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Sobre Mil Platôs
Sobre Mil Platôs
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Antonio Negri52
de cartas54 entre Dilthey e Yorck von Wartenburg, rende homenagem ao último por
sua “acabada compreensão do caráter fundamental da história como virtualidade
“[…] (o que ele deve) ao conhecimento que tem do caráter do próprio Dasein55
humano”. Conseqüentemente, prossegue Heidegger, “o interesse de entender a
historialidade” enfrenta o desafio de elaborar “a diferença de gênero entre o ôntico
e o histórico”. Mas distanciar-se-á de Yorck quando este, depois de estabelecer
claramente esta diferença, desloca-se da virtualidade para o misticismo.
Se, ao contrário, depois de separada do ôntico, “a questão da historicidade
mostra-se ela mesma como questão ontológica que investiga a constituição do ser
do ser histórico”, é novamente em direção a Dilthey que temos que nos voltar, ape-
sar de seu confuso vitalismo. Heidegger realiza duas operações simultaneamente.
Por um lado, expulsa as Geisteswissenschaften da posição que ocupavam no centro
da metafísica, como herdeiras do Iluminismo e como saída do hegelianismo. Por
outro, completa o trabalho crítico que mostrou seu valor, precisamente, no histori-
cismo de Dilthey (apesar das limitações que Yorck assinalou) – trabalho crítico que
desdobra a busca pela significação da historicidade e permite que nos desloquemos
da teoria da objetividade para a teoria da expressão; do reconhecer a historiografia
no contexto da crítica do conhecimento, para defini-la no centro do esquematismo
transcendental. A historicidade é posta então como uma dimensão ontológica, e só
deixa para a historiografia seu resíduo ôntico (Negri, 1959, cap. 1-3).
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Uma versão anterior deste ensaio apareceu na revista Chimères 17 (Paris, outono de 1992)
com o título “Sur Mille Plateaux”. Também foi publicado no Graduate Faculty Philosophy
Journal, v. 18, n. 2, 1995, em homenagem a Félix Guattari. Esta versão foi traduzida por Caia
Fittipaldi.
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A tradução literal de Geisteswissenschaften é ciências do espírito (distinguindo-se das ciên-
cias da natureza, uma distinção defendida, entre outros autores, pelo filósofo e historiador
Wilhelm Dilthey), mas corresponde também ao que designamos em português como ciências
humanas (N. de R.).
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Briefwechsel no original.
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O “ser-aí”, o ser-no-mundo.
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A vivência e a poesia (Nota de Tradução).
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Introdução às ciências humanas, 1830 (Nota de Tradução).
58
Ideen über ein beschreibende und vergliedernde Psychologie [Idéias sobre uma psicologia
descritiva e analítica], 1894.
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[existência, vivência].
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Collège de France, 2/12/1970.
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filosófico, que se tornou cada vez mais relativista e cético. Um vitalismo tênue e
superficial bloqueou esse outro vitalismo, túrgido mas sempre trágico, que ia da
historiografia ao ser, para abrir-se novamente na historicidade. Uma vez derruba-
do o ponto de vista historiográfico objetivamente ‘eunuco’, uma vez abandonado
o hegelianismo em todas as suas entusiastas ressurgências de efectualidade bruta
e a dialéticas em todos os seus subterfúgios, uma vez adquirida esta visão ‘desde
baixo’ que permite ao sujeito histórico de determinar agencements ontológicos,
pois bem, esta perspectiva viu-se novamente reduzida ao horizonte do relativismo
e do ceticismo. As diferentes escolas hermenêuticas que se sucedem, e que pre-
cisamente pretendem ser as herdeiras do pensamento Diltheyano e Foucaltiano,
nos levaram às delícias do ‘pensamento fraco’. A significação da complexida-
de dos processos que emanam dos sujeitos históricos converteu-se em pretexto
para repudiar o caráter ontologicamente forte de sua emergência. O movimento
de constituição, negado à totalidade, foi, por esta mesma razão, reduzido à pre-
cariedade, e as singularidades reduzidas ao encanto da particularidade nua. Do
fim do historicismo, passamos assim, imperceptivelmente mas seguramemte, à
determinação do ‘fim da história’. É essa mesma objetividade ‘eunuco’ contra
a qual se ergueram as críticas das Geisteswissenschaften que agora reaparece: o
historicismo ganhou novamente, mas com a aparência de uma enciclopédia dos
saberes para uso das mídias. O ser historicamente aberto tornou-se ser falante e
falastrão. O fim das Geisteswissenschaften transformou-se, ele mesmo, no triunfo
da tagarelagem.
