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Dória, L. B. & Burrowes, P. C. (2019).

Um “novo homem”
para o consumo: a representação da masculinidade em
propagandas de Avon e Natura. Consumer Behavior
Review, 3(Special Edition) 1-13.

ISSN: 2526-7884 Avaliação: Double blind review


Editor: Prof. Dr. Marconi Freitas da Costa Recebido: 20 de julho de 2019
Email da revista: cbr@ufpe.br Aceito: 21 de setembro de 2019

UM “NOVO HOMEM” PARA O CONSUMO: A


REPRESENTAÇÃO DA MASCULINIDADE EM
PROPAGANDAS DE AVON E NATURA
Leonardo Botelho Dória
Patricia Cecilia Burrowes

Leonardo Botelho Dória é Bacharel em Resumo


Comunicação Social/Publicidade e Este trabalho aborda a questão das representações do
Propaganda, pela Escola de Comunicação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro gênero masculino/masculinidade na publicidade,
(ECO/UFRJ). apresentando como objeto de estudo três campanhas
E-mail: leobotelho95@gmail.com publicitárias veiculadas pela Avon e pela Natura entre
Patricia Cicilia Burrowes Professora Adjunta 2016 e 2017: “Para TodEs”; “Toda beleza pode ser” e
do Departamento de Expressão e
Linguagens da Escola de Comunicação da
“Lançamento da linha Natura Homem”. A metodologia
Universidade Federal do Rio de Janeiro de abordagem qualitativa utiliza o método da análise de
(ECO/UFRJ). conteúdo. Foi elaborado um quadro que cruza as
E-mail: vermelha.red@gmail.com dimensões retórica, estética, informacional e
Os autores agracedecem aos avaliadores promocional do modelo de literacia publicitária de
pelos comentários para melhoria do artigo.
Malmelin, com aspectos extraídos do material analisado:
personagens; figurinos; cenários; cores; trilha sonora;
tom de voz; gestos e ações. Verifica-se um esforço das
marcas para desconstruir a imagem do “homem macho”,
embora muitos elementos recaiam nos estereótipos de
gênero. Ambas empregaram estratégias de persuasão
baseadas no engajamento na causa e nos valores da
diversidade. Conclui-se que as marcas se apropriam de
imagens e discursos socialmente valorizados, com o
intuito de atrair nichos de consumidores.
Palavras-chave: Masculinidade. Gênero. Publicidade.

Esta obra está licenciada com uma Licença Creative Commons Atribuição 4.0 Internacional.

Consumer Behavior Review, 3(Special Edition), 1-13. 1


Dória e Burrowes (2019)

INTRODUÇÃO supracitadas, como a sensibilidade e a vaidade,


A ascensão dos movimentos sociais, tais por exemplo. Por meio da investigação desse
como o movimento feminista e o LGBT, tem sido novo perfil masculino, procura-se responder
responsável por inúmeras mudanças na qual é o papel das marcas ao disseminar essas
sociedade contemporânea. O histórico de luta e recentes construções de gênero no discurso
reivindicações por direitos trouxeram publicitário. Assim, pretende-se analisar as
conquistas capazes de proporcionar uma representações existentes nas peças
reorganização político-social pautada na publicitárias, compreendendo e apresentando
tentativa de romper com os modelos as novas identidades de gênero, ao passo que,
normativos, possibilitando que discussões por uma perspectiva crítica, serão apontados os
acerca das questões de gênero ganhassem possíveis interesses envolvidos.
visibilidade e provocassem questionamentos
em torno de alguns temas como a hegemonia PUBLICIDADE, GÊNERO E
masculina, a heterossexualidade compulsória e
o arquétipo de masculinidade. Já é possível
MASCULINIDADE
perceber alguns efeitos desta mudança, como A discussão em torno de gênero tem
por exemplo o crescente empoderamento ganhado atenção no meio acadêmico desde a
feminino ou o surgimento das novas década de 60, sobretudo devido ao surgimento
masculinidades que divergem da noção de dos Estudos de Gênero em meados do século XX.
homem tradicional, ou seja, aquela que o Segundo Scavone (2008), a origem histórica do
associa como um ser másculo e viril. conceito de gênero se encontra nas Ciências
Diante desse contexto, muitas marcas Sociais, quando autores de vertentes distintas
percebem novas possibilidades de mercado, começam a desconstruir dicotomias clássicas,
uma vez que a lógica mercantilista exige uma dentre elas a tradicional indivíduo e sociedade,
reestruturação do próprio mercado por conta que dá margem ao estudo da diferenciação
das novas configurações sociais. O surgimento social. Matos (2008) aponta que os movimentos
de potenciais nichos de consumidores a ser organizados por mulheres e por grupos
explorados e conquistados leva muitas marcas a feministas, entre os anos 30 e 70 do século XX,
se apropriarem da imagem e do discurso de originaram os estudos feministas ou estudos de
determinados grupos, com o intuito de criar mulheres. Esse novo campo de investigação foi
com estes um vínculo e transformá-los em se adequando às mudanças sociais da época,
clientes. O cenário midiático também segue uma ampliando a sua área de pesquisa para também
tendência semelhante. O aumento de englobar os estudos de gênero em suas análises
identidades LGBTs e de personagens femininas científicas.
em posições de poder no âmbito da mídia são Uma das primeiras tentativas de se definir
exemplos que ilustram essa nova conjuntura. “gênero” foi feita por Robert Stoller, em 1968;
Tais práticas não têm o intuito principal de essa definição foi bastante difundida entre as
trazer representações mais democráticas e pesquisadoras, ainda que apresentasse uma
plurais, mas sim de criar identificação com noção psicanalítica e patológica (Cunha, 2007
públicos específicos por meio do valor como citado em Januário, 2016, p. 23). A
simbólico agregado, ou seja, a essência é investigação continuou nos anos seguintes,
sobretudo comercial. visando, principalmente, estabelecer uma
O presente artigo se propõe a discutir a diferenciação entre sexo e gênero. A
questão das representações de gênero na historiadora Scott (1995), uma das maiores
publicidade e traz como objeto de estudo a colaboradoras para os estudos de gênero,
representação do homem e da masculinidade ressalta que o termo “gênero” procura rejeitar
em determinadas peças publicitárias. A figura de maneira explícita o determinismo biológico e
masculina tem passado por transformações nos aponta para as construções culturais, exercendo
últimos anos e, se tradicionalmente esteve também uma função relevante uma vez que
associada com a ideia de força, poder e propõe uma distinção entre a prática sexual e os
dominação, hoje novas características estão papeis sexuais atribuídos aos homens e às
sendo incorporadas em substituição às mulheres.

