Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Escravidao Africana No Reconcavo Da Guanabara PDF
Escravidao Africana No Reconcavo Da Guanabara PDF
Recôncavo da Guanabara
Mariza de Carvalho Soares e Nielson Rosa Bezerra
(Organizadores)
Escravidão africana no
Recôncavo da Guanabara
(séculos XVII-XIX)
Niterói, RJ – 2011
Ao Professor Maurício Abreu, um apaixonado pelo
Recôncavo da Guanabara, cujo trabalho inspira a busca
de conexões entre a História e a Geografia.
É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora.
Primeira Parte
A escravidão como experiência coletiva
Segunda parte
A escravidão como negócio
Referências................................................................................................... 206
Os autores.................................................................................................... 239
Agradecimentos
Jane G.Landers
Gertrude Conway Vanderbilt
Chair of History, Vanderbilt University
Introdução
Mariza de Carvalho Soares e Nielson Rosa Bezerra
10
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. (primeira edição em inglês, 1982).
11
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835).
São Paulo: Companhia da Letras; Brasília, DF: CNPq, 1988. (primeira edição em inglês, 1985).
12
ABREU, Maurício de Almeida. A evolução urbana do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: IPLAN: Zahar,
1987. (atualmente em sua quarta edição pelo Instituto Pereira Passos); ABREU, Maurício de Almei-
da. Geografia Histórica do Rio de Janeiro: 1502 - 1700. Rio de Janeiro: Andrea Jakobsson Estúdio,
2010.
referência obrigatória para os trabalhos que a ele se seguiram; e sua traje-
tória, um exemplo para os jovens pesquisadores da Baixada.13
A coletânea reúne nove textos, sendo seis de autores que em algum
momento de sua formação passaram pelo Departamento de História da
UFF ou pelo seu programa de pós-graduação; os outros três são convida-
dos que, oriundos de outras instituições, estiveram em contato conos-
co e têm na bibliografia produzida por nós referência importante para
suas pesquisas. Apresentam cronologias, recortes temáticos e abordagens
diversas, a maioria deles ainda em fase de desenvolvimento. Os textos
foram selecionados e organizados em duas partes de modo a promover
uma aproximação e um diálogo entre as mesmas. A primeira parte trata
da diversidade das vivências coletivas de escravos e libertos, desde suas
relações familiares até esferas de organizações formais e informais; a se-
gunda, enfoca a questão da escravidão como negócio, nas várias esferas
em que seus agentes se apresentam, sejam eles senhores, escravos, co-
merciantes ou outros segmentos da população.
A primeira parte é composta de cinco capítulos. O primeiro, de autoria
de Denise Vieira Demetrio, trata da família escrava na freguesia de Santo
Antonio de Jacutinga, situada no fundo da baía de Guanabara, uma das
mais antigas e representativas freguesias do Recôncavo da Guanabara,
entre 1686 e 1721. Avançando nas análises sobre o tema que enfoca as
relações familiares entre escravos, a autora aborda as conexões entre es-
cravos e homens livres a partir de um diálogo inovador com o segmento
da historiografia brasileira que trabalha com a noção de Antigo Regime.
O segundo, de Michel Mendes Marta, analisa a presença das milícias de
cor na cidade do Rio de Janeiro, nos séculos XVIII e XIX, mostrando-as
como importantes esferas de organização coletiva dos chamados africa-
nos forros da cidade do Rio de Janeiro, em especial os chamados “pretos-
-minas”. O texto abre um novo caminho para as pesquisas sobre africanos
na historiografia brasileira e também a importância desses regimentos na
medida em que colaboravam para a manutenção da ordem na cidade. O
capítulo de autoria de Paulo Henrique Silva Pacheco descreve a vida dos
escravos na Fazenda de Iguaçu, de propriedade da Ordem de São Bento.
Fundada no século XVII, foi uma das fazendas mais importantes do en-
torno da Guanabara tendo concentrado uma significativa mão de obra
escrava. Partindo desta importante presença, o texto explora justamente
a participação dos escravos na organização do cotidiano da congregação
beneditina. No quarto capítulo, Lucimar Felisberto dos Santos trata das
formas de agenciamento junto à população trabalhadora da cidade do Rio
de Janeiro, mostrando que na primeira metade do século XIX os trabalha-
dores escravos atuaram lado a lado com trabalhadores livres, tendo como
perspectiva a possibilidade de qualificação profissional. Situando-se no
13
ALVES, José Cláudio de Souza Alves. Dos barões ao extermínio: uma história da violência na Baixada
Fluminense. Duque de Caxias: APPH-CLIO, 2003.
campo da história do trabalho, a autora caracteriza a formação da clas-
se operária brasileira como emergente do regime escravista, destacando
a proximidade entre experiência escrava e trabalho livre. Encerrando a
primeira parte da coletânea, Ynaê Lopes dos Santos apresenta casos de
escravos de proprietários do Recôncavo da Guanabara que “moravam”
longe de seus senhores, na cidade do Rio de Janeiro onde eram “colocados
ao ganho”. A questão da moradia é apresentada como um importante e
geralmente desconsiderado aspecto da experiência da escravidão, em es-
pecial àqueles que tinham a rua como lugar de suas lucrativas atividades
econômicas.
A segunda parte é composta de quatro capítulos. O primeiro, de auto-
ria de Camila Baptista Dias, descreve a pesca da baleia, um negócio pouco
explorado pela historiografia e que foi de grande importância na baía da
Guanabara no século XVII. A autora mostra os contratadores da baleia no
quadro dos negócios portugueses e das elites da cidade do Rio de Janeiro,
assim como o uso pouco estudado da mão de obra escrava africana no
beneficiamento do óleo e outros derivados da baleia. Cláudio de Paula
Honorato analisa o funcionamento do Mercado do Valongo. Criado no sé-
culo XVIII para receber os africanos desembarcados, foi fechado em 1831
e sua existência desencadeou grandes debates do ponto de vista econô-
mico, urbanístico e sanitário que merecem a atenção dos historiadores.
Ao estudar o mercado, o autor apresenta também uma nova dimensão
da cidade, assim como a dispersão dos escravos pelo recôncavo através de
uma teia de pequenos negócios. Discutindo o pequeno comércio, o capítu-
lo de Juliana Barreto Farias mostra a atuação dos chamados “pombeiros”
no porto da cidade do Rio de Janeiro do século XIX onde as mercadorias
produzidas no recôncavo eram vendidas aos moradores. O texto mostra
as variadas estratégias de trabalho e sobrevivência desses pequenos co-
merciantes na primeira metade do século XIX. O último texto da coletâ-
nea, de autoria de Nielson Rosa Bezerra, parte das freguesias do fundo
da Baía da Guanabara onde se concentrava a produção de farinha para
mostrar as amplas redes de comércio constituídas por esses produtores.
Nielson Bezerra analisa o caso de um grupo de comerciantes que levou
uma embarcação com um grande lote de farinha de mandioca para ser
vendido nos portos de Bony e Calabar em troca de escravos destinados
aos comerciantes da cidade do Rio de Janeiro. Dessa forma o autor inves-
tiga as conexões atlânticas do Recôncavo da Guanabara e mais uma rota
atlântica minoritária (Rio de Janeiro – Baía de Biafra) frequentada pelos
mercadores de escravos da cidade do Rio de Janeiro, na África Ocidental.
No seu conjunto, os textos abrangem temas variados, mas o diálogo
entre eles pode ser reconhecido através da constante atenção, embora em
medidas variadas, aos temas e abordagens destacados nesta introdução.
Por fim, o conjunto dos capítulos demonstra que todos os autores tiveram
sua formação marcada pela pesquisa documental nos arquivos do Rio de
Janeiro e municípios da Baixada Fluminense, o que faz desta coletânea
uma iniciativa pioneira não apenas por divulgar esse conjunto inédito de
pesquisas cujos autores estão ingressando na vida acadêmica, mas tam-
bém por divulgar uma rica e pouco explorada vertente da historiografia
baseada em pressupostos que trazem ao palco dos estudos da escravidão
um segmento da população escrava e liberta e de suas experiências e ne-
gócios que até agora têm sido pouco explorados pela historiografia.
Primeira Parte
A escravidão como experiência coletiva
A família escrava em Jacutinga, 1686-17211
Denise Vieira Demétrio
4
LARA, Silvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na Amé-
rica portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar:
idéias e práticas políticas no império português: séculos XVI a XIX. 2. ed. São Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2007. p. 21-38; LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e po-
der na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
5
DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias escravas: novas perspectivas de análise para o período colo-
nial: Recôncavo da Guanabara, séculos XVII e XVIII. In: SIMPÓSIO INTERNACIONAL DE ESTU-
DOS SOBRE A ESCRAVIDÃO AFRICANA NO BRASIL, 1., 2010, Natal. Anais... Natal: [s.n.], 2010.
6
Estudos recentes vêem demonstrando tais alianças, destacadamente os de João Fragoso. Dentre
outros trabalhos ver: FRAGOSO, João Luís. Fidalgos e parentes de pretos: notas sobre a nobreza
principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João; SAMPAIO, Antônio Carlos
Jucá; ALMEIDA, Carla Maria de Carvalho (Org.). Conquistadores e negociantes: histórias de elites
no antigo regime nos trópicos: América Lusa, séculos XVI a XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2007. p. 33-120; FRAGOSO, João. A reforma monetária, o rapto de noivas e o escravo
cabra José Batista: notas sobre hierarquias sociais costumeiras na monarquia pluricontinental lusa
(séculos XVII e XVIII). In: AZEVEDO, Cecília et al. Cultura política, memória e historiografia. Rio
de Janeiro: FGV, 2009. p. 315-341; FRAGOSO, João. Capitão Manuel Pimenta Sampaio, senhor
do engenho do Rio Grande, neto de conquistadores e compadre de João Soares, pardo: notas so-
bre uma hierarquia social costumeira (Rio de Janeiro, 1700-60). In: GOUVÊA, Maria de Fátima;
FRAGOSO, João (Org.). Na trama das redes: política e negócios no império português, séculos XVI-
-XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 243-294; DEMETRIO, Denise Vieira. Famílias
escravas no Recôncavo da Guanabara: séculos XVII e XVIII. Dissertação (Mestrado)–Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008.
7
REVEL, Jacques. Microanálise e construção do social. In: REVEL, Jacques (Org.). Jogos de escalas:
a experiência da microanálise. Rio de Janeiro: FGV, 1998. p. 27-28.
encontrado para esta freguesia.8 Também utilizamos as “Estatísticas rea-
lizadas pelo governo do Marquês de Lavradio”9 de finais do século XVIII,
onde podemos visualizar dados referentes à distribuição de engenhos, es-
cravos e produção de açúcar/aguardente, população e produção agrícola
desta freguesia. Estes dados são importantes para dar uma idéia da diver-
sificação do emprego da mão de obra escrava e de como essa economia in-
terferia na organização do trabalho e na vida da população, especialmente
no que diz respeito à sua fixação na região e a constituição de laços dura-
douros como casamento e outros laços familiares, nosso foco privilegiado.
Outra fonte contemporânea desta e imprescindível para qualquer estudo
sobre o recôncavo da Guanabara são os diversos escritos do Monsenhor
José de Souza Azevedo Pizarro e Araújo.10
Quanto aos engenhos de Jacutinga no século XVII, as fontes pesquisa-
das foram complementadas com informações da Base de Dados para o Rio
de Janeiro da Linha de Pesquisa de Geografia Histórica, organizada por
Maurício Abreu.11 Para conhecimento da trajetória dos personagens da
freguesia e das localidades próximas, dois trabalhos de fôlego – as obras
genealógicas de Carlos G. Rheingantz e Elysio de O. Belchior – foram re-
ferências indispensáveis.12 Ambos serviram enormemente para identifi-
car as genealogias de alguns proprietários para os quais privilegiamos o
cruzamento de dados relativos a casamento, propriedades na localidade e
8
Arquivo da Cúria Diocesana de Nova Iguaçu, doravante ACDNI. Livro de Batismo, Matrimônio e
óbitos de Escravos, Santo Antônio de Jacutinga, 1686-1721. Este livro inclui mais duas folhas que
foram encontradas no Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio de Janeiro, por mim transcritas e
cujos dados foram reunidos aos demais. A parte do livro relativa aos mortos, que consta em sua
página de abertura, não foi encontrada. Agradeço a Antonio Lacerda, diretor do referido arquivo,
pela disponibilização da fonte e a Nelson Aranha, paleógrafo, que orientou na transcrição deste e
outros manuscritos.
9
LAVRADIO, Marquês do. Estatística realizada pelo Governo do Marquês do Lavradio, entre 1769-
79. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, São Paulo, t. 76, parte 1, p. 289-360, 1913.
10
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. O Rio de Janeiro nas visitas pastorais de Monsenhor Pi-
zarro: inventário da Arte Sacra Fluminense. Rio de Janeiro: INEPAC, 2008. 2 v; ARAÚJO, José de
Souza Azevedo Pizarro e. Livro de visitas pastorais na Baixada Fluminense no ano de 1794. Nilópolis:
Prefeitura de Nilópolis, 2000; ARAÚJO. José de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do
Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. 10v; ARAÚJO. José de Souza Azevedo
Pizarro e. Relação das Sesmarias da Capitania do Rio de Janeiro. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 63, v. 1, 1900.
11
Maurício Abreu, Base de Dados para o Rio de Janeiro da Linha de Pesquisa de Geografia Histórica,
Núcleo de Pesquisas de Geografia Histórica do Departamento de Geografia Universidade Federal
do Rio de Janeiro, 2008 (ainda não disponível), doravante citada como Abreu, BDGHRJ. A Base de
Dados agrega livros cartoriais, inventários, verbas testamentárias, livros de tombo das ordens re-
ligiosas, autos de medição de terras, autos de demandas judiciais etc., de diferentes instituições, e
nas preciosas genealogias das famílias fluminenses dos séculos XVI e XVII, obra de Carlos G. Rhein-
gantz, e tem neste segmento por objetivo a identificação e a localização dos engenhos fluminenses
dos séculos XVI e XVII. Para consulta a esta base ainda em fase de finalização pude contar com a
generosidade do professor Maurício de Almeida Abreu, em cuja pesquisa colaborei transcrevendo
escrituras no Arquivo Nacional, ocasião em que pude tomar conhecimento das atividades e da
pesquisa por ele coordenada.
12
Elysio de Oliveira Belchior. Conquistadores e Povoadores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, Livraria
Brasiliana Editora. 1965; RHEIGANTZ, Carlos. Primeiras famílias do Rio de Janeiro: séculos XVI e
XVII. Rio de Janeiro: Livraria Brasiliana, 1965. 2 v.
ocupação de cargos no governo da capitania. Desse modo pudemos aliar
os dados qualitativos aos quantitativos.
A Freguesia
Também São Sebastião valente santo soldado, que aos tamoios rebela-
dos deu outrora uma lição hoje está do vosso lado E mais — Paranapucu,
Jacutinga, Morói, Sariguéia, Guiriri, Pindoba, Pariguaçu, Curuça, Miapei E
a tapera do pecado, a de Jabebiracica, não existe. E lado a lado a nação dos
derrotados no fundo do rio fica. Os franceses seus amigos, inutilmente
trouxeram armas. Por nós combateram Lourenço, jamais vencido, e São
Sebastião flecheiro.15 (grifos do autor)
Os engenhos
19
LAVRADIO, Marquês do. Estatística realizada pelo Governo do Marquês do Lavradio, entre 1769-
79. Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, São Paulo, t. 76, parte 1, p. 289-360, 1913.
20
A produção anual de gêneros alimentícios da freguesia de Jacutinga constava de 25.000 sacas de
farinha (de mandioca), 1.000 de milho, 1.000 de feijão e 10.000 de arroz num total de 37.000 sacas
por alqueire destacando-se entre as demais freguesias que compunham o distrito ao qual pertencia
(Marapicu com 2.750; Meriti com 4.190; Pilar com 19.963 e Iguaçu com 20.800 sacas, por alquei-
re). (GOMES, Flávio dos Santos. Quilombos do Rio de Janeiro no século XIX. In: GOMES, Flávio
dos Santos; REIS, João José (Org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. Rio de
Janeiro: Companhia das Letras, 1996. p. 263-290).
21
Sobre a farinha no Rio de Janeiro ver: SOARES, Mariza de Carvalho. O vinho e a farinha, ‘zonas de
sombra’ na economia atlântica no século XVII. In: SOUSA, Fernando de (Coord.). A companhia e as
relações econômicas de Portugal com o Brasil, a Inglaterra e a Rússia. Lisboa: CEPESE: Afrontamento,
2008. p. 215-232; SOARES, Mariza de Carvalho. Engenho sim, de açúcar não: o engenho de farinha
de Frans Post. Vária Historia, Belo Horizonte, v. 25, n. 41, p. 61-83, jan./ jun. 2009..
22
LAVRADIO, ibidem.
23
BEZERRA, Nielson Rosa. Tensões e interações das relações sociais em torno do regime escravista
na Freguesia de Santo Antônio de Jacutinga. Revista Pilares da História, [S.l.], ano 2, n. 2, maio
2003. p. 9.
acreditamos que o perfil consolidado em meados do século XVIII, já deve-
ria caracterizar a freguesia no século anterior.
Ainda segundo cálculos de Monsenhor Pizarro, o templo original da
igreja de Jacutinga fora elevado em Jambuí, em data desconhecida ao lon-
go do século XVII, e dali transferido em 1733 para o sítio denominado
“Calhamaço” (Brejo), próximo ao rio Santo Antônio.24 Como isso acon-
tecera cerca de 68 anos antes do dito relatório, deduz-se que a Capela de
Santo Antônio de Jacutinga fora elevada a Paróquia entre 1653 e 1663,
mais precisamente, 1657. Em 1641 o Capitão Manoel Homem Albernaz
e sua mulher Maria Cubas venderam ao Capitão Bento do Rego Barbosa
um engenho “de invocação de Santo Antônio, sito em Jacutinga, com uma
ermida de taipa de mão coberta de telhas havido por títulos de heran-
ça e de compra”. Tudo indica terem Manoel e Maria erguido a primitiva
ermida de Santo Antônio de Jacutinga que deu origem à sede da futura
freguesia.25 Entretanto, os nomes do casal não foram encontrados na ge-
nealogia de Rheingantz; mas havendo indícios de que, pelo nome, fossem
parentes das famílias Albernaz e Cubas, já que ambas receberam sesma-
rias no século XVI e XVII na região do rio Iguaçu.26 No Livro de Batismos
de Jacutinga consta um Manoel Cardoso Albernaz anotado como tendo
servido de padrinho em dois registros, para os quais não foi encontrada
nenhuma informação até o momento.
Em 1668, Salvador Mendes e Vicente Rodrigues vendem este engenho
ao coronel Manoel Martins Quaresma, que, com sua esposa Domingas
do Amaral, vende-o novamente em 1679 ao capitão Custódio Coelho
Madeira. Em 1681, a metade do engenho é vendida a Manoel de Pontes de
Labrit para estabelecimento de parceria e sociedade, transação que será
cancelada, de comum acordo, em 1683. Entre 1681 e 1685 o mesmo enge-
nho volta às mãos do Capitão Manoel Martins Quaresma que o vende ao
Capitão Manoel da Guarda Muniz em 1685.27 Em 1698 a filha de Manoel
da Guarda, Brígida da Guarda, casa-se, em Jacutinga, com João Maciel
da Costa que em 1709 hipoteca a metade do engenho. Este casal teve seis
filhos, todos nascidos em Jacutinga.28
João Maciel da Costa nasceu no arcebispado de Braga, por volta de
1668 e faleceu no Rio em 1723. Ao todo somam 68 registros em que apa-
rece como proprietário de escravos. Há três registros de padrinho (1688,
24
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de visitas pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Nilópolis: Prefeitura de Nilópolis, 2000. p. 26-27.
25
Base de Dados da Linha de Pesquisa de Geografia Histórica do Rio de Janeiro, Departamento de
Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, elaborada pelo Prof. Maurício
Abreu.
26
BELCHIOR, Elysio de Oliveira. Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livra-
ria Brasiliana, 1965. p. 28-30, 142-151.
27
BELCHIOR, Elysio de Oliveira. Conquistadores e povoadores do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Livra-
ria Brasiliana, 1965. p. 28-30, 142-151.
28
RHEIGANTZ, Carlos. Primeiras famílias do Rio de Janeiro: séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Livra-
ria Brasiliana, 1965. p. 495-497.
1712, 1710) com o nome João Maciel sendo um deles (1710) acrescido
do termo “o mosso”, indicando ser provavelmente seu filho de mesmo
nome, nascido em Jacutinga em 1701, então com nove anos. Já o registro
de 1688 é anterior ao seu nascimento, portanto, deve ser o próprio João
Maciel da Costa, que apadrinha um escravo de Antonio Gonçalves Freire.
Outro filho seu, de nome José Maciel da Costa, nascido em Jacutinga em
1705, também foi padrinho de escravo, pertencente a Manoel Alves de
Góis, em 1714. João Maciel da Costa serviu ainda como testemunha de
três casamentos entre cativos.29
O engenho de São Miguel pertence, em 1652, a Francisco de Araújo
Caldeira. Durante sua trajetória ocorreram duas hipotecas de um partido
de canas sito no engenho: em 1685 e 1690. Em 1694 é vendida a meta-
de do mesmo pela viúva de Francisco (falecido em 1681), Francisca de
Araújo, a João Gonçalves Viana e a outra metade passa para seus filhos
Bartolomeu de Araújo Caldeira e Miguel de Araújo Caldeira. Há outra hi-
poteca de um partido de canas em 1697, na metade que coube aos filhos.
Bartolomeu de Araújo Caldeira casa-se no Rio, em 1647, com Ana Cabral
de Melo (proprietária em Jacutinga) e não deixam geração; o mesmo fale-
ce em 1701.30 Já em 1718, seu irmão, o capitão Miguel de Araújo Caldeira
e sua mulher Brigida da Guarda, vendem terras e um engenho “velho e
desfabricado” ao alcaide-mor Tomé Correia Vasques.31 Todos esses per-
sonagens frequentam a paróquia de Jacutinga para batizar escravos.
Francisca de Araújo possuía 29 escravos; seu filho Bartolomeu, 33, e sua
nora Ana Cabral, três escravos; seu outro filho Miguel, 33.
O Engenho Nossa Senhora da Batalha é vendido em 1652 por João
Coelho e sua mulher Bárbara de Brito, a Estevão de Vasconcelos. O mes-
mo Estevão, para comprar o engenho de João Coelho, se endividou com
o Capitão Gaspar de Mariz de Almeida, que em 1670 vende o engenho a
Bento Garcez de Araújo que ainda em 1676 continua fazendo pagamentos
a Gaspar Mariz de Almeida. Bento Garcez falece em 1676 e em 1685 é
vendido um partido de canas no dito engenho que nessa ocasião já per-
tencia a outro proprietário, João Rodrigues do Vale. Este aparece como
padrinho de um escravo de D. Catarina Colaça em 1691 em Jacutinga. É
seu único registro. No inventário de João, informa que ele possuía um
engenho em Jacutinga, vendido a Domingos da Costa, lavrador. João e
a mulher Leonor Guterres foram presos pela Inquisição.32 Segundo Lina
Goreinstein em Jacutinga haviam três senhores de engenho cristãos-
29
ACDNI. Livro de Batismos e Matrimônios de escravos de Santo Antônio de Jacutinga. 1686-1721.
30
RHEIGANTZ, ibidem, p. 130.
31
RHEIGANTZ, Carlos. Primeiras famílias do Rio de Janeiro: séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Livra-
ria Brasiliana, 1965. p. 130.
32
NOVINSKY, Anita. Inventários de bens confiscados a cristãos novos no Brasil. Lisboa: Imprensa Nacio-
nal, Casa da Moeda, 1978. p. 148-149; e Lina Goreinstein Apud Base de Dados da Linha de Pesqui-
sa de Geografia Histórica do Rio de Janeiro, Departamento de Geografia, Universidade Federal do
Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, elaborada pelo Prof. Maurício Abreu.
-novos: Diogo de Lucena Montarroio e Bento de Lucena, além de João
Rodrigues do Vale.33 Não há registro de batismos de nenhum escravo dos
Lucena na freguesia, o que pode redimensionar a questão da prática reli-
giosa católica dos cristãos novos.
O engenho de Nossa Senhora da Conceição dos Gaias pertencia a
Alonso de Gaia e sua mulher Maria de Aguiar, que o comprara a Jordão
Homem da Costa em 1668. Este, por sua vez, havia comprado o dito
engenho em 1652 de Antônio de Aguiar e sua mulher Marcelina da
Costa. Consta em Monsenhor Pizarro que a Igreja de Nossa Senhora da
Conceição [dos Gaias] sita em Sarapuí, fora erecta por Afonso de Gaia e
criada como Capela Curada em 1674. Desde 1691 a Capela já necessitava
ser reedificada e em 1736 a mesma fora extinta por sentença, pela qual
o bispo D. Antônio de Guadalupe a aniquilou e uniu seu território ao da
Matriz de Santo Antônio de Jacutinga, de quem se havia desmembrado
em 1674.34 Após a morte de Alonso de Gaia o engenho é passado a vários
proprietários dentre eles ao capitão Manoel Cabral de Melo e sua mulher
Vitória de Azedias Machado que o possuía em 1696. Manoel era irmão
de Ana Cabral de Melo, casada com Bartolomeu de Araújo Caldeira, do-
nos do engenho São Miguel. No Livro de Batismos de Jacutinga há vários
indivíduos com o sobrenome Cabral e Azedias Machado, mas que ainda
não puderam ser considerados parentes pela quantidade de homônimos
nas duas famílias. Importa dizer apenas que dois engenhos de Jacutinga
pertenciam a parentes consanguíneos.
Na capela de Nossa Senhora da Conceição da Cachoeira foram realiza-
dos 11 batismos e três casamentos de escravos entre 1708 e 1720 que ora
são registrados como pertencentes ao alcaide-mor Tomé Correia Vasques,
ao sargento-mor Martim Correia Vasques (filho natural do alcaide com
Ana Soares de Matos), a D. Guiomar (filha do Alcaide com D. Antonia
Tereza Maria Pais), à D. Antônia Tereza Maria Pais (viúva de Tomé Correia
Vasques, falecido em 1718), ao capitão Salvador Correia de Sá (irmão de
Tomé C. Vasques; aqui aparece o apelido de Sá, acrescentado por analogia
com os parentes do primeiro matrimônio de Gonçalo Correia, tronco da
família)35 e ainda simplesmente “escravos da Cachoeira”, o que dificulta
identificar claramente a quem pertencia o engenho em determinados
momentos.
Em 1692 o sargento-mor Martim Correia Vasques, herdeiro de Pedro
de Souza Pereira, recebe terras e sobejos entre seus engenhos da Cachoeira
e Maxambomba, o que sinaliza que ambos lhe pertenciam antes desta
33
GOREINSTEIN, Lina. Heréticos e impuros. Rio de Janeiro: AGCRJ, 1995. Cap. 3: os engenhos,
os partidos, os negócios, p. 59-80. Disponível em: <http://www.rumoatolerancia.fflch.usp.br/
node/838>.
34
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de visitas pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Nilópolis: Prefeitura de Nilópolis, 2000. p. 36-37.
35
RHEIGANTZ, Carlos. Primeiras famílias do Rio de Janeiro: séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Livra-
ria Brasiliana, 1965. p. 374-375.
data. Já em 1731, segundo Pizarro, uma Provisão do bispo D. Fr. Antônio
de Guadalupe, autoriza o Dr. Manoel Correia Vasques, senhor e possuidor
que foi desta fazenda e engenho, a demolir a capela de Nossa Senhora
da Conceição, arruinada, para construir outra, junto à sua casa de vi-
venda, por ser mais cômoda.36 Ainda sobre esta Capela, Pizarro informa
que foi construída antes de 1731 para substituir outra dedicada a Nossa
Senhora do Bonsucesso na Fazenda de Maxambomba, pouco distante da
Cachoeira37 que segundo Matoso Maia Forte seria fundada por Manoel de
Mariz [de Brito],38 mas não podemos afirmar a partir da documentação
disponível que o engenho Machambomba pertencera a Manoel de Mariz
de Brito, antes de passar para Martim Correia Vasques.
É importante destacar aqui a importância da família Correia Vasques
tanto para a Capitania quanto para a região.39 Os Correia Vasques tinham
influência, projeção política e social no Rio de Janeiro. O sargento-mor
Martin Correia Vasques foi provedor da Santa Casa de Misericórdia (1662-
1663), bem como seu pai Manoel Correia (1629-1632); igualmente seu
irmão Tomé Correia de Alvarenga, por três vezes (1641-1655; 1656-1660;
1671-1674) e também seu filho o Dr. Manoel Correia Vasques (bacharel,
laureado em Coimbra) por duas vezes, (1732-1735 e 1737-1742).40 Pela
documentação dos engenhos reunida por Maurício Abreu em sua base de
dados, dos nove engenhos aqui tratados, os únicos que permanecem com
seus proprietários originais ou membros da mesma família e que chegam
ao século XVIII são os engenhos da Cachoeira e Maxambomba. Além des-
ses, em 1718 o alcaide-mor Tomé Correia Vasques compra do Capitão
Miguel de Araújo Caldeira o engenho São Miguel.41
Manoel de Mariz de Brito nasceu no Rio por volta de 1637. Bisneto de
Antônio de Mariz ou Marins e Isabel Velha; faleceu em sua fazenda em
Moquetá em 1722 onde recebeu uma sesmaria e uns sobejos em 1679.
Era casado com D. Jerônima Correia Ximenes, cristã-nova. Em 1714 seu
engenho, de invocação de Nossa Senhora do Bonsucesso, é confiscado pelo
Fisco Real a mando da Inquisição.42 D. Maria de Mariz, sua filha, casou-
36
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de visitas pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Nilópolis: Prefeitura de Nilópolis, 2000. p. 34.
