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O MANUAL DE

STORY
TELLING
DO JORNALISTA DA TV
Copyright © 2019 by Vinícius Dônola

Revisão
Sabine Mendes Moura

Diagramação e projeto gráfico


André Barreto | Daniel Barreto

Ilustração
André Dedos

[2019]
Todos os direitos reservados.

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DEDICATÓRIA

A todo aquele que acredita no poder de


transformação de uma boa história
(ao ser contada).
SUMÁRIO
Introdução .5

1. O que é notícia? .14

2. Como extrair o melhor de uma história? .22

3. O novo texto para a TV .34

4. A Entrevista .46

5. Roteiro e a Fórmula da Audiência .67

6. Dicas de locução .90

7. Arte e Sonorização .110

8. Na ilha de edição .128

9. Conclusão .148
INTRODUÇÃO
Assim que me sentei à mesa para escrever esta
introdução, fui ao Google para calcular quanto tempo
se passou desde que pus os pés pela primeira vez em
uma emissora de TV. Inicialmente, o resultado me pro-
vocou um choque: exatos 11.924 dias. Ou 391 meses.
Algo entre 32 e 33 anos – quase um terço de século.

Esta história começou no dia 3 de abril de 1987,


quando bati à porta da TV Metrópole, afiliada à ex-
tinta Rede Manchete de Televisão, em Campinas, no
interior paulista. Fui recebido por uma jovem jorna-
lista, Raquel Gale, que preparava o discurso para me
dispensar com a elegância que lhe era característica.
Eu, porém, cheguei à emissora disposto a agarrar uma
“boquinha” de estagiário.

– Dona Raquel, não posso me oferecer para tra-


balhar como motorista porque ainda não tenho car-
teira. Mas aceito qualquer serviço e não precisa me
pagar. Corto papel de telex e trabalho até de faxineiro.
Antes de seguirmos, acho necessário explicar o
que era o telex. Havia, nas redações, um trambolho ba-
rulhento que cuspia papel com notícias vinte e quatro
horas por dia. Era ligado a uma rede que distribuía ma-
terial de grandes agências, parecida com uma máqui-
na de escrever, das grandes. Se não cuidadosamen-
te enroladas ou cortadas em pedaços, as notícias do

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telex se esparramavam pelo chão como uma cascata
de papel sem fim. Daí, a necessidade de alguém para
cortá-las no tamanho de uma folha A4.

Sem tempo de argumentar, a tímida Raquel me


pediu para regressar no dia seguinte. Voltando à re-
dação, ela comentou com o chefe do Jornalismo, Agui-
naldo Ribeiro, sobre o encontro com o candidato a
estagiário não remunerado. Mais tarde, me confiden-
ciaria a reação de Aguinaldo:

– É esse que eu quero para trabalhar comigo!

Tal qual combinado, voltei à TV, de onde só saí


ao final do dia, pois já fora escalado para uma série
de tarefas. Inicialmente, eu transformava recortes de
jornal impresso em notas para o telejornal da noite.
Aos poucos, aprendi a fazer as “cabeças” – os textos
que a apresentadora leria antes de cada reportagem.
Meses depois, com apenas 18 anos de idade, eu me
tornei o responsável pelo fechamento do jornal de sá-
bado. Tanta responsabilidade no colo de um adoles-
cente...

No ano seguinte, fui convidado para trabalhar


na TV Manchete de São Paulo. Inicialmente, apenas
para cobertura de férias. Depois, veio a contratação

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definitiva como “Repórter B”. Codinome para inician-
te. Minha alegria durou pouco... Como eu não era for-
mado ainda, me transferiram para o departamento
de esportes, que cobria jogos de futebol, vôlei e bas-
quete. Não era, definitivamente, o que eu queria fazer.
Pedi demissão e me mudei de país.

Entre 1990 e 1992, estudei na Escola Superior


de Jornalismo do Porto, em Portugal. Detalhes so-
bre minha estada na “ terrinha”, eu relato em Histórias
das Histórias que Contei, livro lançado pela Editora
Intrínseca. À época da mudança, as relações entre
portugueses e brasileiros andavam estremecidas.
Portugal deixou de reconhecer diplomas de dentistas
formados no Brasil que tentavam a sorte por lá. Em
reciprocidade, o governo brasileiro parou de revalidar
canudos emitidos pelas instituições lusas de ensino.
Mesmo sem ter nada a ver com essa troca de tiros,
sobrou para mim a bala perdida.

Durante os quinze anos em que trabalhei como


repórter especial da Central Globo de Jornalismo, mi-
nha carteira de trabalho exibia um frágil registro pro-
visório. O definitivo dependia da revalidação do curso
que fiz, recorrentemente negada pelas autoridades do
meu próprio país. De certo modo, isso moldou minha
maneira de ser, patologicamente discreta.

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Ao sair da Globo, no final de 2008, pensei que
espantaria de vez o fantasma do diploma. Engano.
No ano seguinte, um advogado da RecordTV exigiu a
apresentação do registro definitivo, sob pena de sus-
pender os efeitos do contrato que eu assinara com a
emissora. Por força e obra do acaso, estava em vigor
uma liminar do Supremo Tribunal Federal que permi-
tia a concessão de registros para jornalistas não for-
mados. Com base nessa medida provisória, obtive o
carimbo na carteira de trabalho, seguido de uma res-
salva: a liminar poderia cair a qualquer momento. Ou
seja, tornei a caminhar sobre o fio da navalha.

Só em julho de 2010, dezoito anos depois da mi-


nha formatura na Escola de Jornalismo do Porto, o
imbróglio foi resolvido de uma vez por todas. No mês
seguinte, embarquei para Nova York, onde assumi o
posto de correspondente da RecordTV nos Estados
Unidos. Pude, enfim, rodar o mundo e contar histórias
sem o fantasma da não revalidação.

A arte de contar uma história envolvente, com


começo, meio e fim – o storytelling –, é algo que sem-
pre me fascinou. Eu diria que, desde a infância, sou
encantado pela chamada contação de histórias. Mon-
teiro Lobato povoou minha mente de personagens

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ficcionais. Trinta anos depois, Gay Talese, o escritor
americano, me apresentou os elementos literários in-
seridos na narrativa jornalística. O Novo Jornalismo.
Ambos exímios contadores de histórias, cada qual no
seu próprio universo.

Em TV, de forma inicialmente intuitiva, fui de-


senvolvendo minha própria maneira de contar fatos e
transformá-los em notícias. Por mais que a faculdade
tenha sido de extrema importância para minha forma-
ção acadêmica, não posso atribuir a ela o aprendizado
que, aqui, me proponho a dividir. Nossas aulas práticas
foram poucas e, portanto, insuficientes para me prepa-
rar para o mercado. Devo, pois, aos amigos e colegas
da TV Metrópole, os primeiros ensinamentos que me
credenciariam ao cargo de repórter de televisão.

Na Manchete de São Paulo e na Globo de São


José dos Campos, também aprendi muito com o pes-
soal da redação e, sobretudo, com os colegas da rua.
Muitos cinegrafistas e operadores tinham o dobro da
minha idade, ou mais tempo de TV do que eu de vida.
Com eles, descobri as artimanhas da reportagem. Fo-
ram, sem hipocrisia ou exagero, meus professores de
Telejornalismo.

Contudo, os trinta e tantos anos de carreira me

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fizeram enxergar a dualidade que nos desafia. Ao con-
trário das outras formas de mídia, temos que dominar
duas ferramentas distintas que compõem uma matéria
para a televisão: a forma e o conteúdo.

O domínio da forma leva anos. Muitos. Até que


eu me sentisse à vontade com as técnicas de grava-
ção e montagem de roteiro, se passaram cerca de vin-
te anos. Isso mesmo, duas décadas entre tentativas,
acertos e um punhado de erros. Enquanto pensava em
não errar durante uma determinada gravação, eu me
esquecia do próprio conteúdo, repetindo frases de um
jeito autômato, quase robótico. Por mais que tentasse
passar um ar de naturalidade, estava longe de ser um
autêntico jornalista. Talvez, fosse o que chamo de “ator
da informação”. Assim costumo fazer minha autodefi-
nição, evitando o julgamento do trabalho dos colegas:
no começo, eu mais atuava diante da câmera do que
de fato conversava com o telespectador. Não demons-
trava real domínio do assunto da matéria.

Foi só muito mais tarde, já na Globo do Rio de Ja-


neiro, que entendi a dimensão de meu trabalho como
jornalista que estava, ocasionalmente, a serviço da
televisão. A nova chefia da Central, vinda do jornal O
Globo, em meados dos anos 1990, imprimiu uma mar-
ca diferenciada em nosso trabalho. Não bastava do-

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minar as técnicas de locução e gravação na rua. Era
preciso ter fontes, apurar, sugerir pautas impactantes.
Era preciso ter sede de notícia. Só então, julgo ter feito
a transição do papel de ator da informação para o de
repórter de TV.

Dali em diante, fui desenvolvendo minhas pró-


prias técnicas para rechear de conteúdo as histórias
que sabia contar. Ou que achava que sabia... Tive gran-
des mestres, nomeadamente, no Globo Repórter e no
Fantástico, que me passaram conhecimentos valiosos.
É uma pena que, com o “enxugamento” dos quadros
nos veículos de comunicação, muitos colegas expe-
rientes tenham perdido o emprego, o que tem privado
os mais jovens de conhecimento empírico impagável.

A conta-gotas, ao longo da minha carreira, pro-


curei transmitir uma parte do que absorvi com meus
mestres e equipes de reportagem. Tenho orgulho de
ter contribuído para a formação de talentos, que che-
garam às redações como joias a serem lapidadas.
Cheguei a ser advertido por um chefe, que alegou:

– Você não ganha pra isso.

Depende do que se entende por “ganhar”...

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Agora, durante um período sabático após minha
saída da RecordTV, revi meu conhecimento e criei um
método próprio para ensinar a arte do storytelling. Não
quero que você leve duas décadas para aprender a
contar histórias para a TV, garimpando conhecimento
disperso, sendo cobrado por coisas que não aprendeu,
enquanto se sente perdido com a falta de referências
na redação e tenta progredir na carreira sem um dire-
cionamento de sua chefia.

O Manual de Storytelling do Jornalista da TV vai


te mostrar, passo a passo, como: identificar uma boa
notícia; conduzir suas gravações de modo a extrair o
melhor de uma história; montar um roteiro que “pa-
ralise” o seu público diante da TV; e como obter alta
performance de audiência em suas reportagens, sem
jamais abrir mão do rigor na apuração dos fatos, da
agilidade e da busca pela isenção.

Pela primeira vez, de forma organizada e didáti-


ca, repasso o que aprendi, pedindo apenas um com-
promisso seu – que você também repasse o que aqui
aprender. Essa é uma corrente sem elo final. Multipli-
quemos os contadores de histórias, pois, contando
histórias, mudaremos vidas, e, mudando vidas, ajuda-
remos a mudar o Brasil.

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1. O QUE É NOTÍCIA?
Não há nada mais desafiador para um jornalista
do que responder àquela que parece a mais óbvia das
perguntas: o que é notícia? Bom jornalista é o profis-
sional que, com curiosidade, sensibilidade e experiên-
cia, desenvolve um faro aguçado para identificar o veio
da notícia, como o garimpeiro que encontra uma pe-
pita de ouro em uma montanha de pedregulhos. Essa
é uma habilidade preciosa e nem sempre dominada
pela maioria das pessoas que compõem uma redação.
Tem gente que leva anos para separar o joio do trigo;
tem gente que irá se aposentar sem saber diferenciar
um fato comum de algo a ser noticiado. Creia, isso não
é exagero da minha parte.

O significado de notícia, segundo o dicionário, é:

“a) informação acerca da condição ou do esta-


do de algo ou alguém. b) informação sobre assunto ou
acontecimento de interesse público, difundida pelos
meios de comunicação; c) relato de um acontecimen-
to feito por um jornalista ou à maneira de um jornalis-
ta.” (dicio.com.br)

No prólogo do meu livro anterior, eu defino notícia


como “o fato fora da curva”. Há um aforismo, datado do
fim do século XIX, que também me parece interessante
para entender o conceito apresentado neste capítulo:

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“ O homem
mordeu o
cachorro.”

Isso é notícia!

“ O cachorro
mordeu o
homem.”

Isso não!

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Naturalmente, não podemos ser demasiada-
mente simplistas ao discorrermos sobre a vastidão do
conceito de “notícia”. Porém, o aforismo, cuja autoria é
deveras controversa, nos ajuda a começar a entender
o princípio básico da produção jornalística.

Há também um ditado que ilustra a diferença en-


tre o fato comum e o acontecimento que merece ser
noticiado.

“ Você nunca lerá algo sobre um avião que não caiu.”

Até agora, tudo parece muito óbvio. E é. A ques-


tão se torna mais delicada quando a notícia brinca de
se esconder atrás do fato. Vamos ver um exemplo que
aconteceu comigo, durante uma viagem à Rússia. Essa
é uma história que não me canso de contar...

Em 2009, o repórter cinematográfico Jean Ri-


beiro e eu viajamos para Moscou com a missão de
gravar uma série de matérias para o Jornal da Record.
Uma das reportagens era sobre estudantes brasilei-
ros que haviam se mudado para a capital russa, onde
o preço da faculdade de Medicina é menor do que o
das universidades em nosso país. Em si, essa infor-
mação – um fato fora da curva – já era uma notícia
relevante.

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Chegando ao alojamento da Academia Médica
de Moscou, uma descoberta inesperada nos fez en-
xergar uma história ainda maior do que a inicialmente
proposta pela pauta. Entre os cinco alunos que entre-
vistamos, estava a goiana Patrícia Maria da Silva, filha
de um lavrador e de uma costureira, moradores da pe-
quena Itaguaru.

Na infância, em decorrência de problemas con-


gênitos na visão, Patrícia chegou a ser impedida de
frequentar a escola. Ainda assim, a menina criada na
roça não abdicou de seu sonho.
Ao concluir o ensino médio, a jovem descobriu
uma maneira de entrar para a faculdade: mudar-se
para a Rússia. A cidade inteira se cotizou para apoiá-
-la. Comerciantes organizaram um bingo, que rendeu
uma novilha para o ganhador. Em Goiânia, a capital
do estado, voluntários contribuíam com doações men-
sais via pagamento de boleto bancário. Dessa forma,
Patrícia viajou para Moscou, onde passou oito meses
estudando russo. Ter domínio da língua era condição
sine qua non para seguir na Academia Médica.

Agora, parece menos óbvio do que antes, não?


O mais belo da notícia estava caprichosamente oculto.
Era preciso garimpar as histórias de cada estudante
para encontrar a pepita de ouro. Abaixo, temos a foto
da doutora Patrícia no dia de sua formatura.
O exemplo de Patrícia é, notoriamente, de inte-
resse público. Sua história tem um poder inspirador
sem tamanho. Daí, temos uma informação relevante
que merece ganhar o status de notícia, segundo a de-
finição clássica do dicionário, transcrita acima. Entre-
tanto, o jornalista tem que saber fazer a distinção entre
dois conceitos aparentemente semelhantes:

- o fato de interesse público


- o fato de interesse DO público

Nem tudo que é de interesse DO público é, de


fato, de interesse público. A fofoca, por exemplo. É
uma informação que realmente atrai as pessoas, e não
só no Brasil. Mas qual interesse público legítimo existe
em sua publicação?

Veja o caso dos tabloides sensacionalistas britâ-


nicos, que se debruçam sobre a intimidade da realeza.
Em 2018, o The Sun, por exemplo, do bilionário Rupert
Murdoch, tinha maior circulação do que o respeitadís-
simo The Guardian, de acordo com dados da Coms-
core, organizados pela Public Audience Measurement
Company.