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Um “novo homem” para o consumo: a representação da masculinidade em propagandas de Avon e Natura

A dificuldade na definição do que seria padrões de comportamento. Segundo Foucault


gênero mostrou a necessidade de se pensar nas (1985), é um mecanismo essencial para o
categorias identitárias em um cenário onde as acesso à inteligibilidade, totalidade e
relações são assimétricas (Butler, 2003). Por identidade.
muito tempo o termo foi utilizado em Isto posto, é possível perceber que os
associação às construções sociais de masculino estudos de gênero colocaram o problema das
e feminino, sendo inclusive muito aplicado no noções de sexo e gênero, abrindo o debate para
âmbito acadêmico. Entretanto, como sugere novos questionamentos em torno desse tema.
Scott (1995), é essencial que, ao estudar essa Dessa forma, foi possível desvincular, por
temática, se rejeite o caráter dominante da exemplo, a ideia de que a relação entre sexo e
lógica binária, levando em consideração gênero é determinada biologicamente,
também a importância da historicização e da mostrando, por outro lado, que trata-se de
desconstrução das diferenças sexuais. Para construções sociais e, portanto, estão em
Butler (2003), a existência de uma regulação da constantes transformações. Nesse sentido, o
sexualidade por uma perspectiva binária limita cenário também se tornou propício para a
a sua multiplicidade subversiva, que é capaz de elaboração de teorias sobre a construção da
romper com algumas hegemonias vigentes, masculinidade que, assim como a feminilidade,
como a heterossexual, a reprodutiva e a médico- diz respeito a um modelo social culturalmente
jurídica. construído, que impõe ao homem determinados
De acordo com Scott (1995), o gênero é padrões de comportamento e está sob constante
constituído pelas relações sociais pautadas em vigilância da sociedade. O contexto atual tem
observações das diferenças entre os sexos e possibilitado uma quebra dos paradigmas e das
pelo modo primitivo de dar sentido às relações imposições sociais no que diz respeito a esses
de poder. É investigando a relação entre poder, modelos, permitindo novas interpretações, além
saber e sexualidade que Foucault (1985) faz de desconstruir aqueles modelos sociais
uma análise dos diversos dizeres sobre a anteriormente construídos.
sexualidade numa perspectiva histórica e Em “A dominação masculina”, Bourdieu faz
mostra o quanto as relações de poder se sua análise partindo de uma ordem masculina
estruturam na sua construção. Assim, os que sobrepõe os sexos, constatando que essa
discursos a respeito do sexo tornam-se superioridade, embora se manifeste pela
importantes mecanismos de dominação e dão questão biológica, nada mais é do que um
origem a saberes que, embora tratados como constructo social naturalizado (Bourdieu, 2005
verdades absolutas, são resultados de como citado em Januário, 2016, p. 82). Ele
mecanismos de poder. percebe que essa dominação acaba vitimizando
A crítica foucaultiana é tecida em torno não somente as mulheres, mas os próprios
desses discursos, sendo proposta uma nova homens, tendo em vista que impõe regras a
forma de se pensar a sexualidade, relacionando- serem seguidas por eles. Bourdieu, portanto,
a com o poder. Dessa maneira, Foucault faz uma compreende que o corpo pode ser visto como
denúncia sobre o caráter soberano da ciência e uma materialização da dominação, pois é nele
questiona a sua legitimidade, pois, para ele, que as disputas pelo poder se estabelecem, já
trata-se de mecanismos de exercício de poder que se trata do local onde ocorre a identificação
por meio da definição de verdades. É nesse do sexo biológico e que determina quem
sentido que elabora a noção de dispositivo domina e quem é dominado.
associada à sexualidade: um vínculo entre o Scott (1995) indica que a masculinidade
saber e as relações de poder e as práticas sociais passa a ser entendida como sinônimo da
que podem ser aí originadas. Em outras negação aos aspectos femininos, o que provoca
palavras, seriam “estratégias de relações de um conflito entre o masculino e o feminino.
força sustentando tipos de saber e sendo Sobre esse tema, Nolasco (1993) mostra como a
sustentadas por eles” (Foucault, 1979, p. 246). imposição e perpetuação de moldes que
Dessa forma, o sexo torna-se fundamental para definem o ser homem ou mulher acaba por
o funcionamento do dispositivo da sexualidade, associar ao homem, de maneira simplória, a
pois é o discurso sobre ele o responsável por ideia de “ser macho” e quando esse
exercer o controle sobre os corpos e ditar comportamento não é identificado, torna-o

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“duvidoso”. Conforme aponta Badinter (1993), marketing e é caracterizada por se tratar de