37
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Memórias históricas do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Imprensa Nacional, 1945. v. 3, p. 145-46.
38
FORTE, José Mattoso Maia. Memória da Fundação de Iguassu. Rio de Janeiro: Typografia do Jornal
do Comércio, 1933. p. 28.
39
DEMETRIO, Denise Vieira. Martim Correia Vasques: trajetória política e redes clientelares. Comuni-
cação apresentada no Simpósio Temático Poderes, Riquezas e Saberes: elites plurais num império
multifacetado do 3º Encontro Internacional de História Colonial – Cultura, Poderes e Sociabilida-
des no Mundo Atlântico (séc. XV-XVIII), Recife, Universidade Federal de Pernambuco, 2010.
40
FAZENDA, José Vieira. Os provedores da Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Typographia do Jornal do Commercio, 1912.
41
Base de Dados da Linha de Pesquisa de Geografia Histórica do Rio de Janeiro, Departamento de
Geografia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, elaborada pelo Prof. Maurício
Abreu.
42
Ibidem.
-se com Antônio da Cunha Falcão em 1703, em Jacutinga, e deste casal a
única filha, D. Micaela Arcângela, nasceu também em Jacutinga em 1704.
Antônio possuía 29 registros de batismos de escravos em Jacutinga.
Em 1726, esta filha do casal casou com Henrique Alfradique de Souza,
nascido em Meriti por volta de 1690. Membros da família Alfradique apa-
recem também no livro de batismos de Jacutinga, como o próprio capitão
Inácio Alfradique, patriarca da família, cuja primeira esposa, Bárbara de
Araújo era filha de Francisco de Araújo Caldeira e Francisca de Araújo,
donos do engenho São Miguel, com a qual teve Antônio Alfradique. Este
tinha filha e neta nascidas em Jacutinga.43 E também teve com a segun-
da esposa, Margarida de Mendonça, Manuel Alfradique. Inácio e Antônio
Alfradique possuíam, respectivamente, quatro e 19 registros de escravos
em Jacutinga e Manuel aparece duas vezes como padrinho de escravos.
Em 1720 são realizados dois batismos de escravos de Manoel de Mariz
na Capela de Nossa Senhora do Bonsucesso (seu engenho) na Freguesia
de Jacutinga.44 Os outros registros somam 91 escravos na paróquia de
Jacutinga. Após sua morte, em 1722, seu filho Manoel Correia de Mariz
vende terras e o engenho a Nicolau de Bittencourt Heredia em 1735, que,
no mesmo ano, vende a Manoel Martins Margaça.
O capitão Inácio de Madureira Machado e sua esposa Águida Faleiro
possuíam em 1697 seu engenho no Cabuçu, indo para Marapicu, na estra-
da que hoje recebe o nome de Estrada de Madureira. Em 1728 o engenho
pertencia a seu filho João de Madureira Machado, que fora hipotecado em
dois momentos: em 1708 e 1714, primeiro pelo pai, depois pelo filho. O
capitão Inácio de Madureira era filho de Bárbara de Madureira e José de
Barcelos Machado, nascido no Rio em 1647 e casado com Agueda Faleiro
em 1668, filha do capitão Fernão Faleiro Homem e Inês de Andrade. Inácio
de Madureira possuía 28 registros de escravos na paróquia de Jacutinga;
sua esposa, oito e seu filho João, 15.
Sobre o engenho de Antônio de Azeredo Coutinho, sabe-se ape-
nas que, em 1718, o mesmo já era senhor de engenho, posto que os li-
mites de suas terras confrontavam com as compradas pelo alcaide-mor
Tomé Correia Vasques ao capitão Miguel de Araújo Caldeira. Monsenhor
Pizarro, ao relatar os bens patrimoniais da Paróquia de Jacutinga, diz que
a mesma possuía apenas 50 braças de terras em quadra, doadas por José
de Azeredo, senhor e possuidor delas no engenho Santo Antonio, no lugar
do Calhamaço, quando ali existiu a Freguesia. Depois de transferida para
o segundo lugar que ocupou, Antônio de Azeredo, seu filho, comutou por
aquelas 50 braças, situadas no morro ao pé do Rio de Santo Antônio, outra
igual porção no lugar em que se fundou de novo a Matriz.45 Infelizmente
43
RHEIGANTZ, Carlos. Primeiras famílias do Rio de Janeiro: séculos XVI e XVII. Rio de Janeiro: Livra-
ria Brasiliana, 1965. p. 32-33.
44
ACDNI. Livro de Batismo e Matrimônio de escravos de Santo Antônio de Jacutinga. 1686-1721.
45
ARAÚJO, José de Souza Azevedo Pizarro e. Livro de visitas pastorais na Baixada Fluminense no ano
de 1794. Nilópolis: Prefeitura de Nilópolis, 2000. p. 31-32.
tanto a doação quanto a comutação não possuem documento algum, ba-
seando-se monsenhor Pizarro apenas na tradição oral dos mais antigos.
De fato: é marcante a presença de membros da família Azeredo
Coutinho em Jacutinga, que pode ser confirmada também pelos registros
de batismo e matrimônio da freguesia. O próprio Antônio de Azeredo apa-
drinhou escravos em seis ocasiões entre 1686 e 1718 e serviu como tes-
temunha em quatro registros de casamento entre 1713 e 1720. 46 Outros
membros da família aparecem ocasionalmente: Luiz de Souza Coutinho,
Luiz Matoso de Azeredo, Úrsula de Azeredo, Joana de Azeredo e Luiz de
Azeredo, como padrinhos de escravos, e Baltazar de Azeredo e João de
Azeredo como proprietários de escravos.47
A trajetória das famílias locais, sobretudo no tocante a sua vivência
econômica, tornou-se fundamental para esta pesquisa. Os contatos en-
tre esses proprietários imputam papel decisivo e estratégico também na
relação com os escravos. No dizer de Sheila Faria: a família exerceu funda-
mental importância na montagem e funcionamento das atividades eco-
nômicas coloniais, em particular às ligadas ao mundo agrário. É pela fa-
mília, não necessariamente a consanguínea, que todos os aspectos da vida
cotidiana, pública ou privada, originam-se ou convergem. É a família que
confere aos homens estabilidade ou movimento, além de influir no status
e na classificação social. Pouco, na Colônia, refere-se ao indivíduo enquan-
to pessoa isolada – sua identificação é sempre com um grupo mais amplo.
O termo “família” aparece ligado a elementos que extrapolam os limites
da consanguinidade – entremeia-se à parentela e à coabitação, incluindo
relações rituais.48 Pelo que expusemos até aqui, as famílias até agora en-
contradas em Jacutinga (livres e escravas) não fugiram a esta regra.
O que é importante observar: o número de engenhos até o momento
encontrados em Jacutinga no século XVII não difere muito dos que foram
relatados no final do século XVIII pelo Marquês do Lavradio, nem dos
de Monsenhor Pizarro, contemporâneo do vice-rei. E também fica claro
pela documentação de Maurício Abreu que os engenhos foram passan-
do de mão em mão, sendo divididos, provavelmente reagregados, ven-
didos ou hipotecados. Essas transferências de titularidade parecem ser
um indício de que a implantação da economia canavieira no século XVII
na região era dificultada por algum fator, seja financeiro ou até mesmo
natural, que necessita ser analisado mais detidamente. O principal a ser
destacado aqui é que tudo indica que essas transferências podem estar
46
Sobre os Azeredo Coutinho e o Morgadio de Marapicu, cf. RIBEIRO, Gisele Martins. Família es-
crava e a decretação da liberdade dos ventres: Freguesia de Nossa Senhora da Conceição de Mara-
picu,1871-1888. Monografia (Bacharelado em História)–Departamento de História,Universidade
Federal Fluminense, Niterói, 2006.
47
ACDNI. Livro de Batismo e Matrimônio de Escravos de Santo Antônio de Jacutinga. 1686-1721. Como
a descendência dos Azeredo é numerosa e existem muitos homônimos, ainda não foi possível iden-
tificar genealogicamente o grau de parentesco desses indivíduos.
48
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1998. p. 21.
indicando a realização efetiva de negócios cuja proporção no conjunto das
atividades econômicas precisa se avaliado. Se os proprietários estavam
constantemente comprando e vendendo terras e engenhos é possível que
os negócios com os créditos imobiliários garantissem pelo menos parte da
sustentabilidade econômica desse segmento da sociedade local, ao lado
da produção de açúcar e aguardente.
Mas, apesar de passarem adiante seus engenhos, essas famílias con-
tinuaram na região, batizando e casando seus escravos, como já foi de-
monstrado. Caberia então perguntar: o que os mantinha ali? Não é demais
lembrar que no Relatório do Marquês do Lavradio é pujante a capacidade
da freguesia de Jacutinga, no final do século XVIII, para a produção de
alimentos e farinha, o que já afirmamos. De fato, essa capacidade provavel-
mente venha desde o século XVII, já que os derivados da cana não parecem
ser o seu forte, ou melhor, o principal produto. Numa carta dos oficiais da
Câmara do Rio de Janeiro, dirigida ao Governador D. Álvaro da Silveira,
de 1702, atesta-se a capacidade do Recôncavo da Guanabara para a pro-
dução de farinha de mandioca, expondo-se, entre outras informações que
todas [as mandiocas] se plantam [...] pelos rios acima Aguassu, Inhomirim,
Morobahy, Magé, Sernambitina, Guapehy, Suruí e Macacu [...] e nelas não há
engenhos que prejudiquem as suas plantas” e mais adiante “[...] nem na
terra ou terras em que elas se plantam haja canaviais que divirtam a sua
cultura [...]”. Dá conta ainda que
50
ACDNI. Livro de Batismos, Matrimônios e Óbitos da freguesia de Santo Antônio de Jacutinga. 1686-
1721.
como padrinho, objetivando que este ajudasse o afilhado a se ambientar
no cativeiro.51
Os escravos adultos em Mariana, na primeira metade do XVIII, pre-
feriram tecer relações com outros companheiros de cativeiro, como mos-
trou Moacir Rodrigo de Castro Maia. Segundo o autor, os 1.351 homens
escravos foram acompanhados no batismo por 1.227 padrinhos com o
mesmo status social, representando mais de 90% dos batizados. As 280
batizandas também seguiram o padrão encontrado para o sexo masculi-
no, estabelecendo vínculos com 180 cativos (64,28%).52 Esses dados su-
peram os números encontrados por Stephen Gudeman e Stuart Schwartz
para o Recôncavo Baiano, de 1723 a 1816, que constataram que: 70% dos
casos os padrinhos pertenciam ao universo do cativeiro e em 10% eram
ex-escravos.53 Em trabalho posterior, Stuart Schwartz, em 1835, encon-
trou dados que reforçaram as relações entre padrinhos e afilhados cativos.
Segundo o autor, “está claro que, na integração à Igreja e ao mundo secu-
lar dessa sociedade escrava, outros escravos assumiam ou recebiam um
papel importante na integração dos africanos recém-chegados”.54
Ao contrário dessa tendência, Maria de Fátima Neves apontou que na
cidade de São Paulo, no final do período colonial, os padrinhos eram em
sua maioria (60,5%) homens livres. Para a autora, a reduzida população
escrava paulistana e as aproximações sociais entre forros, livres e escravos
que, o núcleo urbano possibilitava, poderiam explicar a realidade do com-
padrio na cidade de São Paulo.55 Vamos às nossas fontes.
Dos 14 africanos adultos de Jacutinga, um não teve padrinho. Dos
restantes, quatro eram escravos sendo dois do mesmo proprietário que o
batizando e dois diferentes, ou seja, os demais eram livres e foram iden-
tificados como proprietários de escravos no mesmo livro de batismos.
Assim suas ligações com os donos dos adultos ficam evidente. No caso
das madrinhas, a situação quase se inverte: sete eram escravas, seis livres
e uma não declarada. Lucrécia Correia foi madrinha de um escravo adulto
de Salvador Correia de Sá e de outro adulto de Manuel Correia Vasques
51
Roberto Guedes Ferreira, citando o viajante Debret, destaca o costume dos senhores escolherem
escravos mais “velhos” ou “virtuosos” para apadrinharem africanos adultos; bem como a responsa-
bilidade dos padrinhos para com os afilhados em sua adaptação ao cativeiro (FERREIRA, Roberto
Guedes. O parentesco ritual na Freguesia de São José no Rio de Janeiro (séc. XIX). Sesmaria: Revisa
do Núcleo de Estudos Históricos e Pesquisas Sociais, Rio de Janeiro, ano 1, n. 1, 2001. p. 53-54).
52
MAIA, Moacir Rodrigo de Castro. Por uma nova abordagem da solidariedade entre escravos afri-
canos recém-chegados a América (Minas Gerais, século XVIII). In: ENCONTRO ESCRAVIDÃO E
LIBERDADE NO BRASIL MERIDIONAL, 3., 2007, [S.l.]. Anais... [S.l.: s.n.], 2007. p. 6. Disponível
em: <www.labhstc.ufsc.br/pdf2007/51.51.pdf>.
53
GUDEMAN, Stephen e Stuart B. Schwartz. Purgando o pecado original: compadrio e batismo de
escravo na Bahia do século XVIII. In: REIS, João José (Org.). Escravidão e invenção da liberdade. São
Paulo: Brasiliense, 1988. p. 43.
54
SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. p. 289.
55
1997. NEVES, Maria de Fátima R. Ampliando a família escrava: compadrio de escravos em São
Paulo do século XIX. In: HISTÓRIA e população: estudos sobre a América Latina. Belo Horizonte:
SEADE/ABEP/IUSPP, 1990. p. 242-243.
que eram parentes, demonstrando que possivelmente ela fosse também
parente de ambos. O único caso em que padrinhos e madrinhas perten-
ciam ao mesmo proprietário do batizando, referia-se a João Maciel da
Costa. Cabe a ressalva que nenhum padrinho ou madrinha era africano.
De uma maneira geral, constata-se um predomínio de pessoas de fora
da escravaria atuando no apadrinhamento de escravos adultos, africanos
ou não. Também chegou a esta conclusão Silvia Maria Jardim Brugger,
estudando a escravaria de São João Del Rei.56 Primeiramente precisamos
considerar que o pequeno número de adultos no cômputo geral dos batis-
mos indica que a economia das regiões aqui tratadas não estavam poten-
cialmente em expansão o que corrobora a nossa afirmação anterior acerca
das pequenas e médias propriedades. Em segundo, podemos conjecturar
que, se o grupo dos recém-chegados da África possuía padrinhos fora das
suas senzalas, talvez explique porque, no futuro, quando fosse escolher
padrinhos para seus filhos, também seguisse o mesmo critério, valendo-
-se de contatos estabelecidos desde que foram batizados. Por outro lado
também significa que os contatos de seus proprietários com outros fa-
cilitavam essa situação. Os casamentos também explicam essa tendên-
cia: os africanos escolhiam outros africanos para casar e os demais para
padrinhos.
Uma vez aqui chegados, os africanos interagiam em várias esferas da
vida, criando opções de sociabilidade que – com base na procedência co-
mum – lhes possibilitassem compartilhar diversas formas de organização,
passando a constituir um grupo social de caráter profissional, religioso ou
de parentesco.57 Os registros de casamento são uma ótima oportunidade
para a análise dessas formas. Dos 84 casamentos realizados entre 1686
e 1721, em 45 (53,5%) as uniões se deram entre escravos do “gentio de
Guiné”, revelando uma endogamia entre a procedência majoritária. Além
dos africanos do “gentio de Guiné” há apenas um registro da união de uma
escrava luanda com um escravo sem denominação de cor ou procedência.
Este dado também pode ser observado nos registros de batismo: das 191
mães do gentio de Guiné que batizaram seus filhos, 68 eram casadas com
homens também do “gentio de Guiné”. Esse padrão também ocorre nas
freguesias do Rio de Janeiro estudadas por Mariza Soares.58
Ainda assim, esses números precisam ser relativizados pois do “gentio
de Guiné” partiram africanos de diferentes pontos do território, portanto,
encobrindo diferentes grupos étnicos; assim a endogamia de um grupo de
procedência não significa a de um grupo étnico. Certamente os escravos
do “gentio de Guiné” não estão se unindo somente por pertencerem ao
56
BRUGGER, Silvia M. J. O apadrinhamento de escravos adultos (São João Del Rei, 1730-1850). In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23., 2005, [S.l.]. Anais... [S.l.: s.n.], 2005. Disponível em:
<www.anpuh.uepg.br/Xxiii-simposio/anais/anaistitulo.htm>.
57
SOARES, Mariza de Carvalho. Mina, Angola e Guiné, nomes d’África no Brasil setecentista. Tempo,
Rio de Janeiro, v. 3, n. 6, dossiê: Escravidão e Africa Negra, p. 73-93, dez. 1998. p. 8.
58
SOARES, ibidem, p. 11.
“gentio de Guiné”; digo isso porque à primeira vista tendemos a homo-
geneizá-los pelas suas definições tornando-nos reféns desta miragem da
etnicidade.59 De acordo com Fredrik Barth “a persistência de grupos ét-
nicos em contato implica não apenas a existência de critérios e sinais de
identificação, mas também uma estruturação das interações que permita
a persistência de diferenças culturais”.60
A dita “miragem” (que não é só étnica) – que projetamos em nossos ob-
jetos de pesquisa – também ocorre no estudo da própria África. Segundo
Joseph Miller, uma maneira convencional de entender a África no contex-
to histórico do Atlântico é como “instituição”, ou parte de uma estrutura
mais ou menos estática, ou ainda de um sistema equilibrado formado por
açúcar, escravos e engenhos; é preciso romper com esta imagem generali-
zada para revelar as dimensões cronológicas de um processo contínuo, ou
seja, histórico.61 Paul Lovejoy alerta para o fato de que a migração forçada,
por meio da qual milhares de indivíduos foram transplantados da África
para as Américas, pode ter tido como resultado o surgimento de identifi-
cações étnicas mais inclusivas que fazem emergir esferas de solidariedade
entre diferentes grupos étnicos, mesmo quando não existem condições
previamente determinadas para isso.62
Daí ser tão crucial a diferenciação e as fronteiras entre procedências e
etnias. Para isso, temos de partir da perspectiva de que o tráfico e os rear-
ranjos que dele decorrem reconfiguram a composição dos segmentos dos
grupos étnicos africanos traficados; nas palavras de Mariza Soares
59
LOVEJOY, Paul E. Identidade e a miragem da etnicidade. Afro-Ásia, Salvador, p. 9-39, n. 27, 2002.
60
BARTH, Fredrik. O guru, o iniciador e outras variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra-Capa,
2000. p. 35.
61
MILLER, Joseph C. O Atlântico escravista: açúcar, escravos e engenhos. Afro-Ásia, Salvador, Rio de
Janeiro, n. 19-20, p. 9-36, 1997.
62
Citado por Mariza de C. Soares, em A nação que se tem e a terra de onde se vem. Estudos Afro-
-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 26, p. 307-308, maio/ ago. 2004.
63
SOARES, Mariza de C. A nação que se tem e a terra de onde se vem. Estudos Afro-Asiáticos, Rio de
Janeiro, ano 26, p. 307-308, maio/ ago. 2004. p. 308.
alguns escravos sempre serem padrinhos de muitas crianças pode ser um
exemplo desta socialização. Uma melhor compreensão dessas vivências
no cativeiro requer que sejam abordadas as teias constituídas no interior
de cada escravaria no âmbito de suas famílias.
Famílias escravas
64
Refiro-me especialmente aos trabalhos de Silvia Maria Jardim Brugger, Minas patriarcal: família e
sociedade (São João Del Rei, séculos XVIII e XIX). Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação
em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2002; FARIA, Sheila de Castro. A colônia
em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
65
BRUGGER, Silvia M. J. O apadrinhamento de escravos adultos (São João Del Rei, 1730-1850). In:
SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23., 2005, [S.l.]. Anais... [S.l.: s.n.], 2005. p. 330. Disponível
em: <www.anpuh.uepg.br/Xxiii-simposio/anais/anaistitulo.htm>.
66
VIDE, Sebastião Monteiro da, Dom. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. São Paulo: Ty-
pographia Dois de Dezembro, 1853. Livro Primeiro, Tít. XVI. Em Jacutinga temos ainda outro
descumprimento canônico que é em relação aos padres-padrinhos.
67
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835).
São Paulo: Companhia da Letras; Brasília, DF: CNPq, 1988. p. 65.
68
BRUGGER, ibidem, p. 330 et passim.
Porém o que torna o compadrio em Jacutinga algo singular é que es-
ses padrinhos livres, olhados mais de perto, dividem-se entre aqueles
que possuem ou não sobrenome e referências de prestígio social antes
do nome (padres, capitães, alferes, donas, tenentes, coronéis, etc.), ou
seja, os livres, assim como os africanos, possuem suas procedências que
os diferenciam dentro de uma mesma classificação, que só aparentemente
homogeneíza, mas que contém gradações que fazem parte desse universo
social desigual marcado pelo Antigo Regime.
Há ainda outra característica desses padrinhos/madrinhas livres que
merece referência: o fato de serem proprietários de escravos. De um to-
tal de aproximadamente 196 proprietários em todo o livro (incluindo-se
os proprietários de padrinhos, madrinhas, batizandos, pais e mães) 89
(45,6%) serviram como padrinhos/madrinhas em 180 registros (26,6%).
E, o que pode ser surpreendente se comparado a outros trabalhos e regi-
ões, é que desses 89 padrinhos que possuíam escravos, 12 (13,4%) servi-
ram como padrinho/madrinha de seus próprios escravos.69 Sendo assim,
os outros 77 padrinhos-proprietários (86,5%) apadrinharam escravos de
outros proprietários, demonstrando indícios das relações dos proprietá-
rios entre si e com escravos de outros donos. Interessante que a maioria
desses 12, dez indivíduos, exerceu esta função nos registros dos filhos
de pais incógnitos, indicando uma possível paternidade ilícita, mas al-
gum prestígio por parte da mãe escrava, de seu proprietário ou do pai
incógnito.
Enquanto no Recôncavo Baiano, estudado por Stuart Schwartz, não
houve casos em que os padrinhos livres de um escravo desfrutassem de
status social igual ou superior ao do proprietário do cativo,70 o que ocorre
aqui é exatamente o contrário: os escravos estão sendo apadrinhados em
maior medida por pessoas livres e com prestígio, ou seja: o fato de terem
os livres como compadres/comadres já representava uma aliança para ci-
ma.71 Também em Minas, Silvia Brugger afirma que em primeiro lugar
estão os padrinhos livres, brancos e de prestígio social, mas não para os
escravos: mães escravas foram as que, proporcionalmente, menos tive-
ram filhos apadrinhados por livres.72 Fosse para livres ou para escravos, o
importante é que o compadrio representou sempre uma aliança vertical
ascendente.
Já no grupo dos padrinhos/madrinhas escravos (segundo grupo em
preferência), também temos considerações importantes a fazer. Para
69
Na Bahia, Stuart Schwartz não encontra nenhum registro em que o padrinho é o próprio proprie-
tário do batizando.
70
SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial (1550-1835).
São Paulo: Companhia da Letras; Brasília, DF: CNPq, 1988. p. 334.
71
Ibidem, p. 324
72
BRUGGER, Silvia M. J. O apadrinhamento de escravos adultos (São João Del Rei, 1730-1850).
In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23., 2005, [S.l.]. Anais... [S.l.: s.n.], 2005. p. 321, 342.
Disponível em: <www.anpuh.uepg.br/Xxiii-simposio/anais/anaistitulo.htm>.
compreendermos tais incidências devemos levar em consideração dois
fatores: a cor/procedência e os proprietários desses cativos que atuaram
como padrinhos/madrinhas. 82% deles e 84% delas são escravos sem de-
nominação quanto à cor/procedência, indicando certa antiguidade no ca-
tiveiro, pessoas com experiência para ajudar os pais na criação dos filhos.
Africanos vêm em segundo lugar com um percentual de 13% de padri-
nhos e 12% de madrinhas, indicando, além de seu pequeno número no to-
tal dos batismos, possíveis disputas dentro do cativeiro (entre os antigos
e os recém-chegados), como já demonstrou a historiografia.73
Apesar de não possuir dados sobre a entrada de africanos na freguesia,
prefiro considerar que, por ser uma região de economia periférica, com
características urbanas, marcada por entrepostos comerciais e de grande
movimentação devido à seus rios, não receberia fluxos intensos de africa-
nos, ou seja, estes deveriam ser minoria entre a população escrava como
um todo. Assim sendo, esta população era marcada pela presença de es-
cravos mais antigos provenientes de uma segunda ou terceira geração. O
que chama a atenção ainda nesses padrinhos/madrinhas africanos é que
apenas quatro padrinhos pertenciam ao mesmo senhor que o afilhado e
entre as madrinhas africanas, também apenas quatro eram do mesmo
proprietário que o batizando. Ou seja: há aí mais um indicativo da dinâ-
mica dos escravos na região, dos contatos com outras escravarias, facili-
tados, provavelmente pelas relações de parentesco entre os proprietários.
Aliás, ao considerar os proprietários dos padrinhos, podemos matizar
ainda mais as relações entre os escravos e seus donos.
Alguns proprietários destacam-se não só pela posição de prestígio que
ocupam, como pelo número de vezes em que aparecem como senhores de
padrinhos e madrinhas escravos: em 156 registros de padrinhos escra-
vos, 65 (41,6%) pertenciam a indivíduos de prestígio como também em
221 registros de madrinhas escravas, 67 (30,3%) deles o eram. De acordo
com Silvia Brugger, estar ligado pelo compadrio a um grande número de
famílias tornava-se um poderoso mecanismo de ampliação de redes clien-
telares, ou seja: era um recurso político, pois, para os padrinhos era extre-
mamente interessante contar com as famílias de seus afilhados em suas
redes.74 Eu acrescento que esse interesse aplica-se tanto às famílias livres
quanto às escravas; e mais: o interesse nessas conexões não é apenas dos
73
Segundo Manolo Florentino e José Roberto Góes o tráfico gerava uma forte tensão política no
mundo das senzalas. Em outras palavras, na época de chegada intensa de cativos, a rivalidade
interétnica aumentava, colocando em risco a sobrevivência de grupos crioulos e africanos rivais.
Uma resposta a essa situação de crise consistia na intensificação de alianças entre os cativos. Isso
se refletiria nas relações de compadrio, que se tornariam mais intensas entre escravos na mesma
proporção que a intensidade do tráfico (FLORENTINO, Manolo e José Roberto Góes. A paz nas
senzalas: famílias escravas e tráfico atlântico, Rio de Janeiro, c. 1790-c. 1850. Rio de Janeiro: Civi-
lização Brasileira, 1997).
74
BRUGGER, Silvia M. J. O apadrinhamento de escravos adultos (São João Del Rei, 1730-1850).
In: SIMPÓSIO NACIONAL DE HISTÓRIA, 23., 2005, [S.l.]. Anais... [S.l.: s.n.], 2005. p. 346-349.
Disponível em: <www.anpuh.uepg.br/Xxiii-simposio/anais/anaistitulo.htm>.
padrinhos/madrinhas, mas também de seus proprietários, também eles
beneficiários de uma extensa rede clientelar.
Assim, poderíamos pensar no parentesco dos proprietários como uma
das explicações para as estratégias de escolha de padrinhos para crianças
escravas, tanto por parte de seus pais quanto dos proprietários destes;
tudo dependia do quanto conseguiam negociar. Finalmente, voltando à
questão da mobilidade, também fica evidente a busca por padrinhos/ma-
drinhas escravas de fora das propriedades originais dos pais das crianças.
Os números quase se equiparam, mas há o predomínio de compadres e
comadres exógenos, como vemos pela tabela a seguir:
75
Faço aqui menção ao trabalho de João José Reis e Eduardo Silva, Negociação e conflito: a resistência
negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
Conclusão
Introdução
4
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. p. 129.
5
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.167.
6
RUSSELL-WOOD, A. J. R. The black man in slavery and freedom in colonial Brazil. Nova York: St.
Martin`s Press, 1982.
7
VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História geral do Brasil: antes da sua separação e independência
de Portugal. Revisão e notas de J. Capistrano de Abreu e Rodolfo Garcia. 7. ed. São Paulo: Melhora-
mentos, [200-]. 3 tomos. p. 99-107.
do “negro” Henrique Dias na guerra de restauração Pernambucana teria
marcado a vitória portuguesa na construção de um Brasil-português.
Seguindo a linha interpretativa de Varnhagen, em 1868, o cônego J. C.
Fernandes Pinheiro publica uma biografia de Henrique Dias na Revista
do IHGB.8 Plenamente imbuído dos objetivos de construção de modelos
exemplares para as gerações futuras, Pinheiro inicia um trabalho elogioso
em relação aos feitos de Henrique Dias e finaliza a biografia lamentando
a extinção dos regimentos de homens pretos “que com vantagem ao país
serviam.” Assim como Varnhagen, o cônego Pinheiro vê uma vitória lusa
na busca pela construção de um Brasil-português.
Em seus Capítulos de História Colonial, em 1907, Capistrano de Abreu
também se refere às milícias Henriques. Seguindo um caminho oposto
ao de Varnhagen, o autor vê a derrota do inimigo holandês como uma
vitória do “espírito nacional”. Em sua leitura, a vitória portuguesa não
teria colaborado para a construção de um Brasil português, mas da nação
brasileira: “Venceu o espírito nacional. Reinóis como Francisco Barreto,
ilhéus como Vieira, mazombos como André Vidal, índios como Camarão,
negros como Henrique Dias, mamelucos, mulatos, caribocas, mestiços de
todos os matizes combateram unânimes”,9 vencendo assim o “espírito na-
cional”, brasileiro. Para provar seus argumentos (cada um com seu modo
de fazer História) Varnhagen e Capistrano tratam o tema de modo pouco
descritivo e muito instrumentalizado. Acabam, assim, por não aprofun-
dar uma análise sobre as milícias de cor.
