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Modos de fazer e usar a filosofia ‘Ao instular nossa palestea "Modos de fazer e wat a filosofia”, pensa- ‘os em primeiro lugar na atividede do filsofo como uma profissfo ‘ou ocupacto habitual dentro das miltplas atividades e ocupagbes hhumanas. Como outros offios ou atividades profisionais, a pritica filossfiea supde fins pr6prios e meios ou procedimentos especifices, assim como preparasio especial no assuat dessa prética, que deve se compartlhads, em certa medida, para que possa estabelecer-e um, Aidlogo ou comunicagio oom os estudioos a que se destinamn 08 pro- Autos flos6ficos(teorias ou doutrinas)proprios dessa atvidade, ‘Trata-se, portato, de uma atividade de alguma maneira especia lizada, Claro que, pela propria natureza da hilosofia, essa expeciliza- fo no deve ser entendida em terms tio absolutos que levem a filo= Sofia a separar-se da niosilosofia ou da vida real. Nao deve, do mes mo modo, ser entendida como se os ndo-especalistas ou nfo-profie- sionais encontrassem jg fechadas, por principio, as vias de acesso & Filosofia, Por isso mesmo, um problema que se coloca deste o primel momento &0 da insercio do oficio do flsofo na vida rea, inserio 1a qual se pe em jogo a prépria natureza da filosofia, no que diz ree ito tanto 20 seu objeto quanta ao carster de sua aividade, E, com ‘ste motivo cabe desde agora a questio que tem aver com essa inser- {oda filosofia ou como intento de certs filsofos em no integra vida real. A questo & a seguinesafilsofa estédestinada a ser con sumida somente nas salas de aula univesiticas ox nos cubiculos dos Instturos de investigasio, on, plo conti, deve, de wi modo ou de ‘outro, sair dos recintos académicos er para a rua ou pars a “égara”™ ruvosoria f eineunsvancias —a praca pblica —, como pensavam os greyos na antgtidade? Em ‘outras palavea: a filosofa tem alguma relagéo com a vida cotidiana,, ‘04 ainda, longe dela seria a atvidade de um homem que busca um tespago fechado ot que #6 estaria interesado — na qualidade de fil6= -sfo — em cultivar o seu préprio jardin? "Nossa eesposta — que tentaremos desenvolver a0 longo desta pa lestea — 6 que 0 ofiio de filsofo se acha a um s6 tempo perto e lon- ‘ge da vida cotiiana ou que, ao exereer sua atividade propria, ainda sem que se proponha tal cosa, encontras, por assim dizer, com um é dentro eo outeo fora da vida real de cada dia. "No primeito caso, o fato de estar perto da vida real ou com um pé dentro da vida cotidiana pode ser entendido se accitarmos © que Gramsci — 0 filésofo italiano encarcerado pelo fascismo italiano € orto em 1937, pouco depois de sar da prisio — disse mais de uma ver: que todos os homens so fildsofos sso significa que no se trata de assunto exclusivo de especialistas. Ou ainda: que a filosfia € uma, ‘coisa demasiadamenteséria para que posse ser deixada exclusivamen te nas mos do fil6sofos. Entreranto,voltando a afirmagio grams na de que todos os homens sto flésofs, diremos que no hi por que centendé-a em um sentido literal ou absoluto, sim no sentido mais amplo de que todos os homens ajustam os seus atos ou se comportam cde acorda com certs idéias sobre 0 mundo em que vivem, sobre a vida e a morte, sobre © bem, a justiga, a beleza etc. Ndo € necessirio have ido 0 que disse Platzo sobre o bem, Ariststeles sobre ajustiga, ‘Kant sobre o comportamento moral ou Hegel sobre o belo para que todos renham uma cert iia do que é justo ou injusto, bor ou mau rmoralmente, belo ou feio na vida real; em poucas palavras: com © comportamento coidiano, internalizam-se certs fins e valores e,con- seqientemente, eta iéia ov eoncepeio do mundo, do homem e das relasties dos homens entre si. Ean suma, tem-se uma filosofia “para uso casero”. Inclusive, como no caso do personagem de Moliére que falava em prosa sem sibi-lo, os homens sempre assumem algumafilo- sofia, mesmo sem terem consciénca disso, Portanto, a vida cotidiana tem a ver coma filosofi. B 2 fllosofia, por sua ver, tem a ver coma e sida ctiiana,jé que Ihe cabe esarecer, anafsas ou fundamentae ideas valores que se intenalizam em zeros da vida cotdiana. Mas enquanto nesta 0 tato com esas ida on valores é espontine, 0 fei, propiamente idole, 0 sof aia a er com esas as @ valores um relacionantentorellexivo,eacional,fundamentado, Contudo, na