Você está na página 1de 4

Endereço da página:

https://novaescola.org.br/conteudo/922/entrevista-
com-alain-bergala

Publicado em NOVA ESCOLA Edição 255, 01 de Setembro | 2012

Prática Pedagógica

Entrevista com Alain


Bergala
Especialista francês defende a presença da sétima arte
nas escolas não só para explorar técnicas de produção e
conteúdos curriculares. Para ele, os filmes são úteis para
discutir questões universais, como a amizade
Beatriz Vichessi

Provocativo, Alain Bergala defende que as


obras cinematográficas merecem um espaço
na Educação tão importante quanto os livros.
O cineasta, crítico de cinema e professor da
Universidade Paris III, na França, tem
consciência do peso e do impacto dessa ideia:
foi o responsável por torná-la realidade entre
o fim década de 1990 e o início dos anos 2000
em seu país.

Convidado pelo então ministro da Educação


Alain Bergala
Jack Lang, Bergala integrou a equipe do
projeto Plan de Cinq Ans pour les Arts et la
Culture (em português, Plano de Cinco Anos para as Artes e a Cultura) e
elaborou ações e material para reintroduzir a cultura cinematográfica nas
regiões em que ela havia desaparecido e desenvolvê-la onde as pessoas só
tinham acesso a filmes comerciais ou nem isso, caso do interior do país. Um
dos produtos foi a coleção de DVD L'Éden Cinéma, com diversas produções
renomadas distribuídas para todas as escolas. A proposta era que, além de
ser usada para trabalhar conteúdos curriculares e organizar estudos sobre o
gênero propriamente dito, a coletânea fosse explorada para promover
debates sobre as histórias. "Tal como as pessoas costumam fazer depois de
uma sessão: elas falam sobre os personagens que formam o casal romântico,
por exemplo. O cinema foi feito para isso", ele defende.
Em visita ao Brasil para participar da 7ª Mostra de Cinema de Ouro Preto
(CineOP), o especialista concedeu uma entrevista a NOVA ESCOLA. Bergala
discorreu sobre o valor do gênero para explicar e exemplificar certas
situações da vida às crianças e aos jovens e recomendou alguns filmes -
dentre eles, um brasileiro.

A experiência de assistir a títulos interessantes na infância é diferente daquela


proporcionada mais tarde?
ALAIN BERGALA Sim.Para as crianças, o cinema é uma possibilidade de
experimentar a vida. Quando jovens, já temos certa bagagem e nos
apropriamos do que vimos na tela de outro modo, e não como um anúncio
de sentimentos e emoções. Quando pequenos, temos experiências e
vivências sobre a família, a casa, a escola. O restante, como o mundo, o amor
e a violência, pode ser aprendido com diversos vieses por meio dos filmes.
Muito do que se vê nas telas é uma prefiguração da vida dos adultos e ajuda
a criar suposições sobre o futuro.

Por que é importante aproximar o cinema da Educação?


BERGALA Osfilmes são uma fonte muito importante para a formação do
imaginário, ainda mais na atualidade, em que as crianças leem pouco. A
garotada também passa bastante tempo jogando videogame e na internet.
Quando defendo a cultura cinematográfica, considero válido assistir aos
vídeos na televisão ou em salas de exibição. Não importa o local, desde que
garantidas a qualidade e a diversidade do material.

De que forma o cinema foi contemplado no Plano de Cinco Anos para as Artes e a
Cultura?
BERGALA Depois de salvar a produção cinematográfica da França com
investimentos e incentivos quando foi ministro da Cultura, Jack Lang assumiu
a pasta da Educação e firmou a ideia de que era preciso garantir um contato
estreito entre o mundo das artes e os estudantes e incluiu o gênero. Ele
estabeleceu que o foco seria o cinema como arte: o estudo deveria
contemplar mais que a linguagem cinematográfica e suas técnicas. Também
deixou claro que o plano tinha de garantir a democratização. Essas diretrizes
balizaram a elaboração do material para as escolas, principalmente a coleção
L'Éden Cinéma, com DVDs de filmes clássicos e curtas-metragens. Dessa
maneira, todos os alunos franceses, inclusive aqueles das escolas do interior
do país com uma só turma, teriam acesso a esse mundo. O resultado foi
imediato: os educadores aderiram à ideia - não somente os das disciplinas da
área de humanas. Professores de Educação Física se ofereceram para
organizar sessões. Mas, embora o combinado fosse que o projeto durasse
cinco anos, houve uma mudança política e as coisas ficaram um pouco
estagnadas. Deveríamos ter entregue uma coleção de 100 DVDs, mas no final
foram somente 32.