Produtos com a marca The Sun:


29,5 milhões de pessoas/mês

20
Produtos com a marca The Guardian:
23,5 milhões de pessoas/mês

No critério credibilidade, o The Guardian se


mantém inabalável. 9 entre 10 leitores de sua versão
impressa acreditam em seu conteúdo e 99% dos as-
sinantes ouvidos consideram bem aplicado o tempo
gasto com sua leitura.

Em suma, há espaço para todo tipo de conteúdo,


seja ou não de interesse público. Nesse caso, separar
a pepita do pedregulho é de suma importância – para
quem lê e, especialmente, para quem se dispõe a pro-
duzir.

A seguir:

Não basta encontrar a notícia por trás do fato. É


preciso saber contá-la.

21
2. COMO EXTRAIR
O MELHOR DE UMA
HISTÓRIA?
O PERSONAGEM

“Me dá uma foto que eu te trago um programa”.


Esta frase, do meu querido mestre Jotair Assad, foi um
divisor de águas na minha maneira de contar histórias.
Diria que não só na minha... Muitos jornalistas que ti-
veram o privilégio de trabalhar com o Jotair repetem a
frase rotineiramente, como um mantra do bom telejor-
nalismo. O mestre queria dizer o seguinte: com uma
única foto, ele seria capaz de montar um programa
inteiro do Globo Repórter, com cerca de quarenta e
cinco minutos de produção.

Uma foto com quatro ou cinco pessoas, segundo


Jotair, editor do Globo Repórter até 2008, continha in-
formação suficiente para compor um lindo documen-
tário. Bastava que o jornalista atentasse na história de
cada personagem. De uma maneira ou de outra, todos
ali fotografados teriam um relato de vida único, rico, a
partir do qual seria possível estruturar um programa
do começo ao fim. Daí, vem a frase que costumo re-
petir para meus colegas nas redações: “Cada pessoa
é um livro.” Na prática, isso funciona mesmo? No pará-
grafo abaixo, eu provo que sim.

Cinco equipes de reportagem foram escaladas


para gravar um Globo Repórter cujo tema era violên-

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cia. Internamente, essa prática é conhecida como
“mutirão” – um esforço conjunto para levar ao ar um
programa o mais rapidamente possível. Fui manda-
do para Campinas, no interior paulista, onde os índi-
ces de violência eram crescentes e assustadores. Eu
conhecia bem a região, onde vivi dos 6 aos 19 anos
de idade. – Por onde começar? – pensei, chegando à
cidade. Imediatamente, uma ideia me veio à cabeça.
Uma foto! Eu preciso apenas de uma foto.

Consegui uma fotografia emblemática: a dos


formados em Ciências da Computação pela UNI-
CAMP, datada de 1977. Mais à frente, eu explico o
porquê dessa escolha.

Na redação da EPTV, a afiliada à Rede Globo


em Campinas, começamos a contatar todas as pes-
soas que apareciam na imagem. Queríamos saber
se elas tinham sido submetidas a alguma experiên-
cia de violência após a formatura. Não nos faltaram
relatos contundentes. Localizamos vítimas de fur-
tos, roubos e até de sequestros e assassinatos na
família. Lembro-me de que alguns dos ex-alunos
haviam deixado a cidade, afugentados pelo aumen-
to da criminalidade ou mesmo traumatizados pela
ação dos bandidos.

24
Durante a construção do roteiro, deixei para o fi-
nal o caso da formanda que pautou a escolha da foto.
Ela se chamava Roseana Morais Garcia. No dia 10 de
setembro de 2001, seu marido, Antonio da Costa San-
tos, fora morto a tiros quando seguia de carro para
casa. Toninho do PT, como era conhecido, havia as-
sumido a prefeitura de Campinas apenas oito meses
antes do crime. Roseana era, então, a viúva do prefeito.
Ela nos concedeu uma entrevista comovente, com a
qual fechamos um dos blocos do programa.

Assim, provei, para mim mesmo, a verdade conti-


da nos ensinamentos do mestre Jotair Assad. Natural-
mente, ele ficou orgulhoso do resultado ao vê-lo no ar,
já que levava, explicitamente, a sua assinatura.

25
A IMAGEM

Em setembro de 2017, nós perdemos um dos


mais experientes profissionais da televisão brasileira.
Ele também era um pouco controverso: Marcelo Re-
zende, então apresentador da RecordTV. Trabalhei
com o Marcelo durante muitos anos na Rede Globo do
Rio de Janeiro. Éramos repórteres do Jornal Nacional.
Eu, vindo de São Paulo, aos 25 anos de idade, buscava
ocupar meu espaço entre os grandes nomes da repor-
tagem da Globo. O Marcelo, então com 44 anos, já era
uma referência na cobertura policial.

Naquela época, observando o trabalho do meu


colega repórter, notei que ele era um perito na arte de
identificar e valorizar os fragmentos de sua narrativa.
Uma imagem, por exemplo. Quando o Marcelo identi-
ficava a força de um determinado flagrante, preparava
o telespectador para assistir à cena. Algo como:

– O homem que aparece nesta imagem está


sendo observado por bandidos. Ele não se dá conta
disso. Caminha despreocupado pela rua sem notar a
aproximação de dois desconhecidos. Ele está prestes
a ser mais uma vítima da quadrilha. Em uma narrativa
comum, o repórter diria apenas:
– O homem caminha despreocupado pela rua.

26
De repente, é abordado por dois bandidos. Ele é mais
uma vítima da quadrilha.

Percebam a diferença na construção do roteiro.


No segundo exemplo, o texto descreve a cena; no pri-
meiro, Marcelo convidaria o telespectador a assistir
à cena, criando o clima de suspense que o flagrante
contém em si. Nada foi adulterado ou acrescentado ao
registro original. O primeiro exemplo valoriza o poder
da imagem, destacando-a do restante do conteúdo da
reportagem.

Muitos repórteres e editores têm dificuldade


para enxergar a força de um flagrante ou a beleza de
uma determinada cena. Outros até demonstram sensi-
bilidade e experiência para isso, mas não sabem como
valorizar o conteúdo que reconhecem como extraordi-
nário. Meu colega Marcelo não. Ele era um mestre na
arte de:

– entender a força de uma imagem;


– destacar a cena do restante do conteúdo;
– valorizar a imagem na estrutura da narrativa;
– preparar o telespectador para a cena a que irá
assistir;
– descrever minuciosamente a força de um fla-
grante.

27
Procurando observar os passos citados aci-
ma, desenvolvi meu estilo próprio de contar histórias
a partir de uma boa imagem. Ainda que dispusesse
de apenas uma cena para sustentar um VT inteiro. Eu
cito agora um exemplo que aconteceu comigo em ja-
neiro de 2013. O chefe de plantão no Réveillon, meu
amigo Jean Ribeiro, recebeu imagens de três câmeras
de segurança, que flagraram o atropelamento de uma
mulher de 67 anos na noite de Natal, em um bairro
da zona oeste do Rio de Janeiro. Ele teria a opção de
exibir as imagens em um telejornal local, mas preferiu
aguardar, dizendo:

– O Vinícius transforma dez segundos em dez


minutos.

Ao voltar da folga do plantão, nos primeiros dias


de janeiro, recebi do Jean as imagens brutas, sem edi-
ção. De fato, o material renderia muito mais do que um
simples registro para o telejornal do dia. O flagrante
exigia a análise das imagens, quadro a quadro. Assis-
tindo ao material atentamente, descobrimos os se-
guintes elementos:

28
a) O motorista
não se preocupa
em ver se há
uma vítima
debaixo do
carro.

b) Uma das
passageiras
estava
visivelmente
embriagada.

29
c) Uma segunda
passageira tem
uma garrafa de
cerveja na mão

d) A mulher
tenta esconder
a garrafa,
jogando-a
debaixo de um
carro.

30
e) O motorista, que havia
fugido, regressa ao local.
Novamente, ele não
socorre a vítima. Retira
objetos pessoais do veículo
e foge.

31
Jean estava certo. O flagrante renderia uma re-
portagem especial, para o Jornal da Record, com a du-
ração de onze minutos e meio, somando o texto lido
pelos apresentadores e a matéria em si. Ainda locali-
zamos o motorista, que era garçom em um restauran-
te da zona norte do Rio. Sem saber que estava sendo
filmado por uma câmera escondida, mentiu sobre ter
prestado socorro à vítima. Obtivemos, também, acesso
ao inquérito e ao depoimento das testemunhas. Uma
das passageiras disse ter visto o atropelador beber an-
tes do acidente. Ele teria consumido quatro latinhas de
cerveja. O condutor responderia por homicídio doloso,
– já que assumiu o risco de provocar uma tragédia ao
fazer ingestão de bebida alcoólica.

E, na prática, como foi a performance do VT em


termos de audiência?

– Rio de Janeiro (em pontos do IBOPE; números


exatos)
Audiência no início da reportagem: 5,4
Audiência no fim da reportagem: 11,5

– São Paulo (em pontos do IBOPE; números ar-


redondados)
Audiência no início da reportagem: 5,0
Audiência no fim da reportagem: 10,0

32
Ou seja, dobramos a audiência do telejornal na
maior cidade do país, onde se concentram os anun-
ciantes fortes da emissora, e mais do que dobramos a
audiência na segunda capital mais importante para o
mercado publicitário.

Ainda neste manual, você verá um capítulo inti-


tulado “Roteiro e a Fórmula da Audiência”. Por enquan-
to, precisamos nos concentrar em um dos elementos
da narrativa: o texto para a TV.

33
3. O NOVO TEXTO
PARA A TV
Neste capítulo do Manual de Storytelling do Jor-
nalista da TV, vamos, inicialmente, delimitar o conceito
de texto para a T V. Entendamos por texto ou off a
parte escrita de uma reportagem para os telejornais
diários (matéria ou capítulo de uma série especial) e
para os programas semanais, como o Fantástico e o
Globo Repórter, da Rede Globo, e o Domingo Espeta-
cular, da RecordTV. Incluímos também no conceito de
texto, a chamada passagem ou stand up, o trecho da
matéria em que o repórter “conversa” com a câmera.

Para facilitar a compreensão, sigamos a divisão


apontada acima: off e passagem.

OFF – O TEXTO COM A VOZ DO REPÓRTER, CO-


BERTO POR IMAGENS

Comparar o off nos anos 1980, quando comecei a


trabalhar em televisão, com o de hoje em dia, é como con-
frontar duas músicas de épocas diferentes. Não nos cabe
dizer qual é melhor ou pior. Elas são, simplesmente, mani-
festações de épocas diferentes, cada qual com o seu valor.
Digo isso porque, em instante algum, quero desmerecer os
repórteres ou editores mais experientes; tampouco tenho
a pretensão de dizer que o texto para a TV empobreceu
com o passar dos anos. Em suma: o texto simplesmente
mudou. Ou, em alguns casos, desapareceu.

35
Antes, os textos eram longos, e as matérias, bem
mais curtas do que hoje. Reportagens para o Jornal
Nacional, por exemplo, duravam em média um minuto
e quarenta segundos, e pouco tempo sobrava para as
entrevistas. Quando muito, na edição final, iam para o
ar duas frases do entrevistado e/ou personagem. No
caso do Fantástico, raras eram as matérias com mais
de seis minutos de duração, salvo quadros de humor
e outras formas de entretenimento, feitas pela Central
Globo de Produção.

O off fazia mais do que a simples “costura” dos


demais elementos da narrativa, como:

– as entrevistas (em TV, chamamos entrevista


de sonora);
– as passagens (ou passagens de vídeo, stand
ups ou pieces-to-camera);
– os “sobe sons” (trecho em off com áudio am-
biente);
– os respiros (trechos sem off e sem “sobe som” ,
usados para ditar o ritmo de uma narrativa).

Nossas reportagens continham textos longos e


ininterruptos, pouco ou quase nada permeados por
“sobe sons” e respiros. Esses dois elementos são
fundamentais para incorporar à narrativa um fenôme-

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no que não pode ser desconsiderado na construção
de um roteiro: o pensar do telespectador.

COMO ASSIM?

Tenho um método muito prático – e nada


polido – para explicar para meus colegas a impor-
tância dos “sobe sons” e dos respiros no off de uma
reportagem. Eu os chamo de o “ p...-que-o-pariu da
imagem” . Isso mesmo! O palavrão define a função
desses elementos narrativos de forma precisa e fácil
de compreender. Usemos aqui, no manual, apenas as
iniciais PQP. Exemplo:

Um trator derruba a casa de um senhor aposen-


tado, pois a prefeitura alega que o pobre homem inva-
diu uma área de risco. No instante em que a máquina
põe abaixo a casinha, você precisa respeitar o tempo
do “pensar do telespectador”. – Quanto tempo deixo
de “sobe som”? – você pode se perguntar. Ora, é sim-
ples. Basta mentalizar o palavrão em slow motion: –
P........-que-oooo-pariiiiiu! No meu caso, o PQP em slow
motion durou três segundos. Entendeu?

Respeitando o “pensar do telespectador” – e,


muitas vezes, ele não apenas mentaliza, mas solta
mesmo o palavrão, por indignação ou espanto –, você

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convida a pessoa que assiste à sua reportagem a inte-
ragir com a narrativa, criando um enlace entre o roteiro
e as reações que gera. O novo texto para a TV deve
contemplar espaços para respiros e “sobe sons”, na-
turalmente, de modo criterioso. Exceder o uso dessas
duas ferramentas pode “arrastar” o andamento da ma-
téria, criando o que chamamos de “barriga”. A “barriga”
nada mais é do que um trecho da reportagem em que
o ritmo da narrativa parece excessivamente lento, “ar-
rastado”, o gerando desconforto e perda de atenção.

Um terceiro elemento dos cinco fundamentais


que compõem uma matéria (off, passagem, sonora,
“sobe som” e respiro) também ganhou espaço no ro-
teiro televisivo ao longo do anos: a entrevista ou so-
nora. Por mais bem escrito que seja um off, ele jamais
terá certos temperos de uma boa sonora, como:

– o sotaque do entrevistado;
– a riqueza do regionalismo;
– a melodia da voz;
– as expressões corporais durante a fala;
– a autenticidade para contar a própria história.

Embora eu tenha me dedicado muito à locução


para TV, sempre fui um defensor dos offs curtos e dos
roteiros construídos, essencialmente, a partir de bons

38
trechos de sonoras. Repito, bons trechos. Não é raro
ver, na televisão, sonoras que pouco ou nada acres-
centam ao VT. Diria, absolutamente desnecessárias.
No capítulo seguinte, vamos nos debruçar mais sobre
as técnicas que desenvolvi para a entrevista. Por en-
quanto, quero apenas exemplificar como o texto para
a TV aposentou o “off quilométrico”, incorporando à
estrutura narrativa os “sobe sons”, respiros e mais tre-
chos de sonoras.

Em 2000, no meu segundo Globo Repórter, cuja


direção foi assinada pelo genial João Marcos Rocha,
rodamos alguns estados para mostrar o talento de
nossos artistas de rua. Gravamos no Rio de Janeiro,
em São Paulo, em Minas Gerais, na Bahia e no interior
da Paraíba. Somando os cinco blocos do programa,
sem contar os breaks comerciais, tivemos um total de
quarenta e seis minutos de produção no ar. Enquanto
montávamos o roteiro, procuramos estruturar os blo-
cos a partir da riqueza de dois elementos: os “sobe
sons”, impagáveis, e os trechos de sonoras extrema-
mente valiosos que tínhamos à mão. Conclusão: o
maior dos offs tinha apenas cinco frases seguidas. E,
diga-se de passagem, frases curtas. Havia dois offs
com quatro frases. No restante do programa, usamos
offs com três, duas ou apenas uma frase, permitindo
que o telespectador saboreasse os sotaques, as ex-

39
pressões e a melodia da fala de nossos personagens.
A audiência daquele Globo Repórter bateu 36 pontos
de IBOPE na Grande São Paulo – acima da média para
os padrões da época, que era de 32 a 35 pontos na
capital paulista.

