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LUGAR COMUM Nº23-24, pp.

95-112

Sobre Mil Platôs

Antonio Negri52

É em O Ser e o Tempo que Heidegger decreta o fim das Geisteswissens-


chaften e sua tradição (iluminismo e hegelianismo), quando, ao comentar a troca
53

de cartas54 entre Dilthey e Yorck von Wartenburg, rende homenagem ao último por
sua “acabada compreensão do caráter fundamental da história como virtualidade
“[…] (o que ele deve) ao conhecimento que tem do caráter do próprio Dasein55
humano”. Conseqüentemente, prossegue Heidegger, “o interesse de entender a
historialidade” enfrenta o desafio de elaborar “a diferença de gênero entre o ôntico
e o histórico”. Mas distanciar-se-á de Yorck quando este, depois de estabelecer
claramente esta diferença, desloca-se da virtualidade para o misticismo.
Se, ao contrário, depois de separada do ôntico, “a questão da historicidade
mostra-se ela mesma como questão ontológica que investiga a constituição do ser
do ser histórico”, é novamente em direção a Dilthey que temos que nos voltar, ape-
sar de seu confuso vitalismo. Heidegger realiza duas operações simultaneamente.
Por um lado, expulsa as Geisteswissenschaften da posição que ocupavam no centro
da metafísica, como herdeiras do Iluminismo e como saída do hegelianismo. Por
outro, completa o trabalho crítico que mostrou seu valor, precisamente, no histori-
cismo de Dilthey (apesar das limitações que Yorck assinalou) – trabalho crítico que
desdobra a busca pela significação da historicidade e permite que nos desloquemos
da teoria da objetividade para a teoria da expressão; do reconhecer a historiografia
no contexto da crítica do conhecimento, para defini-la no centro do esquematismo
transcendental. A historicidade é posta então como uma dimensão ontológica, e só
deixa para a historiografia seu resíduo ôntico (Negri, 1959, cap. 1-3).

52
Uma versão anterior deste ensaio apareceu na revista Chimères 17 (Paris, outono de 1992)
com o título “Sur Mille Plateaux”. Também foi publicado no Graduate Faculty Philosophy
Journal, v. 18, n. 2, 1995, em homenagem a Félix Guattari. Esta versão foi traduzida por Caia
Fittipaldi.
53
A tradução literal de Geisteswissenschaften é ciências do espírito (distinguindo-se das ciên-
cias da natureza, uma distinção defendida, entre outros autores, pelo filósofo e historiador
Wilhelm Dilthey), mas corresponde também ao que designamos em português como ciências
humanas (N. de R.).
54
Briefwechsel no original.
55
O “ser-aí”, o ser-no-mundo.
96 SOBRE MIL PLATÔS

É interessante observar que Heidegger rompe aqui (e este fenômeno é


recorrente em Heidegger) “com ambigüidade” o ritmo “destinal” de sua crítica ao
moderno e, ao mesmo tempo, paradoxalmente, traça um significado “outro” do
moderno – que reenvia àquela outra visão da modernidade que, de Maquiavel a
Spinoza e Nietzsche, apreende a historicidade como absoluta virtualidade, e o ser
como potência do Ser-aí. A virtù de Maquiavel se instala precisamente nesta di-
mensão. Mas, é sobretudo no Tratado Teológico Político (1670) de Spinoza que a
significação da história é vista como a realização de uma faculdade: a imaginação.
Nascida da confusão do primeiro tipo de conhecimento, dissolve-se criativamente
no segundo tipo, e apresenta a absoluta potencialidade da construção ética do ser.
É esse impulso do ser como a abertura da história, esta definição absolutamente
imanente de um significado da história que Heidegger retoma e fixa “com ambi-
güidade”. Nietzsche tinha compreendido sem qualquer ambigüidade este ponto
crítico fundamental que, ao mesmo tempo, cava o túmulo de todos os historicis-
mos e reivindica a abertura da historicidade constituindo-se no cerne de uma teo-
ria do ser intempestivo, virtual e criativo (Deleuze, 1962). A auto-ultrapassagem
do próprio tempo está em ato: é uma relação com a história que consiste numa
redenção, não como adoração do passado mas como consciência de que só a ten-
são entre o presente e o futuro é trama do possível, uma potência de decisão
ontológica. Assim falou Zaratustra:

Redimir os mortos e metamorfosear cada ‘foi’ em um ‘eu o queria assim’, só isto


poderia ser, para mim, chamado redenção. Vontade, este é o nome do libertador
e do que nos traz alegria; isto é o que lhes ensinei, meus amigos. Mas aprendam
também isto: que a própria vontade ainda é prisioneira. Querer liberta: mas
qual é o nome de quem põe as correntes ao próprio liberador? ‘O que Foi’, este
é o nome que faz a vontade rilhar os dentes, e é sua mais solitária aflição. Impo-
tente em referência a tudo o que aconteceu, olha o passado com ira. A vontade
não pode querer para trás: que ela não possa quebrar o tempo e sua avidez, eis
lá a mais secreta aflição da vontade […]. Que o tempo não retroceda, eis o que a
irrita; ‘foi’, esse é nome da pedra que ela não pode fazer rolar (Nietzsche, Assim
Falou Zaratrustra, “Da Redenção”, citado por Löwith, 1949, p. 310).

É esse “fazer rolar” que contém todo o significado da historicidade.