vida cotidiana no apenas sed cero elacionamento ‘com iis, jules ou preconcitos, dos quai filzofo ae ocupa de ‘un modo especial, reflexivo, come também se tem certa imagem do filgsofo, assim como da nacuteza de so atividade, profissi ou oficio special. Convém registrar esa imagen if qe elt nos permit com- preender a verdadera nature da filosofiae também as diferentes Inancras de faz-a ews Que 0 filsofo 01 filsofa para 6 homem comum de nossa seciedae, una sociedadedividida em clases antagonicas de explora dors explorados, possidorese desposnidos? Umesocedede como 2 nossa, que, em seus tagosfundametais, no que tange 3 sua stax tora econbimica eao seu caviter de case, sociedad burguesa mo- deena? Que que domina nas reagbes entre os homens nesta socieda- de regds plo principio do lucco eda obtencio de beneicios? Nao é necessitio ser — como 0 foram no século passado os socialists > picose, mais tarde, Marx e Engels — eric radical e adversiio dela ara compreendero tipo de homem que predomina nese meio, asa como o caster de suas regs humanas. 18 antes de Marx, pensadoresburgueses como Adam Sasth na economia, Hobbes ¢ Hegel na filsofia polities, nada suspeito de fspirar a uma muudanga revoluionia da sociedade burgues, reo: theceram, com uma frangueza que beira 0 cinismo, o vedadeiro carivr dessa soiedadee das elaes entre os homens, Pia ees, 30- Ciedadeé um campo de batalha onde homem é“o lb do homer, como afemava Hobbes, ox onde “ocorte una grea de vodos cotta todos", come divim Adam Smith ¢ Hegel. Nesta sociedade, o indivi dio 56s arma fazendo prevalcer seus interestes pessoas sobre oF de todos os outros, Existe,poreanto, um divéei ent o individu € a comunidade, © que move os ndivds em seus atos 60 egolemo, 6 HLasoria € cIRcUNSTANCIAS com isso, 0 que vale em seu comportamento éa sua capacidade de fazer prevalecer seu interesse particular. Um homem é pritico na ‘medida em que exerce com sucesso essa capacidade. A prtica€ assim concebida mum sentido estreito,s6rdido,epotsta. ‘Numa sociedade em que 0 comportamento humano se molda em fungia de seus interesses egoistas, a filosofia aparece aos olhos do hhomem comum, “econdmico™, “pritico", como uma atividade ou ficio sem pratcidade, nio-rentavel e, portant, inl E certamentey s©0 priico é concebido num sentido epoista ¢econdmico, ea aquisi- ‘slo de bens materits €a medida da riquera humana, nada mais dis- tanciado da pratcidade nessa sociedade que o oficio de filésofo. Realmente, a ideia da inuiidade prétia e, por isso mesmo, da impo- ‘nca vital da filosofia deriva de seu cardtz eflexivo eertico. Este se converte num obsticulo para realizar os objetvasestreitamentepréti- 08, egoistas ou utiitirios. Mas essa negago da flosofia nao é outra coisa sendo a expresso de uma negaglo do peéprio pensar, como at vidade racional erica que faz parte, sem reduzie-se a ela, da condi fo propriamente humana. ‘Uma manifestagio peremptéria da negagio dessa atividade & 2 atiude para como trabalho claramence ilutada na produgio indus- trial em sésie ou em cadeia, introduzida por Ford nos anos 1920 na fabricasio de automéveis. Uma das instgées de Ford para a admis- so de operacios em suas flbriea ea ade excluie os que revelavam a tendéncia de pensar por conta propria. Com isto, pressupunha-se que 6 pensamento ou a intengZo de atuar reflexivamente era um dbice para o trabalho mecanizado, em sétie ou em eadca, que, a0 dim ‘uir a produtvidade, convertia-se mim obsticulo para a obtencio de beneficios. ‘Aidéia da inulidade “pritica” ou vital da filosofia nfo é nova e ‘goea de uma longa tredicio.Jé a escrava do fildsofo jénico Tales de ‘Mileto, por volta do século VIL antes de nossa era, nfo conseguiu con- ter o rso quando seu amo, merpulhado em reflexées, cain dentro de ‘um pogo, De acordo com a tradigdo que essa anedotsilustr, a filoso- fia seria um caso extreme do initil ou da vida real. Mas ess iia da inuiidade vital da filorof apenas do homem comum, que coloca 0 peético,o dil — entendido aqui num sentido estrito egosta —, como ovslor preferida na vida de cada dia ncontramos igualmenteente os centstas, ainda que por outeas aes a idéia da inutilidade da filosofia, mas nfo no sentido anterior, “antes naquele que tem pata 8 su atividade prépria, cienttica, Bo fungi