Mais tarde, em setembro de 2007, quando eu já


trabalhava como repórter e editor do Fantástico, fiz
uma reportagem em Brasília sobre o atropelamento de
um jovem de 17 anos. O pai, então engenheiro, largou
tudo para estudar Direito e lutar pela condenação dos
motoristas envolvidos no acidente. Eles faziam um “ra-
cha” quando provocaram a batida e a morte do rapaz.
Obcecado por justiça, o pai estudou até a formatura,
fez a prova da OAB e participou do julgamento como
assessor da promotoria. Sua entrevista era extrema-
mente forte e comoveu a todos da equipe. O homem
falava da própria dor, da ressignificação de sua vida e
da satisfação de ter assistido à condenação dos cul-
pados.

Voltando à redação do Fantástico, no Rio de Ja-


neiro, entendi que o relato dispensava maiores expli-
cações. Cheguei a rascunhar algumas linhas de off,
mas optei por deletá-las. Elas se mostraram desneces-
sárias para a compreensão do fato. Gravei apenas uma
passagem em Brasília, no local exato onde ocorreu o

40
atropelamento. Os editores de plantão no fim de se-
mana seguinte bancaram a proposta e assim levamos
a reportagem ao ar, sem nenhuma linha de off.

A PASSAGEM

Antes de adentrar no conceito de passagem,


passagem de vídeo, stand up ou piece to camera – o
trecho em que o repórter “conversa” com a câmera –,
acho necessário dividir um breve relato pessoal. Nun-
ca, ao longo de anos e anos dando palestras em facul-
dades de Jornalismo, algum estudante me perguntou:

– Vinícius, você poderia dar uma olhada no off


que escrevi?

Caro leitor, sabe o que mais costumo ouvir?

– Olha, gravei algumas passagens. Você poderia


dar uma olhadinha? Será que eu fico bem na câmera?

Quero dizer, com isso, que a atenção excessiva


dada à passagem não é um mal exclusivo de alguns
repórteres e apresentadores (quero crer, uma mino-
ria). Ela também acomete pessoas no ambiente uni-
versitário. Estudantes que mal aprenderam as primei-
ras técnicas da escrita para a televisão já demonstram

41
preocupação com o momento de aparecer na TV.

É preciso ficar claro que o fato de aparecer na


televisão é só um efeito colateral da rotina do repórter
ou do apresentador de um telejornal. Nada além disso.
Ser reconhecido na rua é apenas uma consequência
natural da exposição proporcionada pelo ofício.

O JORNALISTA DA T V NÃO É UM ATOR DA INFOR-


MAÇÃO.

Abaixo, listo três erros clássicos relacionados à


gravação da passagem:

1) EXCESSO DE USO

O uso da passagem na estrutura de uma matéria


não pode ser indiscriminado. Há que se ter uma lógica
em sua utilização dentro da estrutura narrativa. Apare-
cer por aparecer vulgariza a utilização da passagem e
pode denotar excesso de vaidade.

2) USAR APENAS “ QUANDO NÃO HÁ IMAGEM


PARA COBRIR O OFF”

Existe uma velha máxima de que a passagem


deve ser usada quando o repórter não tem imagens

42
para cobrir determinado trecho de off. Pode ser, mas é
não só isso. Há outras ocasiões que justificam o uso da
passagem, como por exemplo:

– marcar a presença do repórter e do veículo de


comunicação no local do fato;
– marcar a presença do repórter e do veículo de
comunicação ao lado de uma celebridade;
– usar o corpo do repórter como referência de
tamanho para um local ou objeto;
– transmitir aos telespectadores sensações como
o frio e o medo;
– descrever sentidos como o olfato e o paladar;
– recontar a dinâmica de um fato;
– chamar a atenção para um detalhe essencial
na compreensão de uma história

3) ABUSAR DO FUNDO NEUTRO E DESFOCADO

Em muitos casos, o repórter surge na matéria em


um local “frio”, longe do epicentro da notícia. Isso cos-
tuma acontecer quando o repórter:

– é um correspondente e está apenas “fechando”


um VT com imagens de agências;
– está apenas fechando uma segunda versão do
VT, usando imagens gravadas anteriormente por outra

43
equipe;
– está fechando um VT para domingo, dias de-
pois do acontecimento;
– é obrigado a gravar uma passagem perto da
emissora, escrita por um editor ou chefe.

Naturalmente, nos casos acima, o jornalista gra-


vou a passagem num fundo neutro e desfocado por
absoluta falta de opção. Porém, sempre que houver
possibilidade, o repórter deve gravar a passagem in
loco, o mais próximo que puder do fato.

MINHA DICA

A boa passagem costuma conter uma destas


três palavrinhas abaixo:

– AQUI
– ESTE (OU NESTE)
– ESTA (OU NESTA)

Exemplo:

Os policiais passavam por esta rua quando fo-


ram atacados pelos bandidos. (...)

O que aconteceu aqui jamais foi visto em outra

44
parte do mundo. (...)

Viemos até este lugar para contar uma história


incrível. (...)

Resumindo:

a) o uso excessivo da passagem de-


nota vaidade;
b) usar a passagem só para trechos
de off sem imagem é apequenar a importância
desse elemento da narrativa;
c) o fundo neutro “esfria” seu VT.

Lembre-se, portanto, das três palavras mágicas


da passagem para a TV:

– AQUI
– ESTE (OU NESTE)
– ESTA (OU NESTA)

Elas mostram que você está no calor dos acon-


tecimentos.

45
4. A ENTREVISTA
Assim como o conceito texto para a TV é muito
amplo, a palavra “entrevista” sugere uma infinidade de
situações. Daí, neste capítulo do Manual de Storytel-
ling do Jornalista da TV, minha intenção de delimitar o
entendimento de entrevista para os tópicos abaixo:

– “povo-fala” (entrevista com pessoas anôni-


mas);
– sonora com entrevistado/personagem;
– sonora com especialista.

Das ferramentas à disposição do storyteller na televi-


são, a entrevista, penso eu, é a mais difícil de ser dominada.
Por mais experiência que um contador de histórias possa
ter, há uma característica do bom entrevistador que não se
aprende na faculdade, tampouco na redação: a empatia.
Ser empático é especialmente importante no segundo tó-
pico citado acima: a sonora com entrevistado/persona-
gem. Colocar-se no lugar do outro é a chave para destravar
respostas que estão aprisionadas na mente e no coração
de seu entrevistado. É necessário “sair do próprio corpo”
e se “incorporar” na pele de seu personagem. Você deve
sentir as dores e as paixões daquele que se dispõe a falar
com você. A boa entrevista “suga” as energias do próprio
entrevistador, pois, naquele instante, ele sofre as aflições
do outro; ele se encanta com a saga do outro; ELE É O OU-
TRO DURANTE A ENTREVISTA.

47
Não quero, entretanto, dizer que este capítulo só
é profícuo para os empáticos de plantão. Muito pelo
contrário. Independentemente do seu temperamento,
você pode usar técnicas comprovadas – e descritas
abaixo –, que irão transformar sua experiência diante
de seus entrevistados. É provável que você passe a es-
cutar o seguinte comentário:

– Nossa... como você dá sorte com o entrevista-


do...

Leitor, cansei de ouvir isso nas diferentes reda-


ções por onde passei.

– Vinícius... você tem sorte até no “povo-fala”!

Creia, não é sorte!

Ao longo da carreira, fui criando minhas próprias


técnicas de entrevista, pois, tal qual dez entre dez prin-
cipiantes, acabei “jogado às feras” sem treinamento
algum. Aos 17 anos de idade, como relatei na introdu-
ção deste manual, comecei a trabalhar como repórter
e fui obrigado a “sobreviver” com o microfone à mão.
“No peito e na raça”, diria, usando a máxima popular.

A seguir, listo uma série de dicas que serão úteis

48
para os diferentes tipos de entrevista. Meus parceiros
de reportagem – cinegrafistas e auxiliares técnicos –
irão rapidamente identificar as técnicas aqui descritas,
pois me acompanharam em incontáveis momentos de
“sorte”...

O “ POVO-FALA”

1) NÃO ASSUSTE O ENTREVISTADO COM O MI-


CROFONE

Antes de começar a gravação, converse, edu-


cadamente, com os seus entrevistados na rua. Um a
um. Explique pacientemente o que você está fazendo.
Exemplo:

– Com licença, bom dia! Meu nome é Vinícius,


sou repórter da TV X e estamos fazendo uma matéria
sobre endividamento. A SERASA divulgou hoje uma
pesquisa sobre o número de pessoas endividadas no
Brasil. Oitenta e cinco por cento dos brasileiros estão
com a corda no pescoço, você chegou a ver? Pois
bem... eu gostaria de te fazer uma pergunta, posso?

Eu perco menos de vinte e cinco segundos para


situar meu entrevistado, com gentileza e ainda sem di-

49
recionar o microfone à sua boca. Repare – antes da
gravação em si, já fiz duas perguntas:

– Você chegou a ver?


– Posso?

O entrevistado teve tempo de pensar no assunto. Já


interagiu comigo, possivelmente, com respostas breves e
expressões faciais. O susto provocado pelo encontro com
a equipe de reportagem vai passando aos poucos, e ele se
sente respeitado pelo jornalista que o abordou. A partir daí,
ele estará preparado para raciocinar melhor e elaborar uma
boa resposta.

Detalhe: combine com o cinegrafista o ponto em


que ele deve disparar a câmera. Não é necessário gravar o
approach toda vez. Isso ocupa um espaço desnecessário na
mídia e atrapalha os editores na ilha. No caso acima, eu diria
para o cinegrafista ficar atento logo após a seguinte pergun-
ta:

– (...) eu gostaria de te fazer uma pergunta, posso?

Como estabeleci parcerias duradouras com os meus


cinegrafistas e auxiliares técnicos, nós nem precisávamos
combinar o ponto do approach em que a câmera deveria ser
disparada. Já era tácito e dispensava uma conversa prévia.

50
2) MANTENHA O MICROFONE LONGE DA SUA
BOCA EM DETERMINADAS PERGUNTAS

51
A entrevista, inclusive o “povo-fala”, por vezes,
assume os contornos de um bate-papo. Quebra-se a
rigidez da sequência “pergunta-e-resposta” e, de re-
pente, você se vê conversando com o entrevistado.
Bingo! Você atingiu o nirvana de uma sonora.

Porém, isso pode ser perigoso, e eu explico o


porquê, usando um exemplo hipotético:

– Quer dizer que você pagou a dívida e se livrou


da SERASA?
– Paguei, sim, e até comecei a fazer uma pou-
pança.
– Sério?
– Sério. Tô pensando em trocar de carro daqui a
seis meses.
– Tá feliz, né?
– Muito. Você nem imagina o quanto estou feliz
por limpar meu nome na praça. É uma questão de hon-
ra, de valores, entende? Meu pai me ensinou assim.

Se o microfone captou o “ Tá feliz, né?”, muito pro-


vavelmente, o editor incluirá sua pergunta no VT. Com
a resposta que entrevistado hipotético te deu, eu diria
que pergunta e resposta vão para o ar.

Aí, o telespectador reage à sua pergunta:

52
53
A pergunta parece mesmo estúpida, mas, naque-
le momento da entrevista, foi necessária para disparar
o gatilho de uma resposta muito boa:

– Você nem imagina o quanto estou feliz por lim-


par meu nome na praça. É uma questão de honra, de
valores, entende? Meu pai me ensinou assim.

Para não dar margem ao uso de uma pergunta


aparentemente tola, vai a dica: no momento do “ Tá fe-
liz, né?”, mantenha o microfone na boca do entrevista-
do. Não o traga à sua boca. Sem o áudio do repórter, o
editor irá usar apenas a resposta.

54
3) USE O “ SÉRIO?”, O “ COMO ASSIM?” E AS DE-
MAIS REAÇÕES DE SURPRESA

55
Nos dois tópicos abaixo, o uso das reações de
surpresa é igualmente poderoso. Voltemos à entrevis-
ta:

– Paguei, sim, e até comecei a fazer uma pou-


pança.
– Sério?

Óbvio que o entrevistado está falando sério. Sua


reação, porém, denotou surpresa, interesse, e ele se
sentiu motivado a te entregar mais uma informação
desconhecida.

– Sério. Tô pensando em trocar de carro daqui a


seis meses.

De novo, se possível, mantenha o microfone na


boca do entrevistado, para evitar que usem sua ex-
pressão de surpresa na edição da matéria. Ela teve sua
utilidade, ao disparar um gatilho, mas não cairia bem
na versão levada ao ar.

O telespectador pensaria:

56
57
A SONORA COM ENTREVISTADO/PERSONAGEM

1) USE AS REAÇÕES DE SURPRESA NA VERSÃO


ESTENDIDA

Ao contrário da gravação do “povo-fala”, feitas em


um ambiente público e, portanto, ruidoso, a entrevista
com o personagem normalmente se dá em um espaço
menos barulhento onde, decerto, vocês estarão usan-
do microfones de lapela. Isso joga por terra uma das
técnicas citadas no quesito anterior: mantenha o mi-
crofone longe da boca em determinadas perguntas.

Neste caso, você terá de usar uma versão dife-


rente de determinada reação de surpresa, sob o risco
de sua pergunta – repito, aparentemente tola – ser co-
locada no ar. Para ficar bem claro, vou usar o mesmo
trecho, da gravação hipotética, agora imaginando que
o entrevistado não é um anônimo, mas o personagem
da sua matéria. No trecho em que ele diz:

– Paguei, sim, e até comecei a fazer uma pou-


pança.

Em vez de reagir dizendo apenas: “Sério?”, opte


por uma reação diferente, para também disparar o ga-
tilho de informações desconhecidas, protegendo-se

58
da exposição gerada por uma pergunta indesejada:

– Peraí! O senhor está me dizendo que está fa-


zendo poupança!... Como?... (*) Como, além de quitar o
débito, o senhor está conseguindo guardar dinheiro?

Note que, na frase acima, eu fiz uma marcação:


(*). Certamente, o editor usaria sua pergunta a partir
daquele ponto.

Em vez de:

– Paguei, sim, e até comecei a fazer uma pou-


pança.
– Sério?
– Sério. Tô pensando em trocar de carro daqui a
seis meses.

Você terá:

– Paguei, sim, e até comecei a fazer uma poupan-


ça. [corte]
– Como, além de quitar o débito, o senhor está
conseguindo guardar dinheiro? [corte]
– Sério. Tô pensando em trocar de carro daqui a
seis meses.

59
Com isso, você:

– disparou o gatilho para uma informação des-


conhecida;
– protegeu-se da exibição de uma “pergunta
tola”;
– ofereceu ao editor os pontos de corte da entre-
vista.

2) EVITE AS VOZES SOBREPOSTAS

Em uma conversa, as vozes de duas ou mais pes-


soas costumam se sobrepor. Faz parte do diálogo e,
especialmente, do bate-boca. Em uma entrevista, en-
tretanto, há dois pontos péssimos para a sobreposição
das vozes:

– o começo da resposta;
– o fim da resposta.

Na ilha, quando o editor reconhece o melhor tre-


cho de uma sonora, mas a voz do entrevistado está
sobreposta à voz do repórter no começo ou no fim
de uma frase, cospem-se marimbondos. Dentro da
resposta, uma eventual sobreposição de vozes não é
ruim. Pode até ser benéfica, denotando naturalidade
da conversa. No começo ou no fim, impede o uso da-

60
quele determinado trecho, pois fica claro que a fala do
repórter foi cortada pela edição.