Voltemos a Dilthey. É em sua obra que, efetivamente, estão mais plena-
mente articuladas as tensões entre a investigação histórica e a exigência de que
se renove o questionamento sobre o significado da historicidade. É sobretudo em
sua obra que o trabalho de compreensão histórica procura identificar o seu próprio
terreno constitutivo que ele às vezes definiu, grosseiramente, como filosofia de
Antonio Negri 97

vida, como psicologia compreensiva etc. Obcecado com o problema da subjetivi-


dade histórica, Dilthey, durante toda sua investigação, faz o inventário de todas as
formas possíveis mediante as quais a ciência histórica pode, por assim dizer, abrir-
se para a historicidade. Desde as posições positivistas de sua Aula inaugural,
extremadamente crítica do caráter ‘eunuco’ da objetividade histórica, até a aguda
consciência em, Erlebnis und Dichtung56, de que “a história não é suscetível, de
nenhum modo, de constituir a suprema ciência acabada, capaz de dar conta, para
um dado jogo de fenômenos, das causas concomitantes, nem que se lhe atribua
um grau máximo de cientificidade”; desde o trabalho kantiano do Einleitug en Die
Geisteswissenschaften57 tenso entre a afirmação do próprio eu, (trata-se, pois, de
perceber, sem se deixar amarrar pelos preconceitos, a realidade da vida interior
e, começando desta realidade, determinar o que são a natureza e a história em
relação à vida interior) e uma concepção agora segmentada, fractal e difusa desse
mesmo eu (“o indivíduo singular é o ponto de conexão de uma pluralidade de
sistemas”), até a construção de tipologias históricas como proposta metodológica
para apreender ao mesmo tempo universalidade e singularidade; desde o retorno
à psicologia em os Ideen58, que aspira a dar uma consistência dinâmica e produ-
tiva ao sujeito histórico, e a descobrir nele a potência da Erlebnis59 (ao mesmo
tempo como vitalidade e conexão, como expressão e determinação objetiva), até
as últimas posições vitalistas nas quais o núcleo psicológico abre-se à função ex-
pressiva e determina-se numa presença que constitui a abertura ética: pois bem,
durante todo este inventário, as Geisteswissenschaften são concebidas, seja qual
for o caso, como crises e todos os caminhos críticos estão abertos à problemática
de uma historicidade que ainda não consegui definir-se. Essa indecisão de Dilthey,
este modo de converter-se em psicólogo ou filósofo da vida, que sempre o conduz
além de toda posição filosófica dada, ilumina a intensidade da passagem ontológi-
ca que ele realiza e que nos leva à beira da descoberta de um novo significado da
historicidade (Aron, 1950).
Por que este caminho diltheyano é tão importante? Porque, antecipan-
do as conclusões de Heidegger, explora também vias radicalmente outras e é só
depositando e afinando a significação dessas operações que a decisão ontológica

56
A vivência e a poesia (Nota de Tradução).
57
Introdução às ciências humanas, 1830 (Nota de Tradução).
58
Ideen über ein beschreibende und vergliedernde Psychologie [Idéias sobre uma psicologia
descritiva e analítica], 1894.
59
[existência, vivência].
98 SOBRE MIL PLATÔS

heideggeriana, a significação da historicidade como virtualidade, adquirem toda


a sua significação.
“Questionar nossa vontade de verdade; devolver ao discurso seu caráter
de evento; remover, por último, a soberania do significante”. Quando Foucault
anuncia este programa em sua Leçon Inaugurale60, também ele está no limite da
crítica da historiografia e das Geisteswissenschaften em geral; expressa a abertura
na virtualidade da história, que se constituiu como consciência filosófica entre
Dilthey e Heidegger. E Foucault, tal como Dilthey, havia passado por fases ex-
tremamente ambíguas ao longo de sua experiência científica. Desde seus estudos
de juventude sobre Ludwig Binswanger até os estudos de Weizäcker e, depois, os
estudos da “antropologia pragmática” de Kant, Foucault seguiu e esgotou todas as
tentativas de reafirmar o eu (em oposição à objetividade histórica) enquanto pes-
soa moral, psicológica ou biológica (Negri, 1982, p. 70 e seguintes). Quando en-
fim, sobretudo nos trabalhos da maturidade, enfrentou definitivamente o tema da
historicidade como agencement, o marco já estava fixado – a história é produção
de subjetividade, cuidado de si, expressão ontológica imediata e direta. Como em
Dilthey, porém mais do que em Dilthey, as experimentações transitórias, psicolo-
gizantes, culturais, vitalistas da compreensão do real histórico são transfiguradas
dentro de um novo ponto de vista: o da presença do mundo como a trama do ser
que deve ser percorrido, que é a todo momento criado. Como em Dilthey, a pas-
sagem se realiza, em Foucault, desde uma teoria da história, até uma apercepção
fundamental da historicidade – depois de Heidegger, isto é, depois que a consci-
ência dessa tem sido estabelecida pela perspectiva nietzschiana. É neste percurso,
mediante esses sucessivos avanços que ocultam problemas e discursos análogos,
que Dilthey é retomado e, por assim dizer, posto no próprio lugar da invenção da
historicidade, onde a ação histórica torna-se a única perspectiva segundo a qual se
pode interpretar o ser. O fim das Geisteswissenschaften é a renovação da ontolo-
gia (Deleuze, Foucault, 1987).
Contudo, este grandioso projeto não teve um grande sucesso na histó-
ria do pensamento contemporâneo. Assistimos a um estranho fenômeno: dessas
Geisteswissenschaften, que certamente não sobreviveram ao prolongado processo
crítico que vai de Nietzsche a Heidegger, de Dilthey a Foucault, não se encontra
o cadáver em lugar nenhum. De fato, a renovação crítica da pesquisa sobre a
historicidade desde o ponto de vista constitutivo, o descobrimento da potência
do ser, foram, por assim dizer, neutralizados no interior de novas disciplinas, no-
vas distribuições do saber, novos conceitos de experiência e de um novo clima