existe uma obrigação de comprovar que se é uma técnica voltada para os nichos de mercado,
homem tanto para si mesmo quanto para os visando atingir os objetivos mercadológicos e
outros, sendo este um modelo imposto desde o comunicacionais por aquele definidos. De
nascimento. Dessa forma, a virilidade não é algo acordo com Burrowes (2005), antes de uma
inerente ao homem, mas que precisa ser peça ou campanha publicitará ser construída, é
fabricada. feito o planejamento de marketing e
A masculinidade é ensinada pelo que não se comunicação, baseado em pesquisas, o que
deve ser, antes mesmo de instruir o que se pode estabelece os direcionamentos a serem
ser, levando a uma noção simplista sobre a aplicados ao processo criativo. Define-se, assim,
masculinidade como sendo tudo aquilo que não o público-alvo, a linguagem a ser utilizada e as
é feminino (Hartley, 1959 como citado em características a serem apresentadas para este
Badinter, 1993, p. 34). De acordo com Nolasco público; desse modo, a produção e recepção das
(1993), muitos estudiosos começaram a mensagens não devem ser percebidas como
questionar a rigidez imposta pela tradição ao processos completamente isolados. A produção
processo de socialização do homem, no qual ele das mensagens traz elementos que são
precisa abrir mão de sua autonomia para familiares para os seus receptores e a recepção
cumprir os padrões que lhe são definidos, é baseada nos direcionamentos dados através
reproduzindo valores com base em um modelo da experiência comunicacional em sua
social que vigia e controla seus anseios. O papel totalidade, não sendo, portanto, dois momentos
masculino atribuído ao homem é estanques.
sobrecarregado de um machismo e de uma Com o perfil psicográfico do seu consumidor,
virilidade que o incomoda da mesma forma que a propaganda cria um discurso atraente com o
a feminilidade incomoda a mulher, por isso, sua intuito de superar as expectativas e estimular o
tomada de consciência é o passo inicial para que desejo. Nesse sentido, a persuasão se faz
ele possa se livrar dessa ordem (Tolson, 1977 presente em todo o processo comunicacional e
como citado em Nolasco, 1993, p. 19). não somente quando o receptor recebe a
Diante desse cenário ocorre uma “crise da mensagem. Burrowes (2005) mostra que a
masculinidade”, como menciona Badinter propaganda tem como uma de suas funções
(1993), ou surgimento do “novo homem”, como conquistar o seu receptor e, para tanto, procura
intitula Nolasco (1993), que sugere uma chamar atenção, despertar o interesse, ativar o
separação dos modelos sociais vigentes, em desejo, garantir a confiança e, por fim, levar à
apoio ao surgimento de outros modelos que ação, ou seja, o ato da compra. Segundo a
consigam abranger múltiplas subjetividades, autora, a publicidade, modo geral, se encarrega
permitindo que os homens possam ser o que de de criar uma experiência que chame a atenção e
fato almejam. Esse “novo homem” indicado por convença o consumidor de forma positiva,
Nolasco, remete a um homem mais sensível e direcionando-o, dessa maneira, para um
feminino, que tenta humanizar o seu papel “território favorável de recepção de mensagens
social e estimular o seu lado afetivo. Dessa e produtos” (Burrowes, 2005, p. 213).
forma, a mídia vem percebendo a necessidade Por meio de dados culturais, a publicidade
de mudança e por isso tem procurado mudar as vai se apropriando de algumas significações
suas representações do universo masculino, sociais como forma de atribuir valor às marcas e
dando espaço para novos comportamentos que aos produtos. A linguagem persuasiva é um
já não precisam seguir os rígidos códigos da mecanismo importante para unir o anunciante e
tradição. o consumidor por meio do valor simbólico que
Feitas essas considerações a respeito das está conferido ao produto, desse modo, atribui
questões de gênero e da masculinidade, é uma forma humanizada aos bens que são
importante trazer para a discussão o papel que anunciados e atua no processo de identificação
a publicidade exerce no processo, na medida em daqueles que consomem (Iribure, 2008 como
que promove representações sociais e, citado em Silva, 2016, p. 28). Assim, o discurso
consequentemente, estereótipos de gênero. publicitário faz parte de um sistema de
Presente no dia a dia das pessoas, a publicidade representações que constantemente apresenta
é empregada como uma das ferramentas do novos significados e é dessa maneira que os

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estereótipos são construídos e ressignificados, que reproduzem e reafirmam modelos de


visando adequar-se àquilo que deve ou não ser comportamento de sua época.
mencionado.
Para Machado (2010), o discurso publicitário METODOLOGIA DA PESQUISA
procura “criar um universo de referências para O presente artigo faz uma abordagem
conotar o sentido de singularidade” (p. 117), qualitativa e de caráter exploratório, baseada
mas diante da cultura do consumo, requer que em uma análise crítica e subjetiva dos objetos
outras estratégias sejam adotadas em conjunto. escolhidos. De acordo com Denscombe (2010),
O branding é apontado pela autora como um as amostras exploratórias são usadas mais
dos conceitos mais utilizados pelas empresas frequentemente em pesquisas de pequena
nos últimos anos, que envolve técnicas escala, fazendo uso de dados qualitativos e
rebuscadas para inserção da imagem da marca incluindo exemplos incomuns da coisa estudada
na cultura e possibilita o surgimento de “novos em substituição às situações mais típicas.
regimes discursivos onde os valores simbólicos Pretende-se, assim, explorar e compreender os
são comunicados em diversos momentos da objetos de estudo selecionados utilizando o
experiência de consumo” (Machado, 2010, p. método da análise de conteúdo, com base na
118). conceituação proposta por Bardin (1977) que o
Diante desse contexto, foi necessário que a considera como um conjunto de técnicas de
publicidade se reestruturasse e, no que diz análise das comunicações que visa, através de
respeito às representações da masculinidade, procedimentos sistemáticos e objetivos de
começam a surgir mudanças na forma de descrição dos conteúdos, obter indicadores
representar o homem nos anúncios. Essa nova quantitativos ou não, possibilitando a inferência
identidade masculina visa equilibrar a de saberes relacionados às condições de
tradicional virilidade com a sensibilidade, o produção e recepção das mensagens.
homem rude com o vaidoso e busca trazer a Pode-se entender por análise de conteúdo
dimensão dita “feminina” para que seja tanto uma análise dos significados, quanto uma
incorporada pelos homens; é o que alguns análise dos significantes. Destarte, requer que
autores denominam “feminização do mundo”. É se compreenda o modo como as mensagens
válido ressaltar que, apesar de começarem a passam por um processo de manipulação para
apresentar diferentes representações do que se possa inferir de forma lógica
masculino e suas novas masculinidades, os interpretações a respeito do emissor e do meio
anúncios publicitários ainda seguem um lento em que foram originadas (Bardin, 1977). Para
processo de redução da objetificação da mulher. este trabalho, foram seguidas as três etapas
Ao fazer uso de valores simbólicos e descritas por Bardin como premissas básicas
representações sociais para construir o seu para uma boa análise de conteúdo: a pré-
discurso, a publicidade começa a se reordenar análise, que corresponde na organização dos
para alcançar determinados nichos, conciliando materiais utilizados na coleta de dados a fim de
suas estratégias de persuasão com as mais definir um corpus da pesquisa; a descrição
variadas formas de comportamento. Além disso, analítica, que se refere ao aprofundamento do
as marcas estão mais preocupadas com a material coletado, conduzido pelas hipóteses e
construção de sua imagem e de seus valores, daí pelo referencial teórico, a fim de obter quadros
ampliarem o seu espaço de significações e de referências e sínteses das ideias que se
apresentarem diferenciais simbólicos para os assemelham ou divergem; a interpretação
seus públicos. Como mostra Januário (2016), as referencial, que se trata da análise
narrativas publicitárias são elaboradas de propriamente dita dos dados por meio da
acordo com aquilo que é mais bem aceito por intuição, reflexão e embasamento prévio.
cada segmento da sociedade e, para isso, são Este artigo emprega um método
realizados estudos detalhados que permitam instrumental de análise que utiliza os critérios
traçar estratégias mais assertivas, capazes de estabelecidos pela análise de conteúdo
atrair e gerar identificação com seu público. Em incorporado ao modelo teórico-metodológico de
suma, os discursos publicitários são criados leitura crítica da publicidade proposto por
com base no contexto social vigente e exercem Machado, Burrowes e Rett (2017). As autoras
grande influência na sociedade na medida em