Para evitar que isso aconteça, é preciso ficar


muito atento à resposta do entrevistado. Se você iden-
tificar que a sua voz na pergunta ou em um eventual
comentário ficou sobreposta à voz dele, reinicie ime-
diatamente aquele trecho da sonora, de forma elegan-
te, sem que o próprio entrevistado perceba o porquê
do reinício. Novamente, um exemplo hipotético:

(repórter) – Os bandidos saltaram para dentro


do...
(entrevistado) –... carro, isso, e...
– Só um segundo, por gentileza. Para que fique
claro. Como eles agiram mesmo?
– Sim, eles saltaram para dentro do carro...

Repare que, no primeiro momento, não há ponte


de corte para a entrada da resposta:

– ... carro, isso, e...

No segundo, você criou um ponto de corte per-


feito:

– Eles saltaram para dentro do carro...

61
Daí, a importância da terceira dica a seguir.

OUÇA A SONORA COM OUVIDOS DE EDITOR

Esse é o exercício mais difícil. Exige sensibilidade


e muita experiência. Não é qualquer repórter que con-
segue ouvir uma entrevista identificando os pontos de
entrada (kill in) e saída (kill out) dos trechos a serem
selecionados pelo editor. Sobretudo, se esse trecho for
composto por duas frases separadas. Exemplo:

– Eu comprei a casa imediatamente. Pensei até


que parede derrubar. Imaginei as cores da fachada.
Gosto muito de verde claro. Vi que a grama estava mal
cortada. Os vizinhos pareciam bacanas. João, eu co-
nhecia desde a escola. Fui ao banco, falei com o ge-
rente e ele liberou o dinheiro. Quase caí para trás.

Na frase acima, o editor, provavelmente, cortaria


o “miolo”, muito arrastado. Iria para o ar o seguinte:

– Eu comprei a casa imediatamente. [corte] Fui


ao banco, falei com o gerente e ele liberou o dinheiro.
Quase caí para trás.

Para que um repórter adquira ouvido de editor,

62
leva tempo. Porém, há uma maneira de acelerar esse
processo – frequentar a ilha de edição. Eis um péssi-
mo hábito de muitos colegas:

“REPÓRTER NÃO FREQUENTA ILHA DE EDIÇÃO.”

A SONORA COM ESPECIALISTA

1) DEMONSTRE CONHECER O ASSUNTO

Com o Dr. Google e outras ferramentas de busca,


já não temos mais a desculpa da falta de informação.
Pelas redes sociais, também podemos descobrir quem
é o nosso entrevistado, o que pensa, do que gosta,
bem como estudar o assunto em pauta. O entrevistado
valoriza o entrevistador quando se sente valorizado. É
fato.

Se possível, antes da gravação, comente a res-


peito de artigos que leu, assinados pela pessoa que irá
entrevistar. Ele verá que está mesmo bem informado.
Fará diferença.

2) COMPARTILHE COM O ENTREVISTADO O PRÉ-


-ROTEIRO DE PERGUNTAS

Não há mal algum em dividir com seu entrevista-

63
do as perguntas básicas que irá fazer, salvo quando se
trata, evidentemente:

– da sonora com algum denunciado;


– da cobrança de uma autoridade.
Dizer as perguntas básicas antes da gravação
distensiona o especialista que, em muitos casos, do-
mina o assunto, mas tem imensa dificuldade de se ex-
por diante da câmera.
Ao longo da entrevista, outras perguntas costu-
mam surgir, não previstas em um roteiro inicial. Isso
é comum. Entretanto, com o conforto proporcionado
pela conversa inicial, o especialista vai se sentir mais
seguro para responder.

3) AQUEÇA A ENTREVISTA

Não comece a entrevista pelo tópico principal.


Deixe para a segunda metade da gravação. O entre-
vistado precisa de um tempo para se sentir à vontade,
mesmo que você já tenha compartilhado com ele o
pré-roteiro de perguntas.

Costumo usar uma técnica quando estou che-


gando perto do tópico desejado. Funciona assim:

– Agora, só mais uma última pergunta...

64
Isso sinaliza que aquela gravação – para alguns,
um profundo martírio – está perto de acabar. Tem um
efeito poderoso. Normalmente, os trechos que irão
para o ar são seguidos do meu clássico...

– Só mais uma última pergunta...

A minha “última pergunta” nunca é, de fato, a mi-


nha última pergunta.

4) PRESTE ATENÇÃO NA RESPOSTA

Com medo de se esquecer da pergunta seguin-


te, nove entre dez repórteres não prestam atenção na-
quilo que o entrevistado está falando. Assim, acabam
perdendo gatilhos importantíssimos, “largados no ar”.
Muitos entrevistadores só se dão conta do material
gravado quando revisam a mídia na ilha de edição.

Se você não se sentir confortável para gravar


uma entrevista sem um roteiro pré-definido, vai aí uma
dica:

Escreva as perguntas e não se acanhe em con-


sultá-las no intervalo entre uma resposta e outra. Eu
disse no intervalo.

65
Pior do que se esquecer eventualmente da pró-
xima pergunta é não ouvir o conteúdo da entrevista.
Então, repórter...

PRESTE ATENÇÃO NA RESPOSTA!

66
5. ROTEIRO E A
FÓRMULA DA AUDIÊNCIA
Nos últimos quatro capítulos, você viu técnicas
que desenvolvi para melhor captação e emprego dos
elementos básicos de uma reportagem (off, passagem,
sonora, “sobe som” e respiro). Agora, nesta segunda
metade do manual, vamos ver como dispor desses
elementos no roteiro de uma matéria, de modo a pren-
der a atenção de seu público e obter uma melhor per-
formance de audiência com o seu VT.

Muita gente não sabe, mas as emissoras de te-


levisão – sobretudo, nas principais capitais do Brasil
– monitoram, minuto a minuto, os índices de aparelhos
sintonizados nos diferentes canais. No caso de repor-
tagens mais curtas, de até dois minutos de duração,
as variações positivas ou negativas de audiência são
muito pequenas. Quase desprezíveis. O mesmo não se
pode dizer sobre a performance das reportagens es-
peciais, segmento no qual me especializei ao longo da
carreira. Durante matérias de quinze, vinte e até trinta
minutos, as oscilações podem ser acentuadas, elevan-
do ou derrubando de vez o número de aparelhos de
TV sintonizados em um determinado programa.

Como mostrei no capítulo dois, uma única repor-


tagem é capaz até de dobrar os índices de audiência
de um telejornal. Vide uma matéria que fiz para a Re-
cordTV, exibida em janeiro de 2013, sobre o atropela-

68
mento de uma mulher, filmado por diferentes câmeras
de segurança. Os registros do acidente continham de-
talhes riquíssimos, a partir dos quais iniciamos uma
profunda investigação. Na construção do roteiro, des-
crevi o pari passu da apuração dos fatos, me valendo
das técnicas que apresentarei abaixo.

Note a oscilação da audiência do começo ao fim


do VT.

Jornal da Record – 30/01/2013


(audiência em pontos do IBOPE/RJ)

Outro exemplo de elevação significativa de au-


diência em um único VT: uma reportagem que fiz com
flagrantes do tráfico na favela do Caju, no Rio de Janei-
ro, também para o Jornal da Record. Os números são
muito semelhantes aos citados acima.

69
Jornal da Record – 06/03/2013
(audiência em pontos do IBOPE/RJ)

Detalhe: na conta oficial do Jornal da Record,


no YouTube, mais de nove anos depois de ser levada
ao ar, essa mesma reportagem já havia sido vista por
3.221.713 de internautas.

Naturalmente, a performance de um VT não de-


pende, exclusivamente, das suas próprias qualidades.
Outros fatores podem influenciar diretamente no sobe
e desce da audiência durante sua exibição, como, por
exemplo, a programação de um concorrente direto. Se
ele “chama” um break comercial, a audiência tende a
cair, beneficiando os canais adversários.

Entretanto, a construção de um roteiro é deter-


minante para o bom desempenho de um VT especial.

70
O roteiro pode instigar o telespectador a assistir à re-
portagem do começo ao fim ou, se mal elaborado, pro-
vocar uma debandada imediata do canal. Ainda que o
repórter tenha trazido da rua um material completo,
com entrevistas relevadoras e belíssimas imagens, um
erro na construção do roteiro pode condenar o VT ao
fracasso.

Para ilustrar o que quero dizer, faço a seguinte


comparação. Abaixo, você verá duas árvores de Natal.
Elas são idênticas e possuem a mesma quantidade de
bolas coloridas. A da esquerda tem bolas distribuídas
segundo critérios que parecem lógicos. Já a árvore da
direita foi decorada, visivelmente, sem qualquer cuida-
do ou esmero.

71
O mesmo vale para uma reportagem de televi-
são. Se o roteiro não for escrito de forma criteriosa,
respeitando algumas técnicas que listarei a seguir, o
material trazido da rua poderá ser jogado no lixo. Eu,
obviamente, não serei deselegante a ponto de citar
casos em que matérias minhas foram roteirizadas de
forma desastrosa por algum editor, transformando um
bom material gravado pela equipe em uma construção
final desprovida de bom gosto. Por causa disso, a par-
tir de um determinado momento da minha carreira, eu
entendi que deveria construir meus próprios roteiros,
assumindo também a edição das minhas reportagens.
Não quero, com isso, desmerecer o trabalho de meus
colegas editores. Pelo contrário. Eles foram meus pro-
fessores de storytelling na TV. Achei, no entanto, que
eu seria um profissional mais completo se desenvol-
vesse minhas próprias técnicas de construção da es-
trutura narrativa. Aos poucos, meu coração foi se divi-
dindo. Já não sei se gosto mais da reportagem ou da
edição...

Entendo a lógica de um roteiro como um jogo de


sedução entre a reportagem e o telespectador. Meus
colegas de redação e os ouvintes de minhas palestras
já conhecem esta história, que, aqui, transcrevo pela
primeira vez. A reportagem se anuncia para o teles-
pectador e o convida para um breve enlace – um en-

72
contro casual entre duas pessoas, com começo, meio
e fim. Precisa, de imediato, demonstrar suas intenções,
mas é ciente de que não pode ir “com muita sede ao
pote”. O telespectador, por sua vez, se entrega ao jogo,
levemente ressabiado. Pode se encantar com as inten-
ções sugeridas pela reportagem e, repentinamente, se
retirar da “mesa de jantar”. Há que se ter sensibilidade
para aguçar seu interesse. Pouco ao pouco, a maté-
ria avança com as preliminares da informação, e o te-
lespectador se vê paralisado pelo desenrolar daquela
trama. A todo momento, ele se sente seguro de que as
intenções inicialmente demonstradas são, de fato, ver-
dadeiras. Já quase ao fim do encontro, a reportagem
chega ao clímax, satisfazendo ou surpreendendo seu
telespectador. Simples, como um encontro casual.

Vejamos, então, a algumas técnicas para a me-


lhor performance nesse enlace:

1) NÃO ESPERE QUE A “ CABEÇA” DO V T “ VENDA


O SEU PEIXE”

A chamada “cabeça” do VT, como quase todo


mundo sabe, é o texto lido pelos apresentadores, que
precede a exibição de uma reportagem. Ou, se preferir,
o texto que “chama” determinada matéria. É o convite
feito ao telespectador para que assista a um VT. Re-

73
pórteres não costumam sugerir os textos para a ca-
beça de suas próprias reportagens. São raros aqueles
que o fazem.

Escrever uma sugestão de cabeça pode ser ex-


tremamente útil antes de se começar a estruturar um
roteiro. A cabeça tem de ter aquilo que alguns milita-
res chamam de ideia força. A ideia força de um VT é,
como o próprio nome sugere, a informação principal
contida no roteiro. Você pode ter dúzias de informa-
ções dentro de uma mesma matéria, mas a ideia cen-
tral da reportagem tem de ficar clara para o telespec-
tador.

Usualmente, é o editor de texto quem escreve


a cabeça da matéria que editou. A seguir, um editor-
-executivo ou o próprio editor-chefe do telejornal pode
propor mudanças ou reescrever o texto com as pró-
prias mãos. Isso é praxe. Ou seja, antes de ser lida pelo
apresentador, a cabeça já foi lida e relida por, pelo me-
nos, dois editores. Ainda assim, pode não traduzir fide-
dignamente o teor da matéria que é rodada a seguir.

Por que razões?

74
Vejamos algumas:

– o editor está assoberbado, fechando outros


VTs ao mesmo tempo;
– o editor-executivo ou o editor-chefe fez altera-
ções sem assistir ao VT;
– o texto da cabeça segue a linha original da pau-
ta, não contemplando uma eventual mudança de viés
proposta pelo repórter;
– o texto foi escrito por algum editor que não es-
tava envolvido com a edição da reportagem, cheio de
boa vontade de ajudar o colega assoberbado.

Portanto, não pense que o “seu peixe” será bem


vendido pelo texto lido no estúdio. A tarefa de seduzir
o telespectador depende dos segundos iniciais da ma-
téria. Os primeiros vinte segundos.

2) DIGA A QUE VEIO NOS VINTE PRIMEIROS SE-


GUNDOS (A “ TÉCNICA DOS VINTE SEGUNDOS” )

Imagine o telespectador, munido com a arma ex-


terminadora de audiência: o controle remoto. Ele está
com o dedo no gatilho, e você, o autor de um roteiro,
tem a missão de apaziguá-lo, fazendo com que seu
polegar saia de cima do botão “canal”. Ele precisa ser

75
convencido a assistir à sua matéria. Ele precisa ser,
imediatamente, seduzido pela reportagem e, para isso,
você tem pouquíssimo tempo.

Voltemos à imagem figurada, descrita em um


parágrafo mais acima. No momento em que duas
pessoas se encontram, prontas para sair, uma série
de códigos denota as intenções de um e de outro. A
quantidade de perfume usado, a roupa escolhida, o
programa sugerido.... De quanto tempo eles precisam
para vislumbrar o possível desenrolar dos fatos? Cer-
tamente, segundos apenas.

O mesmo vale para o enlace proposto entre a re-


portagem e o telespectador. É preciso que fique cla-
ra a ideia força a ser apresentada no VT, sem que se
vá, no entanto, com “muita sede ao pote”. Em suma,
é preciso “vender” a experiência que o VT oferece. A
experiência!

Vejamos um exemplo hipotético, sugerido pela


ilustração:

76
77
A imagem, de uma câmera de segurança ima-
ginária, mostra dois carros trafegando na direção de
uma mesma esquina. Ao volante do carro vermelho, há
um famoso ator de cinema, John Lineker. Dirigindo o
outro veículo, está um homem completamente alcoo-
lizado, que não respeitará o sinal “PARE”, pintado no
asfalto. A batida será violenta.

Como, então, você deve “dizer a que veio” nos


primeiros vinte segundos?

Eu começaria o off com a imagem da câmera de


segurança, cobrindo o seguinte texto:

– Esta imagem mostra os últimos segundo de


vida de John Lineker. Ele dirige o carro vermelho. John
está prestes a ser vítima de um condutor que bebeu e
pegou o volante.

Se a imagem for demasiadamente chocante, eu


congelaria o vídeo. A partir daí, seguiria a narrativa,
lembrando a diferença básica entre registro e repor-
tagem. A câmera de segurança fez um registro único
e insubstituível, mas ela não tem uma habilidade ca-
racterística do bom storyteller: a capacidade de contar
histórias.

78
3) USE A “ TÉCNICA DA PRIMEIRA ESCALADA”

Divido, agora, uma história real, com a qual mi-


nha equipe e eu ganhamos o Prêmio Tim Lopes de Jor-
nalismo Investigativo. Pela primeira vez, conseguimos
autorização para registrar o interior da primeira peni-
tenciária de segurança máxima do Brasil: Bangu I, no
Rio de Janeiro. A reportagem fazia parte de uma série
de cinco matérias sobre o Complexo Penitenciário de
Gericinó, no bairro carioca de Bangu, que foram exi-
bidas pelo Jornal da Record no segundo semestre de
2013.