60
Collège de France, 2/12/1970.
Antonio Negri 99

filosófico, que se tornou cada vez mais relativista e cético. Um vitalismo tênue e
superficial bloqueou esse outro vitalismo, túrgido mas sempre trágico, que ia da
historiografia ao ser, para abrir-se novamente na historicidade. Uma vez derruba-
do o ponto de vista historiográfico objetivamente ‘eunuco’, uma vez abandonado
o hegelianismo em todas as suas entusiastas ressurgências de efectualidade bruta
e a dialéticas em todos os seus subterfúgios, uma vez adquirida esta visão ‘desde
baixo’ que permite ao sujeito histórico de determinar agencements ontológicos,
pois bem, esta perspectiva viu-se novamente reduzida ao horizonte do relativismo
e do ceticismo. As diferentes escolas hermenêuticas que se sucedem, e que pre-
cisamente pretendem ser as herdeiras do pensamento Diltheyano e Foucaltiano,
nos levaram às delícias do ‘pensamento fraco’. A significação da complexida-
de dos processos que emanam dos sujeitos históricos converteu-se em pretexto
para repudiar o caráter ontologicamente forte de sua emergência. O movimento
de constituição, negado à totalidade, foi, por esta mesma razão, reduzido à pre-
cariedade, e as singularidades reduzidas ao encanto da particularidade nua. Do
fim do historicismo, passamos assim, imperceptivelmente mas seguramemte, à
determinação do ‘fim da história’. É essa mesma objetividade ‘eunuco’ contra
a qual se ergueram as críticas das Geisteswissenschaften que agora reaparece: o
historicismo ganhou novamente, mas com a aparência de uma enciclopédia dos
saberes para uso das mídias. O ser historicamente aberto tornou-se ser falante e
falastrão. O fim das Geisteswissenschaften transformou-se, ele mesmo, no triunfo
da tagarelagem.
Nesta nova síntese experiência/compreensão, sobre a qual reina o ‘pós-
moderno’, os mecanismos de perversão do ensino crítico, de Dilthey a Heidegger,
são perfeitamente perceptíveis. No grande Gadamer, como nos pequenos Rorty e
Vattimo, o movimento circular da experiência e do entendimento já não abre para
a historicidade, a não ser no sentido de um condicionamento histórico, substan-
cialmente, de uma finitude que, longe de abrir o ponto de vista subjetivo à consti-
tutividade, fecha-o na dispersão événementielle, numa necessidade de significado
que se enrosca nela mesma, numa concepção pessimista e totalizante do ser, que
tenta justificar-se no religioso, mas só encontra fundamento no vazio da mística
ou da democracia. Exalta-se em Dilthey o movimento circular experiência/enten-
dimento sem apreender a ruptura na expressão dessa circularidade; toma-se em
Heidegger a crítica da empiria, do ôntico, ao mesmo tempo evita-se cuidadosa-
mente sua percepção do fundamento potencial do ser que, já na retomada de York
e a polêmica contra seu teologismo, permitia restaurar o ponto de vista diltheyano
da expressão e criatividade da historicidade. Ao passo que é precisamente proce-
100 SOBRE MIL PLATÔS

dendo à crítica do ôntico, com as armas da apercepção ontológica, como base da


crítica histórica, como quando se abre à fecundidade de sua experiência, como
experiência da historicidade, que Heidegger nos mostra o melhor dele mesmo. É
esse Heidegger que conscientemente retoma o Nietzsche esquecido, que incons-
cientemente reproduz o Spinozismo da imaginação que é então jogado para o
brejo. A história terminou, nos sussurram os hermeneutas e os pós-modernos, e
a historicidade do ser, separada da constitutividade do ser, converte-se em uma
‘pietas’ açucarada e melancólica. O descobrimento da historicidade padece então
o desastroso sentimento de fim da história... e nos deixa desarmados diante do
limite de uma época (Pierre Macherey, 1992).

II
Contrastando radicalmente com a atual deriva, os Mil Platôs reinventam
as ciências do espírito (lembrando que, na tradição à qual se filiam Deleuze e
Guattari, Geist61 é o cérebro), ao renovar o ponto de vista da historicidade, em sua
dimensão ontológica e constitutiva. Os Mil Platôs ultrapassam o pós-moderno e
as teorias da hermenêutica fraca: eles antecipam uma nova teoria de expressão,
um novo ponto de vista ontológico – instrumento que lhes permite atacar a pós-
modernidade, revelar e dinamitar suas estruturas. Trata-se de um pensamento for-
te, mesmo quando se aplica à ‘fraqueza’ do cotidiano. No que diz respeito a seu
projeto, trata-se de apreender o criado, do ponto de vista da criação. Este projeto
nada tem de idealista: a força criativa é um rizoma material que é ao mesmo tem-
po máquina e espírito, natureza e indivíduo, singularidade e multiplicidade – e
o cenário, é a história, do ano 10.000 aC. até hoje. O moderno e o pós-moderno
são ruminados e digeridos, e reaparecem para ajudar a fertilizar generosamente
uma hermenêutica do porvir. Ao reler Mil Platôs dez anos depois, o que mais
impressiona é a incrível capacidade de antecipação que ali se expressa. O desen-
volvimento da informática e da automatização, os novos fenômenos da sociedade
‘midiática’ e da interação comunicacional, os novos caminhos que as ciências
naturais e a tecnologia científica tomaram, na eletrônica, na biologia, na ecologia
etc. são não apenas considerados, mas também considerados como um horizonte
epistemológico; já não como mero tecido fenomenológico submetido a uma ex-
traordinária aceleração. Mas a superficialidade do contexto em que a dramaturgia
do futuro acontece é de fato ontológica – uma dura e irredutível superficialidade

61
[espírito].
Antonio Negri 101

que é, precisamente ontológica e não transcendental, constitutiva e não sistêmica,


criativa e não liberal.
Em Mil Platôs, podemos tentar entrever pelo menos quatro temas funda-
mentais. O primeiro é a teoria da expressão e dos ‘agenciamentos’. O segundo é
a teoria das “redes”. O terceiro é a ‘nomadologia’. O quarto é a teoria ontológica
da superfície. Quatro pontos, quatro dimensões que integram o trabalho de cons-
tituição das novas ciências do espírito, ao definir o plano em que elas poderão
se desenvolver, como produtos de uma abertura da possibilidade, ou, melhor, da
potencialidade do ser.
A – A teoria da expressão e dos ‘agenciamentos’, é a filosofia primeira
de Deleuze e Guattari. Na crítica feita à psicanálise, em especial em O Anti-édipo
(1970), foi identificado este plano de força. A força da expressão é ontológica,
criativa e estruturada. Isto significa que o ponto de vista da singularidade é ime-
diatamente conjugado com uma definição do espaço em extensão, segundo a ima-
gem Bergsoniana do movimento aberto e estruturante. A singularidade, individual
ou coletiva, a determinação da relação ator/evento são postos em movimento. A
hecceidade62, definida pelo primeiro Deleuze como o termo problemático funda-
mental da história da filosofia, é originariamente ativa e desdobra-se segundo as
dimensões do movimento, mediante um faisceau de desejos ou elementos ma-
quínicos. A força inicial é subjetiva e construtiva; ela é ‘agenciamento’, termo
que significa: expressão mais organização; ou ainda expressão organizada, força,
extensão, movimento organizados. O ser da mesma maneira que a história são
concebidos como produção e produto de ‘agenciamentos’ subjetivos. O mundo é
construído e reconstruído de baixo para cima. A historicidade é dada como pre-
sença. Nesta articulação, convergem ao mesmo tempo uma definição metafísica
de movimento ou uma boa fenomenologia Bergsoniana do espaço, a liberação do
desejo, em sentido analítico, como potencialidade universal, aberta e singular;
e enfim uma concepção ética da singularidade, naquele sentido Spinoziano que
tanto agrada a Deleuze. O marco geral parece, numa primeira abordagem, ani-