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aplicam a noção de literacia midiática – compor a amostra. A primeira, lançada em 2016


desenvolver a capacidade de ler, analisar, pela Avon, traz o conceito de maquiagem sem
avaliar criticamente e transformar as mídias – gênero. As outras duas, lançadas em 2017 pela
na comunicação mercadológica e apresentam a Natura, mostram a multiplicidade da
ideia de uma literacia publicitária, que seria masculinidade e do ser homem. As peças
nada mais do que uma desconstrução da analisadas e seus respectivos links encontram-
publicidade. Para isso, fazem uso do modelo de se nas referências deste trabalho, estando
leitura elaborado por Nando Malmelin que disponíveis de forma pública no YouTube até o
propõe quatro dimensões geradoras de sentido, momento de realização deste artigo.
sendo elas: retórica, estética, informacional e
promocional. ANÁLISE DOS DADOS
Os critérios utilizados para a seleção da As três campanhas escolhidas para este
amostra foram: escolher ao menos uma trabalho foram analisadas de acordo com
campanha de 2016 e 2017; ter veiculação na critérios definidos e mencionados
televisão aberta e/ou plataformas digitais; anteriormente. A seguir encontra-se o quadro-
apresentar a temática de gênero, masculinidade, resumo com todos os critérios utilizados
estereótipos ou novas representações do durante a análise dos dados e os seus
homem; selecionar marcas que atuem no respectivos números de identificação:
mesmo segmento de mercado. Diante disso,
foram selecionadas três peças publicitárias para

Critérios Analisados N° de Identificação Descrição


Personagens existentes e as posições que
Personagens (1)
ocupam.
Roupas e acessórios utilizados pelas
Figurino (2)
personagens.
Cenário (3) Ambientes em que se passam as produções.
Cores (4) Cores utilizadas e as representações que trazem.
Sons (5) Trilhas sonoras ou efeitos sonoros aplicados.
Tom de voz (6) Tom de voz do narrador ou das personagens.
Gestos/Ações (7) Gestos, ações, atitudes e suas significações.
Elementos que agregam algum tipo de valor ao
Elementos simbólicos (8)
objetivo da peça.
Linguagem textual empregada e a função que
Linguagem textual (9)
exerce.
Desconstrução ou replicação dos estereótipos de
Representação de gênero (10)
gênero na peça.
Formas de representação da masculinidade
Masculinidade (11)
empregadas.
Uso de técnicas de persuasão e/ou sedução pelo
Estratégias de persuasão/sedução (12)
emissor.
Valores que as marcas pretendem passar com o
Valores associados (13)
comercial.
Modo como as informações estão sendo
Fontes de informação (14)
utilizadas.
Conteúdo promocional existente no discurso
Aspecto comercial (15)
publicitário.
Fonte: Elaboração própria.
Quadro 1: Critérios utilizados na análise dos dados.

Campanha “Para TodEs” (Avon) Color Trend e apresentar a questão da


Com 35 segundos de duração, o vídeo diversidade, seja de gênero, sexual, física ou
produzido pela Avon foi ao ar nos canais digitais racial. Em uma sequência rápida de cenas, a
da empresa no dia 28 de junho de 2016, cujo Avon conseguiu romper com variados
objetivo era divulgar o novo produto BB Cream estereótipos, na medida em que traz pessoas

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Um “novo homem” para o consumo: a representação da masculinidade em propagandas de Avon e Natura

negras, trans, gordas, o homem afeminado e a personagens. Em um dado momento as cores


mulher lésbica. A utilização do termo “todes” azul, amarelo e rosa são dispostas lado a lado, o
sugere uma neutralidade de gênero na palavra, que pode remeter a uma associação com a
não restringindo o produto para um gênero bandeira do orgulho pansexual, ou seja,
específico, indo de encontro com o conceito daqueles que se atraem por todas as
proposto pela campanha. identidades de gênero, binárias ou não.
Colocando o foco na diversidade, a peça A peça publicitária não tem narrador (6) e
apresenta sete personagens (1) bastante traz a música “Baby Baby”, do Tropkillaz, como
representativos, o que sugere um produto trilha sonora (5). A música eletrônica embala os
versátil destinado para “todes”, sem qualquer personagens que dançam cada qual ao seu
distinção. Levando em consideração a escolha modo (7), sem se preocupar com julgamentos,
das personalidades midiáticas e dos atores para sendo a dança, nesse sentido, um instrumento
compor o comercial, acredita-se que o intuito da de liberdade. Na ausência de um narrador, os
marca era atingir um público mais jovem, gestos exercem uma função importante ao
empoderado e crítico em relação aos tentar transmitir sua mensagem e é assim que
paradigmas sociais. os trejeitos vão compondo os personagens
Os personagens fazem uso de um figurino (2) femininos e masculinos, associando
despojado e moderno, inspirado na moda feminilidade e/ou masculinidade a eles. Dessa
genderless, ou seja, a neutralização do gênero forma, a figura do homem másculo e da mulher
na moda, através do uso de acessórios unissex. feminina é construída ao mesmo tempo que a
No anúncio, homens e mulheres trajam do homem afeminado e da mulher
combinações parecidas, além de ter homens masculinizada, sem que seja preciso, para isso,
usando roupas “femininas”, maquiagem, colar e uma explicação direta.
pulseiras, elementos tradicionalmente Os poucos elementos textuais (9) que
associados à mulher. A cantora Liniker e o aparecem no vídeo são frases curtas e objetivas
jornalista Gustavo Bonfiglioli são duas figuras mostrando o nome do produto, suas
bastante simbólicas na produção. A primeira, características, para quem é destinado, a
uma mulher trans, que em sua aparência já hashtag da campanha e o slogan da Avon. Já os
exala diversidade, tendo em vista que no elementos simbólicos (8), por sua vez, estão
comercial aparece de barba, usando caracterizados pelos próprios personagens e os
maquiagem, brincos e pulseiras, vestindo seus respectivos papeis representativos. A
cropped e calça pantalona. Assim, a cantora presença destas personalidades visa criar uma
utiliza acessórios comuns da moda feminina, ao certa identificação com variados grupos sociais,
passo que não sente necessidade de se desfazer principalmente das “minorias”, como os LGBTs,
da sua barba, uma característica usualmente mulheres, negros e gordos. É nesse sentido
masculina. De modo semelhante, Bonfiglioli, um também que a representação da masculinidade
homem gay, apresenta-se com sua grande barba (11) é feita de um modo diferente daquele que
– elemento de reafirmação da masculinidade – à tradicionalmente costuma ser representado na
medida que rompe com o estereótipo masculino publicidade: em substituição ao homem
ao agir de modo “afeminado”, fazendo uso de másculo e viril, temos o homem mais
maquiagem, cílios postiços e com suas unhas espontâneo, descontraído, que dança, rebola e
pintadas. O que os dois personagens têm a se maquia. É exatamente por meio dessa nova
colaborar é exatamente a ruptura com os representação do homem que a marca tenta
rótulos em torno das representações de gênero trazer a ideia de que maquiagem não tem
(10), na medida em que extrapolam o caráter gênero e pode ser utilizada pelos mais diversos
binário que rege os padrões sociais na grupos sociais.
atualidade. Essa mudança na representação do homem
O comercial foi gravado em estúdio, com um pode ser vista como uma estratégia de sedução
cenário (3) simples e sem muitos elementos (12) utilizada pela marca para atingir esse
cenográficos. O ambiente possui tons escuros, público específico e se aproximar do mercado
com pouca luminosidade, o que dá destaque masculino de beleza. A Avon quis também gerar
para as cores (4) rosa e amarelo que se interesse entre transgêneros, negros, gays,
encontram nos acessórios e nas roupas dos lésbicas e gordos, explorando nichos específicos