Tínhamos à mão ouro em pó, e sabíamos disso.


Somando a cabeça e o tempo do terceiro – e principal
– VT da série (sobre o interior de Bangu I), levaríamos
ao ar um total de quinze minutos de conteúdo – qua-
se sete vezes o tempo médio de uma reportagem do
dia-a-dia.

Inicialmente, optei por usar a “ Técnica dos vinte


segundos”, mas com um incremento: o texto de abertura
era coberto por múltiplas imagens, em uma edição com
ritmo veloz, sem respiros. Nesse trecho, o off lembrava o
que chamamos de escalada. A escalada, exibida no início
de um telejornal, nada mais é do que um resumão das
principais notícias que serão mostradas naquela edição.

79
Exemplo:

Polícia Federal encontra indícios de superfatura-


mento em obra do Metrô de São Paulo.

Presidente americano viaja para a China em bus-


ca de solução para a crise do frango.

Na Califórnia, incêndios atingem a casa de famo-


sos de Hollywood.

No esporte, mais uma vitória de Lewis Hamilton.

E o título do Flamengo enche as ruas do país de


rubro-negros apaixonados.

(fim da escalada)

No roteiro da matéria de Bangu, transformei os


primeiros offs em uma “mini-escalada”, compilando os
melhores momentos que o telespectador iria assistir.
De fato, a edição ficou paralisante. Veja abaixo um pe-
queno trecho inicial do VT:

80
(OFF COM IMAGENS BANGU I – CADEADOS, POR-
TÕES, CÂMERAS E GRUPAMENTO DE INTERVEN-
ÇÕES TÁTICAS)

(...)
 
(OFF)
 
JAMAIS UMA EQUIPE DE TELEVISÃO FOI AUTORI-
ZADA A ENTRAR NAQUELE LUGAR.
 
AGORA, PELA PRIMEIRA VEZ, VOCÊ VAI VER
COMO FUNCIONA A PENITENCIÁRIA...
 
O SUPER ESQUEMA DE SEGURANÇA...
 
O INTERIOR DAS CELAS...
 
E A AÇÃO DA TROPA QUE É CHAMADA PARA CON-
TER MOTINS E REBELIÕES.

(SOBE SOM DA EXPLOSÃO DE BOMBA DE EFEITO


MORAL)

(fim da mini-escalada)

81
É uma outra maneira de convidar o telespectador
a assistir ao VT. A ele, foi oferecida uma parte saboro-
sa do cardápio da reportagem. Uma espécie de tira-
-gosto da matéria, com os tais quinze minutos de du-
ração. Naturalmente, eu só usei esse recurso porque
dispunha de imagens inéditas e bem captadas. Não é
sempre que se pode aplicar essa técnica. Os efeitos,
porém, foram comprovados na prática. No fim deste
capítulo, eu conto o resultado da audiência.

4) ALIMENTE O INTERESSE PELO CLÍMAX (“ TÉC-


NICA DA SEGUNDA ESCALADA” )

O telespectador se deixou seduzir pelas inten-


ções demonstradas nos primeiros segundos, mas ele
permanece com o controle remoto à mão. Por nature-
za, é um ser impaciente. Com a infinidade de opções
dos canais a cabo, mais outras plataformas disponí-
veis no celular, ele poderá se distrair facilmente. Es-
pecialmente nos VTs longos, o telespectador pode se
cansar da espera em demasia.

Voltemos à matéria de Bangu I, no Rio.

Só aos cinco minutos e trinta segundos de VT,


entra minha passagem (o momento em que converso
com a câmera) no interior de uma das quatro galerias

82
da penitenciária – imagem que jamais havia sido vista
na televisão brasileira. O telespectador impaciente po-
deria se cansar da espera, se não fosse realimentado
pelo interesse em assistir às cenas inéditas.

O que fiz?

Entre o começo da matéria e a passagem dentro


da galeria, inseri, discretamente, uma “segunda esca-
lada”, curta, relembrando o ineditismo da reportagem.
Veja:

(...)

(OFF)
 
SERIA NOSSA ÚLTIMA BARREIRA, ANTES DE CHE-
GAR AO CORAÇÃO DO COMPLEXO.
 
(RESPIRO)
 
(OFF)
 
MAIS ALGUNS METROS E TAMBÉM, À NOSSA DI-
REITA, APARECE A MURALHA DE CONCRETO QUE
VIMOS DO ALTO.
 

83
(RESPIRO)
 
(OFF)
 
ATRÁS DELA, FICA A PRISÃO QUE FOI MANTIDA
AFASTADA DAS CÂMERAS POR LONGOS VINTE E
CINCO ANOS.

(fim da “segunda escalada”)

Note que a mesma informação já havia sido dado


minutos antes:

– JAMAIS UMA EQUIPE DE TELEVISÃO FOI AUTO-


RIZADA A ENTRAR NAQUELE LUGAR.

Contudo, era necessário refazer o convite para


que o telespectador se mantivesse atento à TV. Mais
tarde, descobriríamos que as técnicas combinadas
iriam mesmo funcionar.

5) SURPREENDA, MESMO APÓS O CLÍMAX

O clímax do VT de Bangu I foi a revelação de ima-


gens nunca vistas na TV. Porém, quando já dávamos
por encerrada a gravação, surgiu uma ideia genial. De
quem? Não, de ninguém da equipe de reportagem...

84
Fiz apenas o seguinte comentário:

– Meu Deus, deve ser um horror ficar trancado


numa cela dessas...

Imediatamente, um carcereiro reagiu:

– Por que você não experimenta? A gente te tran-


ca lá dentro.

Bingo! O cinegrafista Jean Ribeiro e eu entramos


na cela e o agente penitenciário trancou a porta. Aqui-
lo se alinhava à ideia força do VT e ainda serviu para
transmitir ao telespectador a sensação claustrofóbica
de se ficar trancafiado na solitária. Eu gravei de impro-
viso o seguinte comentário:

(PASSAGEM)

SILÊNCIO AQUI DENTRO, MAIS OU MENOS ESCU-


RO, TEM APENAS UMA ENTRADA DE LUZ ALI EM
EM CIMA.

É, DE FATO, MUITO PEQUENO.

SÓ TEM ESPAÇO PARA ESSA CAMA, QUE É UMA


CAMA DE CONCRETO, COM COLCHONETE.

85
LOGO ALI ATRÁS, UMA MESINHA TAMBÉM DE
CONCRETO, UMA DIVISÓRIA E, ALI, O CHUVEIRO
COM O CHAMADO “BOI” PARA AS NECESSIDADES.

QUASE UM DIA INTEIRO AQUI DENTRO E, POR VE-


ZES, AO LONGO DE MESES SEGUIDOS.

É UMA SENSAÇÃO CLAUSTROFÓBICA.

SÓ A IMAGINAÇÃO JÁ GERA UMA SENSAÇÃO DE


CLAUSTROFOBIA, UMA AFLIÇÃO, DEVE SER HOR-
ROROSO, DEVE SER ALGO TERRÍVEL.

ESSE SILÊNCIO, OU TALVEZ O ECO, ESSAS PARE-


DES AQUI...NÃO É BOM. PROVAMOS E NÃO É BOM.

(FIM DA PASSAGEM)

Nem na cabeça nem no corpo do VT, anuncia-


mos que o repórter seria trancado na cela. Não foi pre-
ciso. A reportagem surpreendeu o telespectador, mes-
mo depois do clímax.

6) O GRAND FINALE

Alguns repórteres são mestres no fechamento


de um VT. Eu citaria dois nomes: Tino Marcos e Pedro

86
Bassan. Fico esperando curioso pelo fim de seus VTs.
Ambos encerram a matéria com alguma frase muito
criativa. O off final é quase sempre um resumo da re-
portagem apresentada, coberto por uma imagem de
forte poder simbólico.

No caso da nossa matéria de Bangu I, fechei as-


sim o VT:

(OFF)

BANGU UM É A PROVA DE QUE EXISTE ALGO PIOR


DO QUE VER O SOL NASCER QUADRADO.
 
(RESPIRO)
 
(OFF)
 
NA CADEIA, NADA É TÃO RUIM QUE NÃO POSSA
PIORAR...

Cobrimos o off final com imagens do fechamento


da cela, seguido de um “sobe som” da batida da porta
contra o batente metálico. O som fazia eco na galeria.

O RESULTADO DA AUDIÊNCIA

Ao fim do VT, medimos a oscilação da audiência

87
durante aquela quarta-feira – um dia tradicionalmente
ruim para a emissora, que brigava contra o futebol exi-
bido pela Globo e também contra uma novela do SBT.

Resultado: assumimos a vice-liderança no horá-


rio do telejornal, feito raro para a RecordTV em 2013.
Por conta dos bons resultados, conseguimos empla-
car mais dois VTs da série na quinta e sexta seguintes.
Inicialmente, entrariam reportagens gravadas em São
Luís, no Maranhão, e em Porto Alegre, no Rio Grande
do Sul.

Embora o teor da série já tivesse sido inteiramen-


te exibido durante a semana, transformamos o mate-
rial em uma reportagem para o programa de domingo
à noite, o Domingo Espetacular. Veja os números:

Domingo Espetacular – 24/11/2013


(audiência em pontos do IBOPE/RJ)

88
Em março de 2014, pela série de cinco reporta-
gens intitulada Encarcerados, recebemos o Prêmio
Tim Lopes de Jornalismo. Em muito nos honra a vitória
contra trabalhos inscritos em diversos estados e dife-
rentes formas de mídia. Tim era um exímio storyteller.

89
6. DICAS DE LOCUÇÃO
Assim como o roteiro, a locução é uma das fer-
ramentas mais importantes para a arte de contar his-
tórias na TV. Ninguém suporta um ritmo enfadonho de
locução por muito tempo. Seja de um apresentador do
estúdio, seja de um repórter na rua. O telespectador
talvez não seja capaz de identificar as regras usadas
por um profissional de TV no decorrer de uma deter-
minada gravação. Porém, sente o bem-estar de uma
narração pontuada pela precisão técnica, bem como
o desconforto provocado por um texto mal narrado, o
que resulta, também, em oscilações de audiência. Fato
comprovado por casos reais, como o citado a seguir.

Acompanhei de perto o processo de transição de


um produtor que acalentava o sonho de ser repórter.
Sua voz era grave, como a dos clássicos locutores de
rádio, e ele tinha grande experiência com a elaboração
de pautas para telejornais de âmbito nacional. Parecia,
portanto, talhado para assumir uma vaga na reporta-
gem. Certo dia, o diretor do departamento de Jorna-
lismo, amigo com ampla experiência em televisão, me
chamou:

– Vinícius, você precisa falar com o “Fulano”. A


matéria dele entra e a audiência cai na hora.

Embora o produtor tivesse feito algumas sessões

91
com fonoaudiólogos antes de ser promovido para o
cargo o repórter, sua locução soava insossa, monó-
tona. Faltava brilho na sua voz. No ar, seu off parecia
ser lido com tédio ou má vontade – o que não espe-
lhava, definitivamente, seu estado emocional. Ele es-
tava radiante de alegria na nova função. Atendendo ao
pedido do chefe, chamei o colega para uma conversa
reservada. Eu precisava fazer com que ele próprio en-
xergasse o que estava acontecendo com sua narração.
De repente, ele soltou a seguinte frase:

– Eu não sei o que fazer!

A palavra “sei”, no entanto, foi dita com bastante


ênfase.

– Eu não seeeeei o que fazer!

O colega estava mesmo aflito e acuado pelas co-


branças. Temia perder a vaga e voltar para o cargo de
produtor. Sua aflição ficou visível no olhar arregalado e
no tom agudo, usado para indicar ênfase.

Ali, subitamente, ele próprio descobriu: as pala-


vras-chave de suas frases não eram lidas com ênfase.
Com o merecido destaque. Com o calor pedido pela
narrativa. Daí, o tom insosso dos offs e o aparente té-

92
dio com que narrava seus textos.

“Eu não sei o que fazer” é totalmente diferente de


“eu não seeeeei o que fazer”.

Essa é uma das dicas para a locução de TV que


me proponho a detalhar abaixo. São técnicas que ve-
nho aprendendo desde o meu primeiro contato com a
Fonoaudiologia, em 1987. (Repare que, na frase acima,
uso o verbo no gerúndio: “estou aprendendo”. Em se
tratando de Fonoaudiologia, eu jamais arriscaria usar
o verbo no passado.)

1) NÃO “ DÊ ALTA” A SI PRÓPRIO

Repórteres e apresentadores costumam menos-


prezar a importância do acompanhamento vocal de-
pois que atingem um certo patamar na carreira. Isso é
um pecado contra si mesmo. Cansei de ver as agen-
das das “fonos” da TV com horários vazios devido a
faltas ou cancelamentos.

Se você trabalha com a voz, use-a com extremo


profissionalismo, tal qual um atleta zela pelo próprio
corpo. A voz é o produto de um conjunto maravilhoso
de músculos que requerem cuidados para o resto da

93
vida. Não há experiência que lhe permita prescindir da
companhia de um bom profissional.

Em “fono” para a TV, não existe alta!

2) ENCONTRE A PALAVRA-CHAVE DE CADA FRA-


SE

Essa é uma das dicas mais elementares da locu-


ção para a TV – e também das mais essenciais. Para
facilitar a compreensão, vamos ao texto:

O PEDREIRO CAIU DE UMA ALTURA DE SETE ME-


TROS.

ELE NÃO USAVA EQUIPAMENTOS DE SEGURANÇA.

QUANDO IRIA SE CHOCAR DE CABEÇA CONTRA A


CALÇADA, OCORREU O FATO QUE PARECE MILA-
GRE.

PEDRO SILVA, FUNCIONÁRIO DE UMA LOJA DE


COLCHÕES, FAZIA UMA ENTREGA PARA UM
CLIENTE VIZINHO.

94
PEDRO CARREGAVA UM COLCHÃO DE CASAL
COM DOIS PALMOS DE ESPESSURA.

AO PASSAR PELA FACHADA DO PRÉDIO, SENTIU


UM IMPACTO REPENTINO.

ERA O PEDREIRO QUE CAÍA DO ANDAIME EM ALTA


VELOCIDADE.

POR SORTE, MUITA SORTE, OS DOIS SAÍRAM SEM


NENHUM ARRANHÃO.

Em um primeiro momento, é interessante subli-


nhar a palavra-chave ou a palavra forte de cada frase.
É ali que se dá a ênfase.

O PEDREIRO CAIU DE UMA ALTURA DE SETE ME-


TROS.

ELE NÃO USAVA EQUIPAMENTOS DE SEGURANÇA.

QUANDO IRIA SE CHOCAR DE CABEÇA CONTRA A


CALÇADA, OCORREU O FATO QUE PARECE MILA-
GRE.

95
PEDRO SILVA, FUNCIONÁRIO DE UMA LOJA DE
COLCHÕES, FAZIA UMA ENTREGA PARA UM
CLIENTE VIZINHO.

PEDRO CARREGAVA UM COLCHÃO DE CASAL


COM DOIS PALMOS DE ESPESSURA.

AO PASSAR PELA FACHADA DO PRÉDIO, SENTIU


UM IMPACTO REPENTINO.

ERA O PEDREIRO QUE CAÍA DO ANDAIME EM ALTA


VELOCIDADE.

POR SORTE, MUITA SORTE, OS DOIS SAÍRAM SEM


NENHUM ARRANHÃO.