62
Hecceidade, rastreado desde Duns Scott (sec. 13-14). Do latim haec, “isto” (pron.). Lá se
lê: “O que aí está em questão é aproximadamente o seguinte: o que explica o fato de que (por
exemplo), um clone de mim-mesmo não seja um instância de mim-mesmo, mas uma instância
da natureza humana? Resposta: a hecceidade; além de explicar a distinção, também explica a
não-instanciabilidade.” Ch.-Sanders Pierce também usa o mesmo termo, traduzido como this-
ness (do inglês this [isto/isso]), quando estuda a segundidade.
102 SOBRE MIL PLATÔS

mista, hilozooísta63, pré-Socrático. Mas o vitalismo é invertido desde o momento


mesmo em que é afirmado: pois ele não se apresenta nem como ‘invólucro’ do
real, nem como concepção do mundo, nem como força indistinta da produção do
real, seja natural ou histórico, mas como todos estes elementos ao mesmo tempo
postos a serviço da produção de singularidade, da emergência da singularidade.
As persistentes (embora convergentes) contradições entre as pesquisas de Dil-
they, Nietzsche e Heidegger (embora convergentes) são aqui dissolvidas. Se o ser
é historicidade, a ontologia pode ser devolvida à instância de produção, àquele
momento da expressão originária. A partir dali, expressão e produção abrem-se
para a materialidade do moderno. A relação homem/máquina, que caracteriza a
modernidade, torna-se conteúdo e forma do agenciamento subjetiva. As máqui-
nas, a realidade construída pelo capitalismo, não são fantasmas de modernidade
atrás dos quais a vida pode correr restando incólume – são, muito pelo contrário,
as formas concretas segundo as quais se organiza a vida, se transforma o mundo,
são as conexões materiais dentro das quais se produz a subjetividade. Ordo et con-
nexio rerum idem est acordo et connexio idearum64. Contudo, a relação homem/
máquina é sempre um evento singular, quer dizer um evento que, apropriando-se
a materialidade, produz a subjetividade. A construção do ser como tarefa univer-
sal é, deste modo, considerada na base do processo em sua integralidade ou, se
preferirmos, como procedente tanto de eventos como de singularidades. O evento
é a produção dos corpos, a produção histórica do conjunto dos corpos e suas re-
lações. A cosmogonia atomística de Spinoza é aqui reinterpretada e reformulada
à luz deste vitalismo da historicidade que os grandes modernos nos ensinaram. A
produção dos corpos é a produção da historicidade; a historicidade é a produção
de corpos. Em uma página de Mil Platôs encontra-se esta pergunta fundamental:
“Depois de tudo, o grande livro sobre o corpo sem órgãos (CSO) não seria a
Ética?”(Deleuze e Guattari, 1980, p. 190-191), e isso explicando que o CSO é o
campo de imanência absoluta do desejo, o plano de consistência próprio da his-
toricidade. O mundo tem uma matriz zero enquanto não se apreende o processo
de constituição de subjetividade, e não se segue a infinita tensão da constituição
(ibidem, cap. 6).
B – A teoria das redes. Pode-se seguir o ritmo de constituição mediante
uma segunda abordagem, que a da teoria das ‘redes’. Depois de ter estabelecido

63
Aproximadamente: o interesse pela natureza (zoon, gr.) [ainda] está integrado ao interesse
pel espírito.
64
A ordem e a conexão das coisas está de acordo com a conexão das idéias. Spinoza. Etica. II,
prop. VII, G. 2, p. 89.
Antonio Negri 103

a instância da produção na força do desejo e seu processo maquínico, Deleuze-


Guattari passam à análise da extensão [étendue], de sua expansão em ato e de seu
movimento. O que caracteriza esse espaço é o rizoma. O rizoma é uma força, um
phylum que abre a um horizonte de indomável arborescência – e, neste processo,
a singularidade singulariza-se cada vez mais. Ao mesmo tempo, na riqueza desta
produção de singularidades, o contexto de vida apresenta-se como um conjunto
de interrelações - unidade e multiplicidade, conexões e heterogeneidade, rupturas
e linhas de fuga se invertem segundo uma cartografia incessantemente renovada,
formando sempre novos sistemas, não auto-centrados mas em expansão. É a partir
daí que as ciências do espírito podem começar a se reorganizar, quer dizer quando
as tensões rizomáticas e aos agenciamentos maquínicos aparecem como agencia-
mentos subjetivos de enunciação – as dinâmicas constitutivas deslocam-se então
da física do rizoma para o regime de signos que caracteriza a ciência. A superfície
do mundo se organiza segundo regimes de signos, sem dispersar sua consistência
maquínica, mas renovando-a na enunciação. Existe, pois, uma rede das ciências do
espírito: ali, a rizomática retroage na esquizo-análise, essa para a estrato-análise e
em seguida à pragmática e à micropolítica. Já analisamos a relação entre esquizo-
análise e rizomático na parte A desta seção; trata-se agora é estudar sua relação
com os outros pontos. Primeiramente, no que concerne à estrato-análise: a ciência
estabelece-se no horizonte sistêmico construído pela arborescência do rizoma, e
descobre sua conflitualidade. O próprio sistema constitui uma arborescência, o
conflito sairá da orientação de seus ramos: um conflito que não poderá ser reas-
sumido, simplificado ou reduzido, no sistema, mas que se repete continuamente
como a regra de autoconstituição das redes reais. O ponto de vista da historicidade
não é apenas constitutivo, ele é também conflitivo: como em Spinoza, é a guerra
que gera vida. As redes constituem aberturas e agenciamentos ambíguas: abrem-
se, fecham-se e novamente se abrem, enquanto determinam conflitos. Cada ponto
da arborescência maquínica ou enunciativa se reabre seqüencialmente em outras
arborescências, outras redes, tanto por cima como por baixo, de acordo com mo-
dalidades conflitivas. Estamos assim completamente inseridos e submersos num
conjunto de sistemas produtores de signos em mutação permanente: é disso que
se preocupa a ciência do espírito. A própria dimensão epistemológica encontra-se
num horizonte de guerra. A segmentação dos traços de enunciação (expressivos)
é contínua. É devir do real e da ciência, é a resultante de todos estes processos. O
devir é a resultante inovadora no magma da expressão, é, em alguma maneira, a
solução da guerra e, por isto mesmo, a reabertura de cenas conflitivas. A rizomá-
tica refere-se a um mundo hobbesiano – no qual contudo não são os indivíduos
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proprietários mas (de maneira spinozista) as singularidades produtivas, desejan-


