XIX,
do que a movimentos artísticos. Constatamos por exemplo que muitos dos
pioneiros do processo fotográfico, nomeadamente em Portugal, e em
particular no Porto, são homens ligados à ciência e à tecnologia, homens
com uma visão transformadora para a sociedade rural portuguesa, tendo
como objectivo uma sociedade nova, industrial e capitalista e que por isso
se interessam e divulgam essa nova forma de registar a realidade.
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“O que é que isto foi e o que é que vai ser?”
20
4 A fotografia e o acaso
Vimos que Barthes classifica as fotografias em dois grandes grupos.
Aquelas de que realmente gosta, que o ferem, as fotografias com punctum,
resultado de um pormenor “que é dado por acaso e mais nada”.
Para Barthes esse pormenor é portanto fruto do acaso. Inclusive, se tal não
acontecer, e se esse tal pormenor for planeado pelo fotógrafo, o pormenor
perderá a sua força e já não conseguirá feri-lo…
21
A sobrevivência desta fotografia ficou a dever-
se ao acaso de ter sido tirada por um fotógrafo
de província que, mediador indiferente,
também ele posteriormente morto, não sabia
que aquilo que fixava era a verdade – a
verdade para mim (153)
É por isso também que Barthes afirma que não gosta de todas as fotografias
de um mesmo fotógrafo. Porque nem sempre esse pormenor, fruto do acaso,
acontece. As fotografias de um bom fotógrafo podem todas conter o
studium, mas só algumas conterão o tal punctum.
Não pretendendo discutir o acaso, que faz parte da vida, e também com
certeza de muitas fotografias, parece-me muito difícil mais uma vez
enquadrar neste esquema os projectos mais interessantes de fotografia,
desde que a fotografia foi inventada até hoje. Onde está esse acaso na
“Fauna” de Fontcuberta, recorrendo uma vez mais a esse fotógrafo catalão,
em que a fotografia serve para inventar o personagem Ameisenhaufen e
ilustrar todo o trabalho deste imaginado professor alemão, em prol das
novas espécies por eles pretensamente descobertas em lugares recônditos.
Tudo é pensado, planeado e executado com um rigor e uma perfeição
levadas ao limite. Acaso?
Onde está o acaso nas fotografias que fiz no Museu de História Natural de
Oslo? Onde está o referente? O que importa nestas imagens é a sua relação
realidade/falsidade. A somar à falsidade da fotografia há a falsidade do
referente, e o que perturba é, apesar disso, as fotografas parecerem algumas
vezes mais reais que a própria realidade.
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Onde está o referente quando a fotografia fotografa a referência de um
referente? Onde está o acaso?
Creio que se poderiam usar argumentos mito parecidos para todas as formas
de expressão e de arte. A subtileza, a criatividade, a qualidade estética
transformam muitas vezes os projectos artísticos de crítica social em
projectos mobilizadores apenas para aqueles que já estão aptos para a
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crítica. E no plano histórico creio que terá sido mesmo a fotografia a
contribuir para muitos movimentos cívicos e de transformação social. Basta
ter em conta, por exemplo, o papel desempenhado por muitos
fotojornalistas, que fotografaram a Guera de Espanha, os campos de
concentração nazis, ou a guera do Vietname.
Será que Barthes se apercebe de que só está a tratar apenas um tipo muito
específico de fotografia, ou não? Há uma passagem curiosa onde diz:
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Mas parece que Barthes teria uma opinião muito crítica relativa a essas
aventuras, quaisquer que elas fossem, sem sequer distinguir entre elas.
Parece acreditar que a fotografia tem um lugar a ocupar e tem de se limitar a
ocupar esse lugar…
Por outro lado nos capítulos finais do livro Barthes, onde defende o carácter
alucinatório e mesmo a raiar a loucura da essência fotográfica
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objecto existiu realmente e esteve lá, onde o
vejo. É aqui que reside a loucura (158)
ele afirma:
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A comparação com o cinema também é natural, pois o cinema é de alguma
forma um desenvolvimento da fotografia através da inclusão do movimento
e do tempo.
Pintura
27
Na fotografia a presença da coisa (num
determinado momento passado) nunca é
metafórica (112)
Cinema
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Isso explica que o noema da fotografia se
altere quando essa fotografia se anima e se
torna cinema (111)
29
de 8 mm da minha filha, com cinco anos de idade? Como negar o carácter
fantasmagórico de um pequeno filme da minha avó?
Escrita
30
Ao Pouco-Imagem da leitura responde o
Tudo-Imagem da Foto. (125)
Haiku
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7 A fotografia e a morte
Cedrus falsus, projecto Bosque com Passado, Tom de Festa, Tondela, Julho 2007
A fotografia teve sempre, desde que foi inventada, uma componente muito
forte de registo, de memória, e dessa forma esteve sempre, de alguma
forma, ligada à ideia de morte. O momento registado é sempre um momento
que já passou, um momento que já não existe mais. A fotografia é por isso
também sempre uma mentira.