Repare que apenas uma das frases acima não


merece ser lida com ênfase:

PEDRO SILVA, FUNCIONÁRIO DE UMA LOJA DE


COLCHÕES, FAZIA UMA ENTREGA PARA UM
CLIENTE VIZINHO.

Em uma das frases, eu daria ênfase a duas pala-


vras seguidas:

96
PEDRO CARREGAVA UM COLCHÃO DE CASAL
COM DOIS PALMOS DE ESPESSURA.

Assim, sublinhando as palavras, você enxergará


com clareza as informações que devem ser destaca-
das. Elas reforçam a sequência de fatos “fora da curva”,
como:

a) cair de uma altura de sete metros;


b) não usar equipamento de segurança;
c) o eventual choque de cabeça e o suposto milagre;
d) os dois palmos da espessura do colchão;
e) o impacto repentino sentido por Pedro;
f ) a alta velocidade com que o pedreiro caía;
g) e o fato de terem tido muita sorte mesmo.

Hoje, eu não sublinho mais as palavras-chave.


Para mim, já é automático identificar e destacar o pon-
to forte de cada frase do off. No começo, entretanto, foi
de suma importância sublinhar à caneta as palavras
às quais eu deveria dar ênfase na leitura. Muitas vezes,
enquanto ainda não dominam as técnicas de locução
descritas aqui, o repórter e o apresentador fazem uma
narração mecânica, pois estão mais preocupados em
não gaguejar do que em entender o contexto de um
off.

97
É muito comum ver, na TV, erros grosseiros de
colocação da ênfase. Seguramente, quando isso acon-
tece, o repórter e o apresentador não estão focados
no conteúdo do texto. Exemplo a partir do off usado
acima:

O PEDREIRO CAIU DE UMA ALTURA DE SETE ME-


TROS.

ELE NÃO USAVA EQUIPAMENTOS DE SEGURANÇA.

ou

AO PASSAR PELA FACHADA DO PRÉDIO, SENTIU


UM IMPACTO REPENTINO.

ERA O PEDREIRO QUE CAÍA DO ANDAIME EM ALTA


VELOCIDADE.

Que ferramentas, então, você deve usar para


destacar as palavras que merecem ênfase dentro de
um off? Serve o tom agudo utilizado pelo produtor que
queria ser repórter?
– Eu não seeeeei o que fazer!

SIM, MAS NÃO É SÓ ISSO.

98
3) SAIBA USAR AS DIFERENTES FERRAMENTAS
DE ÊNFASE

Basicamente, na locução para a TV, você pode


recorrer a quatro ferramentas diferentes para dar ênfa-
se a uma determinada palavra ou conjunto de palavras
em uma frase. São elas:

a) o tom agudo;
b) o tom grave;
c) a pausa antes da palavra;
d) a leitura da palavra, pausadamente.

Vamos analisar as ferramentas uma a uma, re-


correndo, novamente, a exemplos práticos. Eles te aju-
darão a enxergar as diferentes maneiras de se acen-
tuar a palavra-chave no contexto de um off.

a) O tom agudo

Imagine a frase:

QUANDO ABRIRAM OS PORÕES DO BARCO, OS PO-


LICIAIS ITALIANOS ENCONTRARAM CENTO E VINTE
REFUGIADOS EM CONDIÇÕES SUBUMANAS.

99
O número de refugiados deve ser destacado do
restante da frase. É algo absurdo encontrar 120 refu-
giados no interior de uma embarcação. Uma calami-
dade.

QUANDO ABRIRAM OS PORÕES DO BARCO, OS


POLICIAIS ITALIANOS ENCONTRARAM CENTO E
VINTE REFUGIADOS EM CONDIÇÕES SUBUMA-
NAS.

Na primeira ferramenta, o tom agudo, reproduzi-


mos o recurso usado pelo produtor cujo narração soa-
va insossa.

QUANDO ABRIRAM OS PORÕES DO BARCO, OS


POLICIAIS ITALIANOS ENCONTRARAM ceeento e
viiinte REFUGIADOS EM CONDIÇÕES SUBUMA-
NAS.
O tom agudo denota estranheza, inconformismo.

b) O tom grave

QUANDO ABRIRAM OS PORÕES DO BARCO, OS


POLICIAIS ITALIANOS ENCONTRARAM CENTO E
VINTE REFUGIADOS EM CONDIÇÕES SUBUMA-
NAS.

100
O tom grave, como o próprio nome sugere, refor-
ça a gravidade do fato.

É o mesmo tom usado quando se chama a aten-


ção de alguém:

– OLHA BEM o que você está fazendo...

– CUIDADO ao atravessar a rua...

c) A pausa antes da palavra

QUANDO ABRIRAM OS PORÕES DO BARCO, OS


POLICIAIS ITALIANOS ENCONTRARAM... CENTO
E VINTE REFUGIADOS EM CONDIÇÕES SUBUMA-
NAS.

Uma simples pausa antes da palavra, ou das pa-


lavras a serem enfatizadas, funciona perfeitamente
bem. É um recurso, entretanto, que deve ser usado
com parcimônia. Vulgarizá-lo na narração faz com que
a própria ferramenta perca a importância. Guarde a
pausa para o clímax do VT, por exemplo.

d) A leitura da palavra, pausadamente.

101
Em vez de usar o tom agudo, o tom grave ou a
pausa antes da palavra-chave, você pode reduzir o rit-
mo da leitura no trecho da frase que pretende enfati-
zar.

QUANDO ABRIRAM OS PORÕES DO BARCO, OS


POLICIAIS ITALIANOS ENCONTRARAM ceenn-to-
-ee-viinn-tee REFUGIADOS EM CONDIÇÕES SU-
BUMANAS.
Também funciona bem, sem exageros no uso.
Note que não existe uma pausa entre “encontraram”
e “ceenn-to-ee-viinn-tee ”. O que acontece é uma di-
minuição no ritmo da leitura, chamando a atenção do
telespectador para o fato de que a polícia encontrou
mais de cem refugiados nos porões do barco.

Agora, vamos aplicar a técnica no exemplo an-


terior:

O PEDREIRO CAIU DE UMA ALTURA DE seeeeete


METROS. (tom agudo)

ELE NÃO USAVA EQUIPAMENTOS DE SEGURAN-


ÇA. (tom grave)

QUANDO IRIA SE CHOCAR DE cabeeeeeça CON-


TRA A CALÇADA, OCORREU O FATO QUE PARECE

102
mii-laaa-greee. (tom agudo e leitura da palavra, pau-
sadamente)

PEDRO SILVA, FUNCIONÁRIO DE UMA LOJA DE


COLCHÕES, FAZIA UMA ENTREGA PARA UM
CLIENTE VIZINHO.

PEDRO CARREGAVA UM COLCHÃO DE CASAL


COM... DOIS PALMOS DE ESPESSURA. (pausa antes
da palavra)

AO PASSAR PELA FACHADA DO PRÉDIO, SENTIU


UM IMPACTO repentiiino. (tom agudo)

ERA O PEDREIRO QUE CAÍA DO ANDAIME EM


ALTA VELOCIDADE. (tom grave)

POR SORTE, muuii-taaa SORTE, OS DOIS SAÍRAM


SEM NENHUM ARRANHÃO. (leitura da palavra pau-
sadamente)

Veja que houve variação do uso das ferramentas


de ênfase. Com o tempo, isso se torna natural. Quanto
mais você domina a forma de fazer TV, mais se con-
centra no conteúdo. A partir de agora,conhecendo as
técnicas, tudo ficará mais fácil e, sobretudo, mais rá-
pido.

103
Portanto, não se assuste. O tempo é o melhor dos
mestres. Você, agora, está adapto a acelerar o tempo.

4) CUIDADO COM A CURVA MELÓDICA

Dos erros mais desagradáveis que se ouvem lo-


cução para a TV, está a má colocação do que pode-
mos chamar de curva melódica no final da frase.
Para que você entenda esse conceito, vamos di-
vidir a leitura dos finais de frase em três grupos:

a) Curva melódica descendente

A curva melódica descendente é típica da leitu-

104
ra escolar. Sempre nas últimas palavras antes do ponto
final, o leitor “derruba” o ritmo da narração, concluindo
a frase em tom grave, entediante.

Com três ou quatro frases seguidas em curva


descendente, o telespectador irá acionar sua arma ex-
terminadora de audiência: o controle-remoto.

Exemplo:

PEDRO ÁLVARES CABRAL CHEGOU AO LI-


TORAL DA BAHIA EM MIL E QUINHENTOS.

ELE SE DEPAROU COM ÍNDIOS QUE VIVIAM ALI.

OS ÍNDIOS NÃO FORAM HOSTIS NUM PRI-


MEIRO MOMENTO.

Esse tipo de curva NUNCA deve ser usado. Isso


não é estilo. É erro de locução.

105
b) Curva melódica ascendente

A curva melódica ascendente é característica


da rádio. Principalmente, da FM. Sempre nas últimas
palavras antes do ponto final, o narrador “carrega” a
locução com o tom agudo, jogando a curva melódica
para o alto.

Exemplo:
Nove horas e quarenta minutos em Bras íli a!!
Seja bem-vindo ao programa MPB SHOW!!

Esse tipo de curva melódica também não deve


ser usado na locução para a TV, salvo, uma exceção: a
escalada do telejornal. Ali, especificamente, cabe uma

106
“leitura manchetada”, com dizemos no meio. Pegue-
mos o exemplo de escalada citado no capítulo 5:

POLÍCIA FEDERAL ENCONTRA INDÍCIOS DE


SUPERFATURAMENTO EM OBRA DO METRÔ DE
SÃO PAULO.

PRESIDENTE AMERICANO VIAJA PARA A CHI-


NA EM BUSCA DE SOLUÇÃO PARA A CRISE DO
F R A NG O.

NA CALIFÓRNIA, INCÊNDIOS ATINGEM A


CASA DE FAMOSOS DE HOLLYWOOD.

NO ESPORTE, MAIS UMA VITÓRIA DE LEWIS


HAMILTON.
E O TÍTULO DO FLAMENGO ENCHE AS RUAS
DO PAÍS DE RUBRO-NEGROS APAIXONADOS.

Só na última frase da escalada, mantém-se uma


locução chamada “linear”. Nas demais, a curva meló-
dica pode ser levemente jogada para cima, denotando
anúncio das manchetes. Lembremo-nos dos antigos
vendedores de jornais na rua:

– EXTRA! EXTRA! EXTRA!

107
Eles usavam a curva melódica ascendente.

c) Curva melódica neutra ou linear

A curva neutra ou linear – se é que podemos


chamá-la de curva... – é típica de nossas conversas
do dia a dia. Repare como “fechamos” as frases num
bate-papo. Não usamos a curva descendente, carac-
terística da leitura escolar, tampouco fazemos uso da
curva ascendente, que é marca dos locutores de FM.
Terminamos as frases com naturalidade, sem “derru-
barmos” o tom para o grave nem “subirmos” o tom em
demasia para o agudo.

Assim deve ser a curva melódica na leitura de


uma cabeça ou do off de um VT. Quanto mais natu-

108
ral, melhor. Porém, a naturalidade deve ser autêntica.
Forçar naturalidade depõe contra a credibilidade do
próprio repórter.

NÓS SOMOS JORNALISTAS DA TV; NÃO SO-


MOS ATORES DA INFORMAÇÃO.

109
7. ARTE E SONORIZAÇÃO
Não foi à toa que eu decidi tratar da sonoriza-
ção no capítulo 7 do Manual de Storytelling do Jorna-
lista da TV, antes de entramos no capítulo final sobre
edição para a TV. A chamada “sono” costuma ser tra-
tada como um segmento da pós-produção a serviço
do jornalismo, e o termo “pós” carrega em si um tre-
mendo equívoco. O sonoplasta, produtor musical ou
editor responsável por “trilhar” uma reportagem deve
participar do processo de construção do VT desde o
comecinho. Não é bem o que acontece. Ele acaba se
envolvendo com a matéria depois que todo o roteiro já
foi montado na ilha, e é cobrado por algo que não foi
minimamente “brifado”.

No caso do pessoal do Departamento de Arte e


Ilustração (ou simplesmente Arte ou, ainda, Departa-
mento de Videografismo), também considerado parte
do núcleo de pós-produção, já há o entendimento de
que os designers devem participar, inclusive, das reu-
niões de pauta – o berçário da reportagem. Pelo me-
nos uma pessoa da Arte costuma frequentar a reunião
em que se definem as pautas que serão distribuídas
pelos repórteres do telejornal ou do programa sema-
nal.

Apesar das diferenças entre esses dois segmen-


tos da “pós”, juntei-os em um mesmo capítulo por

111
conta de uma semelhante existente entre a Arte e a
“sono”: a perda de tempo com o chamado retrabalho
– os inúmeros pedidos de alteração das artes e ilustra-
ções, bem como das trilhas sonoras usadas em uma
reportagem. O retrabalho também gera gasto, pois de-
manda mais esforço para a execução de uma mesma
tarefa, além de provocar atritos entre os colegas de
trabalho. Editores de texto reclamam que os designers
não executam o que foi pedido, enquanto designers
se queixam de editores que não sabem detalhar suas
próprias ideias; editores pedem a troca de trilhas usa-
das pelo sonoplasta que, irritado com as mudanças
exigidas e pressionado pela falta de tempo, se abor-
rece por não ter participado da concepção do VT. Em
suma: em casa que falta comunicação, todo mundo
briga e ninguém tem razão.

A ARTE

O departamento de Arte é responsável por uma


série de produtos, como:

– mapas;
– simulações e reconstituições;
– gráficos;
– tabelas;
– cenários;

112
– ilustrações dos cenários;
– vinhetas;
– legendas (letterings);
– destaques sobre alguma imagem ou documento.

Para evitar atritos e desperdício de tempo e di-


nheiro, vou listar algumas dicas práticas que vão afi-
nar o relacionamento da redação com o departamento
responsável pelo videografismo.

1) NÃO ENROLE PARA MANDAR O TEXTO DA


ARTE

Se você já tem uma ideia clara do texto que será


ilustrado por algum recurso do videografismo, mande
o off o quanto antes para os designers. Inclusive, com
um off guia – uma gravação que sirva de base para a
construção da arte, na voz do repórter da matéria ou
de qualquer voluntário que esteja por perto. Depois,
na ilha de edição, você substitui o off guia pelo off fi-
nal, lido pelo titular da reportagem.

Cada arte demanda um tempo diferente para


ser pensada, executada e, mais tarde, “renderizada”. O
chamado render é fase de finalização da arte por pro-
cessamento digital. Quanto mais moderno é o com-

113
putador, mais rápido será o render. Artes em 3D (três
dimensões) podem levar horas para serem “renderiza-
das”, e não há como acelerar esse processo. Quem dita
o tempo é a própria máquina.

Ou seja, enviando o quanto antes o texto para os


colegas da Arte, você aliviará a pressão sobre os de-
signers, que penam com a lentidão no processamento.
Explicar o porquê da demora para um jornalista leigo
no assunto nem sempre é muito fácil...

2) SAIBA EXPLICAR O QUE VOCÊ QUER

Após enviar o texto, sente-se com os ilustradores


e explique, com clareza, o que deseja da Arte para um
determinado trecho da matéria. Ideias soltas não con-
tribuem. Só atrapalham. É importante visualizar a arte
desejada: seja um simples destaque sobre um docu-
mento, seja a reconstituição da cena de um crime em
3D, com ilusão de profundidade.

Caso você tenha dificuldade de visualizar o resul-


tado final, mostre-se aberto a sugestões. Os ilustrado-
res preferem dialogar com alguém que reconhece as
próprias limitações a executar demandas que parecem
“sem pé nem cabeça”. Não pode haver ruído na relação
dos designers com os editores, sob pena de o proces-

114
so emperrar por conta do fantasma do retrabalho.
Com a intenção de tornar ainda mais claros os
prejuízos causados pelo ruído, o ilustrador André De-
dos, que assina as artes deste manual, e eu resolve-
mos criar uma situação fictícia, divertida, porém co-
mum no dia a dia das redações de TV.