tes, individuais ou coletivas, que são as protagonistas. As ciências do espírito são
pois ciências polemológicas65, análises das redes de protagonistas que participam
do conflito e nele se constituem – elas aceitam, sem nenhuma reserva, o terreno
do questionamento nietzscheano.
C – A nomadologia. Pragmatismo e micropolítica constituem-se na no-
madologia. Isto significa que o horizonte da guerra está limitado por potências
pragmáticas. O mundo histórico, constituído em geologia da ação, emana a partir
de uma genealogia de moral, no sentido literal do termo, incansável, incessante.
Produzidas por arborescências conflitivas, as subjetividades são nômades, quer
dizer livres e dinâmicas. Como sabemos, as subjetividades organizam-se median-
te agenciamentos maquínicos – portanto como máquinas de guerra. As máquinas
de guerra representam o tecido molecular do universo humano. A ética, a política
e as ciências do espírito tornam-se aqui uma única e mesma coisa: as máquinas
de guerra interpretam seu projeto, constituem o mundo humano ao realizar a dis-
criminação entre desejo e antidesejo, entre liberdade e necessidade. Trata-se no-
vamente de rizomas e arborescências – mas dotados de significação. É a escolha
na guerra que determina a significação da historicidade. Mas o que é significação
neste horizonte completamente imanente, neste cenário absolutamente não-tele-
ológico? É a expressão do desejo, a enunciação e a organização do desejo como
evento, como discriminação vis à vis qualquer transcendência, como hostilidade
a qualquer bloqueio do devir. Politicamente, a máquina de guerra define-se como
positividade porque ela se põe contra o Estado. Deleuze-Guattari reinventam as
ciências do espírito, à medida que atacam os últimos vestígios do historicismo,
do hegelianismo e sua concepção de um espírito objetivo que se sublima no
Estado. Diante ao Estado, em particular diante ao Estado do capitalismo madu-
ro, a ordem molecular organiza espontaneamente um dispositivo molar, torna-se
necessariamente um contrapoder: a sociedade contra o Estado ou, melhor, muito
melhor, o conjunto de subjetividades desejantes e suas infinitas arborescências,
no ritmo nômade de suas aparições, contra tofa máquina fixa, centralizadora e
castradora.
Na realidade, só podemos apreender e apreciar a subjetividade e o sig-
nificado da historicidade de um ponto de vista pragmático. O ponto de vista que
sustenta a nomadologia é uma verdadeira ‘filosofia da práxis’. Ser nômade na

65
Polemologia. Estudo da guerra como fenômeno social autônomo; análise de suas formas,
causas, efeitos etc. (Dicionário Houaiss, em http://houaiss.uol.com.br/busca.jhtm?verbete=-
polemologia&cod=151227).
Antonio Negri 105

ordem da história produzida e fixada, significa produzir permanentemente estes


agenciamentos maquínicos e de enunciação, que abrem em novas arborescências
rizomáticas, que, pura e simplesmente, constituem o real. Assim a política passa
a ser implementação de micro-agenciamentos, construção de redes moleculares
que permitem ao desejo de se desdobrar e, mediante um movimento permanente,
fazem dele a matéria do pragmatismo. A pragmática na micro-política e da micro-
política é o único ponto de vista operatório da historicidade: pragmática como
práxis do desejo, micro-política como terreno da subjetividade, incessantemente
percorrida e para ser percorrida, indefinidamente. Esta alternância de pontos de
vista e esta convergência de determinações construtivas nunca descansam. O ob-
jetivo da ordem molar é absorver a força do desejo e re-moldar os dispositivos
com o único objetivo de bloquear o fluxo pragmático do molecular: o molar é, por
definição, o obstáculo ontológico do molecular. Ao contrário, o fluxo molecular
é indomável, busca permanentemente transformar os dispositivos de bloqueio e
abrir o caminho para a historicidade. Mas o que é a revolução? É fazer desse pro-
cesso infinito um evento. A linha política de Mil Platôs é aquela que leva o dispo-
sitivo moleculares dos desejos a resistir à ordem molar, a evitá-la, a contorna-la, a
fugir-lhe. O Estado não se reforma nem se destrói: a única maneira de destrui-lo é
de fugir a ele. Uma linha de fuga, organizada pela criatividade do desejo, pelo in-
finito movimento molecular dos sujeitos, por uma pragmática reinventada a cada
instante. A revolução é o evento ontológico da recusa e atualização de sua infinita
potencialidade.
D – O marco ontológico geral. A partir deste conjunto de considerações
que deram origem a uma visão constitutiva do mundo, cuja genealogia é a trama
de toda subjetividade e todo evento, podemos agora voltar atrás e re-examinar
o marco ontológico geral que os Mil Platôs nos oferecem. Mil platôs de uma
mesma superfície. Uma superfície plena de fendas, de rupturas, de construções e
reconstruções: um território permanentemente ligado e dobrado. Uma única di-
reção, uma única teleologia: a crescente abstração das relações que acompanha a
complexidade das arborescências, o desenvolvimento dos rizomas e a expansão
dos conflitos. Uma abstração que é ela mesma um território, um novo território,
novamente coberto de dobras, sombras variadas e alternativas possíveis. A potên-
cia do desejo fez-se superfície de um território, e a transformação repete-se inde-
finidamente. Este novo território é sempre produtivo, infinitamente produtivo. É
por essa razão que o mundo é um território que deve ser sempre territorializado,
ocupado, reconstruído, habitado; uma tensão que só a intensidade de uma ação
criativa múltipla pode satisfazer. Nesta visão, a relação entre máquina e enuncia-
106 SOBRE MIL PLATÔS