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Dória e Burrowes (2019)

de mercado que fogem do seu público-alvo que se trata de uma drag queen e de um homem
principal, ou seja, a mulher branca de classe fazendo uso de maquiagem. Entretanto, a
média. A empresa tem mostrado em suas pluralidade das personagens femininas é um
últimas campanhas um certo engajamento com dos pontos que mais chama atenção, na medida
algumas causas sociais, procurando associar em que traz mulheres brancas, negras, loiras,
valores (13) voltados para o empoderamento e morenas, ruivas, de cabelo liso, cacheado,
mais recentemente para a diversidade, crespo, colorido, de cabelo raspado, tatuadas,
defendendo principalmente a liberdade sexual, baterista e skatista. Esses quatro últimos
racial e de gênero. aspectos mencionados, por exemplo, são
As informações (14) apresentadas na peça comumente associados ao universo masculino e
são poucas e bastante rasas, pois não há uma é assim que o comercial procura romper com a
explicação detalhada que possibilite a percepção limitada e sexista ao apresentar
comprovação da veracidade daquilo que se está mulheres em posições que costumam ser
afirmando. A diversidade dos personagens ocupadas pelos homens, estabelecendo uma
também não é algo mencionado na campanha, relação com o conceito proposto pela
mas a presença deles torna-se importante para campanha.
representar identidades distintas, sem que seja A variedade também ocorre no figurino (2)
necessária uma explicação do que representam. dos personagens, que alterna desde o mais
O público-alvo que a marca pretende impactar clássico até o mais descolado, do neutro ao
muito provavelmente conseguirá perceber o colorido, do chique ao informal. Todos os
papel social que cada um deles exerce na peça, personagens aparecem maquiados, com exceção
uma vez que os artistas selecionados são mais dos dois homens cujo rosto não é mostrado. O
conhecidos nesse meio. É importante lembrar, homem que aparece usando maquiagem utiliza
entretanto, que mesmo apoiando a bandeira da trajes tipicamente masculinos, não havendo
diversidade, a Avon tem como objetivo principal intenção de associá-lo com a ideia de um
divulgar e vender (14) o seu novo produto, “homem feminino”. Os visuais apresentados, de
escolhendo estrategicamente nichos mais maneira geral, trazem um toque de requinte e
específicos e ainda não muito explorados pela sofisticação, o que permite estabelecer uma
marca para causar algum impacto neles. associação com o público-alvo da marca, cujo
poder aquisitivo é um pouco mais alto quando
Campanha “Toda beleza pode ser” comparado com os de outras marcas do mesmo
(Natura) segmento. Algumas ações (7) realizadas pelas
personagens podem evidenciar isso, tais como a
Produzida pela Natura, a peça com duração
prática de longboard, tocar bateria e ir para
de 1 minuto foi veiculada pela primeira vez no
uma festa que exige traje formais, que são
dia 18 de junho de 2017, com uma versão mais
atividades mais comuns em classes sociais com
curta para a televisão. Seu intuito principal era
melhores condições financeiras.
promover os produtos de maquiagem da marca
As cenas se passam em basicamente quatro
e trazer a mensagem de que são destinados para
cenários (3) diferentes: casa, trabalho, rua e
todo tipo de beleza. O filme é composto
festas. Curiosamente, apenas a mulheres – e a
predominantemente por mulheres com as mais
drag queen – aparecem ocupando o espaço
variadas aparências e estilos, mas a surpresa se
doméstico, onde aparecem se maquiando,
dá quando surge uma drag queen e um homem
escolhendo a roupa e se olhando no espelho,
maquiado, estabelecendo uma relação com o
dando ênfase na vaidade feminina. Isso causa a
slogan da campanha – “Toda beleza pode ser” –
sensação de que este local é de domínio
propondo uma libertação de paradigmas e uma
feminino e acaba por reforçar o estereótipo de
reflexão acerca da diversidade.
gênero. Por outro lado, somente as personagens
Existe uma variedade de personagens (1) no
femininas aparecem em locais de trabalho,
comercial, composto majoritariamente por
exercendo funções que historicamente são
mulheres dos mais variados tipos. São cerca de
associadas ao homem. Assim, ocorre um reforço
doze personagens femininas e quatro
e uma ruptura com os estereótipos de gêneros,
masculinos, dos quais apenas dois se destacam
na medida em que a mulher ocupa o papel de
por terem uma função essencial para a peça, já

8 Consumer Behavior Review, 3(Special Edition), 1-13.


Um “novo homem” para o consumo: a representação da masculinidade em propagandas de Avon e Natura