Já em 1935, Gustavo Barroso publica a História Militar do Brasil.10 O
livro segue a tradição de estudos que enfoca a análise minuciosa das guer-
ras, campanhas, batalhas e táticas militares. O autor fez parte de uma es-
cola interpretativa surgida nos anos de 1890, composta por historiadores
militares e produziu o que se costuma classificar como uma “história mili-
tar tradicional”. Barroso define seu livro como “resultado duma campanha
nacionalista”, onde procura apresentar um resumo histórico das guerras,
batalhas e táticas militares ao longo da história.11 Remontando ao período
colonial, Gustavo Barroso trata brevemente das milícias Henriques. Com
um texto ufanista, empreende uma análise anacrônica do que considera o
“exército brasileiro” e exalta a tradição que incorporava “soldados negros”
8
PINHEIRO, J. C. Fernandes, Cônego. Biografia de Henrique Dias. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, Rio de Janeiro, t. 31, p. 365-383, 1868.
9
ABREU, Capistrano de. Capítulos de História Colonial. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
EdUSP, 1988. p. 139.
10
BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000.
11
Gustavo Barroso foi deputado federal de 1915 a 1918. Em 1923, foi eleito para a Academia Brasilei-
ra de Letras. Foi diretor do DIP na ditadura Vargas. Hendrik Kraay, Vitor Izecksohn e Celso Castro
informam que o autor “publicou uma série de histórias anedóticas das campanhas militares, além
de uma História militar do Brasil, assim colaborando também para a ressurreição de antigas tradi-
ções militares.” Ver CASTRO, Celso, Victor Izecksohn; KRAAY, Hendrik (Org.). Nova história militar
brasileira. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 15.
nas milícias.12 O trabalho de Barroso pode servir de referência para con-
sulta de termos e expressões militares, mas é destituído de interesse para
maiores preocupações analíticas.
Caio Prado Júnior, em Formação do Brasil Contemporâneo, de 1942, tra-
ta topicamente sobre as milícias Henriques. Buscando um enquadramen-
to geral, o autor indica sua formação no contexto das guerras pernambu-
canas e sua existência nas diversas capitanias da América portuguesa. Em
uma breve nota explicativa, aponta que “Henriques” seria a “designação
de muitos corpos de escravos libertos organizados por Henrique Dias nas
guerras holandesas”.13 Preocupado com questões mais amplas, buscando
promover uma análise sobre administração colonial, as milícias de cor são
descritas de modo geral, sem haver uma problematização do tema.
Raymundo Faoro, buscando uma interpretação sobre o Brasil – no
livro Os Donos do Poder, publicado em 1958 – considera que as milícias
tiveram papel fundamental para manter a ordem pública e conter a tur-
bulência social. Em sua leitura, ao alcançar os maiores postos do oficialato
miliciano, “o mulato ganhava atestado de brancura.” E aqui o autor iden-
tifica o que seria um ponto de tensão: a concessão de patentes. Afinal, “as
patentes afidalgam, levam o mulato e o negro livre a desprezar o trabalho
para se elevar verticalmente, com o galão nobilitador”.14 Ainda que não
aprofunde a análise (e trate brevemente do tema) é interessante notar a
compreensão das milícias de cor como um meio de busca por prestígio e
status social. Ao contrário de Caio Prado, cuja análise se sustenta numa
abordagem voltada para o econômico, Faoro aponta caminhos a serem
seguidos e identifica questões de ordem política e social que serão discuti-
das pela historiografia recente (a busca por prestígio e distinção social, o
branqueamento através dos cargos do oficialato superior, a tensão provo-
cada pela concessão de patentes etc).
Os anos de 1980 foram um marco fundamental para os estudos da es-
cravidão no Brasil, de um modo geral, e das milícias em particular.15 Como
indica a historiadora da escravidão Silvia Lara:
12
BARROSO, Gustavo. História militar do Brasil. Rio de Janeiro: Bibliex, 2000. p. 16.
13
PRADO JR., Caio. Formação do Brasil contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 2007. p. 312.
14
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo:
Ed. Globo, 2001. p. 226.
15
O livro de Russell-Wood foi tardiamente traduzido e publicado no Brasil em 2005. Para um estudo
detalhado da historiografia da escravidão ver capitulo 1 “Africanos e europeus: historiografia e per-
cepções da realidade” e o Epílogo, preparado para finalizar e atualizar o debate historiográfico do
livro na edição brasileira )”Considerações retrospectivas, atuais e prospectivas”. Ver A. J RUSSELL-
-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. Ver
também, Stuart B. Schwartz, B. A historiografia recente da escravidão brasileira. In: SCHWARTZ,
Stuart B. Escravos, roceiros e rebeldes. Bauru: Edusc, 2001. p. 21-82; e LARA, Sílvia Hunold. Escravi-
dão no Brasil: balanço historiográfico. Revista de História, Rio de Janeiro, v. 3, n. 1, 1992.
redimensionaram a abordagem do tema. Questionando amarras estru-
turais de paradigmas explicativos fixados na década de 1960, vários pes-
quisadores enfatizaram a necessidade de procurar outras perspectivas de
análise. Ao criticar o enfoque estritamente macroeconômico e a ênfase no
caráter violento e inexorável da escravidão, observaram que o resultado da
maior parte da produção sobre o tema era uma história que, mesmo sem
o desejar, apoiava-se numa ótica senhorial que era, inevitavelmente, ex-
cludente. Recuperando movimentos e ambiguidades que antes poderiam
parecer surpreendentes, valorizaram a experiência escrava, que passou a
ser analisada a partir de outros parâmetros.16
16
LARA, Silvia Hunold. Conectando historiografias: a escravidão africana e o Antigo Regime na Amé-
rica portuguesa. In: BICALHO, Maria Fernanda; FERLINI, Vera Lúcia Amaral. Modos de governar:
idéias e práticas políticas no império português: séculos XVI a XIX. 2. ed. São Paulo: Alameda Casa
Editorial, 2007.
17
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro
1808-1821. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988; Azevedo Célia Maria de. Onda negra, medo branco: o negro
no imaginário das elites século XIX. Campinas, SP: Anablume, 1987; CHIAVENTO, Júlio José. O negro
no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1980; CUNHA, Manuela
Carneiro da. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. São Paulo: Brasiliense,
1985; FRAGOSO, João Luís; FLORENTINO, Manolo G. Marcelino, filho de Inocência crioula, neto
de Joana Cabinda: um estudo sobre famílias escravas em Paraíba do Sul (1835-1872). Estudos Eco-
nômicos, [S.l.], v. 17, n. 2, p. 151-74, 1987; GOLDSCHMIDT, Eliana. A motivação matrimonial nos
casamentos mistos de escravos. Revista da SBPH, Curitiba, v. 3, p. 1-16, 1986-87; KARASCH, Mary.
Slave Life in Rio de Janeiro, 1808-1850. New Jersey: Princeton University Press, 1987; LARA, Sílvia
Hunold. Campos de violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1988; LARA, Sílvia Hunold. Escravidão. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 16, 1988; MATTOSO, Kátia M. de Queirós. Ser escravo no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1988; MOTT, Luiz R. B. Uma santa africana no Brasil colonial. D. O. Leitura, São Paulo, v. 6, n. 62,
1987; MOTT, Luiz R. B. Escravidão, homossexualidade e demonologia. São Paulo: Ícone, 1988 REIS,
João José. Poderemos brincar, folgar e cantar...: o protesto escravo nas Américas. Afro-Ásia, Salva-
dor, v. 14, p. 107-120, 1983; REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a história do levante dos
Malês (1835). São Paulo: Brasiliense, 1986; REIS, João José; SILVA, Eduardo. Negociação e conflito:
a resistência negra no Brasil escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; GOMES, Flávio
dos Santos; REIS, João José (Org.). Liberdade por um fio: história dos quilombos no Brasil. São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
18
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. p. 129-142.
Três das principais reivindicações seriam: soldo, privilégios e ascensão
aos postos superiores de seus regimentos.19
Russell-Wood avançou de modo substancial em relação às análises an-
teriores. Sua obra pode ser vista como um divisor de águas na historio-
grafia no que diz respeito aos estudos das milícias de cor no Brasil. Depois
dele alguns estudos bastante recentes têm dedicado análises sobre os mi-
licianos Henriques. Tratando das vilas canavieiras de Pernambuco, Kalina
Vanderlei Silva debate a possibilidade de ascensão social dos homens de
cor (escravos ou libertos) através da organização militar portuguesa. A
autora entende que, “longe de serem compostas com os marginais e ex-
cluídos, como o exército regular, esses terços representam um espaço de
assimilação e ascensão.”20 Francis Albert Cotta trata das milícias de cor
numa capitania que considera sui generis: Minas Gerais. De acordo com
o autor, “por ser uma capitania de centro, isso é, não ter litoral ou fa-
zer fronteira com as possessões da Espanha, os seus corpos militares,
e consequentemente as milícias negras ali formadas, se especializaram
na manutenção da ordem”.21 Cotta entende que os milicianos negros, ao
conquistarem relativa mobilidade social através dos cargos que exerciam,
estavam se inserindo na sociedade escravista. No entanto, acredita que
“não se pode desprezar o fato de que alguns negros ao se alistarem nos
corpos militares estariam desenvolvendo estratégias de resistência ao sis-
tema escravista”.22
De modo geral, focalizando diferentes capitanias, os trabalhos recen-
tes sobre as milícias apresentam um consenso quanto às pretensões de as-
censão social dos homens de cor ao procurarem se integrar na “estrutura
militar” portuguesa. As milícias amorteciam possíveis tensões e ao mes-
mo tempo abriam um canal para o desenvolvimento de solidariedades en-
tre forros e libertos, africanos e seus descendentes. Um ponto pouco va-
lorizado nos estudos, sejam os mais recentes ou os clássicos, é a presença
diferenciada de africanos alforriados nas milícias. O foco deste trabalho
são as milícias de cor na capitania do Rio de Janeiro, onde há uma forte
presença de africanos alforriados nos altos cargos do oficialato miliciano.
São em sua maioria homens vindos da Costa da Mina, que obtiveram sua
19
O autor valoriza as tensões que os privilégios concedidos aos homens de cor ocasionavam. No ano
de 1796, em Salvador, tais tensões ficam evidentes. O governador apresenta ao príncipe regen-
te uma proposta de reforma da estrutura de comando do regimento dos Henriques. A proposta
defendia a abolição dos postos superiores (coronel e tenente-coronel) que eram ocupados por ho-
mens de cor e a substituição por um sargento-mor branco. Tal reforma foi implementada, o que
gerou uma série de insatisfações. A oficialidade de cor protestou junto a coroa e, em 23 de julho de
1802, o príncipe regente revogou a reforma retomando, assim, à organização prévia de comando
(RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
ra, 2005. p. 140-142).
20
SILVA, Kalina Vanderlei. Os Henriques nas vilas açucareiras do Estado do Brasil: tropas de homens
negros em Pernambuco, séculos XVII e XVIII. Estudos de História, [S.l.], v. 9, n. 2, 2002. p. 18.
21
COTTA, Francis Albert. Milícias negras na América Portuguesa. Klepsitra: Revista Virtual de His-
tória, [S.l.], v. 27, p. 3, 2007. p. 3
22
Ibidem, p. 21.
alforria por aquisição (o que indica capacidade de acumulação de recur-
sos) e ocuparam cargos de importância tanto na direção das irmandades
quanto na oficialidade “de cor”, de onde derivava sua posição de destaque
no conjunto da escravaria africana e também junto a outros setores da
sociedade.
30
Sobre as irmandades, ver as análises clássicas de BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: irmanda-
des leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986. Ver também SCARANO,
Julita. Devoção e escravidão: Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos no Distrito Dia-
mantino no século XVIII. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1978. (Brasiliana, v. 357); e também
o já citado SOARES, Mariza de Carvalho. Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravi-
dão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000..
31
Tratando da primeira metade do Oitocentos, ver PIMENTA, Tânia Salgado. Sangradores no Rio de
Janeiro na primeira metade do oitocentos. In: PORTO, Ângela (Org.). Doenças e escravidão: sistema
de saúde e práticas terapêuticas. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, 2007. 1 CDROM.
32
Não só os homens de cor acumularam “riqueza”. Sobre as mulheres que acumularam pecúlio e for-
maram uma “elite de cor”, ver FARIA, Sheila de Castro. Sinhás pretas, damas mercadoras: as pretas
minas nas cidades do Rio de Janeiro e de São João Del Rey (1700-1850). Tese para concurso de
titularidade defendida junto ao Departamento de História da UFF, Universidade Federal Flumi-
nense, Niterói, 2004. Também da autora, FARIAS, Juliana B. Sinhás pretas: acumulação de pecúlio
e transmissão de bens de mulheres forras no sudeste escravista (sécs.XVIII-XIX). In: SILVA, Fran-
cisco Carlos Teixeira da; MATTOS, Hebe Maria; FRAGOSO, João (Org.). Ensaios sobre História e
Educação. Rio de Janeiro: Mauad: FAPERJ, 2001. p. 289-329.
33
As chamadas “irmandades de homens pretos” apresentam-se inseridas num contexto mais geral
das instituições coloniais, estas confrarias – utilizando-se dos argumentos de Russell-Wood – ofe-
recem espaços que serviriam para a defesa de interesses coletivos e individuais. Tratarei aqui da
Irmandade de Santo Elesbão e Santa Efigênia que foi formalmente criada, na cidade do Rio de
Janeiro, no ano de 1740. Sobre o tema ver o conjunto de trabalhos de Mariza Soares, em especial,
Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século XVIII. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.
para situar pessoas, famílias e grupos na hierarquia social”.34 O capitão
guardava consigo a poupança dos irmãos da Irmandade de Santo Elesbão
e Santa Efigênia e também lhes emprestava dinheiro; em 1763 era inven-
tariante da preta forra Quitéria Fernandes da Silva; redige e é testemunha
no testamento de Luiz Francisco do Couto (Mina forro); compra fazendas
para sua casa com André Correa Brandão e José Duarte de Almeida com
casa na Rua do Rosário; ambos são seus fregueses de barba e sangria; em 8
de dezembro de 1764 foi testemunha do casamento dos pretos mina Luiz
da Costa e Tereza de Jesus.35
Em sua habilitação de casamento, Luiz da Costa declara ser Mina for-
ro, morador na cidade do Rio de Janeiro, na rua da Pedreira. Afirma ain-
da que “vive de ser cozinheiro” e que morou “dois anos na Freguesia das
Mercês e depois veio para esta Cidade aonde até o presente só tem assisti-
do na Freguesia de Santa Rita.”36 Para afiançar suas palavras foi chamado
como testemunha oaquim José, o capitão dos Henriques J:
Aos dois dias do mês de maio de mil setecentos noventa e sete o Capitão
Joaquim José [Mahu], do terço dos Henriques, solteiro, natural da Costa
da Mina, e morador nesta Cidade na Rua dos Quartéis do Regimento de
Bragança, que vive do ofício de Pasteleiro, testemunha jurada aos Santos
Evangelhos em que pôs sua mão direita e prometeu dizer verdade, de idade
que disse ser de cinquenta e seis anos.37
46
ACMRJ. Habilitações Matrimoniais, maço 88, doc. 34.
47
AN/RJ, Secretaria de Estado do Brasil, códice 204, vol. 04.
48
RUSSELL-WOOD, A. J. R. Escravos e libertos no Brasil colonial. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005. p. 125-126.
É interessante notar o quão cobiçado era o posto quanto o fato de José
de Sant`Anna ser “barbeiro”. O provimento do posto mais alto da hierar-
quia miliciana envolvia uma série de questões. Incluindo, como no caso
do Rio de Janeiro, o bom relacionamento estabelecido com o comandan-
te geral das tropas, homem branco, nobre, que mantinha estreita relação
com o Vice-Rei.49
Se em meados do século XVIII ocorria uma expansão das milícias
de cor, na virada para o século XIX, o caminho seria inverso. No Rio de
Janeiro, o corpo dos Henriques era organizado em 16 companhias. Sete
estavam estabelecidas na cidade (incluindo uma companhia de granadei-
ros) e outras nove foram espalhadas pelas diferentes “freguesias desta
circunvizinhança”.50 Cada companhia era composta por seus três respecti-
vos oficiais (capitão, tenente, alferes), dois sargentos, um porta bandeira
e quatro cabos de esquadra. Com a chegada do novo comandante geral
das tropas José Narcizo de Magalhães de Menezes, foi implementado um
importante plano de reforma que reduzia significativamente o número
das companhias Henriques.
Em abril de 1802, o comandante geral envia ao vice-rei, D. Fernando
José de Portugal, uma correspondência contendo informações sobre os
regimentos de milícias da cidade do Rio de Janeiro. Junto da carta, vi-
sando obter “maior vantagem do seu Real Serviço”, envia um plano cujo
principal objetivo seria dar fim “a falta de constituição e regularidade”
em que se encontrava o Corpo dos Henriques, visando assim que “o dito
Corpo tomasse uma formatura que pudesse ser análoga às idéias comuns
de um arranjamento militar e aos fins de sua destinação”.51
Segundo Magalhães Menezes, as milícias Henriques não eram con-
sideradas “em nenhuma classe das outras Corporações Militares.” Aqui,
podemos retomar o clássico argumento de Russell-Wood sobre as tensões
provocadas pelos milicianos negros. Como indica o autor, muitos oficiais
de cor da Milícia se queixavam à Coroa alegando que “seu posto não era
reconhecido pelos oficiais brancos e que os soldados das tropas regulares
se recusavam a saudá-los”.52 A oficialidade branca e os soldados pareciam
respeitar pouco os Henriques, não por questões militares de constituição
interna, como informou o comandante geral, mas pela marca da escravi-
dão. Para além da questão da cor, a marca da escravidão era fator de ten-
sões. Não se pode esquecer que muito da oficialidade dos Henriques era
composta por africanos alforriados, portanto, ex-escravos.
49
AN/RJ, cx. 484, doc. 1. Vice-Reinado, Correspondência de capitães-mores e comandantes de regi-
mentos de vilas do Rio de Janeiro.
50
De acordo com a documentação, as “freguesias da circunvizinhança” seriam as “freguesias de fora
da cidade”, não fornecendo maiores informações sobre o tema.
51
AN/RJ, cx. 484, doc. 1. Vice-Reinado. Correspondência de capitães-mores e comandantes de regi-
mentos de vilas do Rio de Janeiro.
52
Russell-Wood, Escravos e Libertos. p. 138.
Tratando do fardamento dos Henriques, Magalhães Menezes aponta
que:
53
AN/RJ, cx. 484, doc. 1. Vice-Reinado. Correspondência de capitães-mores e comandantes de regi-
mentos de vilas do Rio de Janeiro.
54
Silvia Lara indica que “assim como muitos jovens europeus do período, Carlos Julião, nascido Carlo
Juliani em Turim, em 1740, havia se alistado em busca de fortuna, iniciando sua carreira militar no
exército português por volta dos 23 anos. Serviu em Mazagão, feitoria lusitana nas costa marro-
quina, esteve na Índia por seis anos, visitou a China, realizando um levantamento cartográfico da
região de Macau por ordem do secretário de Estado português, e andou pelo Brasil por diversas ve-
zes, fazendo levantamentos topográficos ou vistoria de fortificações.” (LARA, Silvia Hunold. Frag-
mentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das
Letras, 2007. p. 241-242, 245-246).
55
JULIÃO, Carlos (aquarelas por). Riscos iluminados de Figurinhos de Brancos e Negros dos Uzos do
Rio de Janeiro e Serro do Frio. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1960. Prancha IV.
Figura 1 – Detalhe da aquarela de Carlos Julião (ca. 1780) mostrando à direita oficial
do regimento do pardos, e à esquerda dos pretos forros. Trata-se de uma prancha sem título,
como todas as demais que compõem o album original.
Fonte: JULIÃO, Carlos (aquarelas por). Riscos iluminados de Figurinhos de Brancos e Negros dos Uzos do Rio de Janeiro e Serro do Frio. Rio
de Janeiro: Biblioteca Nacional, 1960. Prancha IV.
Figura 2 – “Guarnição do Rio de Janeiro com seus uniformes e mappas do número de homens
tanto dos regimentos pagos como dos auxiliares feito por José Correa Rangel ajudante de infantaria
com exercício de engenheiro 1786”.
Fonte: Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. (original em cores)
Figura 3 – Prancha “Terços Auxiliares – 1786 - Rio de Janeiro”, aquarela de J. Wasth Rodrigues.
O uniforme do regimento assinalado em baixo como dos “pretos forros”
segue o padrão dos anteriores, mas sem a espada ou espadim.
Fonte: Arquivo Histórico do Exército (original em cores)
uma das atribuições desse batalhão a época era vigiar os escravos conde-
nados a galés e os libambos. Os escravos eram retirados todos os dias pela
manhã do Calabouço na Fortaleza de Santiago em magotes de 4 a 6 ata-
dos por correntes e acompanhados pelos Henriques para a realização dos
trabalhos.57
56
BN/RJ. José Correa Rangel, capitão do Real Corpo de engenheiros. Guarnição do Rio de Janeiro
com seus uniformes e mapas do número de homens dos regimentos pagos e dos auxiliares. Orig.
Ms. e aquarela sobre papel. 43 estampas de uniformes de regimentos, aquarela sobre papel, 16,00
x 09,50 cm. Consta na lombada:” J. C. Rangel/Guarnição do Rio de Janeiro, 1786”. Folhas soltas.
57
ARAÚJO, Carlos Eduardo Moreira de. O duplo cativeiro: escravidão urbana e o sistema prisional no
Rio de Janeiro 1790 – 1821. Dissertação (Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2004. p. 76.
58
Ibidem, p. 77.
Talvez sejam estes os reais motivos que levaram ao novo comandan-
te geral das tropas a desprezar o trabalho de vigilância dos Henriques.
Magalhães Menezes propõe que os milicianos de cor sejam empregados,
então, como Regimentos de Artilharia:
as sete Companhias, que até aqui se consideravam desta Cidade, serão re-
duzidas a quatro sem destinação e compostas de um Capitão, um Tenente
e um Alferes, dois Sargentos, um Furriel, quatro Cabos de Esquadra, um
Tambor, e cinquenta Soldados.61
59
AN/RJ, cx. 484, doc. 1. Vice-Reinado. Correspondência de capitães-mores e comandantes de regi-
mentos de vilas do Rio de Janeiro. O referido Trem na fonte é a Casa do Trem: “Em 1762, o então
Vice-rei Conde de Bobadela manda erigir a Casa do Trem, ao lado do Forte de Santiago, destinado à
guarda dos armamentos (trens de artilharias) das novas tropas enviadas por Portugal para reforçar
a defesa da cidade, ameaçada por corsários em busca do ouro vindo das Minas Gerais. Com a ele-
vação do Rio de Janeiro à condição de capital do Estado do Brasil, foi construído, em 1764, junto à
Casa do Trem, o Arsenal de Guerra destinado ao reparo de armas e fabricação de munições”. Fonte:
<www.museuhistoriconacional.com.br>.
60
AN/RJ, cx. 484, doc. 1. Vice-Reinado. Correspondência de capitães-mores e comandantes de regi-
mentos de vilas do Rio de Janeiro.
61
AN/RJ, cx. 484, doc. 1. Vice-Reinado. Correspondência de capitães-mores e comandantes de regi-
mentos de vilas do Rio de Janeiro.
Santos Teixeira. Segundo Teixeira, o número de pretos forros existentes
na cidade “hábeis e robustos” não poderia fornecer uma constituição de
maior força. Parece um contra-senso já que em momentos anteriores os
Henriques alcançaram um número elevado de praças.62
Após expor o plano de redução, Magalhães Menezes inicia suas “últimas
reflexões”. Começa indicando que o corpo dos Henriques tira de si mesmo
todos os seus oficiais até mesmo os ajudantes e sargento-mor comandan-
te, diferente das outras milícias a que se dão ajudantes e majores tirados
dos Regimentos de Linha e pagos pela Fazenda Real. Diferente também
do Corpo dos Pardos Libertos63 que, em sua primeira Constituição, for-
mava-se de um sargento-mor comandante pago e dois ajudantes, todos
extraídos igualmente dos Regimentos de Linha. O comandante geral das
tropas, tratando dos Henriques, informa ainda que “esta gente presta a
todas as funções do Real Serviço e busca adquirir conceito a favor da sua
corporação”.64 A busca por “conceito” confirma a ideia do uso das milícias
como fonte importante para alcançar honras e privilégios.
A ordem de confirmação do novo plano das milícias Henriques não foi
encontrada. No entanto, é possível imaginar que tal confirmação possa ter
ocorrido por conta de um cancelamento de patente. Manoel Nascimento,
preto forro, foi provido em 31 de janeiro de 1793, com a patente de capi-
tão da Quarta Companhia dos Henriques:
Faço saber aos que esta minha Carta Patente virem que, sendo convenien-
te ao Real Serviço prover-se o Posto de Capitão da Quarta Companhia do
Batalhão de Infantaria de Milícias dos Homens pretos forros desta Cidade
de que é Comandante o Capitão José dos Santos Teixeira vago por passar
a Capitão da Companhia de Granadeiros Aleixo Teixeira que o era, aten-
dendo a concorrerem as circunstâncias necessárias na pessoa de Manoel
do Nascimento para o exercitar, e a ter servido de Tenente, e por esperar
dele que em tudo de que for encarregado do Real Serviço se haverá muito
conforme a confiança que faço de sua pessoa. Hei por bem nomear e pro-
ver como por esta faço em virtude do Alvará de dezoito de Dezembro de
mil oitocentos e dois ao dito Manoel do Nascimento no Posto de Capitão
da Quarta Companhia do referido Batalhão.65
62
O próprio Magalhães Menezes informa que em abril de 1800 o corpo dos Henriques chega “ao
número de 583 soldados”. AN/RJ, códice 88, vol 01, Secretaria de Estado do Brasil.
63
No relatório que fez para seu sucessor, ao deixar o governo em 1777, o Marquês do Lavradio relata
que formou um terço de homens pardos, dando-lhe por comandante um Sargento-mor, homem
branco, e oficial tirado das tropas, e por Ajudante dois oficiais inferiores, também brancos, tira-
dos das tropas, para deste modo melhor poder estabelecer a disciplina e conservá-los em sujeição.
Marquês do Lavradio. “Relatório do marquês de Lavradio, vice-rei do Rio de Janeiro, entregando o
governo a Luís de Vasconcelos e Souza, que o sucedeu no vice-reinado” [1779], Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, v. 4, p. 413, 1843.
64
AN/RJ, cx. 484, doc. 1. Vice-Reinado. Correspondência de capitães-mores e comandantes de regi-
mentos de vilas do Rio de Janeiro.
65
AN/RJ. Secretaria de Estado do Brasil. códice 73, vol 30. fl. 32 (verso).
Em janeiro de 1805, tem sua patente cancelada. A portaria ao tesourei-
ro geral das Tropas informa que Manoel Nascimento:
Considerações finais
Ao término desse artigo, vimos que ainda há muito que desvendar so-
bre as milícias de cor e, principalmente, sobre as teias de relações que
envolviam o oficialato de cor, as irmandades e os ofícios mecânicos. Este
é um trabalho em andamento, através do qual venho tentando contribuir
no sentido de destacar uma relação pouco estudada pela bibliografia: a
presença de africanos no oficialato das milícias de cor, aprofundando, as-
sim, o entendimento sobre parte do conjunto da população alforriada na
cidade do Rio de Janeiro.
66
Ibidem.
Crise e decadência: a Fazenda do Iguaçu
e seus escravos, século XIX1
Paulo Henrique Silva Pacheco
[...] Comprou cinquenta e dois escravos por preço de 2:335$500 réis, dei-
xando para as obras e mais serviços do mosteiro trinta e três escravos.
Deixou mais na fazenda de Inhomerim quantidade de ostra tirada e limpa
para uma caldeira que daria pouco mais ou menos 1000 moios de cal. No
Mosteiro deixou para as obras 25 milheiros de tijolos pouco mais ou me-
nos e uma pouca de cal.6
9
Presidentes: abades responsáveis pelos mosteiros autônomos que possuíam um número de mon-
ges superior a cinco, também chamada de presidências.
Bento do Rio de Janeiro, em seguida com uma crônica publicada em 1879,
produzida por Benjamim Flanklim Ramiz Galvão. Assim aparece a deter-
minação para a feitura das cópias enviadas ao Rio de Janeiro, por mim
consultadas:
redução dos encargos pios e a substituição dos dotes por prestações regu-
lares, passando a exercer um controle direto sobre os religiosos, nomeada-
mente em relação à entrada de noviços, aos processos de secularização e às
estadas fora dos conventos.17
16
ABREU, Laurinda. Um parecer da Junta do Exame do Estado Actual e Melhoramento Temporal das
Ordens Regulares nas vésperas do decreto de 30 de Maio de 1834. In: ESTUDOS em homenagem
a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004. p.
119-120.
17
ABREU, Laurinda. Um padecer da Junta do Exame do Estado Actual e Melhoramento Temporal
das Ordens Regulares nas vésperas do decreto de 30 de Maio de 1834. In: ESTUDOS em homena-
gem a Luís Antônio de Oliveira Ramos. Porto: Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004.
p. 119.
18
Ibidem, p. 120.