ção, entre ciência e ontologia, é global. A ciência é constitutiva na medida que


ela é decalque, que ela imita o real: ela mergulha nele para construir-lo. A ciência
constrói planos de consistência ontológica cada vez que o conjunto das funções
de enunciação torna-se objeto de uma pragmática, ou ainda se realiza no evento;
numa determinação. A subjetividade também apresenta-se na superfície, como
dobra da superfície. Mas nós sabemos o que supõe a leveza do evento tão forte
que é a produção de subjetividade: o agenciamento maquínico, o atravessamento
do conflito, a enunciação do projeto, a expressão do desejo, a realização do infi-
nito no evento. É um novo mundo que aqui é descrito. Se cada filosofia assume
e determina sua própria fenomenologia, aqui se afirma energicamente uma nova
fenomenologia. Está se caracteriza pelo processo que devolve o mundo à produ-
ção, a produção de subjetividade, a subjetividade à potência do desejo, a potência
do desejo ao sistema de enunciação, a enunciação à expressão. E vice-versa. É por
dentro da linha traçada pelo “vice-versa”, quer dizer, subindo da expressão subje-
tiva para a superfície do mundo, em direção a historicidade em ato, que se revela
a significação do processo (ou, outra vez, a única teleologia que a imanência abso-
luta pode permitir-se): o significação do processo é o da abstração. O sujeito que
produz o mundo, na horizontalidade alargada de suas projeções, realiza cada vez
mais ele mesmo sua própria realização. À primeira vista, o horizonte do mundo
construído por Deleuze-Guattari parece ser animista: mas logo se aparece que este
animismo traduz a mais alta abstração, o incessante processo dos agenciamentos
maquínicos e das subjetividades se eleva a uma abstração cada vez maior. Neste
mundo de cavernas, de dobras, de rupturas e de reconstruções, o cérebro humano
tenta compreender antes de mais nada sua própria transformação, seu próprio
deslocamento, além da conflitividade, onde reina a mais elevada abstração. Mas
esta abstração é novamente desejo.

III
Se Mil Platôs edificam o terreno no qual é redefinido o materialismo do
século 21, Qu’est ce que la Philosophie? (1991), ensaio publicado por Deleuze-
Guattari em 1991 como apêndice a Mil Platôs, nos ilustra sobre este tema. A
sinergia de análises sobre a ciência, a filosofia e a arte que se desdobrava incan-
savelmente em Mil Platôs, com exuberância digna da matéria tratada, torna-se
aqui ilustração pedagógica, popularização dos mecanismos conceituais que estão
na base do processo expositivo de Mil Platôs. Neste ensaio, as funções meto-
dológicas, teóricas e práticas são delimitadas com máxima clareza. Talvez seja
possível identificar aqui (em Mil Platôs vistos mediante o ensaio pedagógico)
Antonio Negri 107

os elementos fundamentais de renovação do materialismo histórico, em função


das novas dimensões do desenvolvimento capitalista, quer dizer, esse plano de
máxima abstração (a ‘subsunção real’ da sociedade no capital) à qual conduz e
no qual se reformulam hoje as lutas sociais. Isto sem esquecer que na filosofia
das ciências do espírito de Deleuze-Guattari, assim como no materialismo his-
tórico, encontra-se a mesma exigência ética e política de liberação da potência
humana. Qual é, então, o contexto produtivo no qual nos movemos e a partir do
qual pode e deve ser renovado o materialismo histórico como base das ciências
do espírito?
Mil Platôs dão uma resposta explícita a esta pergunta. Mediante a exten-
são e a complexidade das análises que desenvolvem, os autores esboçam o próprio
plano que Marx identificava tendencialmente no “Fragmento sobre as Máquinas”
dos Grundrisse e que definia como a sociedade do “General Intellect”66. Trata-se
de um plano no qual a interação homem/máquina, sociedade e capital, tornou-se
tão estreita que a exploração do trabalho assalariado, material e temporalmente
quantificável, devem caduca; incapaz de determinar uma valorização, base mi-
serável de exploração diante da potência das novas forças sociais, intelectuais
e científicas sobre as quais, doravante, repousa hoje exclusivamente a produção
das riquezas e a reprodução da sociedade. Os Mil Platôs registram a realização
da tendência analisada por Marx, e desenvolvem o materialismo histórico dentro
desta nova sociedade. Tentam, portanto, construir este novo sujeito que revela
a potência do trabalho, tanto social como intelectual e científico. Um sujeito-
máquina que é também um sujeito ético; um sujeito intelectual que também é um
corpo; um sujeito desejante, que também é força produtiva; um sujeito plural e
disseminado, que contudo se unifica na pulsão constitutiva do novo ser. E vice-
versa, em todos os sentidos.
O que é fundamental aqui é o deslocamento completo da valorização
da produção, na passagem da esfera da exploração material direta para aquela
da dominação política (sobre a cooperação social, entre o desenvolvimento da
subjetividade coletiva e a potência da produção intelectual e científica). Neste
deslocamento, a interatividade social fica submetida à contradição molar da do-
minação, ela também é explorada: mas o antagonismo é elevado ao nível máximo,
ele atua mediante uma implicação paradoxal do sujeito explorado. Confrontando
as análises foucaltianas do poder, Deleuze enfatiza a passagem da “sociedade dis-
ciplinar” à “sociedade de controle”, característica fundamental da forma-Estado

Ver em K. Marx, Grundrisse der Kritik des politischen Ökonomie, Dietz Verlag, 1953, e A.
66

Negri, Marx au-delà de Marx, C. Bourgois, 1979.


