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éculo - BB…
20 agosto 2019
Quando era criança, Maria do Nascimento ficou marcada pelas reuniões em que as "tias", as
mulheres mais velhas que povoavam sua infância em Ramos, na zona norte do Rio, de
repente baixavam o tom de voz e falavam com mágoa sobre "as nossas coisas que estão
nas mãos da polícia".
"Elas falavam muito sentidas. Eu percebia que elas se sentiam impotentes", diz a versão de
82 anos daquela menina - que se tornou a iyalorixá Mãe Meninazinha de Oxum, respeitada
mãe de santo do candomblé no Rio de Janeiro, à frente do terreiro Ilê Omolu e Oxum, em
São João de Meriti, município na região metropolitana do Rio.
"Eu cresci ouvindo isso. Chegou uma época em que me senti responsável por fazer alguma
coisa, já que elas não puderam fazer."
Já adulta, a iyalorixá foi entender que aquelas coisas nas mãos da polícia, sempre cunhadas
de "nossas", eram objetos sagrados do candomblé e da umbanda, que foram apreendidos
em batidas policiais em terreiros no início do século, quando religiões de matriz africana eram
perseguidas com base em artigos do Código Penal de 1890 e, posteriormente, de 1942.
O acervo está até hoje nas mãos da polícia: pertence à coleção do Museu da Polícia Civil do
Estado do Rio de Janeiro, no prédio que já foi sede do Departamento de Ordem Política e
Social (Dops), centro de tortura e repressão durante a ditadura militar.
Desde 2017, a campanha Liberte Nosso Sagrado reivindica a transferência da coleção para
outro espaço, com o apoio de outras mães de santo, pesquisadores, ativistas do movimento
negro, organizações da sociedade civil e a Comissão de Direito Humanos da Assembleia
Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) - dando corpo a pedidos feitos há décadas por lideranças
como a Mãe Meninazinha de Oxum.
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04/09/2019 A longa luta para tirar itens sagrados de umbanda e candomblé do Museu da Polícia, que os confiscou há mais de um século - BB…
Com a mudança do governo do Rio e da cúpula da Polícia Civil do Estado do Rio (PCERJ),
entretanto, na quinta-feira (23) se completa um ano desde que o acordo foi assinado sem
que qualquer definição sobre a transferência da coleção tenha sido alcançada.
Consultada pela BBC News Brasil, a direção do Museu da Secretaria de Estado de Polícia
Civil afirma que a coleção está sendo catalogada e "a possibilidade de uma cessão
temporária das peças para exposição no Museu da República está sendo analisada pela
instituição".
"Para nós, é uma vergonha. Não pode continuar. Enquanto Deus me der vida e saúde, eu
vou continuar na luta", diz Mãe Meninazinha de Oxum.
'Magia Negra'
O conjunto de objetos confiscados pela polícia no início do século passado foi tombado pelo
Iphan em 1938 com o nome de coleção da "Magia Negra" - o primeiro tombamento do então
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan), fundado um ano antes pelo
governo Getúlio Vargas.
Durante décadas, os objetos ficaram expostos no Museu da Policia Civil ao lado de armas de
fogo, bandeiras nazistas e outras apreensões históricas ligadas ao crime no Rio.
A campanha pela reparação histórica após a perseguição religiosa sofrida no passado deu
origem a um inquérito civil que tramita no Ministério Público Federal (MPF).
De acordo com o procurador responsável, Renato de Freitas Souza Machado, o acervo tem
521 itens - como roupas, atabaques, vestimentas de orixás, fios de contas e os chamados
assentamentos, objetos que são representações sagradas de orixás. Além dos itens da
coleção tombada originalmente, muitos foram agregados ao conjunto posteriormente.
Até o fim dos anos 1990, partes da coleção eram expostas ao público no Museu da Polícia
Civil. Depois, passaram para o arquivo da instituição, inacessível ao público.
A situação piorou nos anos 2000: o prédio da Rua da Relação que abrigou o Dops teve sua
estrutura abalada pela construção de duas torres de um centro empresarial da Petrobras.
Mesmo após reformas, o prédio continua fechado - e a coleção ficou guardada em caixas de
papelão em um anexo no mesmo terreno.
"O museu está fechado há anos, e as peças estavam em caixas, sem controle de
temperatura e umidade, se deteriorando. Há muitos itens de material orgânico, de madeira,
de tecido, e havia traças dentro das caixas", diz Machado, que acompanhou uma vistoria
feita pelo Iphan.
Desde o início do ano, a coleção está sendo vistoriada e catalogada pelo Iphan, com técnicos
indo ao Museu da Polícia regularmente para fazer fichas para cada objeto e registrá-los no
sistema do instituto, além de identificar o que fazia parte do tombamento original e o que foi
agregado depois de 1938.
Mônica da Costa, que até o início de agosto ocupava o cargo de superintendente do Iphan-
RJ, explica que identificar os itens é trabalhoso, já que a lista original da coleção tombada é
genérica, falando por exemplo em um "colar", simplesmente, cabendo aos técnicos identificar
se é uma guia ou outro item.