Nesta nova síntese experiência/compreensão, sobre a qual reina o ‘pós-
moderno’, os mecanismos de perversão do ensino crítico, de Dilthey a Heidegger,
são perfeitamente perceptíveis. No grande Gadamer, como nos pequenos Rorty e
Vattimo, o movimento circular da experiência e do entendimento já não abre para
a historicidade, a não ser no sentido de um condicionamento histórico, substan-
cialmente, de uma finitude que, longe de abrir o ponto de vista subjetivo à consti-
tutividade, fecha-o na dispersão événementielle, numa necessidade de significado
que se enrosca nela mesma, numa concepção pessimista e totalizante do ser, que
tenta justificar-se no religioso, mas só encontra fundamento no vazio da mística
ou da democracia. Exalta-se em Dilthey o movimento circular experiência/enten-
dimento sem apreender a ruptura na expressão dessa circularidade; toma-se em
Heidegger a crítica da empiria, do ôntico, ao mesmo tempo evita-se cuidadosa-
mente sua percepção do fundamento potencial do ser que, já na retomada de York
e a polêmica contra seu teologismo, permitia restaurar o ponto de vista diltheyano
da expressão e criatividade da historicidade. Ao passo que é precisamente proce-
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II
Contrastando radicalmente com a atual deriva, os Mil Platôs reinventam
as ciências do espírito (lembrando que, na tradição à qual se filiam Deleuze e
Guattari, Geist61 é o cérebro), ao renovar o ponto de vista da historicidade, em sua
dimensão ontológica e constitutiva. Os Mil Platôs ultrapassam o pós-moderno e
as teorias da hermenêutica fraca: eles antecipam uma nova teoria de expressão,
um novo ponto de vista ontológico – instrumento que lhes permite atacar a pós-
modernidade, revelar e dinamitar suas estruturas. Trata-se de um pensamento for-
te, mesmo quando se aplica à ‘fraqueza’ do cotidiano. No que diz respeito a seu
projeto, trata-se de apreender o criado, do ponto de vista da criação. Este projeto
nada tem de idealista: a força criativa é um rizoma material que é ao mesmo tem-
po máquina e espírito, natureza e indivíduo, singularidade e multiplicidade – e
o cenário, é a história, do ano 10.000 aC. até hoje. O moderno e o pós-moderno
são ruminados e digeridos, e reaparecem para ajudar a fertilizar generosamente
uma hermenêutica do porvir. Ao reler Mil Platôs dez anos depois, o que mais
impressiona é a incrível capacidade de antecipação que ali se expressa. O desen-
volvimento da informática e da automatização, os novos fenômenos da sociedade
‘midiática’ e da interação comunicacional, os novos caminhos que as ciências
naturais e a tecnologia científica tomaram, na eletrônica, na biologia, na ecologia
etc. são não apenas considerados, mas também considerados como um horizonte
epistemológico; já não como mero tecido fenomenológico submetido a uma ex-
traordinária aceleração. Mas a superficialidade do contexto em que a dramaturgia
do futuro acontece é de fato ontológica – uma dura e irredutível superficialidade
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[espírito].
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Hecceidade, rastreado desde Duns Scott (sec. 13-14). Do latim haec, “isto” (pron.). Lá se
lê: “O que aí está em questão é aproximadamente o seguinte: o que explica o fato de que (por
exemplo), um clone de mim-mesmo não seja um instância de mim-mesmo, mas uma instância
da natureza humana? Resposta: a hecceidade; além de explicar a distinção, também explica a
não-instanciabilidade.” Ch.-Sanders Pierce também usa o mesmo termo, traduzido como this-
ness (do inglês this [isto/isso]), quando estuda a segundidade.
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Aproximadamente: o interesse pela natureza (zoon, gr.) [ainda] está integrado ao interesse
pel espírito.
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A ordem e a conexão das coisas está de acordo com a conexão das idéias. Spinoza. Etica. II,
prop. VII, G. 2, p. 89.
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Polemologia. Estudo da guerra como fenômeno social autônomo; análise de suas formas,
causas, efeitos etc. (Dicionário Houaiss, em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=-
polemologia&cod=151227).
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III
Se Mil Platôs edificam o terreno no qual é redefinido o materialismo do
século 21, Qu’est ce que la Philosophie? (1991), ensaio publicado por Deleuze-
Guattari em 1991 como apêndice a Mil Platôs, nos ilustra sobre este tema. A
sinergia de análises sobre a ciência, a filosofia e a arte que se desdobrava incan-
savelmente em Mil Platôs, com exuberância digna da matéria tratada, torna-se
aqui ilustração pedagógica, popularização dos mecanismos conceituais que estão
na base do processo expositivo de Mil Platôs. Neste ensaio, as funções meto-
dológicas, teóricas e práticas são delimitadas com máxima clareza. Talvez seja
possível identificar aqui (em Mil Platôs vistos mediante o ensaio pedagógico)
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Ver em K. Marx, Grundrisse der Kritik des politischen Ökonomie, Dietz Verlag, 1953, e A.
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O ambiente, o meio. (Nota de Tradução)
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[vivências, experiências]
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Scholium, plural scholia (Gr.: σχόλιον, “comentário”, uma espécie de “nota” posta à margem
dos manuscritos antigos, com comentários gramaticais, críticos ou explicativos, que tanto po-
dem ser originais quanto podem ter sido extraídos de outros autores.
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Referências
Antonio Negri, cientista social e filósofo, é autor, entre outras obras, de Império; Mul-
tidão (em parceria com Michael Hardt); Anomalia Selvagem – poder e potência em Spinoza; O
poder constituinte – ensaio sobre as alternativas da modernidade.