Vamos à cena:

Às pressas e sem imagens de câmeras de se-


gurança, o editor entra correndo na Arte e pede a re-
constituição da cena de um crime. A relojoaria de um
shopping acaba de ser assaltada. Basta uma simples
imagem do bandido dentro do estabelecimento co-
mercial, diz o editor, também preocupado com o envio
da mídia pela equipe de reportagem.

O editor ainda teve a preocupação de mandar o


off da Arte, para facilitar o trabalho do designer:

(OFF)

O BANDIDO ENTROU NA LOJA E ANUNCIOU O AS-


SALTO.

ELE ESTAVA ARMADO E ESCONDIA O ROSTO.

115
MAIS TARDE, O HOMEM SERIA RECONHECIDO PE-
LOS VENDEDORES DA PRÓPRIA RELOJOARIA.

(OFF)

Com base nessas poucas informações, o ilustra-


dor fez o que pôde, imaginando a cena.

116
A primeira versão do desenho não agradou, pois
o assaltante usava uma touca estilo ninja. Com boa
vontade, o ilustrador refez a arte.

117
De novo, a arte não foi aprovada. O assaltante
não portava um revólver, mas sim, uma faca pequena.
O designer bufou pela primeira vez.

118
Pela terceira vez, a pobreza de informações ge-
rou retrabalho. O assaltante era gordo e canhoto – de-
talhes que iriam ser decisivos para o reconhecimento
do suspeito na delegacia. Já irritado e bufando segui-
das vezes, o ilustrador refez seu trabalho.

119
De todos os elementos presentes na arte final,
só um constava no primeiro desenho: a corrente de
ouro. Todos os outros, que eram importantes para a
compreensão da dinâmica do assalto, não foram cita-
dos na primeira conversa entre o ilustrador e o editor
apressado.

Parece brincadeira, mas não é. Isso acontece por


falta de comunicação! Passe para o ilustrador TODOS
os detalhes possíveis, mesmo que nem todos esses
detalhes sejam levados ao ar.

Enfim, evite a máxima de que “em casa de ferrei-


ro, o espeto é de pau.”

3) TRAGA MODELOS DE ARTE QUE POSSAM AJU-


DAR COM A SUA EXPLICAÇÃO

Para facilitar o diálogo com o pessoal do Vi-


deografismo, leve ilustrações que sirvam de referên-
cia. Fotos, vídeos... isso ajuda a traduzir suas ideias.
Lembre-se de que o ilustrador é um profissional que
vive, essencialmente, no universo das imagens. Use,
portanto, imagens para inspirá-lo na hora de fazer um
pedido.

120
4) FAÇA UMA VISITINHA AO PESSOAL DA ARTE

Paralisar o trabalho de um artista (sim, os ilus-


tradores são artistas) é algo quase profano. Quebrar
seu momento de inspiração pode, inclusive, tirá-lo do
sério. Porém, com delicadeza, passe pela Arte e mos-
tre-se à disposição para dirimir eventuais dúvidas:

- Olá! Só passei pra saber se está tudo bem.


Qualquer coisa, é só me chamar, OK?

Atenção: não peça para ver a arte! Nenhum artis-


ta gosta de mostrar um quadro pintado pela metade.
Antes do render, a arte não “roda” direito, e o resultado
poderá te frustrar. Caso o designer queira mostrar o
andamento do trabalho, aí sim, você mata a sua curio-
sidade.

5) PROCURE NÃO FAZER GRANDES MUDANÇAS


NO OFF

Quando se fazem alterações substanciais no tex-


to enviado para o Videografismo, ocorre um problema
sério: o tempo do off muda. Com isso, as imagens cria-
das pelo ilustrador passam a não “bater” com o ritmo
da narração. Por vezes, isso leva o ilustrador a refazer

121
a arte inteira.

Se houver mudança no off, tente preservar, pelo


menos, o tempo de leitura do texto.

Trabalho jogado fora gera atrito desnecessário.

6) IDENTIFIQUE O ERRO NO PROCESSO

Pequenas mudanças são naturais depois que se


assiste a uma arte pela primeira vez. É comum que
surjam alterações de fontes (tipos de letra), cores e
até correções de texto. Ou, como vimos, existem casos
desgastantes de retrabalho, que turvam a relação dos
ilustradores com o pessoal da redação.

Quando houver algum pedido de mudança subs-


tancial em uma arte, tente entender o motivo. Onde
houve o ruído? Por que a demanda do editor destoou
do produto final apresentado pelo designer?

Em resumo: tempo gasto com planejamento


nunca é tempo perdido.

A “ SONO”

Como já vimos, o sonoplasta, produtor musical

122
ou editor responsável por “trilhar” uma reportagem
não participa da concepção de um VT. Seria impen-
sável que um sonoplasta, por exemplo, deixasse sua
estação de trabalho para acompanhar as reuniões de
pauta. Se ele, portanto, não vai à redação, que a reda-
ção vá até ele!

Essa é a primeira das dicas para melhorar a qua-


lidade de suas matérias usando uma ferramenta pode-
rosa: a “sono”.

1) CONVIDE O SONOPLASTA A PENSAR O V T

Saindo da reunião de pauta e entendendo que


sua reportagem deve ser sonorizada, vá falar com a
pessoa responsável pela “sono”. Explique o teor da
matéria e divida a responsabilidade pela criação do
VT. A “sono” é importante, especialmente, nos VTs es-
peciais, mais longos. Ela deve:

– pontuar momentos cruciais da reportagem;


– sugerir a reflexão para um determinado ponto
da matéria;
– dar ritmo à narrativa;
– ditar as emoções de uma história, como sus-
pense, tensão, alegria, etc...

123
Atenção:

A “sono” tem de estar perfeitamente alinhada ao


tom do VT. Não é nada raro ver, na televisão, matérias
cuja trilha sonora destoa do conteúdo e das emoções
contidas na história. Usa-se, muitas vezes, a trilha para
aumentar a dramaticidade da narrativa, um recurso
que mina a credibilidade da informação. É o que cha-
mo de “carregar na tinta”.

NÃO CARREGUE NA TINTA. Isso empobrece a


reportagem e é extremamente desrespeitoso com as
personagens que estão expostos no ar.

2) USE A “ CAMINHA” DE ÁUDIO

Nos trechos de maior dramaticidade da matéria,


você pode recorrer a uma trilha bem suave, à qual da-
mos o nome de “caminha de áudio”. Quando se com-
bina um momento de forte emoção com o que cha-
mamos de “música triste”, o resultado no ar pode ficar
piegas.

Na dúvida, prescinda da “sono”. Melhor um tre-


cho não sonorizado do que um segmento do VT “me-
lado”, “over” ou qualquer outra palavra sinônima para

124
“excessivamente carregado”.

3) ENTENDA COMO FUNCIONAM OS DIREITOS


AUTORAIS

Quase ninguém entende dos direitos autorais as-


sociados ao uso de trilhas sonoras. Vamos aqui dividir
as músicas em três grupos:

– trilhas brancas: pacote de músicas, quase sem-


pre instrumentais, comprados pelas emissoras de tele-
visão. Os compositores recebem direitos autorais so-
bre o uso das músicas por meio do ECAD, o Escritório
Central de Arrecadação e Distribuição.

O sonoplasta deve informar todas as trilhas usa-


das ao ECAD, citando os nomes dos autores, intérpre-
tes e o tempo da canção usado na matéria.

– trilhas free: disponíveis na internet, anunciam


dispensa de pagamento de direitos autorais. No en-
tanto, não há garantia de que um compositor, futura-
mente, não venha a acionar a emissora, cobrando seus
direitos.

– trilhas comerciais: se usadas sem autorização


e recolhimento de direitos autorais, geram problemas

125
sérios. Artistas como Roberto Carlos e Djavan, por
exemplo, já são conhecidos por não autorizar o uso de
suas composições. Canções dos Beatles também tem
o uso expressamente proibido.

Portanto, não adianta pedir para o sonoplasta


“trilhar” uma matéria sem antes conhecer os pacotes
musicais de que ele dispõe.

4) NÃO DEIXE A “ SONO” PARA A ÚLTIMA HORA

À medida que a matéria vai ficando pronta, envie


trechos para o sonoplasta. Enquanto se edita a segun-
da metade, por exemplo, mande a primeira parte para
a “sono”. “ Trilhar” uma reportagem também é trabalho
de artista, e artista não gosta de trabalhar sob pres-
são.

5) BUSQUE A TRILHA INÉDITA

Há alguns editores excepcionalmente bons na


caça por trilhas sonoras desconhecidas. De outros es-
tados. De outros países. Compostas por pessoas ou
bandas que estão fora do eixo comercial. Sugira, en-
tão, para o sonoplasta, o uso da trilha. Ele saberá dizer
se é ou não possível “trilhar” a matéria com a sua su-
gestão.

126
O fato de demonstrar curiosidade musical te fará
ganhar pontos com a equipe da “sono”.

Com o sonoplasta “brifado” e o pessoal do video-


grafismo já tocando as artes, bora pra ilha?

127
8. NA ILHA DE EDIÇÃO
Pra chegar até aqui, o oitavo e último capítulo do
Manual de Storytelling do Jornalista da TV, percorre-
mos cada metro quadrado da redação de uma emisso-
ra de TV. Da salinha da apuração, por onde chegam as
ocorrências policiais e os vídeos dos internautas, até
os segmentos da pós-produção (Arte e “sono”), viaja-
mos pela linha de montagem que transforma fatos em
notícias. Propositadamente, deixei para falar de edição
nas últimas páginas deste e-book. Entendo que, ao en-
trar na ilha, os editores já devam ter em mãos todas as
peças necessárias para montar o quebra-cabeça da
estrutura narrativa, quais sejam:

- as imagens, sonoras e passagens devida-


mente decupadas (em TV, decupagem é sinônimo de
transcrição);
- o roteiro escrito e aprovado, já prevendo “respi-
ros” e “sobe sons” ;
- os off s gravados;
- as artes pedidas (com envio prévio dos off s
guia);
- o conceito da “sono”, já discutido com o sono-
plasta.

Evidentemente, essa é a descrição do processo


ideal. Na prática, muitas vezes, os editores de texto es-
tão atarantados com o fechamento de duas ou mais

129
matérias ao mesmo tempo. Mal têm tempo de assistir
às imagens captadas pelo repórter cinematográfico.
Sobretudo para aqueles que trabalham com o chama-
do “factual”, editando VTs para os telejornais diários, a
corrida contra o relógio é cruel, e o processo de mon-
tagem das matérias vai do estresse ao caos. Nessas
horas, apela-se para a máxima em TV:

“ MATÉRIA BOA É MATÉRIA NO AR.”

A frase, claro, está longe de ser uma regra para


o jornalista da TV. Ela contém até uma certa dose de
ironia. É óbvio que nem toda reportagem merece ser
chamada de “boa”. Por falta de tempo – ou de critérios
–, a televisão brasileira exibe reportagens de qualida-
de sofrível. Inclusive, nos telejornais de âmbito nacio-
nal das maiores redes do país. Quase que diariamente,
veem-se erros elementares de gramática, mau apro-
veitamento das imagens, deslizes na condução das
entrevistas, falhas na construção dos roteiros e, inclu-
sive, descuido na apuração dos fatos.

Este manual, porém, não tem a pretensão de fa-


zer uma crítica ao trabalho dos colegas jornalistas. An-
tes, seria necessário analisar as condições de trabalho
oferecidas às equipes de reportagem e aos profissio-
nais das redações. “Cada um sabe onde aperta o sa-

130
pato.” Com a estrutura do departamento de Jornalismo
cada vez mais enxuta, produtores, editores e equipes
de reportagem têm se visto obrigados a fazer “mais
com menos”. Mais conteúdo com menos recursos e,
portanto, maior nível de cobrança e estresse. Daí, a
importância de se evitar o retrabalho e outros even-
tuais entraves à produção, usando de uma palavrinha
mágica nem sempre aplicada à nossa rotina: planeja-
mento.

Abaixo, vou descrever como a aplicação das téc-


nicas vistas até aqui fará total diferença no proces-
so de edição de uma matéria – a etapa final da linha
montagem. De cada capítulo, extrairemos um ou mais
pontos, a partir de uma situação levantada em uma
hipotética reunião de pauta: o flagrante de corrupção
em uma prefeitura do interior.

1) CONCEITO DE NOTÍCIA

Na reunião, um produtor sugere a pauta, que en-


volve o nome de uma conhecida empreiteira. Incon-
formado com a negociata entre a construtora para a
qual trabalha e uma repartição pública do município,
um funcionário antigo, com cargo de confiança, pede
demissão. Ele deixa emprego depois de trinta anos de
bons serviços. Não suportou testemunhar a relação

131
promíscua entre seus patrões e servidores de uma de-
terminada repartição pública.

Bela pauta! A sugestão atende a um princípio do


bom jornalismo, citado no capítulo um: notícia é o fato
fora da curva, tal qual...

“ ... o homem que mordeu o cachorro”.

Em um país contaminado pela corrupção, o co-


mum diante de uma situação notória de corrupção é
o silêncio, a complacência ou o envolvimento. Denun-
ciar, arriscando a própria pele, é um ato de nobreza tão
raro quanto o homem mordido pelo cão. É, infelizmen-
te, um fato fora da curva.

Além disso, temos, nessa história, um fato de...

...interesse público...
e não apenas de interesse DO público.

A propina paga pela construtora é sempre uma


contrapartida por algum tipo de favorecimento ilícito.

132
2) COMO EXTRAIR O MELHOR DE UMA HISTÓRIA

O homem que denunciou o suposto esquema


não é um simples entrevistado. Ele é o personagem do
VT. Precisamos conhecer mais de sua história pessoal.
Ele certamente terá algo de muito interessante para
nos contar.

Antes da entrevista, o repórter descobre um de-


talhe revelador da personalidade do denunciante. Seu
pai, criado num vilarejo do interior nordestino, preza-
va por valores como integridade e honradez. Preferiu
morrer pobre a se vender a um prefeito corrupto, para
o qual trabalhava como motorista. Ao negar se prestar
ao papel de “laranja”, foi demitido e passou dificulda-
des para manter a casa. Seus filhos cresceram com o
exemplo de um pai incorruptível.

De fato, “ toda pessoa é um livro” . Nosso perso-


nagem não foge à regra.

Ao levar a denúncia à delegacia, ele ainda apre-


sentou provas do pagamento da propina citada em
depoimento. Com uma câmera escondida no aparelho
de ar condicionado, filmou o exato momento em que
seu patrão, sócio da empreiteira, entregava maços de
dinheiro ao secretário de obras. Na imagem, de alta re-

133
solução, era possível identificar as notas de R$ 100,00.

Entendendo a força da imagem, o editor desta-


cou a cena do restante do conteúdo, valorizando o
flagrante na estrutura da narrativa.

Mais tarde, ele abriria o VT com o seguinte off,


ciente da importância de prender a audiência nos pri-
meiros vinte segundos da matéria (“ Técnica dos Vin-
te Segundos”, capítulo cinco)

(OFF)

A IMAGEM GRAVADA POR UMA CÂMERA ESCON-


DIDA PROVOU UMA VELHA SUSPEITA:

O RELACIONAMENTO ENTRE O DONO DE UMA


CONSTRUTORA E O SECRETÁRIO DE OBRAS DO
MUNICÍPIO ERA MOVIDA A DINHEIRO.

MUITO DINHEIRO...