19
SANTOS, Maria Rachel Fróes da Fonseca. Contestação e defesa: a Congregação Beneditina Brasileira
no Rio de Janeiro (1830-1870). Dissertação (Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1986. p. 15.
das que envolviam o Reino. Por conseguinte, com o direito de se auto-
-governarem, os religiosos acreditavam no restabelecimento do número
de monges nos seus claustros. Com essa iniciativa, a partir de 1826, os
monges iniciaram o processo de separação entre a Província Beneditina
Brasileira e a Congregação Portuguesa. Não cabe nesse artigo apresentar
uma análise mais detalhada acerca desse processo.20 Entretanto, é rele-
vante saber que a Congregação de São Bento do Brasil só foi instituída em
novembro de 1827, quando chegaram às mãos de frei Antonio Carmo as
autorizações da Santa Sé, a bula Inter Gravíssimas Curas, e o Beneplácito
do Império. O Beneplácito, que custou para os monges 504$401 réis –
relativos às despesas do ministro em Roma, para a expedição do docu-
mento – dava plenos direitos ao exercício das atividades religiosas dessa
Ordem.
[...] dar a cada religioso uma pensão anual e dois escravos para serviço:
prometia breve de perpétua secularização aos que o quisessem, asilo aos
25
AMSB/RJ. códice 1143, fl 4.
26
AMSB/RJ. códice 1143, fl. 33v.
religiosos valetudinários e mentecaptos, emprego em benefícios ou cadei-
ra de ensino público aos secularizados idôneos. [...] Ficavam para a manu-
tenção do culto divino os vasos, utensílios e mais preparatórios que havia
nas igrejas; [...] Quanto aos conventos, que em virtude desta lei revertiam
aos domínios da nação, seriam aplicados pelo governo a objetos de utilida-
de pública, segundo julgasse mais conveniente.27
27
GALVÃO, Benjamim F. R. Aponctamentos históricos sobre a Ordem Benedictina em Geral e em parti-
cular sobre o Mosteiro de N. S. do Monserrate da Ordem do Patriarcha S. Bento d’esta cidade do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1879. p. 95.
28
SANTOS, Maria Rachel Fróes da Fonseca. Contestação e defesa: a Congregação Beneditina Brasileira
no Rio de Janeiro (1830-1870). Dissertação (Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1986. p. 94.
29
A documentação mencionada, localizada no AMSB/RJ, refere-se a: Estados 1 e 2; códice 1161.
Dietário do Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro, 1589-1792; MACEDO, Dioclécio Leite de
(Org.). Segundo Livro do Tombo, 1688-1793. Rio de Janeiro: Mosteiro de São Bento, 1981; códice
1148. Livro das Atas do Conselho do Mosteiro do Rio de Janeiro, 1700-1835.
Tabela 1 – Escravos adquiridos pela
Ordem de São Bento do Rio de Janeiro (1623-1870)
Ano Número de escravos
1623 200
1652 250
1657 300
1666 321
1763 487
1787 901
1800 1.176
1830 1.097
1832 1.217
1870 918
Fonte: ROCHA, Mateus Ramalho. O Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro 1590/1990. Rio de Janeiro: Studio HMF, 1991. p. 83.
A Fazenda de Iguaçu
33
AMSB/RJ. códice 1161, fl. 109.
34
AMSB/RJ. códice 1143, fl. 6-6v.
Tabela 3 – Alforrias do Conselho pela Ordem de São Bento
aos escravos da Fazenda Iguaçu
Data de concessão das alforrias Número de alforrias
18/11/1856 55
14/7/1869 13
22/6/1870 39
Fonte: códice 55. Guião do 2º ano do 3º triênio do Abade Frei José da Purificação Franco, 1870-1871.
36
ROCHA, Mateus Ramalho. O Mosteiro de São Bento do Rio de Janeiro 1590/1990. Rio de Janeiro:
Studio HMF, 1991. p. 62.
37
AMSB/RJ. códice 39, fl. 78v.
Figura 1 - Fachada principal da Igreja e casa da Fazenda de São Bento do Iguaçú.
Fonte: NIGRA, Clemente Maria da Silva, Dom. A antiga fazenda de São Bento em Iguaçu. Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e
Artístico Nacional, Rio de Janeiro, n. 7, p. 257-282, 1943. p. 257-282.
Original: Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional (foto em p&b)
3
LUCCOCK John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. v. 21. São Paulo: EDUSP;
Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. (Coleção Reconquista do Brasil). p. 22.
4
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1976. (Coleção Re-
conquista do Brasil). v. 28, p. 51.
Luccock chegou a comparar o Rio de Janeiro ao coração da África,5 com a
particularidade, porém, de que, como ressaltou Leithold, “negros e negras
se cumprimentam ao estilo europeu: os homens tirando o chapéu com
uma inclinação na cabeça; as mulheres fazendo uma reverência”.6 Debret,
no início do Oitocentos, relatou que “percorrendo as ruas fica-se espanta-
do com a prodigiosa quantidade de negros, perambulando seminus e que
executam os trabalhos mais penosos”.7 A surpresa quase pitoresca com a
qual os viajantes descreviam a presença escrava e africana nas ruas do Rio
de Janeiro não era resultado apenas da estranheza causada pela “vida nos
trópicos”. De fato, desde finais do século XVIII, mas, sobretudo a partir do
Oitocentos, o número de escravos na cidade do Rio de Janeiro cresceu de
forma significativa.
Inúmeros estudiosos vêm demonstrando que, ao contrário do que
aconteceu em grande parte do continente americano, no processo de in-
dependência do Brasil a instituição escravista foi um dos amálgamas que
permitiu a formação do Estado nacional.8 Sem exagero algum, Luis Felipe
de Alencastro afirmou que no contexto da formação do Estado nacional, a
escravidão foi “compromisso para o futuro”, tendo em vista que o Império
do Brasil retomou e reconstruiu a escravidão (rural e urbana) nos quadros
do direito moderno.9 Como consequência direta do quadro mais amplo
das decisões políticas tomadas pelas elites do Brasil, uma segunda razão
para a significativa quantidade de escravos (africanos e crioulos) na cida-
de do Rio de Janeiro, capital do Império, era a própria vivência urbana
que, desde a centúria anterior se caracterizava como escravista. Embora o
número de cativos na cidade do Rio de Janeiro tenha aumentado expres-
sivamente durante o século XIX – o que rendeu à cidade o título de maior
urbe escravista das Américas –, é possível afirmar que desde o Setecentos
a cidade já tinha estabelecido uma estreita relação com a mão de obra
escrava.10
5
LUCCOCK John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. v. 21. São Paulo: EDUSP;
Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. (Coleção Reconquista do Brasil). p. 74.
6
LEITHOLD, Theoder Von Leithold; RANGO, L.V. O Rio de Janeiro visto por dois prussianos em 1819.
São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1966. p. 85.
7
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Circulo do Livro. 1985. p.
126.
8
BERBEL, M. R.; MARQUESE, Rafael B. A escravidão nas experiências constitucionais ibéricas 1810-
1824. Texto apresentado no Seminário Internacional Brasil: de um Império a outro (1750-1850),
São Paulo, setembro de 2005. Disponível em: <www.estadonacional.usp.br>; JANCSÓ, Istvan; PI-
MENTA, J.P.G. Peças de um mosaico (ou apontamentos para o estudo da emergência da identidade
nacional brasileira). In: MOTTA, Carlos Guilherme (Org.). Viagem incompleta: a experiência brasi-
leira (1500-2000) – Formação: história. São Paulo: Ed. SENAC, 2000.
9
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. A Vida Privada e a Ordem Privada no Império. In: .
(Org.). História da vida privada no Brasil. v. 2: Império: a corte e a modernidade nacional. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004. p. 17.
10
Sobre escravidão e espaço urbano na América portuguesa setecentista ver o recente trabalho:
LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
Os escravos podiam ser vendidos no mercado do Valongo, em leilões
públicos ou através do contrabando feito, especialmente, por ciganos.11
A comercialização dos crioulos e ladinos se dava geralmente por meio
das casas de leilão, de consignação e das lojas de varejo espalhadas pelo
Rio, que nem sempre tinham autorização para trabalhar.12 Os africanos
recém-chegados eram levados ao Valongo. Segundo Mary Karasch, entre
1795 e 1811, 96% dos navios que transportavam africanos escravizados e
que aportavam no Rio de Janeiro vinham de Angola. Esse número sofreu
uma queda com o passar dos anos, mas ainda em 1850 por volta de 70%
dos negreiros eram originários do centro oeste africano.13 Os africanos
que desembarcavam no Rio de Janeiro juntavam-se aos crioulos e ladinos
na execução das mais variadas tarefas, sendo responsáveis pelo funciona-
mento de diversos setores da cidade.
Graças à demanda interna e à escala de operação do tráfico negreiro
transatlântico, a obtenção de cativos no Rio de Janeiro era relativamente
fácil. Mesmo face aos riscos da viagem e à pressão antiescravista inglesa,
o tráfico negreiro se manteve como negócio atrativo para os comerciantes
responsáveis pelo transporte de milhares de africanos para o Brasil. O
avultado volume desse comércio na primeira metade do século XIX, so-
bretudo nas décadas de 1820 a 1840,14 manteve o preço do cativo acessí-
vel para as camadas média e baixa da sociedade, a ponto de o escravo se
constituir como a principal – quando não a única – forma de propriedade
desses segmentos sociais.15
Depois do desembarque na zona portuária, a compra dos cativos podia
ser feita por meio legal ou não: o mercado lícito de escravos novos era o
Valongo, palco de cenas que horrorizaram os estrangeiros que lá estive-
ram. Spix e Martius descreveram que
Logo que estes escravos chegam ao Rio de Janeiro, [os escravos] são aquar-
telados em casas alugadas para tal fim, na rua do Valongo, junto do mar.
Vêem-se ali crianças, desde os seis anos de idade, e adultos de ambos os
sexos, de todas as idades. Eles jazem meio nus, expostos ao sol nos pátios,
ou fora, em volta das casas, ou separados segundo os sexos, distribuídos
em diferentes salas.16
11
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro
1808-1821. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. p. 75.
12
KARASCH. Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 87-91.
13
Ibidem, p. 52.
14
Vale lembrar que nesse período (1820 até finais de 1840), o café começa a ser produzido em grande
escala na província do Rio de Janeiro, o que explica boa parte do crescimento do tráfico de escravos.
15
FRANK, Zephir. Dutra’s World: wealth and family in nineteenth-century Rio de Janeiro. Albuquer-
que: University of New México, 2004. p. 58-59.
16
SPIX, C. F. P. von; MARTIUS, J. B. von. Viagem pelo Brasil 1817-1820. Trad. Lúcia Furquim Lah-
meyer. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1981. p. 66.
Embora parte significativa dos quase um milhão de escravos que de-
sembarcaram no Valongo tivesse como destino as plantações de café ou as
pequenas propriedades da região sudeste do Brasil, parte importante de-
les era adquirida por senhores que moravam no Rio de Janeiro. O intuito
principal desses compradores era colocar seus escravos no aluguel ou na
atividade do ganho. No aluguel, também comum nas regiões rurais, o ca-
tivo era cedido por tempo determinado e mediante pagamento ao seu se-
nhor para desempenhar variada gama de atividades. Já no caso do ganho
– característico dos grandes centros urbanos do Brasil, como Salvador,
Recife e a Corte –, o escravo teria que dispor de sua força de trabalho, pas-
sando a maior parte do tempo nas ruas à procura de serviços e, portanto,
longe das vistas de seu senhor, trabalhando por conta própria.17 Devido
à mobilidade inerente ao ganho, muitas vezes o escravo era responsável
pelo seu próprio sustento. Além disso, deveria entregar periodicamente a
seu senhor (por semana ou quinzena, geralmente) a quantia previamente
estipulada por ele, não importando os meios pelos quais esse dinheiro
fosse obtido. Portanto, neste acerto o proprietário ficava isento das pre-
ocupações frequentes das plantações escravistas, referentes às despesas
com o sustento de seus trabalhadores (alimentação, vestuário, doenças
etc.). Sendo assim, não era de estranhar que as ruas cariocas estivessem
repletas de escravos de ganho, realizando as mais diferentes atividades.
Na realidade, a rua constituiu-se como espaço de trabalho do escravo
urbano por excelência. Nas vias que circundavam o porto, ou então nas
ruas de forte comércio (Rua Direita e Rua do Ouvidor), nos inúmeros cha-
farizes da cidade... A rua era o local de trabalho do cativo citadino e, por
isso, o lugar onde ele permanecia a maior parte do seu tempo. Todavia, as-
sim como ocorria nas demais camadas da sociedade, a rua não era apenas
o local de trabalho para o escravo; era ali que esses homens e mulheres se
encontravam para fazer seus batuques e suas cantigas, dançando e jogan-
do. Como bem ressaltou Debret, era “principalmente na praça em torno
dos chafarizes, lugares de reunião habitual de escravos, que muitas vezes
um deles, inspirado pela saudade da mãe-pátria, recordava algum canto”.18
Ao contrário do que possa parecer, a modalidade do ganho em nada
suavizou a escravidão na Corte imperial, mesmo que tenha ampliado o
17
Para compreender com mais detalhes a atividade do ganho e a diferença com a escravidão de alu-
guel, ver: ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de
Janeiro 1808-1821. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. p. 70; SILVA, Marilene Rosa Nogueira. O negro
na rua: a nova face da escravidão. São Paulo: HUCITEC, 1988. p. 87-89; SOARES, Luiz Carlos. Os
escravos de ganho no Rio de Janeiro do século XIX. Escravidão – Revista Brasileira de História, [S.l.],
v. 16, p. 107-142, 1988. p. 107-142.
18
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Circulo do Livro, 1966. p. 306.
número de alforrias nos centros urbanos.19 Em primeiro lugar, porque o
serviço estava atrelado à condição direta do cativo sustentar seu senhor,
sendo muitas vezes o único meio de sobrevivência de seu amo. Além
disso, em seu amplo estudo sobre os escravos no Rio de Janeiro, Mary
Karasch mostrou que, mesmo gozando de certa facilidade de trânsito, os
escravos sabiam muito bem os limites institucionais, físicos e sociais que
os rondavam. Não era preciso ver a figura do feitor (mediador da relação
escravo x senhor), para saber qual era a sua condição dentro da cidade; as
fronteiras se faziam sentir nos mais variados níveis.20
No entanto, é inegável que a maior mobilidade da atividade ao ganho
alargou as possibilidades de ação dos escravos, principalmente no que diz
respeito às negociações e relações com outros segmentos sociais. No es-
tudo sobre capoeira escrava no Rio de Janeiro, Líbano Soares mostrou
algumas das formas de articulação e resistência cativa. Responsável por
cerca de 9% das prisões feitas pela polícia no período joanino,21 os capoei-
ras trouxeram muita dor de cabeça para os governantes da cidade. E não
foram apenas os diversos conflitos travados entre as diferentes maltas ou
contra a polícia que preocupavam as autoridades. Para além da luta, do
jogo e do relaxamento do trabalho, a capoeira evidenciava uma rede de
sociabilidade entre escravos, livres e libertos com a própria dinâmica do
cativeiro na Corte.22
As tabernas do Rio também facilitaram a formação e comunicação
dos capoeiras. Servindo como ponto de ajuntamento, nesses locais eles
não só bebiam e se divertiam para esquecer as mazelas de sua condição,
mas também se socializavam com outros cativos, forros e homens livres.
Flávio Gomes ressaltou o papel dessas casas comerciais no planejamento
de fugas coletivas, assim como na comercialização de mercadorias pro-
duzidas pelos quilombolas.23 Junto a esses locais, as casas de molhados e
de jogos de azar, além das praças, ruas e chafarizes, serviam como ponto
de encontro de escravos e libertos, transformando a relação do Rio de
19
A dinâmica da escravidão urbana fez com que o Rio de Janeiro, assim como Salvador e Recife, ti-
vesse um significativo número de libertos. Sobre o tema ver: FLORENTINO, Manolo. Sobre minas,
crioulos e a liberdade costumeira no Rio de Janeiro, 1789-1871. In: FLORENTINO, Manolo (Org.).
Tráfico, cativeiro e liberdade: Rio de Janeiro, séculos XVII-XIX. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2005; PATTERSON, Orlando. Slavery and social death: a comparative study. Cambridge: Harvard
University Press, 1982; MARQUESE, Rafael de Bivar. Resistência, tráfico negreiro e alforrias, sécu-
los XVII e XIX. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 74, p. 107-123, 2006. No entanto, é importan-
te salientar que a carta da alforria não foi uma realidade na vida da maior parte dos africanos que
aportaram no Rio de Janeiro durante a primeira metade do século XIX (KARASCH. Mary. A vida
dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. cap. 10-11).
20
KARASCH. Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 99 -100.
21
ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a escravidão urbana no Rio de Janeiro
1808-1821. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. p. 209.
22
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. Capoeira Escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-
1850). Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2002. p. 77.
23
GOMES, Flávio dos Santos. Histórias de quilombolas: mocambos e comunidades de senzalas no Rio
de Janeiro: século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. Ver principalmente capítulo 1.
Janeiro com o cativeiro numa verdadeira via de mão dupla. Ao mesmo
tempo em que a cidade necessitava do trabalho escravo, essa mesma ma-
lha urbana permitia maior encontro dos cativos tanto nos momentos de
trabalho como de descanso. A vida do escravo urbano era na rua. E por
isso a rua deveria ser vigiada.
A despeito da variedade de motivos que levavam escravos às prisões, o
maior número de recolhimentos feitos pela polícia da Corte no período jo-
anino decorreu de fugas.24 Apontada como a principal forma de resistência
escrava no espaço urbano, a fuga evidenciou a tensão inerente à relação es-
cravista, assim como o próprio dinamismo do cativeiro na cidade. Também
é importante lembrar que a própria geografia do Rio de Janeiro potencia-
lizava as fugas. No dia 16 de julho de 1812, Francisco Benguela, escravo
de Rodrigo Ramalho, foi preso por estar refugiado no quilombo de Macaé,
local próximo da Corte.25 Menos de um mês depois, seis escravos (dentre os
quais duas mulheres) também foram detidos por estarem aquilombados no
mesmo local.26 Em 1813, Domingos Ambaca e Antonio Benguela, ambos
cativos do capitão Antonio Cardozo, foram levados para prisão junto com
um preto monjolo, estavam refugiados num mato da Tijuca.27
Além das matas e morros do Rio, que se tornaram boa oportunida-
de para a formação de quilombos,28 a própria urbanidade permitia fugas
“internas”, na medida em que aumentava a possibilidade de trânsito e
anonimato escravo. O caso a seguir é bem elucidativo das diversas fugas
possíveis no Rio de Janeiro. No dia 22 de dezembro de 1813, foi preso:
“Feliciano Crioulo, que se diz forro, por ser encontrado na chácara de José
Joaquim de Magalhães, esta em Catumbi, de madrugada, fazendo-se sus-
peitoso [de] ser escravo e andar fugido a seu senhor”.29
Preso como suspeito de fuga, o exemplo de Feliciano evidencia uma
das maiores dificuldades do Estado em controlar os cativos: a possibili-
dade de eles serem libertos. De fato, não havia nenhuma característica
física que diferenciasse os negros escravos daqueles que transcenderam
a condição do cativeiro. E mais, para além dessa semelhança, muitas ve-
zes forros e cativos exerciam as mesmas atividades pelas ruas cariocas.
Essa era apenas uma das facetas da maior mobilidade escrava no espaço
urbano: a possibilidade dela homogeneizar a população negra e mestiça
do Rio. Como as autoridades resolveram esse problema? Prisões, diversas
24
Segundo Leila Algranti, 751 escravos foram aprisionados por estarem fugidos. Esse número repre-
sentou 15,5% do total das prisões feitas (ALGRANTI, Leila Mezan. O feitor ausente: estudo sobre a
escravidão urbana no Rio de Janeiro 1808-1821. Petrópolis, RJ: Vozes, 1988. p. 209).
25
AN/RJ. códice 403, vol. 1, (16/07/1812), fl. Ilegível.
26
AN/RJ. códice 403, vol. 1, (13/08/1812), fl. Ilegível.
27
AN/RJ. códice 403, vol. 1, (13/02/1813), fl. 123.
28
Para mais informações sobre a formação de quilombos no Rio de Janeiro e suas articulações com
a cidade, ver: GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (Org.). Liberdade por um fio: história dos
quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 263 - 290.
29
AN/RJ. códice 403, vol. 1, (22/12/1813), fl. 168.
vezes arbitrárias, rondas noturnas, toques de recolher, exigência de licen-
ças para andar à noite, dentre outras medidas paliativas.
Em estudo sobre o papel da Polícia no Rio de Janeiro durante o século
XIX, o historiador estadunidense Thomas Holloway apontou que o Estado
dividia com os proprietários as responsabilidades em relação aos escravos
do Rio.30 Claro está que a autonomia de trânsito vivenciada pelos cativos
urbanos fazia parte da própria instituição escravista nas grandes cidades.
No entanto, a recorrência de crimes envolvendo cativos, a frequência com
que eram encontrados nas tabernas, casas de molhados, e, até mesmo,
a significativa incidência de fugas, colocam a seguinte questão: afinal de
contas, onde moravam tais escravos?
As décimas urbanas analisadas por Nireu Cavalcanti apontam que, além
das diferentes casas do Rio, também existiram construções específicas, de-
signadas como senzalas.31 Mesmo diante da impossibilidade de se analisar
como seriam tais construções (inclusive em termos arquitetônicos) e suas
possíveis localizações, é plausível afirmar que dificilmente elas teriam outro
objetivo que não abrigar escravos urbanos. Além dessas senzalas compar-
timentadas, é preciso lembrar que as residências senhoriais provavelmente
teriam um espaço designado para a habitação de seus cativos.
Uma vez mais, os relatos deixados por viajantes estrangeiros consti-
tuem importante fonte documental. Como bem lembrou Robert Smith,
“nem os portugueses nem os brasileiros do passado foram dados a es-
crever sobre arquitetura. Temos que procurá-la nos relatos de visitantes
estrangeiros”.32
Frequentador da Academia Francesa de Belas-Artes, Debret foi con-
vidado a participar da missão artística francesa no Brasil em 1816, cujo
principal objetivo era fundar uma Escola de Belas-Artes na nova sede do
Império português, uma das muitas formas de empregar o conceito euro-
peu de civilização nos trópicos. Sua estadia foi longa (18 anos no total) e
atribulada, mas permitiu que o francês tivesse a oportunidade de viajar
por boa parte do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.33 Nesses mo-
mentos, Debret pode observar diferentes aspectos dessa sociedade tão es-
tranha e pitoresca aos seus olhos, observações essas que, em parte, foram
posteriormente registradas e compiladas no seu livro Viagem Pitoresca e
Histórica ao Brasil.
30
HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: FGV, 1997.
31
Infelizmente essa fonte esteve indisponível no Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro e não foi
possível acessar a coleção na atual etapa da pesquisa.
32
SMITH, Robert C. Arquitetura civil no Período Colonial, Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio His-
tórico e Artístico Nacional, Rio de Janeiro, v. 17, 1969. p. 111.
33
A importância dos registros e da própria trajetória de Debret no Brasil é tamanha, que já se tornou
objeto de diversas pesquisas. Ver em especial LIMA, Valéria A. E. A viagem pitoresca e histórica de
Debret: por uma nova leitura. Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Univer-
sidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2003; e STRAUMANN, Patrick (Org.). Rio de Janeiro,
cidade mestiça. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
Formada por 149 litografias, normalmente acompanhadas de comentá-
rios do artista, a obra de Debret é contundente em mostrar a forte e dissemi-
nada presença do cativo no Rio de Janeiro. “Negros carregando cangalhas”;
“Aplicação do castigo da chibata”; “Negros serradores de tábua”; “Negros
vendedores de aves”; “O colar de ferro, castigo dos negros” são exemplos
de litografias nas quais o cativo foi retratado como personagem principal,
mesmo que submetido à autoridade senhorial ou do Estado. Tal submissão
aparece de forma mais tênue nas imagens que retratam aspectos da inti-
midade da família brasileira. E, ainda que quase desapercebidas, questões
relacionadas à moradia escrava no espaço urbano são tangenciadas.
Ao analisar parte da estrutura arquitetônica das casas brasileiras, sobre-
tudo no que diz respeito ao legado das técnicas de construção herdadas dos
portugueses e da influência moura, o francês examinou duas casas, uma
urbana e outra de campo, fazendo algumas distinções entre elas, sobretudo
no que diz respeito à situação socioeconômica de seus proprietários. No pri-
meiro caso, Debret retratou uma residência de um andar que, segundo ele,
era muito comum nas ruas cariocas. Geralmente habitadas por uma única
família, essas construções eram profundas e estreitas, conforme a planta
da Figura 6:
Figura 6 – “Planta baixa de casa térrea comumente encontrada nas ruas do Rio de Janeiro.
Fonte: DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e histórica ao Brasil. São Paulo: Circulo do Livro, 1966. v. 3, p. 305-306. (edição em
cores)
Legenda: As letras presentes em cada cômodo indicam seus respectivos usos. Na planta do rés-do-chão: a – Vestíbulo ou corredor.
b – Sala de visitas. c – Quartos de dormir, espécies de alcovas. d – Sala de Jantar. e – Copa. f – Área, poço. g – Cozinha. h - Quartos de
Negros. i – Jardim. k – Estrebaria. Já o primeiro andar é formado por: A - Quatros com 4 janelas. B – Espécie de corredores escuros para
os quartos de dormir. C – Gabinete com 4 janelas. D – Telhado dos cômodos próximos ao poço. E – Telhado do hangar.”
as melhores casas são feitas ou com uma bela pedra azul tirada da praia
de Vitória, ou de tijolos. São todas caiadas; onde o chão não é calçado de
madeira, há um belo tijolo vermelho, de seis por nove polegadas e três
de grossura; são cobertas com telhas vermelhas redondas. As casas são
geralmente de um só andar, com um ou dois quartos em cima com sótão.
Em baixo da casa há geralmente uma espécie de porão no qual vivem os
escravos. Realmente fiquei às vezes a imaginar como é que entes humanos
poderiam existir em tais lugares.35
[...] a maioria das casas no Rio tem apenas sobre a rua três janelas de fren-
te ou portas, melhor dito, que abrem para pequenas sacadas em balanço
com seus gradis de ferro, limitando-se o mesmo a uma única peça, por as-
sim dizer, comunicante por duas portas envidraçadas com outro compar-
timento, que é uma alcova e faz as vezes de dormitório. A área que sobra
dá comumente para um pequeno pátio e consiste, além da cozinha de tipo
34
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 185.
35
GRAHAM, Maria D. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante os anos de 1821,
1822 e 1823. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1990. p. 183.
econômico inglês, de escuros cubículos - maiores e menores - divididos por
partições delgadas, os quais servem unicamente para quartos de criados
ou para despejo.36
36
EBEL, Ernest. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1972.
p. 25-26.
37
SCHICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é (1824 –1826): huma vez e nunca mais. Contribui-
ções dum diário para a História atual, dos costumes e especialmente a situação da tropa estrangeira
na capital do Brasil. Rio de Janeiro: Getúlio Costa, 1937. p. 52.
38
RUGENDAS, Johann M. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Martins, 1941. p. 187, 203.
Figura 7 – Interior de casa de família pobre com escrava entregando dinheiro.
Fonte: DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Circulo do Livro, 1985. v. 3, prancha 54. (edição em cores)
39
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem pitoresca e Histórica ao Brasil. São Paulo: Circulo do Livro, 1985. v.
1, p. 304.
Escravidão nas fronteiras da Baía da Guanabara
43
Não foi encontrada nenhuma documentação complementar que esclarecesse se os termos eram fei-
tos apenas pela vontade dos senhores em garantir um negócio, ou se havia algum tipo de imposição
do Estado. Contudo, o estudo de outras fontes documentais, como as posturas e pedidos de licença
para escravos ao ganho, sugere que a primeira hipótese é mais plausível, já que o proprietário do
escravo era quem mais corria risco nessa negociata.
44
FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil Imperial, 1808-1871: control social y estabilidad
política en el nuevo Estado. México: Fundo de Cultura Econômica, 1986. p. 86.
A criação do cargo de juiz de paz, que não se enquadrava na hierarquia
judicial vigente, teve fortes repercussões. Por um lado, obteve apoio de
muitos jornalistas, já que era uma forma de controlar o Imperador e fazer
a sociedade civil ficar mais próxima do poder. Por outro, foi desaprovada
por políticos mais moderados que defendiam a centralidade do poder no
Rio de Janeiro. Plataforma dos liberais reformistas, o juiz de paz era uma
das peças que compunham o projeto de Estado que, como se verá mais
adiante, não vingou. De todo modo, tal cargo foi fundamental para o an-
damento e conhecimento da vida cotidiana do país, já que dentre suas
obrigações estava a promoção de conciliações entre partes envolvidas em
potenciais litígios, brigas domésticas, disputas por danos causados por
escravos, aplicação de posturas municipais, destruição e prevenção de
quilombos, etc. Segundo Flory, os juízes de paz eram verdadeiros pacifi-
cadores sociais da comunidade, uma espécie de “autoridades de bairro”.45
Ao que tudo indica, a Intendência Geral de Polícia (tanto do Império
português, até 1822, como do Império do Brasil), teve de lidar com os dois
lados da moeda de uma cidade escravista: de uma lado a necessidade cons-
tante da mão de obra escrava; de outro as estratégias de burla do controle
ou mesmo de fuga.