108 SOBRE MIL PLATÔS

contemporânea (Deleuze, 1990, “Post-scriptum sobre as sociedades de controle”).


Hoje, neste marco – aquele ao qual os Mil Platôs remetem – a dominação, em-
bora permaneça o tempo todo, é tão abstrata quanto parasitária e vazia. Levado
a seu máximo grau, o antagonismo, por assim dizer, esvaziou-se, o ‘comando
social’ tornou-se inútil. O controle da sociedade produtiva é imediatamente uma
mistificação: já não tem sequer a dignidade que função de organização detinha,
co-natural de algum modo a figura do explorador, na sociedade e na forma-Estado
disciplinares. Se as coisas são assim, o trabalho produtivo do novo sujeito social
é imediatamente revolucionário, sempre libertador e inovador. É nessas bases que
o materialismo histórico é renovado, implicitamente, na fenomenologia dos Mil
Platôs, explicitamente, na metodologia elaborada em O que é a filosofia? Antes
de tudo, o materialismo histórico como ciência. O ensaio nos diz que a atividade
científica se forma a partir de “observadores parciais” que assemblam “funções”
em “planos de referência”. O materialismo histórico pode ser mais do que pro-
mover o “ponto de vista proletário” e fazer da critica das contradições o plano de
referência? Pode ser outra coisa que o descolamento de um sujeito parcial no seio
de uma tendência que traduz materialmente uma trama de leitura do real? Ou seja,
em nosso caso, do desenvolvimento capitalista como referente global do conjunto
das contradições que determinam o movimento do trabalho abstrato? Plano de
referência: é novamente o mundo da subsunção real, da completa submissão da
sociedade ao capital. O trabalho: é rizoma que produz o real, que é o passar da
ordem molecular à ordem molar, no curso do desenvolvimento, que atravessa ir-
resistivelmente a guerra e que, na guerra, define a liberação. O plano de referência
é o Umwelt67 do trabalho social e suas contradições.
O lugar da filosofia é ali – enquanto ela é pragmática, ética e política. O
“observador parcial” torna-se aqui o “personagem conceitual” da filosofia. Este
personagem conceitual pode ser diferente da nova figura do proletariado, o “Ge-
neral Intellect” como subversão – ou seja, uma nova figura do proletariado que
é tanto mais reunificada como potência social e intelectual da produção, quanto
ele é difuso no espaço (uma “multidão” spinoziana, no literal sentido do termo)?
A filosofia de Deleuze-Guattari imita a nova realidade do proletariado moderno,
define as figuras de sua necessária subversão. Por um lado, então, o personagem
conceitual duplica o real, fá-lo aparecer no seu dinamismo conflitivo e na realiza-
ção de seu movimento tendencial. Por outro lado, apresentando-se a como desejo,
como produção utópica indomável, o personagem conceitual proletário promove
uma ruptura impiedosa e permanente de todas as referências materiais a que está

67
O ambiente, o meio. (Nota de Tradução)
Antonio Negri 109

subordinado. O “plano de imanência” que a filosofia constrói é um projeto in-


surrecional permanente, efetivado mediante um sobrevôo absoluto do real, pela
intempestividade radical do contacto entre a ordem molecular e a ordem molar,
pela atual inatualidade atual da resistência.
A Arte (porque também há uma arte do pensamento revolucionário) co-
labora nesta dinâmica da transformação e subversão do conceito, de modo es-
sencial: compondo os diferentes planos do imaginário e referindo-os, sempre, à
urgência da práxis.
O esquema didático de O que é a filosofia? traz à luz os fios fenomeno-
logicamente construídos nos dionisíacos Mil Platôs. Mas, com qual riqueza! O
que quero dizer é que a aproximação das duas obras não é em nenhum caso uma
identificação, como se a segunda fosse um capítulo da primeira. Ao contrário,
trata-se de marcar as diferenças, que são todas à vantagem de Mil Platôs. Pois Mil
Platôs (apesar da redução funcional que fiz nesta demonstração) não constituem
apenas uma fenomenologia, extraordinariamente rica, do personagem conceitual
do “General Intellect” – meio máquina, meio sujeito, inteiramente máquina, in-
teiramente sujeito. Os Mil Platôs constituem também uma experiência revolu-
cionária. Os anos do desejo e dos Erlebnisse68 de “mudar a vida” que seguiram
1968, são ali recolhidos por meio da re-exposição dessa extraordinária casuística
que só os grandes episódios revolucionários sabem propor. Diz-se que não existe
livro que re-traduza o 1968: não é verdade! Esse livro é Mil Platôs. Mil Platôs
é o materialismo histórico em ato de nossa época, é o equivalente de Luta de
Classes na Alemanha e França, de Marx. Se o texto nunca termina, se jamais se
satisfaz com conclusões definitivas, é porque (como no que lhe é equivalente no
pensamento marxiano) traz à luz um sujeito novo, cujo mecanismo de formação
ainda não se completou, mas que já ganhou consistência na pluralidade de micro e
macro experimentos que foram feitos, experimentos ético-políticos de todo modo
significativos. Mil Platôs é a pulsão de um corpo coletivo, de mil corpos singula-
res. O político que se expressa aqui é a do comunismo da “multidão” spinoziana,
o da devastadora mobilidade de sujeitos no recém constituído mercado mundial,
o da democracia mais radical (a de todos os sujeitos, inclusive os loucos), dirigida
como arma contra o Estado, este grande organizador da exploração dos operários,
do disciplinamento dos loucos, do controle do “General Intellect”. Os Mil Platôs
referem-se explicitamente às lutas sociais difusas e autônomas de mulheres, jo-
vens, trabalhadores, homossexuais, marginais, imigrantes... em uma perspectiva
na qual já caíram todos os muros. Essa riqueza do movimento compõe o marco