(RESPIRO NA IMAGEM DOS MAÇOS SENDO


COLOCADOS À MESA)

(OFF)

134
O QUE ESTE FLAGRANTE TEM A VER COM AS
OBRAS SUPERFATURADAS DA RODOVIÁRIA?

ESTE HOMEM TEM A RESPOSTA.

(RESPIRO DA SILHUETA DO DENUNCIANTE)

O off de abertura criou o suspense para o de-


senrolar da narrativa. Na metade do VT, a imagem
seria novamente mostrada, com um off, preparando
o telespectador para a cena a que iria assistir.

A imagem é descrita minuciosamente, tornan-


do a destacar a força do flagrante.

(OFF)

ANALISANDO A IMAGEM QUADRO A QUADRO, OS


PERITOS CONTARAM O NÚMERO DE MAÇOS COM
NOTAS DE CEM REAIS...

VEJA:

UM...

DOIS...

135
TRÊS.

(RESPIRO)

DEPOIS DE UMA BREVE PAUSA,

MAIS DOIS MAÇOS.

(RESPIRO)

E MAIS DOIS!

(RESPIRO)

REVEJA A IMAGEM DA ENTREGA DOS ÚLTIMOS


DOIS MAÇOS COM NOTAS DE CEM REAIS.

O SECRETÁRIO DE OBRAS RI, COM EXPRESSÃO DE


SARCASMO.

(RESPIRO)

MAIS TARDE, A POLÍCIA DESCOBRIU QUE CADA


MAÇO CONTINHA DEZ MIL REAIS.

OU SEJA, APENAS NAQUELE ENCONTRO, QUE


DUROU TRÊS MINUTOS E MEIO, FORAM PAGOS

136
SETENTA MIL REAIS DE PROPINA.

(RESPIRO)

3) TEXTO PARA A T V

No segundo trecho de off, que você viu acima,


a palavra “respiro” é citada cinco vezes. Ali, o editor
usou a “ Técnica do P...-que-o-Pariu” de maneira bri-
lhante. Mentalmente, o telespectador foi convidado a
se enlaçar ao escândalo. Ele teve tempo de pensar ou
de manifestar de forma verbal toda a sua indignação
ou revolta quando:

a) o terceiro maço é depositado sobre a mesa;


b) os dois maços seguintes são passados de
um a outro;
c) os últimos dois são entregues ao secretário
de obras;
d) o secretário reage com sarcasmo;
e) o valor total da propina é somado.

Para calcular o tempo do respiro, os editores (de


imagem e texto) mentalizaram, em slow motion:

– P........-que-oooo-pariiiiiu!

137
Aplicando essa técnica, permitiram que o teles-
pectador experimentasse as sensações evocadas pela
imagem.

Apesar da importância do off e de seus respiros,


a maior parte da matéria é composta por trechos da
sonora feita com o denunciante. Não se veem fortes
expressões durante a fala, pois, por precaução, ele
foi filmado em silhueta, mas o tom de sua voz contém
a autenticidade de quem conta a própria história. A
melodia de sua voz, marcada por um delicioso sota-
que regional, reforça o inconformismo com o esque-
ma relevado à polícia.

Na hora da passagem, o repórter se atentou para


as palavras que definem a boa passagem:

– AQUI
– ESTE (OU NESTE)
– ESTA (OU NESTA)

(PASSAGEM)

O ENCONTRO ENTRE O DONO DA EMPREITEIRA


E O SECRETÁRIO DE OBRAS ACONTECEU NESTA
SALA, DENTRO DO PRÉDIO DA PREFEITURA.

138
AQUI, NO GABINETE DO SECRETÁRIO, O EMPRE-
SÁRIO PAGOU A PROPINA.

A MESA QUE APARECE NAS IMAGENS É ESTA.

POR ESTE ÂNGULO NÃO SE VÊ...

[CORTA PARA SEGUNDO PLANO, MOSTRANDO


GAVETEIRO]

MAS ELA CONTÉM QUATRO GAVETAS.

A ÚLTIMA ERA MANTIDA TRANCADA E SÓ O SE-


CRETÁRIO TINHA A CHAVE.

AO ARROMBAR A GAVETA, A POLÍCIA ENCON-


TROU MUITO MAIS DO QUE SETE MAÇOS DE DI-
NHEIRO.

4) ENTREVISTA

Durante a entrevista com o delegado respon-


sável pelas investigações, o repórter atentou em um
detalhe: a indignação do próprio policial. Ele estava
particularmente irritado com o sarcasmo do empresá-
rio corruptor. Ao chegar à delegacia, o dono da cons-
trutora havia se portado com extrema prepotência. Na

139
gravação, o delegado soltou a seguinte frase:

– Ele se mostrou um homem frio e sarcástico. In-


clusive, fez piada com um investigador da equipe. Es-
tava se achando acima da lei.

Na mesma hora, o repórter se valeu das pergun-


tas que denotam reação de surpresa:

– Sério? Como assim?

Aparentemente perdida na frase, a palavra “pia-


da” era uma preciosidade para o VT.

– Piada, doutor? O senhor poderia me dizer que


tipo de piada o empresário fez?

– Sim. Ele sussurrou no ouvido do investigador:


“Essa porcaria de inquérito não vai dar em nada...”

5) ROTEIRO E FÓRMULA DA AUDIÊNCIA

Como se tratava de um VT longo, de quinze minu-


tos, era preciso alimentar o interesse do telespectador
em esperar pelo clímax do VT: a prisão em flagrante
do secretário, dentro de seu gabinete. Com vimos no
capítulo cinco do Manual de Storytelling do Jornalis-

140
ta da TV, o telespectador pode se encantar com as
intenções sugeridas pela reportagem e, repentina-
mente, se retirar da “ mesa de jantar ”.

Dessa vez, o repórter e o editor lançaram mão da


“ Técnica da Segunda Escalada” . Ainda na primeira
metade da matéria, escreveram um off curto, porém
estratégico, logo após a entrevista com o delegado.

(OFF)

MAS O INQUÉRITO CONTINHA UM ELEMENTO ES-


SENCIAL:

(CORTA PARA IMAGEM DE POLÍCIAIS CHUTANDO


A PORTA DO GABINETE)

A PROVA DO CRIME!

(SOBE SOM DOS POLICIAIS ARROBANDO A GAVE-


TA)

AINDA NESTA REPORTAGEM, VOCÊ VAI VER A


REAÇÃO DOS POLICIAIS NA HORA EM QUE EN-
CONTRARAM A PROPINA.

[SOBE SOM DOS POLICIAIS COMEMORANDO]

141
6) NARRAÇÃO

O repórter da matéria dominava as técnicas de


narração para a TV e soube usá-las sob medida para
enfatizar as palavras-chave de seu off. Na frase aci-
ma, ele usou os seguintes recursos:

(OFF)

MAS O INQUÉRITO CONTINHA UM ELEMENTO ES-


SEEENCIAAAL (o tom agudo):

(CORTA PARA IMAGEM DE POLÍCIAIS CHUTANDO


A PORTA DO GABINETE)

A PROVA DO CRIME! (o tom grave)

(SOBE SOM DOS POLICIAIS ARROBANDO A GAVE-


TA)

AINDA NESTA REPORTAGEM, VOCÊ VAI VER AS


REAÇÃO DOS POLICIAIS (...) NA HORA EM QUE
ENCONTRARAM A PROPINA. (pausa antes da pala-
vra)

(SOBE SOM DOS POLICIAIS COMEMORANDO)

142
Enquanto o repórter gravava os últimos depoi-
mentos para o VT, o pessoal do videografismo já pre-
parava duas artes pedidas com bastante antecedên-
cia pelo editor. Em uma primeira ilustração, ele queria
localizar o gabinete do secretário dentro do prédio
da prefeitura. Era importante mostrar a proximidade
da sala com o gabinete do prefeito, também suspeito
de envolvimento no esquema. Veja o off guia gravado
pelo repórter:

(OFF)

COM BASE NA PLANTA DO PRÉDIO DA PREFEITU-


RA, VOCÊ VAI VER QUE O GABINETE DO SECRETÁ-
RIO FICAVA LOCALIZADO NUM PONTO ESTRATÉ-
GICO.

A SALA DELE É ESTA, ASSINALADA NA IMAGEM,


NO QUINTO ANDAR DO EDIFÍCIO.

NO MESMO CORREDOR, HÁ UMA GUARITA DA


GUARDA MUNICIPAL.

MAIS À FRENTE, DEPOIS DE UMA ANTESSALA, HÁ


UM OUTRO GABINETE.

É ALI QUE DESPACHA O PREFEITO, TAMBÉM SUS-

143
PEITO DE TER RECEBIDO PROPINA DA CONSTRU-
TORA.

Além dos setenta mil reais, a polícia encontrou,


na gaveta do secretário de obras, duzentos mil dóla-
res, cinco relógios caríssimos e muitas joias. Somando
os bens e o dinheiro em espécie, chegou-se a um valor
aproximado de dois milhões de reais.

Para dar a dimensão da fortuna desviada pelo


servidor corrupto, o repórter sugeriu uma segunda
arte:

(OFF)

COM ESSA FORTUNA – PAGA PELA PREFEITURA


EM OBRAS SUPERFATURADAS, A CIDADE PODE-
RIA...

COMPRAR CINCO AMBULÂNCIAS NOVAS PARA O


SAMU, O SERVIÇO MÓVEL DE ATENDIMENTO DE
URGÊNCIA...

OU CONSTRUIR DUAS ESCOLAS DE ENSINO FUN-


DAMENTAL...

OU, ENTÃO, TRÊS CRECHES NA PERIFERIA.

144
À medida que os ilustradores preparam essas
duas artes, o responsável pela “sono” já separa trilhas
que possam se encaixar na “pegada” do VT. Tomado
de trabalho como de costume, ele não pôde ir à re-
união de pauta. O repórter e o editor foram então à
sonoplastia e deram o briefing para o colega sono-
plasta.

7) O GRAND FINALE (CAPÍTULO CINCO)

O que eu sugeriria para fechar esse VT? Ora, a


“ Técnica da Metonímia” , ainda não citada neste ma-
nual.

Metonímia, como todo mundo sabe, é uma figu-


ra de linguagem. Uma das maneiras de se usar este
recurso da língua portuguesa é substituindo uma pa-
lavra por outra, “tomando a parte pelo todo”. Apropriei-
-me desse conceito para batizar a técnica, que pode
ser extremamente útil para você.

Qual é o TODO? O dinheiro público.

Qual é a PARTE? A criança que não tem creche.

Roubando dinheiro público, crianças ficam sem


creche.

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Eu iria para a periferia sem creche e mostraria
o drama das mães trabalhadoras que não tem com
quem deixar seus filhos. A PARTE mostra, na prática,
os danos causados pelo assalto ao que é de TODOS.

Caso eu não tivesse uma sonora impactante para


fechar o VT, como a fala de uma mãe revoltada pela
falta de creches ou uma declaração forte do perso-
nagem do VT – o denunciante –, eu usaria o recurso
do off final que resume o teor da reportagem. Algo
como:

(OFF)

QUANDO SOUBE DA PRISÃO PREVENTIVA, O EM-


PREITEIRO NÃO TORNOU A FAZER PIADA...

O PRÓPRIO DELEGADO FEZ QUESTÃO DE CONDU-


ZI-LO PARA O XADREZ.

(RESPIRO)

ATÉ QUE SE JULGUEM OS RECURSOS DA DEFESA,


QUEM RI POR ÚLTIMO NESSA HISTÓRIA... RI ME-
LHOR.

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(SOBE SOM FINAL – DELEGADO TRANCA O
CADEADO DA CELA)

(IMAGEM FINAL – EMPRESÁRIO ESCONDE O


ROSTO COM UNIFORME DA PRISÃO)

(FADE OUT)

(FIM)

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9. CONCLUSÃO
Contar histórias é uma arte milenar baseada na
palavra. A TV, pois, reinventou o storytelling. Ingleses
atribuem ao escocês John Logie Baird a invenção da
primeira máquina do mundo capaz de transmitir ima-
gens de um lugar para outro. Foi em 1925. Os america-
nos citam Philo Farnsworth como o pai do aparelho de
TV. O nome de um russo, Vladimir Zworykin, também
aparece como o pioneiro da “tele” (do grego, distante)-
-“visão” (do latim, visione). A despeito da controvérsia
histórica, a transmissão de imagens à distância virou
de cabeça para baixo a maneira como o ser humano
passou a transmitir conhecimento por meio das histó-
rias. A fotografia já havia antecipado o poder espanto-
so da imagem. De fato, uma única imagem vale mais
que mil palavras. Que dirá trinta ou mais imagens em
um único segundo...

Nós, contadores de histórias na TV, sabemos do


impacto na transformação de vidas proporcionado
pelo veículo. Tendemos, na verdade, a subestimá-lo.
Em 2017, a Pesquisa Nacional de Amostra por Domicílio
(PNAD) mostrou que 96,7% dos domicílios brasileiros
possuíam aparelho de televisão. A mesma pesquisa
revelou que 74,9% dos domicílios tinham acesso à in-
ternet. A abrangência da TV no Brasil supera, inclusi-
ve, nossa cobertura de água tratada. Segundo o Plano
Nacional de Saneamento Básico de 2018, 83,3% dos

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brasileiros tinham acesso a água boa para o consu-
mo – 13,4 % a menos do que aqueles que têm TV em
casa.

Mesmo com o crescimento do acesso à internet,


segundo a PNAD (69,3% em 2016; 74,9% em 2017), o
brasileiro apontava a televisão como seu meio favori-
to para receber informação. Das pessoas entrevista-
das pela Pesquisa Nacional de Amostra, realizada pelo
IBGE, 63% disseram preferir se informar pela TV; 26%
pela internet. Os entrevistados declararam assistir de
três a quatro horas de televisão por dia, tanto duran-
te a semana quanto aos sábados e domingos. Mais
da metade das quinze mil pessoas ouvidas reconhe-
ceram acreditar sempre ou muitas vezes nas notícias
veiculadas pela TV.

Na maré das fake news, que desinformam e con-


fundem a sociedade, os canais de televisão – com as
devidas ressalvas – ainda têm se mostrado, de acordo
com levantamentos oficiais, uma fonte relevante e se-
gura de acesso à notícia. Portanto, nós, jornalistas da
TV, seguimos tendo um papel importante para levar
informação de boa qualidade aos lares desse país com
tamanho de continente.

Ainda que as emissoras de TV atravessem um

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período de profunda turbulência, diminuindo quadros
e cortando salários de seus contratados, não podemos
perder de vista nosso papel como vigilantes das ações
do estado, bem como de contadores de histórias ins-
piradoras e, quase sempre, anônimas. Cabe a nós dar
visibilidade a um Brasil desconhecido e merecedor de
aplausos. É nosso dever farejar boas personagens que
nos emocionem e que nos motivem a construir um
país menos desigual.

A mais apaixonantes das profissões está viva.


Como tudo na vida, ela está apenas se repensando...
É da essência humana a arte de transmitir conteúdo,
mesmo antes de Zworykin, Farnsworth e Baird. Assim
a humanidade evolui – por meio da oralidade, dos li-
vros, dos jornais, do rádio e da TV, e, assim, seguirá,
por meio de outras plataformas ainda, hoje, impensá-
veis. Qualquer que seja o caminho, algo parece incon-
teste: tudo passará pela arte milenar de contar boas
histórias.

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AGRADECIMENTOS

A Alex Balduíno, André Dedos, André


Barreto, Antonio Dônola, Daniel Barreto,
Ivan Freitas, Júlia Ester, Osana Barreto e
Roberta Salomone, que têm me ensinado
nas formas de se contar uma história.

Ao mestre Jotair Assad, pelas aulas no


Globo Repórter.

Ao meu pai, João Wagner Dônola Júnior,


para quem jornalismo se resumia a uma
palavra: contestação.
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