A coleção L'Éden Cinéma é eclética, com obras do inglês Charles Chaplin (1889-1977),
do iraniano Abbas Kiarostami e de origem africanas. Quais os critérios para reuni-las?
BERGALA O primeiro foi a diversidade, ter mais que produções francesas. A
seleção deveria contemplar o cinema mundial para que os alunos
conhecessem o panorama. O ministro Lang chegou a pensar que a coletânea
poderia ter somente filmes europeus. Mas não fazia sentido. Seria como
ensinar literatura apresentando aos estudantes só os autores europeus. O
segundo foi escolher títulos indiscutíveis do ponto de vista artístico. Essa
responsabilidade ficou inteiramente na minha mão e me rendeu algumas
inimizades no ministério: para garantir a qualidade, o projeto custou muito
dinheiro, pois não se tratava de quaisquer filmes. A linha editorial era tão
clara a ponto de não ter me preocupado em incluir na coleção obras que
seriam cobradas no baccalauréat (exame de qualificação acadêmica que os
estudantes prestam ao final do Ensino Médio para ingressar no Ensino
Superior), como alguns professores fazem.

Um dos títulos selecionados é O Evangelho Segundo São Mateus, do italiano Pier


Paolo Pasolini (1922-1975) e a França é um estado laico. Não é uma contradição?
BERGALA Quero esclarecer que não foi uma escolha passional. Considerei o
valor do material para a história do cinema e os debates que poderiam ser
levantados. Mesmo assim, antes de incluí-la, pedi autorização ao ministro.
Essa decisão tem a ver, além de ser um filme que trata de um evangelho, de
ter sido feito por um homossexual - isso poderia gerar problemas. Expliquei a
Lang que era extremamente necessário tê-lo no acervo, pois é uma obra de
qualidade e beleza indiscutíveis, e ele aceitou minha defesa. Também me
preocupei em reafirmar que o título trata de um momento que tem um peso
histórico para a humanidade: no DVD, estão inseridas 80 obras de arte, desde
o Renascimento até o presente, representando sequências do Evangelho para
o professor discutir com os alunos.

Alguns educadores usam filmes para trabalhar conteúdos curriculares. Isso é ruim?
BERGALA Não,tanto que com os DVDs da coleção, os educadores recebiam
sugestões de temas para trabalhar com a turma. Mas é fundamental saber
que é perigoso escolher uma obra levando em conta só o que precisa ser
abordado em classe. Existe uma hierarquia. O que deve vir em primeiro lugar
é o cinema propriamente dito. As obras devem ser selecionadas para a sala
de aula pelo que são e não somente porque têm assuntos a ser estudados.

Para que uma obra seja útil na exploração de um conteúdo ou suscite uma discussão
relevante sobre um tema da atualidade, é preciso que o professor apresente-a na
íntegra?
BERGALA Não.Sei que nem sempre há tempo para sessões de uma hora ou
uma hora e meia de duração. Utilizar trechos é interessante e possível. No
entanto, o professor precisa compreender que uma parte isolada não serve
para muita coisa. Ele precisa ter o compromisso de selecionar vários títulos,
escolher pedaços de cada um e criar condições para que a garotada
estabeleça conexões entre eles. O YouTube é uma ferramenta incrível para
realizar essa tarefa. Existem muitas, muitas produções dos mais diversos
países à disposição de quem quiser. Com essa ferramenta, o educador pode
pedir que os alunos assistam a diversas partes de filmes pré-selecionados por
ele como lição de casa e organizar uma discussão na aula seguinte. Esse
também é um jeito de usar a internet de um modo inteligente. Não podemos
esperar que mesmo diante de um conteúdo vasto, as crianças e os jovens
saibam o que escolher para assistir. Eles tendem a selecionar o que já
conhecem ou o que está em destaque na mídia - isso não é ruim, apesar de
ser insuficiente.

Alguma produção brasileira poderia integrar a coleção?


BERGALA Cheguei a pensar sobre isso, mas não tive tempo de encontrar algum
título representativo do Brasil: como disse, o projeto foi interrompido. Mas
asseguro que não teria elegido um filme sobre a violência nas favelas, algo
que está tão na moda hoje em dia. Para mim, isso não é o cinema brasileiro. É
a expressão de uma herança norte-americana. Talvez uma opção fosse
Central do Brasil, de Walter Salles. A história e as relações entre as pessoas
são muito interessantes.

Qual produção pode ser indicada a fim de despertar o interesse das crianças e os
jovens para o cinema?
BERGALA Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, de Kiarostami, chama a atenção de
todas as faixas etárias e é um dos filmes da coletânea de DVDs. Conta a
história de um menino que, mesmo proibido de ir ao outro lado da colina,
sabe que seu amigo que está lá será expulso da escola se ele não lhe entregar
um caderno. Então, o garoto infringe a lei social para ajudar o companheiro.
Já apresentei essa obra a crianças japonesas e elas ficaram tão interessadas e
presas à história quanto as francesas. Não é à toa: ela aborda um tema
universal, a amizade.

Você também pode gostar