dese, os cientistas no véem a necessidade e a utilidade da {lost Endo as véem porque parte do pressuposto de que a cdo ‘ia consttai a nice esfera do conhecimento, no podendo haver, ‘canseglentemente, um espaco proprio para o saber ilosético. Ever: dade que a filesofia nyo pode pretender — como jé 0 pretenderam ‘antes filésofos — rvalizar com a ciacia na busca de conbecimentos positvos nem campouco sobrepor-se a ela como uma expécie de cién- tla suprema ou rainha das cigncias, A filosofia ao pode substtuir nenluma cigncia nem se situar acima delas, Mas isso no significa que, baseanco-e nelas ¢ ni a suas expensas,carega de um campo proprio ao tentaresclaecer a situgio do homem no mundo e sas ‘elagBes mituas af mesmo, asim coma chamar asi a tare de analic sar eriticamente os pressupostos eas crengas que obscurecem ou oot tam essa situagio © esas relagdes. Ede seu campo proprio de estido também faz parte, como demonstes toda e historia daflosofia,oexa- me do inserumental cognosctivo metodelégica com que os horaens, através das cincias correspondents, conhecem a natureza e sua prs pra natuceza. Por outro lado, tanto para fundsmentarrecionalmente 4 utilidade ea necesidade da filosofia em rela as cigncias, quanto ‘ara negar essa tlidadee necessidade, deve se fazer filosafia, $6 filo soficamente se pode negar 0 que distingue a filosofia das ciéncias, E « negagio €a que pretendelevar a cabo a filosolia que, no obstan- te suas variantes, se conhece coma positivism, No entanro, filosofia acha-se tio presente, embora de maneira distoccida, na vida cotdiana, que inclusive enconteamos o termo filo Sofia em expresses de uso corrente como. de “aceitar as ensas com filosofia". Alude-se neste caso a uma atitude de rendncia diante dt Bo € pedpria acto, de rflexio e recolhimento serena — propria dos filsofos — anes detomar uma decsio precpitada que, porisso mesmo, pode se depois lamentada, Ou ainds, na boca dos empresiros: "a flosofia de nossa empresa € tal equal”, Neste caso tratase de fixar alia geral, de suas atvidades ou seus planos de ago. Pede-seemprestado a filo sofia jastamente sua tendéncia & generalizasio acima dos detalhes ou ‘das urgéncias imediatas, mas com isso ocultando-sea verdadeira ati- tude empresatial, que consise em inverter 9 imperative daquele gran- de filsofo que se chamou Kant, a saber: “trata ow considera sempre (homens como fim e nfo come meio”. Ora, a “filosofia” do empre- sitio —tal como ele aentende — procura sempre jstificar, sem argu rmenragio convincente, 0 fato de os homens serem tratados como coi- sas — como mereadorias —e no com fis A filosofa nio rompe os nexos com a vida cotidiana;alimenta-se de preacupagies, divide, aspiragdes que se geram nea e que ela mui- tas vezes se encarrega de esclarecer,analisar ou fundamentar. Tam- ppouco pade cortar suas ligagdes com a histéria ral, coma fase hiss Fico-social concreta na qual ela surge. Por isso, dizia Hegel que a flosofia€ filha do seu tempo ou que € a propria época captada em coneeitos. Isso explica algo que surpreende e desorienta aqueles que se iam no estudo da filosofia: sua diversidad, sua sucessio no tempo. E surpreende sobretudo quando se compara esta variedade com a cstabilidade e a unidade que a cgneia apresents. Ea raza & que a ‘ifacia une, enquanto a filosofia divide, Certamente a cigncia registra no passado uma diversidade de hipsteses eteorias; mas essa diversidade tende a desembocar na cién= cia dnicae sistemitica no presente. A cicia € sempre escrita no pre- sente, € 0 passado vale cietiicamente na medida em que se integra em varias doutrina filoséficas do passado que nia esto destinadas a desembocar em wma tnica Filosofia. Nio existe A FILOSOFIA em maiisculas, mas uma plucalidade de flosofia, pluralidade que cede terteno 120 a urs filosofia nia, esi a uma nova pluraldade. B assim acontece porque num mundo humane dividido, e partcalae- ‘pente num mundo humano dlaestad por contradigesantagnicas, 4 flosoia — por seu vinculo com as asprnges, os ideal interest hhumanos — nio pode deixar de xa dviida, Madam por iso de uma pcs a outa ox problemas que passim para o primeira plano; srudam as solusdes para um problema ja colocédo, muda a fungto social da filosofiae mud igualmenteo modo de exercéa de rate lasoustia, muda 6 “ofc do fof. Bsa