Se o Estado brasileiro optou por manter muitas leis e práticas que re-
giam o sistema escravista como um todo, no caso urbano não foi dife-
rente. Desde 1822, como sede do Império do Brasil, a cidade do Rio de
Janeiro manteve sua dependência em relação ao trabalho escravo. A ma-
lha urbana da cidade continuava se desenvolvendo desde 1808, levando à
criação, na década de 1820, da freguesia de Sacramento. O volume do trá-
fico, que já tinha aumentado com a transferência da Corte joanina, cres-
ceu ainda mais: em 1822 cerca de 23.280 cativos desembarcaram no porto
carioca, ultrapassando o número de 47 mil em 1826.46 Sob a égide de um
Estado independente que se formava, a polícia passou a controlar com
maior assiduidade a movimentação escrava nas ruas do Rio. Posturas mu-
nicipais pretendiam delimitar o horário no qual os cativos poderiam cir-
cular pela cidade, além de proibir a entrada deles em armazéns, tavernas
e botequins. Também foi preocupação do estado nacional brasileiro (via
Intendência de Polícia) assegurar que interesses pessoais não interferis-
sem na manutenção da ordem social, diminuindo com isso a violência ar-
bitrária que caracterizou a prisão de escravos durante o período joanino.47
O terceiro volume do códice 403 – onde se encontram os registros das
prisões feitas entre 1825 e 1826 é um exemplo desse duplo movimento
45
FLORY, Thomas. El juez de paz y el jurado en el Brasil Imperial, 1808-1871: control social y estabilidad
política en el nuevo Estado. México: Fundo de Cultura Econômica, 1986. p. 95-97.
46
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p.
51.
47
HOLLOWAY, T. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. Rio de
Janeiro: FGV, 1997. p. 57-58.
das autoridades policiais. Junto ao menor número de ocorrência de es-
cravos detidos e de certa reorganização no registro dos locais e datas das
detenções,48 também se observa a manutenção do mesmo padrão dos de-
litos cometidos por cativos no período joanino. Brigas nas ruas, vadia-
gens, capoeiras, pequenos furtos e, sobretudo, fugas, continuaram a ser
os principais motivos para a reclusão escrava.49 Nesses casos, o Estado,
via Intendência de Polícia, era acionado a fim de devolver os cativos a seus
senhores e prevenir possíveis “ajuntamentos” ou formação de quilombos.
Sendo assim, o escravo continuava a ser responsabilidade do seu pro-
prietário que, a partir de 1822, tinha esse direito garantido por meio da
defesa constitucional da propriedade (artigo 179).50 Ao analisar a ordem
nacional e o “governo dos escravos”, Marquese afirmou que os senhores
faziam questão de exercer sua soberania doméstica, ficando a cargo do
Estado auxiliar no controle dos cativos no espaço externo às casas.51 No
que tange à escravidão urbana, esse espaço externo era deveras amplo e
diversificado. Justamente por isso, nesses locais, o “governo dos escra-
vos” era dividido entre proprietários e Estado, cabendo ao último entrar
em ação quando o controle senhorial não fosse suficiente para garantir o
bem público.
A fluidez característica da vida do escravo urbano e a possibilidade do
“morar sobre si” – ou seja, por sua própria conta – permite pensar o en-
torno da baía da Guanabara como um espaço analítico próprio. Escravos
que moravam no Rio e trabalhavam em diferentes lugares da baía com a
anuência senhorial; cativos fugidos que se embrenhavam nas matas do
Iguaçu, mas que mantinham estreita relação com a vida e, sobretudo com
o comércio realizado na Corte; pequenos proprietários que viviam nos
engenhos da Guanabara e que muitas vezes enviavam seus escravos ao
Rio de Janeiro com a esperança que eles conseguissem pegar algum ser-
viço ou se colocar no ganho. Além da dificuldade conceitual de se definir
os limites entre espaço urbano e espaço rural, tomar a Guanabara como
base para a análise da escravidão urbana, permite uma ampliação signifi-
cativa da compreensão do cativeiro citadino, bem como das diversas teias
socioeconômicas estabelecidas entre escravos, libertos e senhores. Fica o
convite para pesquisas futuras que tomem a Guanabara como entremeio
do mundo urbano e do mundo rural.
48
A organização desse volume, produzido sob a égide de um Estado independente, demonstra uma
preocupação a mais das autoridades responsáveis: passou a ser importante saber onde os delitos
ocorreriam, bem como quais os oficiais de polícia realizaram as prisões.
49
AN/RJ. Relação de presos feita pela polícia, 1810-1821. códice 403, vol. 3.
50
Ver: Carta Constitucional do Brasil outorgada em 1824. Artigo 179.
51
Nesse artigo, o autor também demonstrou, por meio do exame de textos prescritivos, que o Estado
deveria ficar isento das responsabilidades sobre os cativos, a não ser que a propriedade e a nação
fossem ameaçadas: MARQUESE, Rafael de Bivar. Governo dos escravos e ordem nacional: Brasil e
Estados Unidos, 1820-1860. In: JANCSÓ, István (Org.). Brasil: formação do Estado e da Nação. São
Paulo: Hucitec, 2003. p. 258-260.
Africanos e crioulos, nacionais e
estrangeiros: os mundos do trabalho no Rio
de Janeiro nas décadas finais do Oitocentos
Lucimar Felisberto dos Santos
1
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, doravante BN/RJ, Jornal do Commercio, 03/01/1873.
Por outro lado, a obra de abertura da estrada Friburgo-Cantagalo po-
deria estar sofrendo mesmo com a falta de braços habilidosos. Afinal, da
totalidade de anunciantes que recorriam às colunas de “procura-se” do
Jornal do Commercio, periódico que circulou pelas ruas da Corte desde os
anos finais de 1820,2 buscando suprir suas necessidades de trabalhadores
para exercer as mais diferentes funções, como fez José Maria Fernandes –
em média, 110 anúncios diários – 30% dos casos, nos anos iniciais da dé-
cada de 1870, exigiam algum tipo de destreza. Denunciando o dinamismo
dos mundos do trabalho carioca,3 bem como alguns dos sentidos de suas
re-configurações, para além da conduta “afiançada” e da morigeração,4 são
solicitados para compor as relações de trabalho indivíduos que tenham
alguma “habilidade”, “com prática” n’alguma atividade, que “sejam perfei-
tos em seus afazeres”, “peritos em sua arte”, sendo escusado apresenta-
rem-se quem não estiver nestas “circunstâncias”.
Sem também se isentar de sua “circunstância”, o senhor José Maria
Fernandes investe nos anúncios para recrutar o pessoal necessário à
construção. Sua escolha dependeria de algumas noções específicas.
Certamente a primeira delas relativa ao cumprimento do acordo firmado
no que diz respeito ao prazo de execução e à qualidade do trabalho. No
entanto, a preferência poderia ser informada por fatores conjunturais e
noções próprias deste empregador; estaria sujeita à reserva de mão de
obra disponível; dependeria também da representação construída por ele,
e das noções disponíveis na sociedade, acerca do tipo de trabalhador ca-
paz de realizar o trabalho com desenvoltura e eficiência.
Partindo do exame das escolhas dos “procuradores”, analisando a
composição social dos mundos do trabalho carioca no inicio da década
de 1870, neste trabalho tratarei das possibilidades de diferentes sujeitos,
diferenciados a partir de critérios jurídicos, de cor, nacionalidade e por
suas habilidades manuais, participarem, como trabalhadores livres e/ou
assalariados, na economia urbana do Rio de Janeiro nas décadas finais do
século XIX. Ressaltando estas escolhas como mais uma das chaves de lei-
tura capazes de iluminar aspectos da formação e da evolução das classes
trabalhadoras livres e assalariadas no Rio de Janeiro.
2
O Jornal do Commercio foi fundado no dia 1.º de outubro de 1827, pelo francês Pierre Plancher.
3
De acordo com estudos feitos por um grupo de pesquisadores sobre as categorias socioprofissio-
nais, os salários e os custos com alimentação no Rio de Janeiro, apenas um tímido “avanço técnico”
teria sido observado no setor fabril-manufatureiro até os anos de 1870. Por outro lado, os dados do
censo de 1872 sobre as categorias profissionais “indicariam grande dinamismo do setor tradicional
de artesanato”. Ver: LOBO, Eulália Maria L. et al. Estudos das categorias socioprofissionais, dos
salários e do custo da alimentação no Rio de Janeiro de 1820 a 1930. Revista Brasileira de Economia,
Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, out./dez. 1973. p. 159.
4
Referente aos bons costumes, a ter vida exemplar.
Escravizados, libertos e livres “nos mundos do trabalho”
do Rio de Janeiro
5
Exemplo profícuo vem daqueles que organizaram na Universidade Federal Fluminense o Centro
de Estudo do Oitocentos-CEO, um espaço de trabalho coletivo e interinstitucional, que concentra
estudos do Chamado “grande Oitocentos”, referentes ao período de fins do século XVIII até o final
da República Velha.
6
Refiro-me aos trabalhos de E. J. Hobsbawm e E. P. Thompson. Conquanto haja divergências sobre
quando as classes trabalhadoras se singularizaram em classe operária, para ambos, a segunda é
um fenômeno histórico que ocorreu na sociedade inglesa, mas enquanto para Thompson a classe
operária se formou de 1780 a 1832, para Hobsbawm isso somente ocorreu bem mais tarde, de
1870 a 1914. Ainda que considerem que as classes nunca estão prontas e acabadas, no sentido em
que suas formações não devam ser pensadas como um processo com início, meio e fim, Hobsbawm
e Thompson viram sentido em delinear a emergência da classe operária britânica enquanto grupo
social, por entendê-la como um fenômeno historicamente novo. Para tanto, recuaram suas análises
para um período anterior ao marco histórico de sua formação. Ver: Hobsbawm, Eric J. Mundos do
trabalho. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000; THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária
inglesa: a árvore da liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.
7
Ver: Góes, Maria da Conceição Pinto. A formação da classe trabalhadora: o movimento anarquista
no Rio de Janeiro, 1888- 1911. Rio de Janeiro: Zahar: Fundação José Bonifácio, 1988; Batalha,
Cláudio de Moraes. Sociedade de trabalhadores no Rio de Janeiro no século XIX: algumas reflexões
em torno da formação da classe operária. Cadernos do AEL, Campinas, SP, n. 10-11, 1999; Batalha,
Cláudio de Moraes; SILVA, Fernando Teixeira da; FORTES, Alexandre (Org.). Cultura de classes:
identidade e diversidade na formação do operariado. Campinas, SP: EdUnicamp, 2004; Mattos,
Marcelo Badaró. Escravizados e livres experiências comuns na formação da casse operária trabalhadora
carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008.
8
Ver Gebara, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888). São Paulo: Brasiliense, 1986.
contexto da escravidão. Direcionando tal argumento para a proposta des-
te artigo, importa destacar que, ao desconsiderar a presença do elemen-
to escravo no “fazer-se” da classe operária brasileira, pode-se incorrer no
risco de perder algumas das características fundamentais deste processo.
Daí, Marcelo Badaró Mattos, seguindo essa tradição historiográfica
inglesa, ser bem-sucedido na defesa de sua hipótese de que, no Rio de
Janeiro
13
Jornal do Commercio, 07/01/1873.
14
Sobre o assunto ver: Soares, Luiz Carlos. Escravidão Industrial no Rio de Janeiro do século XIX.
In: CONGRESSO BRASILEIRO DE HISTÓRIA ECONÔMICA, 5., 2003, Caxambu; CONFERÊNCIA
INTERNACIONAL DE HISTÓRIA DE EMPRESAS – ABPHE, 6., 2003, Caxambu. Anais... Caxambu:
[s.n.], 2003.
15
Jornal do Commercio, 17/01/1873
Tabela 1 – População escrava do município do Rio de Janeiro
considerada em relação às profissões (por sexo)
Profissões Homens Mulheres Total
Freguesias urbanas
Artistas 463 3 466
Marítimos 524 524
Pescadores 52 52
Costureiras 1.217 1.217
Operários 1.862 1.862
Lavradores 149 15 164
Criados e jornaleiros 4.203 709 4912
Serviço doméstico 8.098 12.727 20.825
Sem profissão 3.491 4.054 7.545
Total 18.842 18.725 37.567
Freguesias rurais
Artistas 31 31
Marítimos 3 3
Pescadores 122 122
Costureiras 167 167
Operários 273 273
Lavradores 3.059 2.472 5.531
Criados e jornaleiros 794 79 873
Serviço doméstico 560 1.458 2.018
Sem profissão 1.203 1.151 2.354
Total 6.045 5.327 11.372
Total Geral 24.887 24.052 48.939
Fonte: Recenseamento da população do Império do Brasil a que se procedeu no dia 1º de agosto de 1872, volume XIX. Rio de Janeiro,
1873-1876, p. 2 apud SOARES, Luiz Carlos. O “Povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX.
Rio de Janeiro: FAPERJ/ Sete Letras, 2007.
16
Eisenberg, Peter. Homens esquecidos: escravos e trabalhadores livres no Brasil – séc. XVII e XIX.
Campinas, SP: Ed. da Unicamp, 1989.
uma vez que em 1872 este grupo representava o maior contingente popu-
lacional residindo na Corte Imperial: 152.722 indivíduos.17
24
Gebara, Ademir. O mercado de trabalho livre no Brasil (1871-1888). São Paulo: Brasiliense, 1986.
25
As categorias são utilizadas neste texto para designar o conjunto da população que viveu a experi-
ência da escravidão, os nascidos na África e no Brasil, escravizados e libertos.
26
GOMES, Flávio; NEGRO, Antonio Luigi. Além de senzalas e fábrica: uma história social do traba-
lho. Tempo Social: revista de sociologia da USP, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 217-240, 2006. p. 217-240.
27
LARA, Silvia Hunold. Escravidão, cidadania e história do trabalho no Brasil. Projeto história: Revis-
ta do Departamento de pós-graduação da PUC-SP, São Paulo, n. 16, p. 25-38, 1997.
luta e resistências às formas de exploração a que estavam submetidos”,28
ou seja, tinham comunidade de interesse. Afinal, como nos chama aten-
ção Marx, em O 18 Brumário, quando analisa as comunidades camponesas
francesas em meados do século XIX, os grupos só se constituem em classe
quando em defesa de seus interesses enquanto grupo.29
Quiçá incipientemente “maravilhosa” para aqueles que a viam como
potencializadora de seus desígnios pessoais e coletivos, a cidade do Rio de
Janeiro – cidade negra30 em muitos de seus significados culturais e práticas
sociais – em meados do século XIX ostentava o título de maior cidade es-
cravista das Américas. Neste período, de acordo com o levantamento feito
em 1849,31 pelo menos 110.602 cativos (41,5% da população) constituí-
am a soma total dos 266.466 residentes. A condição de centro administra-
tivo e a qualidade urbana imputavam ao Município Neutro características
que conformavam novas formas às relações escravistas.
Em 1872, um total de 274.972 pessoas residia na província do Rio
de Janeiro. Destes, 228.743 habitavam em áreas urbanas – que se divi-
diam em 12 freguesias: Sacramento, Candelária, São José, Santa Rosa,
Sant’Ana, Lagoa, Glória, Engenho Velho, Santo Antônio, São Cristovão e
Espírito Santo – e, 46.229 habitavam em áreas suburbanas ou semirrurais
– que se dividiam em oito freguesias: Irajá, Jacarepaguá, Campo Grande,
Inhaúma, Guaratiba, Ilha do Governador, Paquetá e Santa Cruz.
Boa parte desta população era empregada nas diversas atividades do
setor secundário dos mais variados estabelecimentos da cidade, resulta-
do de sua condição de “maior centro de consumo e atração de negócio
do país, no que contribuía a expansão cafeeira, que transformara seu
28
MATTOS, Marcelo Badaró. Trabalhadores escravos e livres no Rio de Janeiro da segunda metade
do século XIX. In: JORNADA NACIONAL DE HISTÓRIA DO TRABALHO, 1., 2002, Santa Catarina.
Anais... Santa Catarina: ANPUH, 2002. GT Mundos do Trabalho. Disponível em: <www.labhstc.
ufsc.br/jornadaI.htm>. Acesso em: 10 set. 2009.
29
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. In: MARX, Karl; ENGELS,
Friedrich. Textos. São Paulo: Ed. Sociais, 1977, v. 3, p. 203-285. Nesta estei-
ra desta interpretação, E. P. Thompson argumentaria que “a classe acontece
quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas
ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si,
e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos
seus” (THOMPSON, Edward P. A formação da classe operária inglesa: a árvore da
liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. p. 10).
30
Esta categoria elaborada por Sidney Chalhoub não se refere ao quantitativo, mas as marcas intro-
duzidas pela experiência de africanos e crioulos nas lógicas sociais nas grandes cidades escravistas.
Ver: Chalhoub Sidney, Visões da liberdade: uma história das últimas décadas da escravidão na Corte.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
31
BURMEISTER, Hermann. Viagens ao Brasil apud SOARES, Luiz Carlos. O “Povo de Cam” na capital
do Brasil: a escravidão urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ/ Sete Le-
tras, 2007.
cais na porta de entrada e saída da maior parte da riqueza nacional”.32
Conquanto a prioridade fosse dada à produção agrícola exportadora e à
importação, para onde confluíam os lucros auferidos pelo sistema bancá-
rio e de crédito. A opção por importar aprazou o desenvolvimento de es-
tabelecimentos fabril-manufatureiros, que receberam relativo impulso no
contexto da Guerra do Paraguai, retraído, todavia, no período pós-guer-
ra.33 Analisando o montante de operários das dez profissões manuais ou
mecânicas que foram arroladas no Censo de 1872, Eulália M. L. Lobo e
seus colaboradores observam o seguinte: “do total de 17.059 a maioria
concentrava-se nos seguintes setores: metais (928), madeira (5.920), ves-
tuário (2.519), chapéus (498), calçados (2.000), couro e peles (479, car-
teiros, calceteiros, mineiros e cavouqueiros (928), construção (2.738)”.34
Nos anúncios publicados no Jornal do Commercio, é possível observar
a fluidez da relação de procura e oferta de mão de obra. Sendo um veículo
voltado para as demandas comerciais, registrou, também, as transações
envolvendo uma das principais mercadorias negociadas na Corte durante
o período imperial: a humana. Nas páginas do Jornal, além dos já mui-
to pesquisados anúncios de fugas, encontramos anúncios de ofertas de
compra e venda de cativos e, de procura e aluguel da força de trabalho
escrava, liberta e livre.35 Valendo-se desta dinâmica construída na experi-
ência da escravidão, os anúncios traziam ofertas de indivíduos livres que
desejavam alugar a sua força de trabalho e, também, de empreendedores
que procuravam por indivíduos cativos, libertos e livres para compor seu
quadro de trabalhadores.36
Os dados sobre o comércio de cativos, bem como de agenciamento dos
libertos e livres, fornecem importantes informações sobre o valor do paga-
mento do aluguel, habilidades dos indivíduos e outros aspectos da demo-
grafia da mão de obra carioca. Diariamente, no início dos anos 1870, eram
publicados em média 110 anúncios de empregadores desprovidos de bra-
ços, habilidosos ou não, para compor sua força de trabalho e, 80 anúncios
32
SOUZA Juliana Teixeira de. Dos usos da lei por trabalhadores e pequenos comerciantes na Corte
Imperial. In: AZEVEDO, Elciene et al. Trabalhadores na cidade: cotidiano e cultura no Rio de Janeiro
e em São Paulo, séculos XIX e XX. Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2009. p. 189.
33
Este impulso teria sido observado do ponto de vista quantitativo, permanecendo a mesma estru-
tura artesanal nestes estabelecimentos (LOBO, Eulália Maria L. et al. Estudos das categorias so-
cioprofissionais, dos salários e do custo da alimentação no Rio de Janeiro de 1820 a 1930. Revista
Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 27, n. 4, out./dez. 1973. p. 159).
34
LOBO, Eulália Maria L. et al. Estudos das categorias socioprofissionais, dos salários e do custo da
alimentação no Rio de Janeiro de 1820 a 1930. Revista Brasileira de Economia, Rio de Janeiro, v. 27,
n. 4, out./dez. 1973. p. 159.
35
Gilberto Freyre é o principal expoente na defesa da utilização dos anúncios para a pesquisa his-
tórica. Ver: Freyre, Gilberto. O escravo nos anúncios de jornais brasileiros do século XIX: tentativa de
interpretação antropológica, através de anúncios de jornais, de característicos de personalidade e
de deformações de corpo de negros ou mestiços, fugidos ou expostos à venda, como escravos, no
Brasil do século passado. Recife: Imprensa Universitária, 1963.
36
Sobre a conformação do mercado de trabalho no Rio de Janeiro ver: VITORINO, Artur José Renda.
Cercamento à brasileira: conformação do mercado de trabalho livre na Corte das décadas de 1850 a
1880. Tese (Doutorado em História)–Universidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, 2002.
de indivíduos interessados em auferir seu jornal. As vagas oferecidas pelos
anúncios dos classificados poderiam interessar a um complexo e diversifica-
do conjunto de trabalhadores: em cor, condição social, status, nacionalidade
e naturalidade.
Os “procurados”, em sua maioria, eram homens e mulheres sem es-
pecialização para ocupar postos de domésticos, cozinheiros, caixeiros,
criados, vendedores de quitanda, copeiros, padeiros, lavadeiras, engo-
madeiras e outras funções cuja principal exigência era a boa conduta, a
“proficiência”.37 Para preencher as vagas, os candidatos deveriam ser per-
feitos nos afazeres, desembaraçados, fiéis, inteligentes e honestos.38 Não
obstante, cerca de 30% dos anúncios faziam referências a critérios como
cor, condição jurídica, habilidade ou nacionalidade.
37
Conhecimento perfeito, capacidade, competência.
38
É o caso da publicação do dia 2/1/1870, que trazia o seguinte enunciado: “Precisa-se de uma cos-
tureira que corte por figurino e que seja desembaraçada e perfeita em seus trabalhos; não se faz
questão de cor ou condição, quem estiver nas circunstancias de preencher o lugar dirija-se à Praia
de Botafogo n. 18”.
selecionado era mesmo o da proficiência.39 Naquele mês, numa amostra
de 3.554 anúncios de “procura-se” mandados publicar nas páginas dos
classificados do Jornal do Commercio, 2.660 não faziam referência à cor, à
condição, à nacionalidade ou à necessidade de alfabetização do “procura-
do”. Por outro lado, 894 anúncios traziam explícitos algum tipo de critério
referente ao perfil social desejado. Foram 1.011 casos que traziam espe-
cificação. Nestes, 14,3% trazia a resolução do empregador de preencher a
vaga sem levar em conta a cor do indivíduo, 12,6% ignoraria a sua con-
dição, 15,4% dos empregadores demandavam trabalhadores de condição
livre, 17% de cor branca, de cor parda 4,8% e 5,5% de outras nacionalida-
des. Dialogando com a estrutura social de uma cidade negra e escravista, a
maioria dos anunciantes, 22,7%, declarava preferir trabalhadores pretos.
Somente 1,1% indicava necessitar de um indivíduo alfabetizado. Do que
se pode inferir que o mercado de trabalho da cidade do Rio de Janeiro, no
mês de Janeiro de 1873, era acessível a qualquer um que estivesse “nas
circunstâncias” de preencher as exigências do empregador.
Ainda que os níveis de alfabetização fossem bastante tímidos entre a
população escravizada, a ela se encaminhavam diversas ofertas de trabalho
que criavam oportunidades dos cativos darem à escravidão significados de
liberdade. Muitos dos escravos cariocas urbanos mantinham com seus
senhores relações que intercambiavam noções de cativeiro e liberdade.
Usufruíam de “doses de liberdade”.40 Possuíam relativas possibilidades de
mobilidade. Eram alugados para exercerem diversas atividades ou postos
para vender os mais variados produtos, atividade que, de acordo com a ter-
minologia da época, era designada como ao ganho. Enquanto ganhadores,
em muitos casos, podiam “viver sobre si”, ou seja, decidir onde iriam tra-
balhar ou residir, comprometendo-se junto ao senhor a cumprir, semanal-
mente ou mensalmente, o pagamento de uma quantia a título de “acerto”.
39
Foram 1.162 anúncios publicados à procura por mão-de-obra especializada ou semiespecializada.
Os ofícios ou especialidade demandados eram: administrador, alfaiate, Arregaçadeira, barbeiro,
cafeteiro, caixeiro, carpinteiro, cavouqueiro, chacareiro, chineleiro, charuteiro, chapeleiro, charu-
teiro, cigarreiro, colchoeiro, confeiteiro, carroceiro, copeiro, costureira, encadernador, enfermeiro,
professor, farmacêutico, feitor, ferrador, forneiro, ferreiro, fundidor de metal, funileiro, jardineiro,
garçom, imprensador, limador, lustrador, malhador, marceneiro, oficial de forja, padeiro, pedreiro,
pianista, pintor, professor, sapateiro e serralheiro, tanoeiro, trabalhador de masseira e vendedor.
40
Temática abordada por mim em outro trabalho. Ver SANTOS, Lucimar Felisberto dos. Cor, identi-
dade e mobilidade social: africanos e libertos no Rio de Janeiro, 1870 – 1888. Dissertação (Mestra-
do)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006.
Figura 8 – Escravo leitor do jornal O Paiz. Seus ouvintes, sete homens, duas mulheres e uma criança,
ouvem atentamente sua leitura de primeira natureza. A imagem chama atenção para as relações com a
leitura desenvolvidas por sujeitos de diferentes gradações de letramento. A legenda da gravura diz: “Um
fazendeiro também fez uma descoberta que o deixou embatudado! Um escravo lia no eito para os seus
parceiros ouvirem, um discurso abolicionista do Conselheiro Dantas”.
Fonte: Revista Illustrada, 15 out. 1887 (edição em p&b)
44
No ano de 1873 foram levantados 965 estabelecimentos do ramo industrial, número que chegaria
a 1.242 no ano de 1881 (SOARES, Luiz Carlos. O “Povo de Cam” na capital do Brasil: a escravidão
urbana no Rio de Janeiro do século XIX. Rio de Janeiro: FAPERJ/ Sete Letras, 2007. Anexos).
45
Cunha, Luiz Antônio. O ensino de ofícios artesanais e manufatureiros no Brasil escravocrata. São Paulo:
Ed. UNESP; Brasília, DF: FLACSO, 2005. p. 143.
Precisa-se trabalhadores portugueses ou alemães para estrada de ferro de
Macaé e Campos na Rua Uruguaiana 131. (1873)
Precisa-se de um português de meia idade para uma estalagem que saiba
ler alguma coisa e com prática de venda; São Cristóvão 132. (1873)
Precisa-se de um moço português de 15 a 18 anos de idade para criado, é
inútil que se apresente quem não tiver informação a dar sobre a sua con-
duta, exige-se também bons atestados, para tratar no Largo do Paço, n. 12,
hotel, quarto n. 107. (1873)
Precisa-se de moço português de 18 a 20 anos de idade, para criado, com
ou sem prática; se não for de boa conduta e morigerado é inútil apresentar-
-se, tratar-se no Largo do Paço n. 12, hotel, quarto n. 107. (1873)
Precisa-se de um moço português de 16 anos de idade, que saiba bem as
ruas da cidade, e que tenha aqui família, para caixeiro e agente de um es-
critório; na Rua Uruguaiana n. 131 informa.46 (1873)
46
Jornal do Commercio, 21/01/1850, 01/01/1873, 19/01/1873/ 19/01/1873, 20/01/1873 e
30/01/1873, respectivamente.
47
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos
no Rio de Janeiro, 1850-1872. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 21, p. 30-56, jul. 1988.
48
Sobre o discurso racial no século XIX, ver: Schwarcz Lilia M. O espetáculo das raças. São Paulo:
Companhia das Letras, 1996. Sobre a questão dos negros no imaginário das elites, ver Azevedo
Célia Maria de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário das elites século XIX. Campinas,
SP: Anablume, 1987.
49
MAGGIE, Yvonne. Aqueles a quem foi negado a cor do dia: as categorias cor e raça na cultura bra-
sileira. In: MAIO, Marcos Chor; SANTOS, Ricardo (Org.). Raça, ciência e sociedade. Rio de Janeiro:
CCBB, 1996.
Alguns significados de cor, condição e profissão
Uma vez enunciado que o item cor era um dos componentes que infor-
mava o critério de escolha dos empregadores, é importante saber alguns
dos sentidos de determinados termos que compunham este juízo crítico.
De acordo com Sheila de Castro Faria, os critérios de cor no Brasil foram
extremamente elásticos. Termos como “negro”, “preto”, “pardo”, “mulato”
e “cabra” tiveram vários sentidos que foram utilizados para designar in-
divíduos dependendo da época e da região. Sendo seus significados in-
formados, sobretudo até a primeira metade do século XIX, pela condição
jurídica, e não preferencialmente pela cor da pele.50
Interpretando a condição social como representação que separava e
definia os indivíduos segundo a sua situação jurídica – livre, liberto ou
escravo –, procurarei seguir de perto as argumentações de Faria. Segundo
verifica a pesquisadora em suas análises sobre as relações escravistas
na sociedade brasileira do período anterior a 1850, as hierarquias se es-
truturavam menos em torno da cor da pele do que da condição social.
Ressalta que os termos designadores da cor/condição tinham operacio-
nalidade para demarcar diferenças entre os mundos de livres e escravos.
Eram chaves de leitura das etiquetas que diferenciavam as duas realida-
des. Por exemplo, os termos “negro”, “preto” e “crioulo” eram operados
sobretudo no mundo dos escravos. O termo “negro” agregava sentidos
que remetiam essencialmente a experiência da escravidão, podia ser as-
sim percebido e se perceber aquele indivíduo como cativo, nunca um li-
berto ou livre.51 Sentidos análogos foram percebidos em relação ao termo
“crioulo”: segundo Sheila de Castro Faria, designaria o escravo nascido no
Brasil. Entretanto, os termos “preto” e “crioulo” marcariam, também, efe-
tivas diferenças de origem de nascimento; referiam-se, respectivamente,
ao africano e à sua descendência. Sendo chamados crioulos os filhos de
africanos nascidos no Brasil, independentemente da cor de sua pele e de
sua condição social.52
50
Em sua análise, a autora examina registros paroquiais de batismo, casamentos e óbitos de livres e
libertos, mapeamentos populacionais por domicílios e testamentos e inventários post-mortem de
forros em diferentes regiões brasileiras (Faria Sheila de Castro. Cotidiano do negro no Brasil escra-
vista. In: ANDRÉS-GALLEGO, José (Org.). Tres grandes cuestiones de la historia de iberoamérica. v. 1.