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árvore, onde mergulharia fotografias a PB de uma árvore da mesma espécie,
recorrendo a uma série de imagens, com impressão variável, desde o branco
completamente subexposto ao negro queimado sobreexposto. Ligar o ciclo
efémero da vida e da morte ao ciclo efémero do processo fotográfico.
Registo, memória, morte, efemeridade.
Informaram-me uns dias depois que me tinha sido atribuído por sorteio um
cedro da freguesia de Caparrosa. Enviaram-me a fotografia da árvore morta,
de pé, como é tradição nas árvores.
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Cedrus - Cedrus deodara, Cedrus atlantica e Cedrus libani - e que
nenhuma das duas árvores pertencia a qualquer dessas três espécies. Todas
estas espécies são recentes em Portugal. Foram introduzidas pelos serviços
florestais na década de 50. Daí a confusão, suponho.
Contei esta história porque a fotografia tem sido desde a sua invenção
conotada de muitas formas com a morte. A morte está presente de muitas
formas no processo fotográfico.
34
Na fotografia a imobilização do tempo só se
apresenta de um modo excessivo, monstruoso
daí a relação com o Quadro Vivo, cujo
protótipo mítico é o adormecimento da Bela
Adormecida) (128)
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fustigado por uma ideia perturbadora: toda aquela gente que nos olha, anda,
brinca, corre, ri, está morta, já não existe. Sobretudo ao olhar os rostos
sorridentes e felizes das crianças…
Mas Barthes vai mais longe e defende que a fotografia poderia explicar a
atitude da s sociedades contemporâneas perante a morte
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incomodidade de que estava à espera, a minha sensação mais forte foi de
uma profunda emoção estética, perante a beleza e a harmonia daquelas
peças, como se tratasse de esculturas ou objectos de Arte, criações humanas
onde o homem pretendesse copiar os Deuses. Confesso que essa sensação
apesar de agradável me perturbou de seguida, pois contrariava tudo aquilo
que eu esperaria sentir.
37
progressista ou, pelo contrário, um mero reflexo de uma atitude
banalizada/generalizada da sociedade contemporânea perante a morte.
Muitas vezes temos alguma coisa à nossa frente, mas como sempre lá esteve
não nos chama a atenção. Transforma-se numa espécie do fantasma bem-
educado do poema da Natália Correia e, curiosamente, só quando essa coisa
desaparece conseguimos observá-la e interrogarmo-nos acerca dela, tal
como só a noite nos permitiu aproximar do sol e das estrelas e compreender
o universo.
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a morte acontece de preferência longe dos familiares e dos amigos, as
crianças são afastadas; um desgosto demasiado visível já não inspira
piedade mas repugnância: é considerado mórbido! Nas palavras de Ariés no
estudo referido “o luto solitário e envergonhado é o único recurso, como
uma espécie de masturbação...”. Mas, na opinião de Ariés esta nova atitude
não resulta de maneira nenhuma de uma indiferença em relação aos mortos,
podendo-se mesmo supor que o recalcamento do desgosto que a sociedade
hoje impõe torna muito mais difícil a perda do ente querido e tornam muito
mais difícil o nosso convívio com a morte.
Mas se a ideia de morte está presente na fotografia, tal não significa que
essa tenha de ser a ideia dominante em todos os projectos fotográficos.
Onde tantos vêem o congelamento do tempo, o instante roubado à vida, a
fotografia como sinal de morte, pode-se também muitas vezes ver um tempo
que flui como uma paisagem vista à janela de um comboio que roda
lentamente sobre os carris, um vestígio de algo que se transforma e sempre
de alguma coisa que se inicia.
8 Em jeito de conclusão
Tenho de confessar que a releitura de Barthes constituiu de certa forma uma
desilusão para mim, ao não encontrar respostas para a maioria das questões
que hoje se me colocam perante a fotografia, ainda que essa leitura tenha
sido importante, ao ter propiciado esta reflexão.
39
Imagino que o gesto essencial do Operator é
surpreender alguma coisa ou alguém…em
revelar o que estava tão bem escondido, que o
próprio autor desconhecia ou de que não
estava consciente…toda uma gama de
surpresas (54)
Para além deste aspecto fundamental que caracteriza o livro Câmara Clara
– o livro só aborda um conjunto de fotografias, não toda a fotografia – há
um outro aspecto que me parece importante realçar. O livro é muitas vezes
– talvez quase sempre – um exercício muito pessoal e subjectivo sobre a
experiência de Barthes com a fotografia. Mas esse facto, que me parece
evidente numa leitura mais atenta, poderá passar despercebido a muitas
pessoas, apesar de o próprio Barthes algumas vezes lançar pistas sobre esse
facto:
40
Eu passava para além da irrealidade da coisa
representada, entrava loucamente no
espectáculo, na imagem, abraçando o que está
morto, o que vai morrer (160)
Para além das questões polémicas que o livro enuncia, e que tentei colocar
no branco do papel nos capítulos anteriores, existem também algumas
contradições que porventura revelam mais uma vez o carácter subjectivo do
texto. Vejamos apenas algumas dessas contradições.
41
Perante milhares de fotos, mesmo as que
possuem um bom studium, eu não sinto
qualquer campo cego (83)
42