verificar como Séeratesfzia flosofia em praga pablica, «questonando o primeiro cidadao que passava por ai ou 0 sapatcro da esquina. B como, neste dslogo com os nio-iniciadosflosotic- ment, ainda que preocupados como sres humanos com a verdade,a jest oo bem, 0 fisof de Atenas facia com gue partes nls = com 9 concurso do *homem da ea” — os concetos de verdad, juniga ou ber Certamente, esa manic de fazer flosoia correspond a uma so- ciedade como a pli ateviense, na qual 0 idado © homem “livee™ (@i 0 esrevo)torna sua. vida pics, comuntéria emo coloca sua da pessoal acme dela; uma socidade em gue tudo —a politica 5 agandes dcses do Estado ete. — pasa pela praca publica, Também Porisoa flosfia€exercda publicamente eo mum recinto baad, Com a dvisio do trabalho cada vex mais acetuada, e com ela @ do trabalho intelectual, ecom a cist da vida em publica e privada aque caracerza a sociedade moderna, flosofia& exerci sobcetedo fora da rua nos recintosespcilzados das insttuigdesacademicas {Em estetnrelagdo com este modo de faze oof, tem igual ment liga, ma socedade moderna, sua pofisinalizasi0 08 flor sofia exercida, sobretndo, pelos que se consagram profissional ou ‘specialmentea ela Assim a praicaam Hegel e Conte nossulo pas sado, assim a fazem em nosso tempo Hussecl, Carmap, Jaspets ou Heidegger, Fazem-naespcialisasdafilosfi, como uma spe de algo paradoxal,jé que a flosofa, em contrast com a enc, tmovese sempre num plano mais abstrat e mais gece. Da mengio de que, ¢o centsta€ especalita em um campo particular —o da {sia © da qumica ou odo Estado eda cconomia 0 filisofo seria ‘oespocialista om tudo. E isso aplicase principalmente aos consteuto~ tes dos grandes sistemas nos quais tudo tem ou deve ter seu assento, ‘camo acontece com esse constrator de sistemas ou grandes catedcais do pensamento que foi Hegel ‘Sem divide, embors nos tempos modemos ¢ contemporéneos, Aiferencemente de outros, predomine a atividade do filsof0 como uma ocupasia profisional, da qual tra se sustento ou mal 0 con- segue fazer, 8 qual deca todo 0 seu tempo si, nfo por que pen sar que toda a filosofia se produza profissionalmente, Basta citar no séeulo passadofildsofos como Kierkegaard, Schopenhauer, Nietzsche ‘ou Marx, que munca exerceram profissonalmente o ofcio de filésofo. E em nosso tempo recordemos os nomes de Gramsci ou Sartre, que no foram filésofor no sentido académico e profisional de um Huse! ou um Hetdegzer. Sea filosofia é uma reflex sobre 10 do homer no mun- do, sobre as relagSes que os homens contract nessa relagio e sobre 0 ‘conhecimento que ém de umnas ede outras, ese ela propria se faz em, ‘uma época e sociedede determinadas, isto & num mundo em que se dio conflits choques de interesses, no Ie ito subtrairsea esse ‘mundo, e, 92 qualidade deatividade humana que lege o homem, suas ‘dias ¢ comportamenta como objeto de suas reflexées, € sempre flor sofia inteessada Naturalmente, os filsofos no costumam actitar essa earacteri- za¢%o quando muito, admitem a ineidéncia dos interests e as ‘ges que emanarn da Vida real, assim como as iéias ou ideologia que ‘as expressam, come algo que ocotre em outeasflosofias, mas no naquela que defeadem, supostamenteimane, por seu objeto ou proce- dimentos, qualquer ideologia. Véem o cisco no olho alheio ¢ nd cenxergam a tave em seu proprio olko. (© objeto da filosofia, ou sea, 0 campo tematico que aborda ou 0 tipo de problema que caloca em primeizo plano, assim como o moda de exercer ov pratcar o oficio de filésofo, permitem estabelecer urna ‘catacterizacio da diversdade de filosofia.Tzatase de uma caracten- zagio esquemitica como tudo © que cuida de introdurie tragos comuns na diversidade — inevtsve, como ja dissemos, por seu caré- ter interessado— da filosofia, “Temos em primeiro logar um grupo de flesoias que se apresen- ‘am como uma stapes interpretagio ou intento de explicer 0 mundo ‘ua lnguagem com queos homens se expressam acerca do mundo ou ‘de suas relagbes com os demais homens. ‘Um exemplo paradigmatico dessa filosofias é a fllosofia de He- gel Aste ilésofointeressaexplicar o que 6,2 0 que €verdadeizo para sled 0 Todo, um todo racional;o que eal, por sé, é racional. Aye sm, nada existe fora ou aim dessa ealidade, A filosofiahegeliana, 20

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