Madrid: Fundación Mapfre Tavera: Fundación Ignacio Larremendi, 2005. v. 1, p. 1-163).
51
Observação que pode causar estranhamento aos que aderiram à apropriação e ressignificação do
termo feita pelo movimento negro que, no afã de atribuir “empoderamento” a este conjunto da
população, classifica como negros o somatório da população preta e parda no Brasil.
52
Segundo Hebe M. Mattos, “a designação ‘crioulo’ era exclusiva de escravos e forros nascidos no
Brasil e o significante preto, até a primeira metade do século, era referido preferencialmente aos
africanos. A designação de ‘negro’ era mais rara e, sem dúvida, guardava uma componente racial,
quando aparecia nos censos da época, qualificando a população livre” (MATTOS, Hebe Maria. Das
cores do silêncio: os significados da liberdade no sudoeste escravista – Brasil século XIX. Rio de Ja-
neiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 30). Neste trabalho, temporalmente situado na segunda metade
do século XIX, utilizo o termo “crioulo” no sentido mais abrangente, designando subsequentes
gerações de descendentes de africanos nascidos no Brasil.
Movendo-se em direção aos mundos dos livres, o termo ‘pardo’ desig-
naria preferencialmente os filhos de mães libertas. Não traduzia a priori
uma possível mestiçagem, antes marcava distanciamento da experiência
escrava e africana. A designação criava uma condição social intermediá-
ria entre os dois mundos. Pardo designaria aos que não eram africano ou
crioulo na escravidão, e aos filhos dos alforriados, na liberdade,53 ou um não
branco que não vivenciou a experiência do cativeiro na interpretação de
Hebe Mattos. Segundo esta,
57
Faria Sheila de Castro. Cotidiano do negro no Brasil escravista. In: ANDRÉS-GALLEGO, José
(Org.). Tres grandes cuestiones de la historia de iberoamérica. v. 1. Madrid: Fundación Mapfre Tavera:
Fundación Ignacio Larremendi, 2005.
58
Este rearranjo de sentido é observado por Hebe Mattos no que se refere à identidade socioprofis-
sional dos homens livres proprietários de lavouras, feitorias e escravos em oposição aos cativos,
segundo a historiadora nas regiões por ela pesquisada, após 1850, “a qualificação socioprofissional
começa a tornar-se designadora de status social (além, obviamente, dos títulos honorários legais
ou informais, como ‘comendador’, patentes da Guarda Nacional, dona e outros), desconstruindo-
-se a igualdade que o ‘viver de’ emprestava” (MATTOS, Hebe Maria. Das cores do silêncio: os signi-
ficados da liberdade no sudoeste escravista - Brasil século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional,
1995. p. 96).
Os dados poderiam apontar para uma “democracia racial” no topo da
hierarquia socioprofissional, no caso desta amostra, se não fossem in-
terpretados à luz das análises esboçadas anteriormente. Tudo indica que
os indivíduos com qualificação profissional já começariam a se perceber
como uma categoria que se diferenciava por suas habilidades manuais e
assim seriam reconhecidos na sociedade. Daí a não referência a cor da
pele ou condição para recrutá-los – sendo a especialização o critério defi-
nidor de sua distinção.
No entanto, se as designações socioprofissionais indicavam prestígio
social naquele contexto, também escamoteavam as classificações raciais e
mesmo as condições sociais dos indivíduos que comporiam as classes tra-
balhadoras daquela sociedade. Os trabalhadores com especialização com-
partilhavam experiências com outros recrutados “livremente” através dos
anúncios e, que recebiam outras designações antes de serem reconhecidos
socialmente pelas suas habilidades profissionais. Nos anúncios eram de-
nominados “moços”, “homens”, “trabalhadores”, “pequenos”, “meninos”,
“pessoas” e, constituem 16% do total (528 casos). São trabalhadores que
muito provavelmente representariam a composição social da população
urbana do Rio de Janeiro e que aprenderiam o ofício na prática, obser-
vando os mais qualificados, representantes também daquela composição
social. São exemplos destes tipos de anúncios:
59
Jornal do Commercio, 3/1/1873, 19/1/1873/ 22/1/1873 e 30/1/1873, respectivamente.
60
Foram localizados nos anúncios endereços de oficinas de costuras com nomes de algumas “mada-
mes”.
‘artes mecânicas’”, ficando as medidas desta ordem “somente no campo
das ideias”.61
A utilização de categorias profissionais na hierarquização das relações
sociais de trabalho, enquanto designadoras de status, não se deu somente
no que alguns historiadores chamariam de “atividades de porta a fora”,
nas “atividades de porta adentro”,62 naquelas realizadas no âmbito do-
méstico, esta diferenciação também foi operada. O termo “criado” que
de acordo com Olívia Maria Gomes da Cunha, encobria as mais diversas
modalidades e relações de trabalho,63 foi ressignificado para dar conta de
nomear aqueles trabalhadores que não necessariamente executavam ati-
vidades domésticas, mas que trabalhavam na “órbita” do lar, recebendo
para isto um salário. Ou seja: estando as categorias de trabalho se mo-
vendo em direção à designação de status; tendo aumentado o número de
trabalhadores que realizavam atividades remuneradas de “porta adentro”
(mesmo na condição de cativos), os legisladores representantes do poder
público, que percebiam as mudanças conjunturais nas relações sociais de
trabalho, interfeririam nas relações intermediárias entre privado e públi-
co. Em Santa Catarina, por exemplo, em 8 de junho de 1883 foi decretado
o seguinte:
65
Albuquerque, Wlamyra R. de. O jogo de dissimulação: abolição e cidadania
negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
Tabela 5 – Anúncios de “procura-se” por doméstica
Total de anúncios 206
Anúncios sem especificação 50
Anúncios que fazem referência à cor
Preta 84 47,8%*
Parda 8 4,5%
Branca 18 10,2%
Qualquer cor 20 11,4%
Anúncios que fazem referência à condição
Escravo 18 10,2%
Livre 5 2,8%
Qualquer condição 20 11,4%
Outras especificações
Estrangeiro 3 1,7%
Aprendiz 2,2%
Alfabetizado 1 0,2%
Fonte: BN/RJ, Jornal Commercio, janeiro de 1873
Os percentuais foram computados a partir do total de 179 referências a cor, condição, nacionalidade, aprendizado e alfabetização
verificados em 156 anúncios.
66
Vide notas 7 e 27.
que se somam a outras mais específicas,67 não cabem no espaço de um ar-
tigo. Entretanto, propô-las enquanto reflexão, além de ratificar a propos-
ta deste trabalho – de chamar atenção para a complexidade dos mundos
do trabalho carioca nas últimas décadas do século XIX –, colabora com um
último exercício: tentar imaginar as possibilidades de escolhas do senhor
José Maria Fernandes a partir das circunstâncias.
Se levarmos em conta as preferências manifestadas pelos agenciadores
da Agência Portuguesa, as expectativas de experiência de trabalho tra-
zidas com a política de imigração e os números do Censo de 1872 – que
arrolou os trabalhadores estrangeiros entre aqueles empregados nas pro-
fissões mais qualificadas –, podemos supor que o estrangeiro branco era o
modelo de trabalhador que Fernandes procurava, afinal estes eram “civili-
zados”, peritos em sua arte. No entanto, sabendo que foi facultado às em-
preiteiras participar na política de imigração, sendo-lhes possível o recru-
tamento fora do país de braços estrangeiros e que o número de imigrantes
não atendia as demandas no início da década de 1870, é bem provável
que este “procurador” estivesse utilizando um periódico que circulava na
cidade do Rio de Janeiro para recrutar trabalhadores que lhe interessaria
entre os nacionais, demonstrando assim confiança na qualificação e, so-
bretudo, na adaptação do trabalhador nacional às novas relações de traba-
lho, no que se refere à capacidade técnica e à disciplina. Obviamente, pode
indicar simplesmente que ele ou a firma que ele representava não tinham
cacife para cobrir as despesas da imigração. Ou, ainda, que ele julgava ser
possível uma “repescagem” na qual pudesse localizar alguns daqueles tra-
balhadores imigrantes disponíveis na Praça do Rio de Janeiro.
Acreditando ser possível que José Maria Fernandes de fato confiasse
na qualidade do trabalho exercido pelo trabalhador nacional, ele poderia
estar interessado em que o anúncio que mandou publicar fosse lido por
vários indivíduos, afinal os jornais cumprem estes objetivos. Assim sen-
do, operando dentro da lógica do período, os cavouqueiros, pedreiros e
canteiros, que se apresentariam atendendo ao anúncio seriam indivíduos
de diversas cores, condições sociais e naturalidade que, aproveitando-
-se das oportunidades criadas, principalmente nas relações de trabalho,
adquiriram habilidades, enquadrando-se nessas categorias socioprofis-
sionais procuradas por esse contratador. Homens que poderiam em al-
gum momento de seu percurso histórico perceber a comunidade de seus
67
Pensar os papéis sociais dos diversos sujeitos que contribuíram na conformação do perfil das no-
vas classes de trabalhadores, que se “faziam” no Rio de Janeiro nas décadas finais do século XIX,
está entre os principais objetivos da minha tese de doutoramento. Interessa-me não só recuperar
aspectos da história do operariado, mas, sobretudo, lançar luz sobre o seu caráter heterogêneo e
sobre as interseccionalidades que permeavam as relações sociais em termos de classe, gênero e
raça. Com o título A negação da herança social. Africanos e crioulos no âmbito de uma economia
em expansão. Rio de Janeiro 1870-1900. O trabalho vem sendo desenvolvido junto ao programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Bahia, com bolsa concedida pelo Programa
Internacional de Bolsas de Pós-Graduação da Fundação Ford.
interesses, virem a se organizar e reivindicar junto ao senhor José Maria
Fernandes, ou a quem ele representasse, o alargamento de seus direitos.
Conclusão
68
Mattos, Marcelo Badaró. Escravizados e livres: experiências comuns na formação da casse operá-
ria trabalhadora carioca. Rio de Janeiro: Bom Texto, 2008. p. 211.
Segunda parte
A escravidão como negócio
A pesca da baleia na capitania do Rio de
Janeiro (século XVII)1
Camila Baptista Dias
Introdução
3
Sobre o período da União Ibérica e da Restauração portuguesa ver NOVAIS, Fernando. Portugal e o
Brasil na crise do antigo sistema colonial. São Paulo: HUCITEC, 1983.
4
Sobre esse assunto ler: RUSSELL-WOOD, A. J. R. Centro e periferia no mundo luso-brasileiro,
1500-1808. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n. 36, Dossiê Do Império Português ao
Império do Brasil, p. 187-249, 1998.
5
Sobre a importância do Rio de Janeiro ver BICALHO, Maria Fernanda. As Câmaras Municipais no
Império Português: o exemplo do Rio de Janeiro. Revista Brasileira de História, São Paulo, v. 18, n.
36, p. 251-280, 1998. p. 260.
6
Em Buzios, ainda hoje, são bem conhecidas as chamadas Praia da Armação e a Praia dos Ossos que
fazem referência justamente à pesca da Baleia. Para uma analise mais detalhada sobre a atividade
baleeira no litoral do Brasil no século XVII ver DIAS, Camila Baptista. A pesca da baleia no Brasil colo-
nial: contratos e contratadores do Rio de Janeiro no século XVII. Dissertação (Mestrado–Programa
de Pós-Graduação em História da UFF, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
Figura 9 – Atlas do Brasil, de autoria de João Teixeira Albernaz,
conhecido como “o Moço”, composto de 31 cartas, 1666.
Fonte: CRULS, Gastão. Aparências do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1949.
Original: Mapoteca do Ministério das Relações Exteriores, no Rio de Janeiro (original em cores)
Figura 10 – “Pesca da Baleia na Baía de Guanabara” (ca. 1785). Óleo sobre tela de Leandro Joaquim
(1738-1798)
Original: Museu Histórico Nacional (original em cores)
Apesar do progressivo desaparecimento da pesca da baleia no interior
da baia de Guanabara no século XVIII, Leandro Joaquim ainda reproduz a
imagem desta atividade na segunda metade do século.
Importante destacar que a cidade do Rio de Janeiro não perdeu sua im-
portância enquanto centro urbano que abrigava os contratadores e a exe-
cução de seus contratos, assim como a remessa dos produtos derivados da
pesca para Portugal e outras partes da colônia, mas o litoral da cidade dei-
xou de ser a principal área de concentração da pesca e do processamento.
A título de introdução é importante ainda destacar que as múltiplas
hierarquias existentes no Império português se estendiam dos indivídu-
os até os produtos, além das atividades desempenhadas. Assim, a prática
mercantil – que não era bem vista – ficava ainda mais degradada quando
vinculada a um produto considerado inferior para comercialização, como
era a carne de baleia. Porém, esse tipo de hierarquia, existente entre os
produtos derivados da baleia, não se reproduzia em termos contratuais, já
que o contrato como um todo não era desprezível em termos do montante
que movimentava. Mariza Soares toma de empréstimo a José Antonio
Maraval, em A cultura do barroco, a imagem de “zonas de sombra”7 para de-
signar os produtos agrícolas de menor prestígio no conjunto da economia
colonial, como o caso da produção e da circulação da farinha de mandioca,
aos quais os historiadores normalmente dão pouca importância, mas que
quando analisados atentamente, percebe-se que possuíam vital impor-
tância para a configuração da colônia.8 Essa abordagem mostra-se igual-
mente apropriada ao caso do beneficiamento dos derivados da baleia,
especialmente o chamado “óleo de peixe”, que substituía o azeite doce e
era também usado na iluminação e na construção; as barbatanas usadas
para confecção de bens de luxo como espartilhos e sombrinhas; e ainda
a carne, usada fresca ou salgada para alimentação da população colonial
em geral e de pobres e escravos em particular. Embora já comercializados
sob contrato, esses produtos têm sido recorrentemente desprezados nos
estudos sobre o período colonial e especialmente nos trabalhos sobre o
século XVII que priorizam a atividade açucareira e outros produtos como
cachaça, do tabaco, o sal, os vinhos, os panos, é importante melhor co-
nhecer a pesca e o beneficiamento da baleia na medida em que, como foi
dito no inicio deste capitulo, excluído o pau-brasil cujo monopólio data de
1502, todos os demais são posteriores ao monopólio da pesca da baleia
estabelecido em 1614.9
7
Ver SOARES, Mariza de Carvalho. O vinho e a farinha, ‘zonas de sombra’ na economia atlântica
no século XVII. In: SOUSA, Fernando de (Coord.). A companhia e as relações econômicas de Portugal
com o Brasil, a Inglaterra e a Rússia. Lisboa: CEPESE: Afrontamento, 2008. p. 215-232. Para Maraval
ver MARAVAL, José Antônio. Apêndice: objetivos sociopolíticos do emprego de meios visuais. In:
MARAVAL, José Antônio. A cultura do barroco. São Paulo: EdUSP, 1997. p. 389-405.
8
SOARES, op. cit., p. 215-232.
9
O primeiro contrato da baleia no Brasil data de 1602 e o monopólio de 1614.
A pesca da baleia no Brasil
19
ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos: EdUSP, 1969. p. 40-45.
20
MARTINEZ, Paulo Henrique. História e Meio Ambiente: estudo das formas de viver, sentir e pen-
sar o mundo natural na América portuguesa e no Império do Brasil (1500-1889). São Paulo: Ed.
UNESP, 2002. p. 41. Sobre a pesca em Niterói ver WEHRS, Carlos. Niterói, cidade sorriso: história
de um lugar. Niterói: [s.n.], 1984.
21
PESAVENTO, Fabio. Um pouco antes da Corte: a economia do Rio de Janeiro na segunda metade
do Setecentos. Tese(Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2009. Agradeço ao Professor Mauricio Abreu a informação de que a Ilha da
Baleia é a atual ilha do Mocanguê, próximo a Niterói e território pertencente à Marinha do Brasil.
22
ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos: EdUSP, 1969. p. 49-60.
Armação: Na Costa do Algarve chama-se Armação às redes, ganchos, fisgas
e outros aviamentos para a pescaria dos Atuns. Desde o Cabo de Santa
Maria até o de S. Vicente há, ou havia doze armaçoens, humas aparradas
das outras, nove das quaes são Del Rey, e as três da Rainha de Portugal, e
em todas ellas andão seus Feitores, e escrivaens, por cuja administração
corre os rendimentos desta pescaria. Os direitos, que aos reys se pagão,
são de dez peixes e sete, e os três ficão aos pescadores, e os reys são obri-
gados a por somente as redes. Cada armação parece huma feira; cada hua
delas não traz menos de setenta, ou oitenta homens de serviço com suas
barcas e caraveloens, para recolher, e levar o peixe, onde se há de dizimar,
e pagar os mais direitos; fora os Mercadores do Reyno, e de outros muytos
estrangeiros, que tratão nelle, e levão as suas terras. De todo o Algarve
acodem homens, e mulheres com seus filhos, e fazem suas cabanas por
toda a costa, onde estão as Armaçoens; e a gente comarca a lhe traz todo o
mantimento, e refresco necessário.23
Não se sabe o princípio deste contrato, que subsistia antes do ano de 1639,
porque, falecendo João Loureiro Coram, a 6 de outubro desta era, no as-
sento de seu óbito [...] se acha a disposição seguinte – Declarou em um
23
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de
Jesus, 1712-1728. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edicao/1>. v. 2, . p.
70.
24
SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza: recompilado dos vocabularios impressos
ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Typogra-
phia Lacerdina, 1813. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/2/pombeiro>.
Acesso em: 12 maio 2010.
codicilo, que se achou feito, se desse a seu sobrinho Miguel João, do monte
mor da sua fazenda, cem mil réis, por o haver servido alguns anos na ar-
mação das baleias.25
A mão de obra
Na segunda metade do século XVII, a mão de obra das fábricas era, ba-
sicamente, escrava e africana, não tendo sido possível avaliar a reconhe-
cida presença de indígenas nesta atividade. Os escravos africanos traba-
lhavam, preferencialmente, no beneficiamento da gordura da baleia e no
31
ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos: EdUSP, 1969. p. 129
32
Sobre o monopólio do sal ler ELLIS, Myriam. Monopólio do sal no Estado do Brasil, 1631-1800: con-
tribuição ao estudo do monopólio comercial português no Brasil. São Paulo: Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, 1955.
33
SCHWARTZ, Stuart B. Prata, açúcar e escravos: de como o Império restaurou Portugal. Revista
Tempo, Rio de Janeiro, v. 12, n. 24, 2008; FRAGOSO, João. Fidalgos e parentes de pretos: notas
sobre a nobreza principal da terra do Rio de Janeiro (1600-1750). In: FRAGOSO, João; SAMPAIO,
Antonio Carlos Jucá de; ALMEIDA, Carla (Org.). Conquistadores e negociantes: histórias de elites no
Antigo Regime nos trópicos. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 459.
corte de lenha nas matas, para alimentação das fornalhas. Segundo Ellis,
os escravos também podiam ser cortadores da baleia nas praias e aque-
les que conheciam previamente algum dos ofícios da atividade baleeira
conseguiam trabalhar como marujos, remadores ou timoneiros. Também
podiam trabalhar como lenhadores, pedreiros ou caldeireiros. Outra pro-
fissão que lhes competia era ser barbeiro, alfaiate e encarregado de tarefas
domésticas.34
Os trabalhos rudimentares e rotineiros de retalhamento da baleia, re-
moção de postas de carne gordura, tratamento das barbatanas, desmata-
mento e transporte de lenha, manejo e limpeza de caldeiras e apetrechos
necessários ao funcionamento da fábrica, derretimento da banha e cana-
lização do óleo para os reservatórios e posterior acondicionamento em
pipas, demonstram que os escravos africanos das armações enfrentaram
um cativeiro tão sacrificante quanto os das minas de ouro ou dos enge-
nhos de açúcar, muito embora fossem em número significativamente me-
nor do que os escravos que atuaram nessas atividades. Se é difícil avaliar o
número de escravos envolvidos na pesca e no beneficiamento da baleia no
século XVIII, a dificuldade é ainda maior para o século XVII, quando cer-
tamente pelo menos parte das atividades listadas deveria ainda ser reali-
zada por índios. Como mostra Ellis, neste setor o trabalho escravo esteve
ainda associado ao trabalho livre. O escravo foi usado fundamentalmente
nas atividades de beneficiamento, enquanto homens livres – não sabemos
ao certo em que proporções índios, negros/mulatos e brancos – se dedi-
cavam à pesca propriamente dita.35 Não há, na documentação disponível,
indicações dos motivos para a escolha de homens livres para a pesca e
escravos africanos e/ou indígenas para as atividades terrestres. O que se
sabe é que a maior participação dos africanos nas atividades baleeiras foi
na categoria de remeiro e, frequentemente – em substituição ao homem
livre – chegaram a timoneiros e, raras vezes, a arpoadores.36
A mão de obra remunerada era recrutada pelos administradores da
pesca junto às populações litorâneas de pescadores e pequenos agricul-
tores. Era solicitada principalmente para tripular as lanchas baleeiras. Na
falta de voluntários conhecedores da arte de capitanear as embarcações,
empunhar os remos ou o arpão, os administradores recorriam aos cárce-
res onde obtinham, com permissão das autoridades e as prerrogativas que
lhes conferia este comércio, a mão de obra necessária. No século XVIII os
administradores apelavam também para as cadeias públicas, locais onde
muitos baleeiros, tidos como desordeiros, iam parar. Solicitavam então às
34
ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos: EdUSP, 1969. p. 89.
35
Ibidem, p. 102.
36
Embora não existam trabalhos sobre o uso de africanos como barqueiros, essa atividade foi estu-
dada para o final do XVIII-XIX. Ver o uso de barqueiros africanos na Baía de Guanabara no século
XVIII em: BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: identidades africanas e conexões atlân-
ticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840). Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em
História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
autoridades a suspensão das penalidades para fazê-los regressar às arma-
ções. Baleeiros matriculados nas armações isentavam-se de recrutamento
dos serviços da ordenança, mas as milícias, em alguma condição não mui-
to clara, também forneciam trabalhadores para o contrato.37 Os homens
que exerciam atividades em terra recebiam salários variáveis, conforme
as suas aptidões, o tipo de trabalho, o tempo dispendido nos serviços e
as necessidades da armação. Era o caso dos tanoeiros ou ferreiros, feito-
res e outros empregados da atividade baleeira. Impossível saber em que
proporções esses trabalhadores eram escravos da própria armação, tra-
balhadores livres, recrutados compulsoriamente ou escravos alugados de
outros proprietários.
Sobre os trabalhadores remunerados na pesca da baleia Frei Vicente do
Salvador relata em 1627:
Gasta-se de soldadas com a gente que anda neste ministério, os dois me-
ses que dura a pescaria, oito mil cruzados, porque a cada arpoador se dá
quinhentos cruzados, e a menor soldada que se paga aos outros é de 30
mil-réis, fora comer, e beber de toda a gente; porém também é muito o pro-
veito, que se tira, porque de ordinário se matam 30 ou 40 baleias, e cada
uma dá 20 pipas de azeite pouco mais ou menos, conforme é a sua gran-
deza, e se vende cada uma das pipas a 18 ou 20 mil-réis, além do proveito
que se tira da carne magra da baleia, a qual fazem em cobros, e tassalhos,
e a salgam e põem a secar ao sol, e seca a metem em pipas, e vendem cada
uma por 12 ou 15 cruzados, e nisto se não ocupa a gente do azeite, que
são de ordinário 60 homens entre brancos e negros, os quais lhe são mais
afeiçoados que a nenhum outro peixe, e dizem que os purga, e faz sarar
de boubas, e de outras enfermidades, e frialdades, e os senhores, quando
eles vêm feridos das brigas, que fazem em suas bebedices, com este azeite
quente os curam, e saram melhor que com bálsamos.38
A tripulação que compunha a lancha que saía para a caça das baleias
era formada por seis remeiros, arpoador e timoneiro ou patrão do barco.
Arpoador e timoneiro eram os elementos mais importantes da baleeira –
nome pelo qual era conhecida a lancha. O êxito da pesca dependia da har-
monia e do equilíbrio da ação conjunta. A lancha de socorro transportava
o mesmo número de homens com exceção do arpoador. Prestava auxílio
à embarcação apresadora em apuros e removia a baleia para a terra, mas
esses números correspondem à atividade no século XVIII. Não são precisos
os números do século XVII, mas como a técnica da pesca não sofreu gran-
des mudanças ou inovações, acredita-se que as proporções desse comércio
no século XVIII devam ter sido alteradas principalmente no tratamento
em terra, assim como no número de equipes que saíam para o mar e não
na composição de cada equipe de baleeiros propriamente. As condições
climáticas também eram muito importantes. O mau tempo era favorável
à pesca da baleia, porque por conta do vento sul os animais tendiam a se
aproximar da costa. As condições eram piores quando faltava vento e a
caçada à baleia tinha de ser feita a remo. As lanchas de arpoar e de socorro
40
SOARES, Mariza de Carvalho. African barbers-surgeons in brazilian slave ports: a case study from Rio
de Janeiro. Paper presented at the Black Urban Atlantic Conference, University of Texas at Austin,
April 1-3, 2009.
41
PITTA, Sebastião da Rocha. História da América Portugueza desde o ano de mil quinhentos do seu
descobrimento até o de mil e setecentos e vinte e quatro. 2. ed. rev. e anotada por J. G. Góes. Lisboa:
Francisco Arthur da Silva, 1975.
moviam-se em círculo e efetuavam o cerco do animal. Cabia o arpoamento
à lancha que mais se aproximasse do cetáceo.42
Um curioso aspecto da pesca era o arpoamento do baleote. O filhote
costumava ser arpoado pela cauda e mantido vivo junto à proa, para ser-
vir de isca à baleia-mãe. Cuidavam os baleeiros de manter viva a cria para
não perder a presa. O baleote pertencia ao arpoador. Arpoar uma fêmea
acompanhada era sempre arriscado, o macho em geral lançava-se contra
a corda do arpão ou mesmo contra a baleeira.43 Morta a baleia, o maior
trabalho era mantê-la à tona e removê-la até a praia. Munido de corda e
facão, um homem pulava na água, seguido por um ou dois companheiros.
Iniciavam a penosa e arriscada tarefa de amarrar o corpo da baleia à frágil
embarcação. O feitor-mor controlava o conjunto das atividades distribuí
das entre feitores que tinham responsabilidades especificas: a pesca, a
fábrica, a armazenagem. O chamado “feitor da praia” supervisionava os
serviços de desmanche da baleia.44
42
ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos: EdUSP, 1969. p. 137.
43
COUTO, Carlos de Paula. Paleontologia brasileira: mamíferos. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1953.
44
ELLIS, op. cit., p. 136.
45
ELLIS, Myriam. A baleia no Brasil colonial. São Paulo: Melhoramentos: EdUSP, 1969. p. 121.
46
SOARES, Mariza de Carvalho. O vinho e a farinha, ‘zonas de sombra’ na economia atlântica no
século XVII. In: SOUSA, Fernando de (Coord.). A companhia e as relações econômicas de Portugal com
o Brasil, a Inglaterra e a Rússia. Lisboa: CEPESE: Afrontamento, 2008. p. 215-232. p. 227.
47
CAMARGO NETO, Fernão Pompêo de. O trato às margens do pacto. Tese (Doutorado)–Programa de
Pós-Graduação em Economia da UNICAMP, Campinas, SP, 2002. p. 204.
em tanques com água, onde permaneciam de molho. Depois de bem es-
fregadas e limpas eram postas ao sol para secar e, em seguida, armazena-
das para exportação rumo à Europa onde se completava o seu tratamento.
Na Europa, depois de separadas em lotes conforme o tamanho, fervidas
na água ou no próprio óleo da baleia para serem amolecidas, recortadas
no comprimento e na espessura, secas e raspadas, eram compradas pelas
manufaturas européias para a confecção de utensílios e de peças do vestu-
ário. Ao contrário da carne da baleia, a barbatana compunha, com o óleo,
um importante artigo de exportação européia, demonstrando que no in-
terior da própria atividade baleeira havia uma hierarquização entre seus
produtos, ou seja, enquanto a carne era um subproduto barato da pesca
da baleia, a barbatana e o óleo eram importantes para exportação, sendo
considerados artigos de luxo na Europa.
Descarregadas as lascas de gordura na fábrica, elas eram cortadas em
postas de cerca de um quilo para serem fundidas durante dez ou 12 ho-
ras. Segundo Ellis, os escravos transportavam a lenha e alimentavam as
fornalhas que aqueciam as caldeiras onde a gordura era derretida.48 Nos
tanques, o óleo de baleia sofria natural processo de decantação e os resí-
duos da primeira fusão eram aproveitados como combustíveis nas fer-
vuras posteriores enquanto a goma ou borra que se acumulava no fundo
daqueles compartimentos era usada para o preparo de argamassa para
construções. Amassada com cal, água e areia, aquela borra dava origem
a uma mistura impermeável, compacta e de significativa durabilidade,
muito usada nas construções da época como liga para pedras e tijolos.