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Por se tratar de acervo tombado, uma eventual transferência precisa ser informada e
acompanhada pelo Iphan. Entretanto, ela ressalta que não cabe ao órgão opinar sobre o fato
de estar ou não com a Polícia Civil. "Nossa função é vistoriar todos os acervos tombados
para ver se a preservação está adequada", afirma Costa a BBC News Brasil.
"É uma questão moral, mas também de reparação histórica e de combate ao racismo", diz
Teobaldo, curador do Instituto Pretos Novos, na região portuária do Rio.
"Cada objeto carrega uma grande história, contando sobre os líderes religiosos que fizeram a
história do candomblé e da umbanda. Mas há também a história do contexto em que esses
objetos foram apreendidos, que precisa ser contada", ressalta.
Para ele, a exposição da coleção em um espaço neutro, fora do contexto policial, pode ser
um instrumento educativo e de combate à intolerância religiosa.
"Seria uma linda forma de ensinar as pessoas sobre o que são as religiões de matriz
africana, sobre a importância que têm, e a aceitar a diferença", diz Teobaldo. "Até porque a
intolerância religiosa não terminou. O racismo religioso continua", lamenta.
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Teobaldo acompanhou algumas das vistorias do Iphan e fotografou alguns dos objetos da
coleção. Ele diz que as peças são frágeis, de material orgânico, e algumas estão
desmanchando.
"Além disso, alguns objetos nem poderiam ser expostos, pela sacralização que tiveram no
contexto das religiões de matriz africana. São coisas que não se mostram", diz Teobaldo.
Ela se debruçou sobre processos criminais embasados em artigos dos códigos penais de
1890 e de 1942, que serviram como base para criminalizar as crenças de matriz africana -
muito embora não falassem nelas nominalmente e apesar de a Constituição de 1891, a
primeira do Brasil República, proteger a liberdade de culto.
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O Código Penal de 1890 estabelecia como crime, por exemplo, "praticar o espiritismo, a
magia e seus sortilégios, usar de talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de
ódio ou amor, inculcar cura de moléstias curáveis e incuráveis, enfim, para fascinar e
subjugar a credulidade pública" (artigo 157).
"Esses artigos eram usados para fazer batidas policiais nas casas de culto, terreiros e
centros espíritas, apreender todos os objetos enquanto possíveis provas e prender pessoas
para averiguação", diz a historiadora. Tais crimes ficavam sob responsabilidade de uma
inspetoria dedicada a "tóxicos, entorpecentes e mistificações".
Fernandes foi levada ao tema depois de ler sobre "um certo Museu da Magia Negra", que
depois entendeu ser uma coleção dentro do Museu da Polícia, o acervo tombado pelo Iphan.
"O que me chamou a atenção de cara foi o nome desse acervo, associado a algo maléfico",
lembra.
O documento resumiu as medidas tomadas e apontou para a "a natureza frágil do acervo",
as "condições inadequadas" para a conservação do acervo no Museu da Polícia, o "elevado
interesse" das comunidades de matriz africana e científica no acervo e a concordância
expressa tanto pela Polícia Civil quanto pelo Museu da República em receber o acervo.
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De acordo com o procurador Renato Machado, do MPF, o próximo passo agora cabe à
Polícia Civil. "A bola está com eles", considera.
O procurador lembra, entretanto, que há muitos interesses em jogo. A Polícia Civil resiste em
abrir mão do acervo por ser uma parte relevante da coleção de seu museu - e um argumento
a mais para que mantenham a posse do prédio histórico do Dops, reivindicado por entidades
de direitos humanos e ex-presos políticos para virar um centro de memória sobre as
violações da ditadura.
Uma nota de abril deste ano da Associação de Amigos do Museu da Polícia Civil (Aampol)
demonstra essa resistência. O presidente da associação, José Maria Herdy de Barros,
expressou sua rejeição à "inapropriada reinvindicação" feita pela campanha, que atribuiu a
"grupos de esquerda que mantêm uma série de injustas e incorretas posições críticas contra
a Polícia Civil", defendendo a "importante coleção de peças oriundas das religiões de matriz
africana" como patrimônio do museu, "preservada no curso dos anos por várias gerações de
policiais".
No terreiro Ilê Omolu Oxum, em São João de Meriti, a iyalorixá Mãe Meninazinha de Oxum
diz ter "muita esperança" de recuperar aquelas coisas que, desde criança, aprendeu a
chamar de "nossas". "Aquilo é o nosso sagrado. Eles sequestravam o nosso sagrado. Tudo
que está lá, na polícia, nos pertence", diz, emocionada.
"Nós vamos conseguir. Não para trazer para casa ou para o terreiro. Mas para ter um
ambiente digno para receber nosso sagrado, para que as pessoas possam conhecer um
pouco da história daquelas peças e o que nós passamos para chegar até aqui", diz.
"Infelizmente, estamos passando por tudo outra vez", afirma, referindo-se à onda de ataques
a terreiros no Rio. "Um grupo de fanáticos está fazendo a mesma coisa que a polícia fez no
passado. Invadem os barracões, quebram tudo. Com a diferença de que não levam nada.
Esses só querem destruir", lamenta a iyalorixá.
"Por que o nosso sagrado tem que estar no Museu da Polícia? Nós não praticamos nenhum
crime. Não é crime a gente ser de orixá."
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