“ser doméstico”, mas também de “ser romper com determinados estereótipos,


profissional”. evidencia outros. Mesmo que o intuito da peça
A peça utiliza tonalidades (4) mais claras e seja apresentar uma maquiagem para todo tipo
neutras, o que realça a maquiagem no rosto das de pessoa, as personagens são majoritariamente
personagens e transmite uma ideia de que femininas e com pouca representatividade
maquiagem não se destina a um gênero negra ou LGBT, por exemplo. A Natura não
específico. É possível perceber também o uso arrisca tanto, pois passa uma ideia de que seus
recorrente das cores azul e rosa, que costumam produtos são destinados para a mulher,
ser usadas para distinguir o que se ao universo sobretudo a mulher branca, cis, heterossexual e
masculino do universo feminino. A sombra azul de classe média alta, o que se assemelha ao seu
no olho da modelo diante de um fundo rosa, a atual público-alvo. Por outro lado, temos a
roupa da drag queen nessas duas cores, o cabelo feminilidade sendo representada de maneira
azul e o batom rosa de uma das mulheres e o bem diversa e, para além da mulher vaidosa, é
jogo de luzes na balada que refletem uma apresentada a imagem da mulher mais “radical”,
mistura entre essas duas tonalidades são alguns que ainda assim não perde a sua “essência
exemplos de como o comercial dissocia a noção feminina”.
de gênero através da cor. Entretanto, o ponto alto da peça se dá pela
A música de fundo (5) remete ao carnaval, representação da masculinidade (11), pois
fazendo uso de instrumentos que se causa um grande impacto com a figura da drag
assemelham ao de uma escola de samba, cuja queen e do homem maquiado, associando uma
intenção talvez tenha sido apontar para um feminilização desses personagens masculinos e
momento de liberdade tal qual é a folia um possível rótulo em torno da sexualidade
carnavalesca. Em alguns momentos é possível deles. Ocorre, contudo, um rompimento dessa
perceber risadas e gritos emitidos pelas rotulação quando surge a cena do homem
personagens, que aparecem também maquiado beijando uma das mulheres e cria um
sussurrando e falando a expressão “Pode ser”, simbolismo não só pela quebra de paradigmas,
remetendo ao slogan da campanha. Existe uma mas também pelos personagens envolvidos: ele,
narração em off que utiliza uma voz feminina maquiado, o que geralmente é associado ao
com um tom (6) calmo e descontraído para feminino e ela, com tatuagens e cabelo raspado,
transmitir a mensagem proposta pelo anúncio e o que geralmente é associado ao universo
dialogar com as cenas exibidas. masculino. Assim, por meio do choque pelas
O comercial por diversas vezes procura contradições, a peça propõe uma reflexão em
mostrar os personagens fazendo uso dos torno dos prejulgamentos inerentes à nossa
produtos de maquiagem da Natura, retratando sociedade.
estas ações como cotidianas e adequadas aos Diante da predominância feminina no
mais variados contextos e pessoas. Os consumo de seus produtos, a Natura optou por
elementos simbólicos (8) exercem uma função impactar mais diretamente as mulheres como
importante nisso, na medida em que dão uma estratégia de sedução (12) do seu público-
destaque aos produtos, seja pelo close nas alvo. Entretanto, é possível notar a tentativa da
maquiagens, seja pela presença da drag queen e marca de se aproximar do mercado masculino
do homem maquiado. A narração traz uma de beleza, revelando o seu interesse em
linguagem (10) simples e objetiva que também conquistar também esse público em potencial
auxilia a transmitir a mensagem para o que ainda não é tão bem explorado por ela. A
receptor, dialogando com as cenas e empresa, inclusive, tem procurado, nos últimos
apresentando pequenas descrições do que está anos, associar valores (13) à marca e, nesse
sendo retratado. Os únicos textos escritos que sentido, já se mostrou como defensora do
aparecem na peça são “Toda beleza pode ser” e movimento feminista e LGBT, explorando agora
“Maquiagem Natura”, ou seja, o conceito da o público masculino ao defender a ruptura dos
campanha e o produto a ser divulgado, modelos sociais que são impostos em torno da
respectivamente. masculinidade.
Como dito anteriormente, a campanha traz A peça analisada tem um caráter comercial
representações de gênero (10) construídas de (15), cujo intuito é divulgar os produtos de
modo contraditório, pois embora procure maquiagem da Natura, muito embora isso não

Consumer Behavior Review, 3(Special Edition), 1-13. 9


Dória e Burrowes (2019)

seja facilmente percebido. O modo discreto de gênero, visto que o azul é socialmente
como os produtos aparecem nas cenas ou como associado como uma cor masculina.
os personagens fazem uso da maquiagem Vários cenários (3) são mostrados ao longo
parece ser algo natural e só há indícios de que da produção, cada um causando sensações
se trata de um anúncio de mercadoria quando variadas. Um dos locais onde maior parte das
surge os dizeres “Maquiagem Natura” ao final cenas são gravadas remete a um porão com
do vídeo. Além disso, mesmo com a presença de pouca iluminação, causando uma ideia de
uma narração, o vídeo não tem teor informativo aprisionamento e abandono. Outros ambientes
(14), trazendo um tom poético para a sua em que se passam o comercial são: galpão vazio
mensagem. com apenas dois personagens com feições de
tristeza; uma floresta onde as folhas sobrevoam
Campanha de lançamento da linha o personagem e expressam liberdade; um
Natura Homem (Natura) quarto azulado com poucos objetos onde um pai
carrega seu bebê em gesto de amor; um chão
Com duração de 1 minuto, o comercial foi
com uma pintura que se assemelha a uma asa;
veiculado no dia 2 de julho de 2017 nas
um fundo preto focando no rosto de um dos
plataformas digitais, na televisão e no cinema. A
homens, que em seguida muda para o tom
peça discute o ser homem e ser macho,
vermelho ao passo que surge uma silhueta,
buscando ressignificar a ideia do ser “homem de
dando um ar de mistério; por fim, o último
verdade”. Em ruptura com alguns estereótipos
cenário mostrado é referente a um terraço com
machistas, a marca destaca o homem emotivo,
um homem sozinho contemplando o seu
afetivo e livre de imposições, tentando mostrar
entorno. A constante troca de ambientes e
“todas as maneiras de ser homem”, que é o
sensações parece mostrar os estágios pelos
conceito condutor da campanha. Por meio das
quais os homens passam ao longo de sua vida: o
frases que os homens costumam escutar ao logo
aprisionamento frente as imposições sociais, o
de suas vidas e do clima de tensão criado, a peça
medo de ir contra a “ordem social”, a dúvida em
faz uma crítica importante em relação aos
torno de sua identidade e a expressão de sua
estereótipos associados ao universo masculino.
liberdade.
A peça traz apenas personagens (1)
Por meio de violinos, é criada uma trilha (5)
masculinos em sua composição, sendo estimado
imprimindo tensão e drama à peça, indo de
cerca de 14 intérpretes diferentes no vídeo.
encontro com o teor emotivo proposto e
Cada um visa representar, de maneira
expresso pelos personagens. A narração em off
diversificada, as diferentes maneiras de ser
dá continuidade ao contexto, trazendo uma voz
homem, estabelecendo relação com o conceito
masculina com tom (6) de indignação e revolta,
da campanha. Entretanto, é possível perceber
mencionando diversas vezes frases que os
um modelo de masculinidade que ignora os
homens escutam e que são consideradas “coisas
aspectos femininos, uma vez que todos os
de mulherzinha”. A narrativa se estende
personagens não apresentam traços de
procurando responder a estes julgamentos
feminilidade e isso contradiz o discurso
impostos pela sociedade, realizando uma crítica
defendido pela própria peça.
a tais estereótipos atribuídos ao ser homem.
O figurino (2) dos modelos é composto por
Em se tratando dos gestos (7), temos um
roupas simples com combinações básicas. Não
recurso muito bem explorado pelos intérpretes,
se procura demonstrar luxo ou requinte, mas
que conseguem exprimir os sentimentos e
sim apostar na simplicidade como forma de
sensações para o receptor por meio da
aproximação com um público mais comum. É
gesticulação e das expressões faciais. Alguns
dada preferência a trajes com tonalidades mais
exemplos podem ser citados: a mão ao rosto
frias, tradicionalmente associadas ao domínio
enquanto a cabeça exerce um movimento
masculino. O mesmo ocorre com as cores (4)
acelerado, retratando uma crise; o braço
utilizadas no comercial, predominando os tons
cruzado demonstrando vergonha; o punho
escuros, que traz um toque de seriedade e
fechado representando a força; o rosto
suspense ao ambiente. Praticamente em todo o
cabisbaixo indicando tristeza; a mão no ombro
vídeo um tom azulado acompanha as cenas,
do parceiro denotando amparo; e os braços
demonstrando, portanto, o seu endereçamento
esticados como forma de sugerir a liberdade.