Resíduos dessa gordura (como torresmos) eram recolhidos durante a ope-
ração, ou retirados dos ralos e do fundo das caldeiras e aproveitados para
iluminação.49 Após o rudimentar e precário processo de purificação, o óleo
de baleia era distribuído ao consumo e exportado em pipas ou barris para
Portugal. Conforme as suas dimensões, uma baleia produzia de dez a 30
pipas de óleo, o que equivale a uma média de 20 pipas por animal captura-
do; a pipa comum correspondia a, aproximadamente, 424 litros.50
A distribuição do óleo da baleia à população para iluminação de resi-
dências, engenhos e outros estabelecimentos, realizava-se por intermé-
dio de um entreposto ou armazém localizado na vila mais próxima, onde
os moradores se abasteciam. Era função dos antigos núcleos baleeiros
fornecer óleo de baleia para iluminação das capitanias onde estivessem
48
ELLIS, op. cit., p. 125.
49
ALMEIDA, Eduardo de Castro e (Org.). Inventário dos Documentos Relativos ao Brasil existentes
no Archivo da Marinha e Ultramar de Lisboa. In: ANNAES da Bibliotheca Nacional do Rio de Ja-
neiro. v. 39. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional, 1917.
50
SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil (1500-1820). 5. ed. São Paulo: Companhia Ed.
Nacional, 1969. v. 2, p. 345-346. A pipa comum, 424 litros, equivale a 300 canadas de Lisboa. A
pipa de conta no Rio de Janeiro (180 canadas do Rio de Janeiro) equivale a 480 litros. Canada ou
medida no Rio de Janeiro correspondem a quatro quartilhos, ou 2,662 litros. Segundo Tollenare,
na Bahia a pipa correspondia a 70 canadas (L TOLLENARE, L. F. Notas dominicais tomadas durante
uma viagem em Portugal e no Brasil em 1816, 1817 e 1818. Bahia: Progresso, 1958. p. 340).
instalados, especialmente das vilas costeiras, assim como de exportá-lo
para o Rio de Janeiro, sede da administração geral do contrato da pesca
da baleia.51 E a partir do século XVIII, por ordem régia, teriam as feitorias
baleeiras contribuído para o abastecimento de óleo das ribeiras das naus
do reino. Serviu-se ainda a metrópole do azeite de baleia beneficiado no
Brasil para o fornecimento das dezenas de saboarias que funcionavam em
todo o reino, onde o produto atendia não somente ao preparo do sabão,
de cuja composição participavam outras gorduras animais, como servia
também como combustível.
Iniciada a exploração comercial do óleo de baleia, o produto difundiu-
-se na colônia e o seu principal aproveitamento teria sido para atender
a iluminação. O óleo de baleia era amargo, espesso, impuro, rançoso e
até considerado de odor desagradável, mas também era econômico.
Destinaram-no, portanto, a fins menos requintados, mais rústicos e po-
pulares. Não sem motivo, foi considerado na Bahia, no século XVII, como
o “remédio dos engenhos”. O azeite de baleia beneficiado nas feitorias
brasileiras, rumo a Lisboa e ao Porto, não era mercadoria de fácil trans-
porte marítimo. Com frequência deteriorava-se durante a travessia do
Atlântico, de que resultava a sua decomposição nos reservatórios das fá-
bricas, razão porque parte das cargas destinadas a Lisboa era, comumen-
te, rejeitada e atirada ao mar. Em Portugal consumiam-no e o exportavam
para Castela, Açores e Madeira.52
Segundo Ellis, a capitania do Rio de Janeiro concentrou as atividades
baleeiras até por volta de 1730. Ou seja: a manufatura de óleo de baleia,
respectivo monopólio e contratos, confinaram-se à capitania. Usando da-
dos fornecidos pela historiadora, dentre os rendimentos auferidos pela
Fazenda Real do Rio de Janeiro, nessa época, alcançava o da pesca das
baleias o sexto lugar, isto é,
Conclusão
1
Ver o banco de dados The Trans-Atlantic Slave Trade Database, disponível em: <www.slavevoyages.
org/tast/index.faces>.
2
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, doravante BN/RJ, seção de manuscritos, II-34,26,19: Repre-
sentação dos proprietários, consignatários e armadores de resgate de escravos a Sua Alteza Real,
reclamando dos altos preços dos aluguéis cobrados pelos proprietários dos armazéns da Gamboa e
do Valongo, destinados ao desembarque e venda de escravos. Ver Cláudio HONORATO, Cláudio de
Paula. Valongo: o mercado de escravos do Rio de Janeiro, 1758-1831. Dissertação (Mestrado)–Pro-
grama de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. Segundo
dados do The Trans-Atlatinc Slave Trade Database, entre 1751 e 1830 entraram pelo porto do Rio
de Janeiro, 972.009 escravos novos. Florentino diz que no período de 1790-1830 desembarcaram
no porto do Rio de Janeiro 687305 escravos novos (FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas
Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos
XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 51). Karasch estima que entre 1800-1851
entraram no porto do Rio de Janeiro cerca de 900 a 950 mil africanos novo (KARASCH, Mary. A
vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 67, 513.
Desde o início do século XVIII, Minas Gerais importou grande parte
dos escravos africanos desembarcados no porto do Rio de Janeiro.3 Entre
1824 e 1830 a capitania/província de Minas Gerais absorveu 22,6% dos
escravos novos que entraram no porto carioca.4 No interior da capitania
do Rio de Janeiro foram três os mais importantes núcleos de demanda de
mão de obra africana. Desde o século XVII a cidade do Rio de Janeiro e o
recôncavo da Guanabara; principalmente a partir do século XVIII também
a região de Campos dos Goitacazes;5 e por fim, já no século XIX, a região
cafeeira do Vale do Paraíba.6 Na segunda metade do século XVIII, particu-
larmente a partir de 1763, quando a cidade do Rio de Janeiro passou a ser
a capital do Brasil e sede do vice-reinado, aumentou consideravelmente a
população da cidade, assim como a demanda por mão de obra e o movi-
mento do porto. A cidade tornou-se o maior centro comercial do Brasil.7
Entre 1760 e 1780, sua população cresceu 29%; entre 1799 e 1821, esse
índice foi ainda maior, alcançando o percentual de 160%. Em toda a capi-
tania e depois província, observa-se que a população passou de 169 mil
habitantes em 1789 para 591 mil em 1830, um crescimento de 250%.8
Não há dúvida de que a entrada de escravos africanos na cidade contri-
buiu sensivelmente para este aumento populacional. Segundo Karasch,
em 1834 os escravos representavam 57% da população urbana.9
3
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p.
38-39.
4
MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: a Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750-1808.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. p. 300-301. De acordo com o autor em 1786 os escravos re-
presentavam 47,9% da população total da capitania e em 1823 representavam 27%, p. 302. Cf.
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p.
39, 51; FRAGOSO, João; FERREIRA, Roberto. Alegrias e artimanhas de uma fonte seriada: os có-
dices 390, 421, 424 e 425: despachos de escravos e passaportes da Intendência de Policia da Corte,
1819-1833. In: FRAGOSO, João Luis (Coord.). Tráfico interno de escravos e relações comerciais no
Centro-Sul, séculos XVIII e XIX. Brasília, DF: IPEA; Rio de Janeiro: UFRJ, LIPHIS, 2000. 1 CDROM.
p. 7.
5
LARA, Sílvia Hunold. Campos de violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro,
1750-1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 134-139.
6
Em determinadas áreas dessa zona, a população passou de 292 habitantes em 1789 para 15.700
em 1840, um crescimento de cerca de 530%, sendo o café o grande responsável por essa grande
explosão demográfica, pois sua produção passou de 160 arrobas em 1792 para quase 2 milhões em
1830 e alcançaria o total de 3.237.190 em 1835 (FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras:
uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX).
Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 41; STEIN, Stanley J. Grandeza e decadência do café no
Vale do Paraíba. São Paulo: Brasiliense, 1961. p. 53).
7
CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: FLORENTINO, Mano-
lo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 22.
8
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p.
40.
9
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 111.
A esta altura o comércio de escravos africanos desembarcados no por-
to do Rio de Janeiro já era controlado por negociantes estabelecidos na
cidade, tendência que se acelerou depois de 1760. Como argumentam os
historiadores Manolo Florentino e João Fragoso, os negociantes envol-
vidos no comércio de escravos dispunham de recursos para aquisição ou
aluguel de embarcações e para a compra dos escravos a serem vendidos
na cidade, demonstrando que tal comércio exigia financiamentos vulto-
sos e crescentes, em particular entre 1790 e 1830. Embora caracterizada
por altos investimentos, comerciantes de menor porte também estiveram
vinculados a essa atividade, interessados nos lucros que ela podia pro-
porcionar.10 Se os grandes negociantes já têm sido estudados, existe ain-
da uma lacuna a ser preenchida para um melhor detalhamento do perfil
dos pequenos investidores e comerciantes que estiveram vinculados ao
comércio atlântico de escravos.11
Nesse comércio de grandes e pequenos havia muitos conflitos e diver-
gências entre consumidores, fornecedores e autoridades locais que, quase
sempre, acabavam em reclamações ao governador e até mesmo denúncias
ao próprio rei, como ocorreu no ano de 1722. Através de uma carta envia-
da ao rei de Portugal, um grupo de senhores de engenho e agricultores (de
comum acordo com os vereadores da cidade) denunciou alguns vendedo-
res de escravos. Segundo eles, esses pequenos negociantes “atravessam os
escravos que vem de Angola e Costa da Mina e mais partes donde costu-
mam vir para os revenderem ao povo, privando aos senhores de engenho
e lavradores de que os comprem”. Na verdade o que acontecia era que os
comerciantes localizados junto ao porto estavam mais bem informados
sobre a chegada das embarcações e os desembarques de escravos e logo
acorriam ao porto, e mesmo à bordo, onde compravam os melhores es-
cravos a melhor preço. Depois de trazidos para a cidade eram revendidos
como alegam a “preços exorbitantes” aos senhores de engenho. Essa com-
pra direta feita nas embarcações aos capitães antes do desembarque era
facilitada aos atravessadores, mas não aos compradores individuais, por
isso só restava aos senhores do Recôncavo a compra dos escravos nas ca-
sas comerciais da cidade ou nas mãos dos próprios atravessadores, onde
pagavam preços mais altos, e muitas vezes, se chegavam tarde, por escra-
vos de pior qualidade.12
10
FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 174, 206-208, 227, 356; FLORENTINO,
Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o
Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p. 115-116, 152-53,
148, 184.
11
Para um interessante estudo de caso ver: BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: identida-
des africanas e conexões atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840). Tese (Doutorado)–
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010. Cap. 3,
4.
12
CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: FLORENTINO, Mano-
lo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 41-2.
Num acordo entre a Câmara e o ouvidor geral, o desembargador José
de Siqueira tentou coibir a ação dos atravessadores estabelecendo que
“toda pessoa que atravessasse os ditos negros pagaria 50 cruzados [dois
contos de réis] e teria um mês de prisão”.13 Esta foi a primeira iniciativa
no sentido de coibir a ação desses atravessadores. Tudo indica não ter
o desembargador obtido o resultado esperado, pois em 1756, a Câmara
de Vereadores fez nova denúncia. A polêmica chegou ao rei de Portugal
que pediu ao governador do Rio de Janeiro, Gomes Freire de Andrade,
que emitisse seu parecer sobre o assunto. Antes de fazê-lo o governador
ouviu um dos maiores negociantes de escravos da praça, Antonio Pinto de
Miranda, que a pedido do mesmo emitiu parecer favorável aos “atraves-
sadores”. Em sua opinião eles eram de suma importância para o bom fun-
cionamento do comércio de escravos africanos da cidade, pois sem eles
seria maior o risco dos grandes negociantes, e maiores seus prejuízos. O
negociante afirma:
A venda dos escravos que vêm a esta cidade, não só de Angola e Costa de
Mina mas também transportados da Bahia e Pernambuco assim que che-
gam e são despachados na Alfândega, se faz pública e comum para todos
aqueles que o procuram ou querem comprar a fim de satisfazerem com o
seu produto não só os Direitos Reais mas também os fretes e letras que
se costuma passar sobre os ditos escravos. Entre este número de pessoas
sucede, e ao mesmo tempo, haver também outras que compram a dinheiro
e fiado para tornar a vender alguns daqueles que são bons, mas comumen-
te só fazem no resto da carregação, a que se chama refugo ou incapazes
de reterem pronta saída em razão do estabelecimento que tem cada um
destes na sua casa para custear e tratar deles [...], depois disto os vendem
por decurso de tempo a quem lhos procura na cidade a dinheiro e nos re-
côncavos dela aos senhores de engenho, lavradores e roceiros, para onde
os conduzem e vedem não só fiado mas também a troco dos seus efeitos
recebendo assim o prêmio de seu trabalho e risco a que se expõem quando
os juntaram na primeira mão. [...] não são poderosos os que se ocupam de
semelhante negociação, mas sim pobres que não têm outro modo de vida.
Destes compradores se não segue prejuízo a nenhum daqueles referidos
por público para todos a venda dos escravos, não só quando chegam mas
no dilatado tempo que sucede haver, repetidas vezes sem se poder ajustar
a conta de venda de qualquer carregação. Antes são convenientes e mui
úteis a este grande comércio semelhantes compradores, como meio eficaz
de se conservarem os comerciantes e traficantes dele, porque chegando a
esta com os ditos escravos tendo pronta saída nos mesmos, cuidam logo
em voltar ao resgate ou compra de outros e não tendo forçosamente se hão
13
Arquivo Histórico Ultramarino, doravante AHU, códice, 226. p. 249. Cf. CAVALCANTI, ibidem, p.
38.
de arruinar com a demora por causa da mortalidade que experimentam
por inseparáveis do seu tráfico a falta de comodidade de os custear.14
14
AHU, Avulsos, Rio de Janeiro, cx. 84, doc. 19.
e perderia a Real Fazenda de V. Majestade a maior parte da utilidade, que
tem nos Direitos, que os mesmos escravos produzem.15
15
AHU, Avulsos, Rio de Janeiro, cx. 84, doc. 19.
16
CAVALCANTI, Nireu. O comércio de escravos novos no Rio setecentista. In: FLORENTINO, Mano-
lo (Org.). Tráfico, cativeiro e liberdade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 41.
comércio de escravos na rua Direita era favorável aos compradores resi-
dentes na cidade, em detrimento dos senhores de engenho e lavradores
de cana do recôncavo que vinham de longe.
A manutenção ou transferência do mercado de escravos do centro para
a periferia da cidade tornou-se um tema polêmico devido aos múltiplos
interesses envolvidos. No intuito de buscar subsídios para a decisão – e
provavelmente sob pressão –, a 14 de janeiro de 1758, sob a presidência
do juiz de fora Antonio de Matos e Silva, os vereadores Frutuoso Pereira,
José Pacheco Vasconcelos, Miguel Cabral de Melo e Tomé de Gouveia Sá
Queiroga, convidaram os médicos Antonio Ferreira de Barros, Francisco
Correia Leal e Mateus Saraiva e os cirurgiões Antonio Luiz de França,
Antonio Mestre e Luiz Estevão para deliberarem sobre o “grande prejuízo
que causavam nesta cidade os escravos que estavam à venda pública pelas
principais ruas dela”, e ansiando por tomar alguma providência “que pu-
desse caber na sua jurisdição”.
Essa questão de controle sanitário e uso do espaço urbano era antiga
e foi mais uma vez reeditada. Argumentando “receio de contágio”, já em
1718, a Câmara requereu ao rei o privilégio de proceder a uma “visita da
saúde” em todos os navios vindos de Angola, Costa da Mina e São Tomé
que entravam no porto do Rio. Na ocasião, o rei concedeu tal privilégio e
ponderou ainda que a experiência comprovava que também as embarca-
ções que vinham da Bahia, Pernambuco e demais partes da Europa deve-
riam ser vistoriadas, por receio do mesmo inconveniente, pois já havia
sucedido em outras ocasiões introduzirem também elas vários “achan-
ques [sic] contagiosos”.17 Desse modo que, em 1758, em conjunto com
os vereadores, médicos e cirurgiões, foi reafirmada a preocupação com a
saúde dos moradores da cidade por ser “veemente suspeito o comércio tão
numeroso de negros que vinha em direitura da Costa da Guiné para este
país. Acordou-se, finalmente que:
17
AHU, Rio de Janeiro, códice, 225.
18
Para se considerar magotes ou ranchos dos ditos negros, bastava que se encontrassem juntos cin-
cos negros mesmo que fossem de donos diferentes (AHU, Rio de Janeiro, cx. 84, doc 19).
de São Diogo. O local escolhido foi o Valongo por ter acesso por mar e
por terra através do Caminho do Valongo (atual rua Camerino) que ia da
praia ao centro da cidade.19 Vencia a corrente que pretendia eliminar o
comércio de escravos no interior da cidade. Além disso, passou a haver
também maior controle sobre o movimento dos escravos na própria ci-
dade, especialmente no que toca aos comerciantes e atravessadores com
negócios em Minas Gerais. Os donos de escravos novos que desejassem
enviá-los para serem vendidos ou despachados mediante encomenda para
Minas Gerais, deveriam informar suas intenções ao Senado da Câmara no
prazo de 24 horas, após a compra; e no prazo de oito dias obrigatoriamen-
te retirá-los da cidade. Acrescia-se a essas medidas a proibição de levar os
escravos do Valongo para serem lavados no chafariz da Carioca, no centro
da cidade, alegando os distúrbios que provocavam e o perigo de contami-
nação dos usuários do chafariz e da própria água.20
A reação dos negociantes foi imediata. Entraram com recurso contes-
tando o edital e os argumentos da questão sanitária, tida como “falsa e
contrária à verdade” e, ignorando as determinações régias que datavam
de 1718, alegavam que tal comércio no centro da cidade era muito anti-
go: ali “sempre desembarcaram e venderam escravos novos, às portas dos
comerciantes sem que por esse motivo originasse moléstia alguma, nem
achaque contagioso”. Assim argumentam:
21
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, doravante AGCRJ - códice 6.1.9 – Autos de homens de
negócios e comerciantes de escravos, 1758-1768. p. 78-79.
o então local de comercialização era o ideal e não oferecia perigo algum de
contágio para os moradores da cidade. Além disso, alegavam que as em-
barcações sempre receberam a visita do médico da saúde, para a vistoria
rotineira, sem a qual o desembarque não era permitido, e que somente es-
cravos sem doença contagiosa eram autorizados a desembarcar. É possí-
vel que a tentativa de transferência do comércio de escravos novos para o
Valongo tenha relação direta com o objetivo de se extinguir o negócio dos
atravessadores, pois em meio a seus protestos os negociantes alegavam
que havia outras formas jurídicas de se punirem os atravessadores sem
com isso prejudicar os seus negócios. Uma parcela dos negociantes obe-
deceu às determinações do edital e transferiu suas lojas para o Valongo;
outros permaneceram, confiantes na decisão dos juízes do Tribunal da
Relação, favorável a seu recurso.
Em 1765, o Senado republicou o edital, dando com isso a entender que
a venda de escravos nas principais ruas da cidade continuaria, sendo que
o novo edital incluía também os negros pertencentes às companhias (que
vinham de Pernambuco, Bahia e Maranhão). Alguns negociantes de mé-
dio e grosso trato saíram em defesa do Edital, mas tal iniciativa não deu
resultado, pois a maioria dos desembargadores do Tribunal da Relação
votou a favor da permanência do comércio de escravos nas ruas centrais
da cidade. A decisão do Tribunal estaria supostamente baseada em de-
poimentos de médicos e cirurgiões que, de acordo com o Marquês do
Lavradio talvez tivessem sido subornados pelos negociantes. Na segunda
consulta declararam não ter o comércio de negros novos nenhuma relação
com as epidemias. Resta, portanto a suspeita de que esses profissionais
tenham dado seu parecer sob influência dos interesses dos comerciantes,
com a complacência do Tribunal da Relação. Essa suspeita baseia-se no
fato de que boa parte dos profissionais ouvidos – e que deram parecer
favorável aos negociantes – havia concordado com os vereadores sobre
o acórdão em 1758, através do qual ficou deliberado que o comércio de
escravos na área central da cidade era prejudicial à saúde pública e devia
ser removido.22
Nos depoimentos fornecidos em março de 1768, os médicos Antonio
Ferreira de Barros, Francisco Correa Leal e os cirurgiões Luiz de França,
Antonio Mestre, Francisco da Costa Brito e João da Silva Passos Cabral,
admitiram que trabalhavam para os negociantes de escravos novos, mui-
tos há 25 ou 30 anos, e por essa razão tinham experiência e vivência do
problema. Tanto em 1758, quanto em 1765, o físico Mateus Saraiva,
membro da Ordem de Cristo, cidadão da Cidade do Rio, físico-mor das
tropas reais, médico da Câmara e Saúde e sócio da Real Sociedade de
Ciência de Londres, se pronunciou contra os editais da Câmara e a favor
dos negociantes de escravos novos. Em 1758, declarou que era morador
22
Para mapas mostrando detalhes do Valongo e da rua Direita ver BARREIROS, Eduardo Canabrava.
Atlas da evolução urbana da cidade do Rio de Janeiro, 1565-1965. Rio de Janeiro: IHGB, 1965.
na rua Direita há 43 anos e que nunca havia chegado ao seu conhecimento
“nenhuma epidemia, moléstia por contágio do mal de Luanda (ou escor-
buto) introduzida na cidade por algum escravo vindo da costa da África,
nem por outra doença, ou bexiga”. Disse ainda que o escorbuto e a bexiga
não eram motivos de queixas dos “comboios no exame da visita da saú-
de”, nem no hospital militar e nem mesmo em Pernambuco e nos outros
principais portos do Brasil. Acrescentou ainda que nesses 43 anos jamais
tomara conhecimento de um surto de enfermidade resultante do contá-
gio oriundo dos escravos novos das casas de comércio da rua Direita. Em
1765 ele deu o seguinte depoimento:
Havia mais n’esta cidade o terrível costume de que todos os negros que
chegavam da costa d’África a este porto, logo que desembarcavam, entra-
vam para a cidade, vinha para as ruas públicas e principais dela, não só
cheios de infinitas moléstias [...] foi preciso ser eu muito constante na mi-
nha resolução, para que logo que dessem a sua entrada na Alfândega [...]
embarcassem para o sítio chamado Valongo, [...] ali se aproveitassem das
23
AHU, Rio de Janeiro, códice 225.
muitas casas e armazens que ali há para os terem; e que aqueles sitos [sic]
fossem as pessoas que os quisessem comprar[...].24
24
LAVRADIO, Marquês de. Relatório do Marques de Lavradio Vice-rei do Rio de Janeiro, entregando
o governo a Luiz de Vasconcelos e Souza, que o sucedeu no vice-reinado – 19 de jun. de 1779. Re-
vista do IHGB, Rio de Janeiro, t. 4, v. 4, n. 16, p. 452-453, 1843.
25
Ibidem.
em diante, enquanto El Rei Meu Senhor não mandar em contrário. Deus
guarde a vós mercê. Rio de Janeiro, 12 de abril de 1774.26
O Mercado do Valongo
26
AN/RJ, códice 70, v.7, p. 231.
27
MORAES FILHO, Mello. Festas e tradições populares do Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: F. Briguet & Cia,
1946. p. 405-412.
da Baia de Guanabara. Devido às dificuldades impostas à circulação de
mercadorias e pessoas por via terrestre, estimulou-se a utilização dos
transportes marítimos. Segundo Noronha Santos, a viagem do Valongo a
São Cristóvão ou Botafogo se fazia em bote, veleiro ou a remo, com várias
carreiras que disputavam a preferência dos viajantes,28 todas movimenta-
das por mão de obra escrava.
Os escravos que chegavam ao Valongo eram preparados para serem
expostos para venda à porta das casas ou geralmente nos quintais, no
fundo das casas. Os mais debilitados deviam receber cuidados alimenta-
res e médicos, o que lhes melhorava as condições de saúde e aumentava o
preço, no momento da venda. Essas casas eram chamadas “barracões”.29
Algumas eram pequenas, mas muitas podiam chegar a acomodar de 300
a 400 escravos, consideradas verdadeiros “palácios”.30 No andar superior
geralmente morava o proprietário (ou locatário) com sua família e embai-
xo ficavam os escravos. Através dos registros nos livros da Décima Urbana
pode-se comprovar que grande parte dos imóveis ali localizados eram so-
brados e lojas comerciais, em sua maioria alugados31 (Tabela 3). O andar
térreo era adaptado para a exposição dos escravos e mantido sem paredes
internas, como um salão, uns maiores outros menores, conforme o tama-
nho do sobrado, o que permitia avaliações tão dispares. O salão que ia até
o quintal dos fundos, onde outros escravos permaneciam no chão ou em
bancos, muitas vezes expostos ao sol e à chuva. Por sua insalubridade as
casas necessitavam de constantes lavagens e a proximidade com o mar
proporcionava também um bom arejamento das casas.32
28
SANTOS, Francisco Agenor. As freguesias do Rio antigo vistas por Noronha Santos. O Cruzeiro,
Rio de Janeiro, p. 257-268, 1965; HONORATO, Cláudio de Paula. Valongo: o mercado de escravos
do Rio de Janeiro, 1758-1831. Dissertação (Mestrado)–Programa de Pós-Graduação em História,
Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2008. p. 33-34; BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da
escravidão: identidades africanas e conexões atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840).
Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Ni-
terói, 2010.
29
EBEL, Ernest. O Rio de Janeiro e seus arredores em 1824. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1972.
p. 42.
30
SCHICHTHORST, Carl. O Rio de Janeiro como é (1824-1825). Brasília, DF: Senado Federal, 2000. p.
136.
31
No período consultado (1808-1813) a rua do Valongo está registrada na freguesia da Sé. Após esse
período, segundo Nireu Cavalcanti, os fiscais passam a registrá-la na freguesia de Santa Rita. Ca-
valcanti, 2004: 265. Conforme os livros de Décima Urbana existiam ainda casas térreas, terrenos
sem construção e casas em ruínas. AGCRJ. Décima Urbana (1809-1831), Freguesias São José, Sé e
Engenho Velho. Em 1809 havia no Valongo 91 imóveis em 1831 eles chegavam 822. Ver quadro 2.
32
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo: Companhia das
Letras, 2000. p. 75-76.
Para uma melhor compreensão do perfil dos imóveis da Rua do
Valongo a Décima Urbana apresenta os seguintes números para os anos
entre 1809 e 1831.33
34
CAVALCANTI, Nireu. O Rio de Janeiro dos Setecentos: a vida e a construção a cidade da invasão
francesa até a chegada da Corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 276.
35
FRAGOSO, João. Homens de grossa aventura: acumulação e hierarquia na praça mercantil do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998.
Todos os relatos dos viajantes são, sem dúvida, pautados por senti-
mentos eurocêntricos, seguem o pensamento cientificista e evolucionista,
defendem a superioridade da civilização européia, e tantos outros princí-
pios já analisados pela historiografia.36 Um exemplo dos mais contunden-
tes desse olhar aparece em Freireyss, naturalista alemão que esteve no
Brasil em expedições cientificas por Minas Gerais, Bahia, Espírito Santo
e Rio de Janeiro entre 1814 e 1815. Ele descreve um escravo do Valongo
dizendo: “um negro assim, nu e que com a curiosidade do macaco tudo
observa, parece muito mais próximo ao orangotango do que o europeu
e acredito que assim o seja”.37 Interessante notar que no caso era ele, o
viajante, que observava o escravo e de sua observação extraía sua conclu-
são. Por outro lado, deixa perceber que o escravo, por sua vez, também o
observava. Infelizmente o que o escravo pensou do viajante curioso não
foi registrado por nenhuma fonte de época. Entretanto, para além de suas
opiniões, os viajantes também deixaram em seus relatos informações pre-
ciosas para a tentativa de reconstituição desse espaço.
O viajante inglês Charles Brand assim descreveu a situação dos escra-
vos novos no Valongo.
39
GRAHAM, Maria D. Diário de uma viagem ao Brasil e de uma estada nesse país durante os anos de 1821,
1822 e 1823. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1990. p. 188-254.
comum disposição para catarata, é o que mais se receia nessas compras.
Feita a escolha, é determinado o preço da compra, que aqui monta entre
trezentos e cinquenta a setecentos florins por um negro saudável, viril; o
vendedor em geral fica responsável ainda por prazo de quinze dias, caso se
descobrirem quaisquer defeitos físicos. O comprador leva consigo então a
sua aquisição que, segundo a necessidade, ele destina para artesão, toca-
dor de mulas ou criado.40
Entre os escravos importados há, portanto, três quartas partes mais ho-
mens e entre os 40.000, admitidos como importação anual, há apenas
10.000 homens e mulheres adultos; todos os mais são crianças em diver-
sas idades, muitas vezes até nascidas durante a viagem; geralmente po-
rém de 8 – 10 anos. Acontece também haver entre eles mulatos, filhos de
pais brancos na África. Sendo visto que os negros selvagens trocam seus
filhos por espingardas, machados, facas, etc., como não se tornar então
horroroso quando se pensa, que há cristãos tão desgraçados que vendem
por algumas moedas os filhos que tem com suas escravas e, todavia, este
fato tão vulgar, que no Brasil e para vergonha da humanidade se reproduz
diariamente. 41
46
De acordo com Rodrigo Naves, na obra e Viagem Pitoresca através do Brasil, Rugendas litografou
apenas duas pranchas de seu livro, e outros 22 litógrafos participaram da obra, o que lhe confere
inclusive uma grande variação, de estilos e qualidade. Como os desenhos originais do artista não se
encontram a disposição para um cotejo, resta analisar o que temos, levando em conta que, embora
tenha havido infidelidades na passagem dos desenhos para as litografias, Rugendas afinal aprovou
a obra, o que nos revela muito de sua concepção. Mas seus registros não perdem por isso o valor
documental Cf. Newton Carneiro, 1979, p. 33-36 apud NAVES, Rodrigo. A forma difícil: ensaios
sobre a arte brasileira. Rio de Janeiro: Ática, 1997. p. 129.