68
[vivências, experiências]
110 SOBRE MIL PLATÔS

dentro do qual, de agora em diante, o ponto de vista científico e a construção


definitiva do conceito são possíveis. O conceito é, pois, um evento e o sistema de
conceitos é a fratura da geologia da ação, mediante uma genealogia de evento-
desejo.
Dessa maneira, estão reunidas as condições da reconstrução das Geis-
teswissenschaften na perspectiva de uma teoria da expressão e no contexto de
uma historicidade que é, ao mesmo tempo, o movimento real do ser e o ponto
incidente do sujeito. Um único exemplo: o tratamento que Mil Platôs e O que é a
filosofia? dão à história da filosofia e as hipóteses metodológicas ali desenvolvi-
das. A continuidade historiográfica da história da filosofia dissolve-se, junto com
sua teleologia ôntica – a historicidade filosófica é assim tratada como historici-
dade tout court, entendida como enfrentamento singular entre o pensamento e a
problemática atual do ser. A própria história da filosofia só pode ser entendida, só
pode ser reconstruída, como evento, como intempestividade, como inatualidade
presente. A filosofia sempre é um “scholium”69 spinozano do desdobramento do
real. O esquema das ciências do espírito será, portanto, sempre horizontal, articu-
lado ao evento, interdisciplinar, estratificado pelas interrelações de seus múltiplos
elementos. Mas onde está o passado ou o que ele nos produziu? De fato, ao rizoma
do presente e da criatividade opõem-se os phylums maquínicos, que são ao mes-
mo tempo resultados e resíduos do passado. Mas a ciência do espírito nasce onde
esses phylums maquínicos são consumidos na determinação de uma nova criação,
de um novo evento. As determinações materiais, suas acumulações, o fundo opa-
co do passado constituem um conjunto morto que só o trabalho vivo vivifica e
que as máquinas da subjetividade re-inventam. Quando isto não acontece, o pas-
sado está morto e é mesmo nossa prisão. Os Mil Platôs são a teoria materialista do
trabalho social, entendido como o evento criativo dos mil sujeitos que se abrem à
realidade presente, com base em um condicionamento maquínico produzido por
este mesmo trabalho, e que só o trabalho vivo e real pode valorizar novamente.
Em um vitalismo assim revisado, onde a teoria da expressão e a ima-
nência absoluta são as bases da reconstrução das ciências do espírito, o que nos
permite, nesse horizonte, não entrar novamente no impasse do ceticismo ou de
uma qualquer leituras fraca do valor ? Nada mais distante dos Mil Platôs do que a
tentação de absolutizar alguns elementos do processo interno para evitar desvios
relativistas. Porém, o que permite às ciências do espírito de renascer e renovar a

69
Scholium, plural scholia (Gr.: σχόλιον, “comentário”, uma espécie de “nota” posta à margem
dos manuscritos antigos, com comentários gramaticais, críticos ou explicativos, que tanto po-
dem ser originais quanto podem ter sido extraídos de outros autores.
Antonio Negri 111

potência lógica e ética do materialismo são o conceito de superfície, a ontologia


aberta à historicidade, tomados como subjetividade presente. Voltemos atrás, por
um momento: quando Heidegger põe como inevitável a inversão do ôntico em
ontologia, da historiografia em historicidade, ao mesmo tempo ele faz dessa in-
versão, da ruptura lógica, da recusa do destino a única significação do existente. A
operação heideggeriana constitui um bloqueio da vida. Ela empurra até o extremo
a démarche metafísica em direção a uma meta. Heidegger é Jó, que vê Deus e
fica cego. Em Mil Platôs, ao contrário, ver Deus, no sentido spinozista, é fazer
outra vez a reversão ontológica do ôntico ao ontológico, numa nova percepção do
ser – do ser aberto. Não mais para reafirmar Deus, mas excluí-lo definitivamente,
não mais para afirmar um absoluto, mas considerar omnino absoluta a construção
do ser; a partir do trabalho da singularidade em ação no trabalho humano. Como
são rizomáticas e centradas no presente, as ciências do homem podem ser recons-
truídas. As ciências e, portanto, os planos de referência; a filosofia e os planos de
consistência; as ciências do homem e, pois, a convergência destas abordagens,
aproximações do evento, cargas éticas que atravessam as máquinas ontológicas,
as agenciamentos subjetivos que são cada vez mais abstratos. Não há outro modo
de considerar o ser, que não seja sê-lo, que não seja fazê-lo.

Referências

ARON, R. La philosophie critique de l’histoire. Paris: PUF, 1950, 2a. edição.


DELEUZE, G. “Post-scriptum sur les sociétés de controle”, Pourparlers, Paris:
Ed. Minuit, 1990. “Pós-scriptum sobre as sociedades de controle”, Conversações:
1972-1990. Trad. Peter Pál Pelbart. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
______ Foucault, Minuit, Paris, 1987. Trad. Claudia Sant’Anna Martins. São Paulo:
Brasiliense, 1988.
______ Nietzsche et la philosophie, Paris: PUF, 1962. Nietzsche a e filosofia. Trad.
Ruth Joffily e Edmundo Fernandes Dias. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Capitalisme et Schizophrénie. L’Anti Oedipe. Paris:
Ed. Minuit, 1970. O Anti-édipo. Capitalismo e esquizofrenia. Portugal: Assírio & Al-
vim, 1976.
______ Capitalisme et Schizophrénie. Mille Plateaux, Paris: Ed. Minuit, 1980. Mil
Platôs, São Paulo: Editora 34, 1995 ss, 5 vols.
______ Qu’est ce que la Philosophie. Paris: Ed. Minuit, 1991. O que é a filosofia?
Trad. Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
LÖWITH , K. Von Hegel zu Nietzsche. Zurique: Europa Verlag, 1949.
112 SOBRE MIL PLATÔS

MACHEREY, P. “Chroniques d’un dynosaure”, in: Futur Antérieur, 1992, n.9.


NEGRI, A. Saggi sullo storicismo tedesco, Milão: Feltrinelli, 1959. Cap. 1-3.
______ Macchina tempo, Feltrinelli, Milão, 1982.

Antonio Negri, cientista social e filósofo, é autor, entre outras obras, de Império; Mul-
tidão (em parceria com Michael Hardt); Anomalia Selvagem – poder e potência em Spinoza; O
poder constituinte – ensaio sobre as alternativas da modernidade.

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