10 Consumer Behavior Review, 3(Special Edition), 1-13.


Um “novo homem” para o consumo: a representação da masculinidade em propagandas de Avon e Natura

A grande maioria dos personagens que facilmente compreendida, por isso, o emprego
aparecem em cena usam barba, um elemento de uma linguagem (9) simples e direta auxilia
simbólico (8) bastante significativo e que atua nessa função através de frases curtas e/ou
como um instrumento de reafirmação da populares que facilitam a compreensão.
masculinidade. Nesse sentido, a representação Mais uma vez, é possível perceber o
de gênero (10) é construída de forma bem interesse da Natura de se aproximar do público
delimitada em relação às diferenças do masculino, visto que é um nicho promissor no
masculino e feminino, não sendo apresentado mercado de beleza. O aspecto comercial (15)
qualquer tipo de representação feminina em que existe na produção é tão imperceptível que
toda peça, seja pelos personagens ou pelos só é evidenciado nos cinco segundos finais,
elementos simbólicos. Surge, então, uma quando é mostrada a nova linha Natura Homem
contradição no discurso proferido pela narração com alguns produtos que fazem parte dela. A
da campanha com o que é mostrado, uma vez marca, por sua vez, mostra-se como apoiadora
que todos os personagens parecem representar da diversidade masculina e apresenta valores
o homem hétero masculino, não trazendo para a (13) que defendem a ruptura com os
cena o homem afeminado ou a figura da drag estereótipos e incentivam a livre expressão de
queen, por exemplo, como foi visto ser. Entretanto, não se pode deixar esquecer
anteriormente nas peças analisadas. que seu interesse principal é levar os homens a
Mesmo que o intuito seja propor uma se preocuparem com a sua estética, de modo
reflexão em torno da masculinidade (11), a sua que estes consumam produtos de beleza sem
representação ainda remete ao modelo de medo de julgamentos.
homem tradicional. É possível que isso tenha Sem caráter informativo (14), a peça parece
sido propositalmente construído para mostrar ser uma resposta em repúdio às imposições
que, embora tenhamos os mais variados tipos sociais sobre o modo tradicional de ser homem.
de homens, estes ainda seguem ao estereótipo Por mais que se tente mostrar as outras
do “homem macho” por conta da pressão social maneiras de exercer a masculinidade, isso não é
existente. Assim, o anúncio visa encorajar os aprofundado e nem colocado em discussão.
homens a se libertarem desses paradigmas, de Assim, procura-se chamar atenção do público e
tal forma que a masculinidade possa ser convencê-lo pela emoção ou pelo choque, sendo
expressa livremente e sem medo dos a estratégia de persuasão e sedução (12)
julgamentos. Não se trata de uma mensagem utilizada no anúncio.

Quadro-resumo da análise

Critérios Campanha 1 Campanha 2 Campanha 3


Personagens Representativos Representativos Superficiais
Figurino Moderno Diversificado Básico
Cenário Estúdio Diversificado Diversificado
Cores Tons escuros Tons claros Tons escuros
Sons Animado Animado Tensão
Tom de voz Não possui Descontraído Revolta
Gestos/Ações Representativos Superficiais Representativos
Elementos simbólicos Personagens Maquiagem Masculinidade
Operador totêmico Possui Possui Possui
Linguagem textual Objetiva Objetiva Objetiva
Representação de gênero Plural Contraditória Estereotipada
Masculinidade Feminilizada Feminilizada Masculinizada
Estratégia de persuasão/sedução Representatividade Representatividade Emoção
Valores associados Engajamento Engajamento Engajamento
Fontes de informação Superficiais Não possui Não possui
Aspecto comercial Divulgação Divulgação Divulgação
Fonte: Elaboração própria.
Quadro 2: Resumo dos critérios analisados nas três campanhas.

Consumer Behavior Review, 3(Special Edition), 1-13. 11


Dória e Burrowes (2019)

CONSIDERAÇÕES FINAIS padrões normativos, mas também algumas


Este artigo propôs uma discussão crítica em recorrências aos modelos tradicionais.
torno das representações de gênero em Não se pode afirmar, contudo, a
campanhas publicitárias veiculadas no Brasil autenticidade desses esforços, tendo em vista
nos dois últimos anos, enfatizando na questão que pode existir de fato o interesse pela causa e
da representação da masculinidade. Foi possível também o interesse comercial por parte das
perceber que o discurso publicitário tem marcas, como foi percebido na análise. A
buscado associar a imagem do homem às conquista de novos consumidores é de grande
questões voltadas para a beleza, mostrando a importância para as empresas, mas, diante das
face de um indivíduo vaidoso e que se preocupa mudanças no comportamento do consumidor,
com a aparência. Isso pode ser justificado pelo também torna-se importante que as empresas
fato de o mercado masculino de beleza ter se se posicionem diante de determinadas questões
revelado promissor e rentável, o que estimulou sociais. Assim, é possível perceber que ocorre
o surgimento de produtos e serviços voltados um misto de oportunismo e apoio, mas não
para esse público. Através de elementos sendo ainda suficiente para romper com os
simbólicos e significativos, a publicidade tenta paradigmas sociais.
alcançar nichos específicos ao construir um Mais do que discutir as questões de gênero,
apelo persuasivo baseado em modelos esse trabalho propõe um olhar mais crítico para
referenciais bem aceitos nos grupos sociais, as campanhas publicitárias produzidas, de
elaborados exatamente com o intuito de causar forma que possamos compreender o intuito
identificação com o receptor (Januário, 2014). principal existente por trás de alguns
Dessa forma, a realização da pesquisa posicionamentos. Por estarmos inseridos em
qualitativa combinada com a análise de uma sociedade de consumo, é importante
conteúdo permitiu uma investigação mais pensar de forma cautelosa a respeito dos
detalhada acerca desses modelos construídos conteúdos midiáticos que estão à nossa volta,
nas peças publicitárias analisadas. As três bem como no impacto que estes exercem nos
procuraram discutir a questão da pluralidade indivíduos, pois, desse modo, teremos
masculina, seja pelo discurso ou pela consumidores cada vez mais conscientizados.
representação imagética, revelando maneiras
de ser homem que vão contra à “masculinidade
hegemônica” (Connell, 2005 como citado em REFERÊNCIAS
Januário, 2014), ou seja, aquela normativa e
tradicional. A análise dos comerciais constatou AvonBR. (2016, Junho 28). BB Cream Color Trend e a
um esforço das marcas para desconstruir a Democracia da Pele – Avon apresenta
imagem do “homem macho”, muito embora [Arquivo em vídeo]. Disponível em:
alguns elementos continuem replicando <https://www.youtube.com/watch?v=8Imd5
MyfGbo>. Acesso em: 30 out. 2018.
estereótipos de gênero e reafirmando a noção
Badinter, E. (1993). XY: sobre a identidade masculina
patriarcal. (M. I. Duque Estrada, Trad.). Rio de Janeiro:
As empresas, por sua vez, buscam mostrar-se Nova Fronteira.
mais engajadas socialmente e tentam Bardin, L. (1977). Análise de conteúdo. Lisboa:
apresentar algumas mudanças que por vezes Edições 70.
vão contra os valores tradicionais. É preciso Burrowes, P. (2005). Viagem ao território da
ressaltar, contudo, que a simples inserção de publicidade. Comunicação, Mídia e Consumo,
personagens ou discursos não é garantia de que 2(5), 205-219.
exista um processo de mudança conceitual por Butler, J. (2003). Problemas de gênero: feminismo e
parte das marcas. O intuito principal, na maioria subversão da identidade (R. Aguiar, Trad.). Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira.
das vezes, é estabelecer vínculos emocionais
Denscombe, M. (2010). The Good Research Guide: for
com os consumidores para conseguir criar uma small-scale social research projects. (4ª ed.).
identificação com eles por intermédio do valor Nova Iorque: McGraw-Hill.
simbólico. O que ocorre, portanto, é um cenário Foucault, M. (1985). História da Sexualidade I: A
repleto de contradições, que apresenta, vontade de saber. (7ª ed.). Rio de Janeiro:
simultaneamente, o rompimento com alguns Graal.

12 Consumer Behavior Review, 3(Special Edition), 1-13.


Um “novo homem” para o consumo: a representação da masculinidade em propagandas de Avon e Natura

Matos, M. (2008). Teorias de gênero ou teorias e


Foucault, M. (1979). Microfísica do Poder (R. gênero? Se e como os estudos de gênero e
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Januário, S. B. (2016). Masculinidades em novo para as ciências. Revista Estudos
(re)construção: Gênero, Corpo e Publicidade. Feministas, 16(2), 333-357.
Covilhã: LabCom.IFP. Natura Brasil. (2017, Julho 2). A linha Natura Homem
Januário, S. B. (2014). Homens em revista: gênero, celebra todas as maneiras de ser homem
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Comunicação, Foz do Iguaçu-PR. Nolasco, S. (1993). O mito da masculinidade. Rio de
Machado, M. (2010). Consumo e politização: discursos Janeiro: Rocco.
publicitários e novas formas de engajamento Scavone, L. (2008). Estudos de gênero: uma
juvenil. (Tese de Doutorado). Universidade sociologia feminista?. Revista Estudos
Federal do Rio de Janeiro. Feministas, 16(1), 173-186.
Machado, M., Burrowes, P., & Rett, L. (2017). Para ler Scott, J. (1995). Gênero: uma categoria útil de análise
a publicidade expandida: em favor da literacia histórica. Revista Educação & Realidade,
midiática para análise dos discursos das 20(22).
marcas. Anais do XXVI Encontro Anual da Silva, L. D. (2016). Os casais de O Boticário e o que o
Compós, São Paulo-SP. público achou deles: publicidade, representação
Maquiagem Natura. (2017, Junho 18). Toda beleza e consumo como arena de ativismo. (Trabalho
pode ser [Arquivo em vídeo]. Disponível em: de Conclusão de Curso). Universidade Federal
<https://www.youtube.com/watch?v=krT5xl do Rio de Janeiro.
Hjp3E>. Acesso em: 30 out. 2018.

A “new man” for consumption: the representation of masculinity in Avon and Natura
advertisements

Abstract
This paper addresses the issue of masculinity and male representations in advertising, presenting as
object of study three advertising campaigns run by Avon and Natura between 2016 and 2017: “Para
TodEs”; “Toda beleza pode ser” and “Lançamento da linha Natura Homem”. The qualitative approach
methodology employs content analysis as method. A framework was constructed that crosses the
rhetorical, aesthetic, informational and promotional dimensions of Malmelin's advertising literacy
model, with aspects extracted from the analyzed material: characters; costumes; scenarios; colors;
soundtrack; voice tone; gestures and actions. The brands clearly make an effort to deconstruct the
image of “macho man”, although many elements fall into gender stereotypes. Both brands employed
persuasion strategies based on engagement in the cause and values of diversity. Results indicate that
brands make use of socially valued images and discourses in order to attract consumer niches.
Keywords: Masculinity, Gender, Advertising.

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