47
RUGENDAS, Johann M. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Edusp: Martins, 1972. p. 175.
Segundo ele, mesmo assim, os escravos são mais bem tratados nesses
mercados que durante a travessia, por isso raramente se queixam, e são
mesmo vistos de cócoras ao redor do fogo, entoando cantos monótonos e
barulhentos que acompanham com as mãos. Inquietos para conhecer seu
destino, explodem em alegria quando são comprados e acompanham com
prazer os seus novos senhores.48 Essa impressão possivelmente resulta do
fato de que os africanos conheciam a escravidão e de algum modo sabiam,
ou esperavam, que o dia a dia nas mãos de um único senhor fosse mais
fácil que o deslocamento até o momento da venda final.
Visitando o Rio em 1792, Lord Macartney calculava em 5 mil o número
de escravos vendidos anualmente no Valongo, ao preço médio de vinte
libras esterlinas cada.49 Em 1817, o Valongo já contava com 20 grandes lo-
jas comerciais, usadas como depósito ou armazém de escravos. Em 1826,
MacDowall50 calculou existirem no Valongo 50 salas com cerca de dois mil
escravos para a venda. Ao comparamos os relatos desses dois viajantes
com a Tabela 3, percebemos que há uma disparidade entre esses números,
muito embora não existam números para 1817 e 1826, mas se olharmos
para os anos seguintes veremos: em 1818, os fiscais da Décima Urbana
registraram para a região do Valongo, sete lojas com sótão, 89 lojas e 15
sobrados com loja; e em 1827, registraram, 15 sobrados, uma loja com
sótão, 201 lojas e 55 sobrados com lojas. Portanto, ao levarmos em con-
ta as palavras de Mello Morais Filho, afirmando que metade das casa da
região do Valongo era destinada a venda de escravos, então teremos em
1818, um total de 111 imóveis. Nesse caso 55 casas seriam armazéns de
escravos, mais que o dobro do que o declarado pelo viajante 1817. Em
1827, este numero é ainda maior: um total de 272 imóveis portanto se-
riam 136 os possíveis armazéns de venda de escravos. Em 1817, entraram
no porto do Rio de Janeiro 17.670 escravos. Em 1826, esse numero foi
de 35.540.51 Mesmo sabendo da possibilidade de que boa parte desses
escravos pudesse ser vendida imediatamente após a chegada dos navios,
teremos um número muito alto de escravos para que fossem comportados
em tão poucas casas. Sabemos por meio da fala do próprio Marques do
Lavradio, em 1774,52 de que todos os escravos deveriam ser desembarca-
dos no Valongo. Em 1810, essa informação é confirmada pelos próprios
negociantes de escravos:
48
“Essa situação por mais que desagradável que possa ser, parece-lhes realmente suave depois dos so-
frimentos da travessia. Isso explica porque não se mostram os negros infelizes nestes mercados.”
(RUGENDAS, Johann M. Viagem pitoresca através do Brasil. São Paulo: Edusp: Martins, 1972. p. 175).
49
GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. 5. ed. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000. p. 150.
50
MacDowall apud KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro (1808-1850). São Paulo:
Companhia das Letras, 2000. p. 75.
51
FLORENTINO, Manolo Garcia. Em Costas Negras: uma história do tráfico atlântico de escravos
entre a África e o Rio de Janeiro (séculos XVIII e XIX). Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1995. p.
51, 218.
52
AN/RJ, códice 70, v.7, p. 231.
[...] os representantes são obrigados pela visita da saúde a desembarcarem
as armações inteiras em um armazém da Gamboa a titulo de lazareto para
se pagarem aos proprietários do dito armazém, quatrocentos réis por cada
um por entrarem nele, serem lavados, e vestidos de novo para saírem para
os outros do Valongo, lugar destinado a venda deles [...].53
Outro fato que temos de levar em conta é que em 1826 dá-se inicio ao
período de alta do tráfico, devido a perspectiva de seu fim por causa das
pressões inglesas,54 aumentou o volume de entrada de africanos novos no
porto carioca e com isso aumentou a demanda também de armazéns para
colocá-los a venda, Muito embora os fiscais da Décima Urbana tenham re-
gistrado todos os imóveis como prédio, seu número total quase triplicou
em 1831. Portanto, é possível que estes viajantes estivessem se referin-
do somente a rua do Valongo, pois percebemos isso nos relatos de Maria
Graham, assim como nos de Debret. Quando os vereadores lançaram o
primeiro edital em 1758, citaram a região do Valongo, que compreen
dia toda a rua da Prainha, mais as encostas do Morro da Conceição e
Livramento – a rua do Valongo tinha sido recentemente aberta foi sendo
também ocupada.55
Com base nos registros da Alfândega e nos relatos dos viajantes po-
demos ter uma visão da faixa etária dos africanos comercializados no
Valongo. Geralmente eram do sexo masculino e de idade entre 10 e 24
anos. Somente os maiores de três anos pagavam imposto na Alfândega,
mas todos eram registrados. Para crianças de colo usava-se o termo “cria
de peito”, crianças maiores que já andavam eram registradas como “cria
de pé”. Segundo Herbert Klein “havia crianças em 28% dos 351 navios
negreiros que atracavam entre 1795 e 1811”,56 informações adicionais so-
bre importações de escravos de Angola comprovavam os dados do autor.
Todos os viajantes que visitaram o mercado no período até 1830 confir-
mam esta afirmação.
53
BN/RJ, seção de manuscritos, II-34,26,19. Representação dos proprietários, consignatários e ar-
madores de resgate de escravos a Sua Alteza Real, reclamando dos altos preços dos alugueis co-
brados pelos proprietários dos armazéns da Gamboa e do Valongo, destinados ao desembarque e
venda de escravos.
54
RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: proposta e experiências no final do trafico de africanos para
o Brasil (1808 – 1850). Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2000. p. 97-119; BETHELL, Leslie. A abolição do
tráfico de escravos no Brasil, 1807-1869. Rio de Janeiro: Expressão Cultural, 1976. p. 69; PIRES, Ana
Flávia Cicchelli. Tráfico ilegal de escravos: os caminhos que levam a Cabinda. Dissertação (Mestrado)–
Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006.
55
AHU, Avulsos, Rio de Janeiro, cx. 84, doc 19. Segundo o Marquês do Lavradio o Valongo correspon-
dia à região entre a Pedra da Prainha (Pedra do Sal) até a Gamboa. AN/RJ, códice 70, v.7, p. 231.
Essa região depois passa a ser chamada da Saúde em função da Capela de Nossa Senhora da Saúde,
denominação que prevaleceu após 1870. Nos livros de Décima Urbana os fiscais registraram: Va-
longo Praia, Valongo Morro, Valonguinho e rua do Valongo. AGCRJ. Livros de Décima Urbana as
Freguesias São José, Sé, Santa Rita e parte do Engenho Velho, 1808 a 1831.
56
KLEIN, Herbert S. O comércio Atlântico de Escravos: quatro séculos de comércio esclavagista. Lisboa:
Replicação, 2002. p. 543.
Portanto, observa-se que a maioria dos negros novos comercializados
no Valongo era do sexo masculino, com menos de 20 anos. Entretanto, os
relatos dos viajantes nos permitem perceber que muitos dos cativos em
exposição tinham menos de dez anos, e a maioria não mais de 15. Manolo
Florentino constatou que entre os africanos desembarcados no Valongo
entre 1822 e 1833, havia um enorme desequilíbrio sexual e etário: cerca
de 3,2 homens para cada mulher, proporção que, excluídas as crianças,
chegava 3,4 homens para cada mulher. As crianças, por sua vez, chegaram
a alcançar 20% de toda a escravaria importada, com maior peso entre os
homens,57 como mostra a Tabela 2.
Conclusão
3
Nas obras historiográficas dedicadas à escravidão no Rio de Janeiro oitocentista, os pombeiros são
citados apenas pontualmente. Há referências em documentos nos trabalhos de SOARES, Carlos
Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Cam-
pinas, SP: Ed. Unicamp, 2002; FARIAS, Juliana Barreto et al. Cidades negras: africanos, crioulos e
espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. 2. ed. São Paulo: Alameda, 2008. p. 45. Para
outras cidades brasileiras, há citações para Recife no trabalho de SILVA, Luiz Geraldo. A faina,
a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre as gentes do mar (sécs. XVII ao XIX). São Paulo:
Papirus, 2001. p. 91. Já na região sul, as análises são mais acuradas. Para a capital gaúcha no sécu-
lo XIX, temos o artigo recente de ALADRÉN, Gabriel, Ratoneiros, formigueiros e atravessadores:
trabalho e experiências sociais de libertos em Porto Alegre nas primeiras décadas do século XIX.
In: MATTOS, Marcelo Badaró (Org.). Faces do trabalho: escravizados e livres. Niterói: EdUFF, 2010.
No prelo. E para Santa Catarina, os trabalhos de: CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em
desterro: experiências de populações de origem africana em Florianópolis, 1860/1888. Tese (Dou-
torado)– Programa de Pós-Graduação em História, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
São Paulo, 2004; SILVA, Haroldo Sillis Mendes da. Carroceiros, quitandeiras, marinheiros, pombeiros
e outras agências: trabalho e sobrevivência de africanos e afrodescendentes em Desterro na década
da abolição. Monografia de bacharelado defendida junto ao Departamento de História da UESC,
Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2001; SANTIAGO, Carina dos Santos.
Um lugar chamado Figueira: experiências de africanos e afrodescendentes nas duas últimas décadas
do século XIX. Monografia de bacharelado apresentada ao Departamento de História, Universida-
de do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2005.
4
Esses três escravos foram descritos como pombeiros nos anúncios de fuga publicados por seus se-
nhores. Cf. Diário do Rio de Janeiro, outubro, 1830; 6 de julho de 1835 e 12 de fevereiro de 1845.
5
Arquivo Nacional, Códices “Polícia da Corte” (1808-1842), acessados em Movimentação de portu-
gueses no Brasil (1808-1842), disponível em: <http://www.arquivonacional.gov.br/cgi/cgilua.exe/
sys/start.htm>; acesso em: 12 maio 2010.
Investigar essas questões é justamente um dos objetivos deste artigo.
Embora esses mercadores ambulantes ainda continuem praticamente au-
sentes dos estudos históricos sobre o Rio de Janeiro oitocentista, diver-
sos documentos, entre os quais licenças para comércio de peixe, abaixo-
-assinados, requerimentos e relatórios de fiscais apresentados à Câmara
Municipal, revelam diferentes faces de seu trabalho, suas trajetórias e
conflitos. Assim, pretendo tanto avaliar a composição étnica, as formas
de identificação e organização desses trabalhadores na corte imperial,
como examinar as disputas em que estiveram envolvidos desde pelo me-
nos o século XVIII.
6
BAL, Willy, Portugais pombeiro ‘Comerçant Ambulant do ‘Sertão’. Afro-Romantica Studia, [S.l.], v.
1, p. 82-84, 1979; MILLER, Joseph C. Way of death: merchant capitalism and the Angolan Slave
Trade, 1730-1830. Madison: The University of Wisconsin Press, 1988. p. 189-190. Citados em: ZE-
RON, Carlos Alberto. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de escravos na África. In:
COLLOQUE PASSEURS CULTURELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997,
Lisboa. Actes... Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 16.
7
Olfert Dapper, Naukeurige des Afrkaensche Gewesten, Amsterdam, 1668, p. 593 apud ZERON, Car-
los Alberto. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de escravos na África. In: COLLO-
QUE PASSEURS CULTURELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997, Lisboa.
Actes... Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 21.
diziam que os portugueses chamavam de pombeiros os “escravos crioulos”
que partiam dali para comprar e catequizar negros.8
Seja como for, desde o século XVI a expressão nomeava agenciadores ne-
gros, mestiços e brancos que percorriam o interior da África, comprando es-
cravos e mercadorias de chefes locais. De Benguela ou Luanda, eles partiam
para as regiões ao norte de Angola e do Congo, acompanhados de carregadores
de tecidos e bebidas – produtos que usavam nas trocas. Quando retornavam
ao litoral, traziam na bagagem cativos, marfim, cera, goma, copal, urzela, gado
e mantimentos. Dali, boa parte dos carregamentos seguia para as Américas.9
Segundo Dapper, alguns chegavam a ter sob seu comando mais de cem es-
cravos transportando os produtos sobre suas cabeças. Às vezes, as viagens le-
vavam até dois anos. E os pombeiros mais fiéis nem retornavam: do interior,
continuavam mandando homens e mulheres escravizados para seus donos,
enquanto estes lhes remetiam novas mercadorias.10
Como destaca Jaime Rodrigues, as relações entre esses mercadores e os
comerciantes da costa dependiam de muita confiança. Nada garantia que,
uma vez abastecido, o pombeiro regressasse com as encomendas. Num ofício
de 1632, por exemplo, Fernão de Sousa, governador de Angola, comunicou a
El-Rei de Portugal que alguns escravos “resgatadores ou compradores” ficavam
com a fazenda de seus senhores, “movidos com o interesse da liberdade e cobi-
ça das fazendas, [...], e a tudo se atrevem por se verem tão ausentes de seus se-
nhores; e nisto recebem muito grandes perdas para os homens de negócio”.11
8
BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez & latino. Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de
Jesus, 1712-1728. v. 6, p. 588-590. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/edi-
cao/1>. Acesso em: 12 maio 2010, Jaime Rodrigues assinala que as indicações de outros estudiosos
vão no mesmo sentido. Em 1799, o “copiador de Angola” anotou que pombeiro era um “vocábulo
derivado de Pumbo ou Pombo, antiga feira de escravos do Congo”. Cf. ALMEIDA, Pedro Ramos
de. Portugal e a escravatura na África: cronologia (sécs. XVI-XX). Lisboa: Imprensa Universitária:
Estampa, 1978. p. 67. Já Afonso d’E. Taunay afirmava que a expressão procede de “Pombo ou
Mpumbu, onde viviam as Bavumbus em Quicongo”. (TAUNAY, Afonso d’E. Subsídios para a história
do tráfico africano no Brasil. São Paulo: IMESP, 1941. p. 111). Citados em: RODRIGUES, Jaime. De
costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negreiro de Angola ao Rio de Janei-
ro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 337.
9
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos, marinheiros e intermediários do tráfico negrei-
ro de Angola ao Rio de Janeiro (1780-1860). São Paulo: Companhia das Letras, 2005. p. 98-99.
Ver também os trabalhos de Beatrix Heintze, como por exemplo Pioneiros africanos: caravanas
de carregadores na África Centro-Ocidental (entre 1850 e 1890). Lisboa: Caminho; Luanda: Nzi-
la, 2004 HEINTZE, Beatrix. Long distance caravans and communication beyond the Kwango
(c. 1850-1890). In: HEINTZE, Beatrix; OPPEN, Achim von (Ed.). Angola on the move: transport
routes,communications = Angola em movimento: vias de transporte, comunicação e história. Frank-
furt am Main: Lembeck, 2008. Neste mesmo volume, ver também o artigo de CANDIDO, Mariana
P. Trade, slavery and migration in the interior of Benguela: The case of Caconda, 1830-1870. In:
HEINTZE, Beatrix; OPPEN, Achim von (Ed.). Angola on the move: transport routes,communications
= Angola em movimento: vias de transporte, comunicação e história. Frankfurt: Lembeck, 2008.
10
Dapper, citado em ZERON, Carlos Alberto. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de
escravos na África. In: COLLOQUE PASSEURS CULTURELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS
(PORTUGAL), 1997, Lisboa. Actes... Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 21.
11
“Relação de Fernão de Souza a El-Rei”, 23/12/1632, MMA, VIII, p. 243 apud ZERON, Carlos Alber-
to. Pombeiros e tangosmaos, intermediários do tráfico de escravos na África. In: COLLOQUE PAS-
SEURS CULTURELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997, Lisboa. Actes...
Lisboa: Fundação Callouste Gulbenkian, 1998. p. 29.
Além do mais, suas caravanas corriam riscos em meio às condições físicas ad-
versas e os combates que assolavam as áreas atravessadas.12
Por isso mesmo, esses agenciadores se destacavam por certas qualidades,
como astúcia, sutileza e habilidade retórica. Ainda que quase sempre fossem
marginalizados pela sociedade portuguesa, o conhecimento que detinham
sobre o “sertão” africano, seus povos e costumes, rotas e caminhos os torna-
va poderosos. Percorrendo lugares muitas vezes interditados aos funcioná-
rios da Coroa, criavam hábitos de comércio regular. E ainda permitiam que
as conquistas estabelecidas no litoral sobrevivessem como pontos de trocas
comerciais abastecidos pelo interior através de suas ações. Se, por qualquer
motivo, as caravanas de pumbagem escasseavam e os produtos trocados desa-
pareciam, os povos interioranos achavam meios alternativos para comerciar e
continuar exportando cativos. Assim, mesmo que constantemente estivesse
no centro dos problemas, o pombeiro tornava-se fundamental para a domina-
ção portuguesa exercida sobre Angola.13
Só que suas estratégicas de negociação e movimentação tanto produziam
tensões constantes entre portugueses e africanos do interior, como acirravam
conflitos entre administradores da metrópole e colonos brancos e mestiços
ligados ao tráfico negreiro. Sabendo da importância que tinham nesse circuito,
os pombeiros luso-africanos acabavam ascendendo a postos militares e admi-
nistrativos a partir da Câmara Municipal de Luanda e angariavam um con-
junto de benefícios que os tornava prioritários no comércio negreiro. Mesmo
aqueles que não alcançavam tais posições negociavam vantagens com os ocu-
pantes dos cargos, formando uma espécie de “‘aristocracia’ negra e mestiça
que vivia nas regiões dominadas pelos portugueses e que enriquecera atra-
vés do envolvimento no tráfico e de exploração do trabalho escravo em
terras de sua propriedade”.14
E nem mesmo a perspectiva de extinção do comércio transatlântico de
escravos ou do tráfico ilegal diminuiu a atividade desses agenciadores. Em
12
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos e tripulantes no tráfico negreiro (Angola – Rio de
Janeiro, 1780-1860). Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universida-
de de Campinas, Campinas, SP, 2000. p. 99; Dapper apud ZERON, Carlos Alberto. Pombeiros e
tangosmaos, intermediários do tráfico de escravos na África. In: COLLOQUE PASSEURS CULTU-
RELS – MEDIADORES CULTURAIS, LAGOS (PORTUGAL), 1997, Lisboa. Actes... Lisboa: Fundação
Callouste Gulbenkian, 1998. p. 21.
13
RODRIGUES, Jaime. De costa a costa: escravos e tripulantes no tráfico negreiro (Angola – Rio de
Janeiro, 1780-1860). Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de
Campinas, Campinas, SP, 2000. p. 103.
14
Ibidem, p. 101. Segundo a historiadora Jill Dias, “estes indivíduos constituíam a elite de uma mi-
noria de agricultores-comerciantes, negociantes e artesãos que haviam emergido em resposta ao
crescimento de Luanda como centro administrativo do tráfico de escravos”, concentrando-se nas
proximidades dos rios Bengo e Dande e “nas comunidades comerciais luso-mbundo das regiões do
baixo Kwanza e Lukala, onde a maioria possuía terras independentes da autoridade dos sobas e
dos anciãos das linhagens” e ampliaram sua influência especialmente a partir da década de 1830
(DIAS, Jill. Mudanças no padrão de poder no ‘hinterland’ de Luanda: o impacto da colonização so-
bre os mbundu (c.1845-1940). Penélope, [S.l.], v. 14, p. 43-91, dez. 1994). Cf. RODRIGUES, Jaime.
De costa a costa: escravos e tripulantes no tráfico negreiro (Angola – Rio de Janeiro, 1780-1860).
Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade de Campinas, Campi-
nas, SP, 2000. p. 338, nota 19.
meados do século XVIII, algumas medidas tomadas pelo governo de Angola
– seguindo diretrizes pombalinas para o controle do comércio na região – ten-
taram coibir sua atuação. Contudo, como é possível perceber em memórias
e fontes oficiais de períodos posteriores, eles ainda continuaram com suas
negociações nas primeiras décadas do Oitocentos.15 Além disso, conforme
destaca Willy Bal, a palavra pombeiro não ficou circunscrita à sua área de ori-
gem, generalizando-se pela África portuguesa e chegando até o Brasil, “onde
o comércio se praticava em condições análogas”. Só que aqui ganhou novos
contornos.
No Rio de Janeiro, localizei referências à presença de pombeiros já no sé-
culo XVIII, em relatos de cronistas, ofícios e relatórios do Senado da Câmara.
Em 1780, por exemplo, vendeiros de peixe estabelecidos com bancas próprias
nas marinhas da cidade enviaram uma petição à Câmara, solicitando mudan-
ças no pagamento do foro para ocupação daquele terreno. Ao final da súpli-
ca, pediam que novas licenças fossem concedidas “somente para venderem o
peixe ao povo nas bancas destinadas sem que se admitam atravessadores, e
pombeiros, ficando sujeitos à condenação da Postura”.16 Antes disso, porém,
os senadores já haviam tomado providências para defender o público desses
“atravessadores gananciosos”.
Segundo o cronista Vivaldo Coaracy, em Memórias da Cidade do Rio de
Janeiro, eles pediram a Gomes Freire a necessária licença – já que as terras
eram da Coroa – para construir uma casa para o almotacé se encarregar de
fiscalizar a venda do pescado na Praia do Peixe. Na época, a praia – que no
século XIX abrigaria a Praça do Mercado da cidade – compreendia toda a face
do terreiro do Carmo (depois chamado de Largo do Paço) voltada para o mar.
E, de acordo com Coaracy, estava tomada por bancas de peixe, onde comercia-
vam os pombeiros, “intermediários que se atravessavam entre os pescadores
e o consumidor, como sempre acontece no comércio de todos os tempos”.17
Embora lacunares, esses primeiros registros indicam que, no Rio de Janeiro
setecentista, os pombeiros dedicavam-se especialmente ao comércio de peixe
e, quase sempre, atuavam como atravessadores. No século XIX, outras ima-
gens iriam se juntar a essas. Antonio Moraes da Silva, em seu Dicionário da
língua portuguesa (1813), apontava que o pombeiro era tanto o escravo que
seguia pelos sertões do Brasil, fazendo “comércio por autoridade, em pro-
veito do senhor, e talvez ainda comprando escravos”, como também aquele
que vendia peixe nas ribeiras e partia os lucros com o senhor.18 Na década
de 1830, Luiz Maria da Silva Pinto também registraria, no seu Dicionário da
15
RODRIGUES, ibidem, p. 100.
16
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro (doravante AGCRJ), Códice 61-3-12: Auto dos vendeiros
de peixe da banca desta cidade, 1780.
17
COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1988. p. 59.
18
SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da lingua portugueza: recompilado dos vocabularios impressos
ate agora, e nesta segunda edição novamente emendado e muito acrescentado. Lisboa: Typogra-
phia Lacerdina, 1813. v.2, p. 466. Disponível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/2/
pombeiro>. Acesso em: 12 maio 2010.
Língua Brasileira, que esses cativos ou iam negociar nos sertões, “em proveito
de seu senhor”, ou ofereciam peixe e dividiam os ganhos com seu dono. Só
não mencionou as possíveis relações – aludidas por Moraes – com o comércio
de escravos.19 Talvez porque, nesse período, a prática já não contasse entre as
suas atribuições.
Ainda assim, um ofício do chefe de polícia da Corte, citado por Carlos
Eugênio Líbano Soares em seu estudo sobre capoeira e outras tradições
rebeldes na cidade, parece indicar que, em 1845, os pombeiros continua-
vam ligados a esses pequenos negócios com cativos, ou pelo menos com
sua sedução. Ao tratar da fuga de escravos no Rio, Eusébio de Queirós di-
zia que os responsáveis por tal prática eram os negros forros, “principal-
mente minas, que com um insignificante negócio que chamam ‘pombear’
ou casa de vender angu atraem aí os pretos e os seduzem, prometendo-
-lhes risonho futuro. Agenciadas pois as peças, são elas entregues aos
condutores que as levam, voltando os sedutores para novas tarefas. [...]
há cativos também coniventes e cúmplices, sobre os quais tenho dado
providências”.20
Aqui, o chefe de polícia estabelece uma associação entre pombear e
manter casas de vender angu. Mesmo sem atentar para as especificidades
do primeiro “negócio”, acaba fornecendo pistas importantes para as ativi-
dades dos pombeiros. Durante a década de 1840, conforme assinala Líbano
Soares, as “casas de vender angu” – espécies de moradias coletivas onde
homens e mulheres se reuniam em busca de proteção, amizade, festas ou
religiosidades – foram acusadas de serem pontos obrigatórios das “sedu-
ções”, fugas agenciadas por cativos ou libertos para remeter escravos da
cidade para o campo, ou vice-versa.21 Certamente, com o conhecimento
que tinham dos “sertões cariocas”, os pombeiros podiam estar à frente
dessas redes, ajudando escravos a trocarem de senhor, ou mesmo agindo
como intermediários para outros proprietários urbanos que não tinham
renda para ingressar no cobiçado mercado de “africanos novos”. E nada
mais corriqueiro que escondessem os homens e mulheres “seduzidos” nos
locais em que frequentemente se encontravam com outros escravos, li-
bertos, africanos e crioulos.
Em Porto Alegre, também parecia ocorrer situação semelhante. Ao
analisar experiências de libertos nas primeiras décadas do Oitocentos,
Gabriel Aladrén destaca trajetórias de africanos que se ocupavam como
pombeiros e quitandeiros na Rua da Praia, principal ponto de comércio
19
PINTO, Luiz Maria da Silva. Diccionario da Lingua Brasileira. Na Typographia de Silva, 1832. Dispo-
nível em: <http://www.brasiliana.usp.br/dicionario/3/pombeiro>. Acesso em: 12 maio 2010.
20
Arquivo Nacional, doravante AN, Ij6-204, maio-dez., 1845, Ofício do chefe de polícia ao Ministro
da Justiça, 12/6/1845 apud SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições
rebeldes no Rio de Janeiro (1808-1850). Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2002. p. 384.
21
SOARES, Carlos Eugênio Líbano. A capoeira escrava e outras tradições rebeldes no Rio de Janeiro
(1808-1850). Campinas, SP: Ed. Unicamp, 2002. Ver também do mesmo autor: Zungu: rumor de
muitas vozes. Rio de Janeiro: Arquivo do Estado do Rio de Janeiro, 1998.
da capital gaúcha nessa época. Navegando em pequenas canoas pelos
rios e lagos que circundavam a cidade, eles compravam e vendiam gêne-
ros alimentícios e outros produtos, por sua própria iniciativa, a serviço
de terceiros ou “alugados”. Neste grupo, estava o preto Angola Antonio
Angria, vulgo “Guerrilha”, que foi acusado de ser “ladrão ratoneiro” em
março de 1826. Durante o processo criminal aberto contra ele, Angria
disse que costumava trabalhar alugado e, quando ninguém o chamava,
“andava pelas ruas vendo algum carreto e de noite se recolhia em uma
casa na quitanda aonde existem outros pretos pombeiros de frente da qui-
tanda, forros e cativos”. Embora insistisse que não tinha residência certa,
Joaquim Ferreira Alfama revelou que, “tendo um quartinho alugado ao pé
do Couto”, o africano “dava asilo às escravas cativas donde ele testemunha
tirou uma de Luis Caetano morador no distrito da Capela há dois meses
para mais [...]”.22
Para Aladrén, esse depoimento sugere que Antonio Angria integrava
uma rede comercial de venda de escravos. Provavelmente alguns proprie-
tários de regiões próximas a Porto Alegre deixavam seus cativos com o
preto forro, morador no centro da cidade, para serem oferecidos e vendi-
dos. Isso colocava Angria – assim como outros pombeiros – numa posição
ambígua: ao mesmo tempo em que participavam como intermediários
na venda de homens e mulheres escravizados, também eram acusados de
acoitar escravos fugidos.23 O que os aproximava dos pombeiros do Rio de
Janeiro, que “seduziam” escravos e os levavam para as “casas de angu”.
Contudo, enquanto na capital gaúcha esses mercadores negociavam gêne-
ros diversos (como lenha, por exemplo) e não se diferenciavam dos qui-
tandeiros – segundo Aladrén, ali os dois termos eram intercambiáveis –,
na corte, iam cada vez mais se especializando no comércio de peixe.
Na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, diversos requerimentos,
abaixo-assinados, petições e relatórios de fiscais e de outros trabalhado-
res do pequeno comércio apresentavam detalhes sobre as atividades dos
pombeiros e, sobretudo, sobre os conflitos em que estiveram envolvidos
ao longo do século XIX. Em alguns registros, há referências à negociação
com outros gêneros em pontos específicos da cidade. É o caso da solici-
tação do preto mina Benedicto, escravo de José Gonçalves da Silva, que
“há bastantes anos vende como pombeiro na Praia dos Mineiros”, e por
isso implorava para continuar com sua barraca oferecendo frutas e gali-
nhas.24 Pelas bandas da Praia de D. Manoel, desde princípios da década de
1830 o fiscal da freguesia de São José vinha tentando remover algumas
bancas que serviam de “couto de vadios e perversos”. Para ele, “nenhum
22
ALADRÉN, Gabriel. Ratoneiros, formigueiros e atravessadores: trabalho e experiências sociais
de libertos em Porto Alegre nas primeiras décadas do século XIX. In: MATTOS, Marcelo Badaró
(Org.). Faces do trabalho: escravizados e livres. Niterói: EdUFF, 2010. No prelo.
23
Ibidem..
24
AGCRJ, códice 61-3-15: Comércio de peixe (1840-1848), p. 47.
pombeiro” devia negociar lenha nas praias, “quem quisesse vende-la tives-
se casa para isso”.25
Não obstante essas indicações, a maior parte dos registros enviados à
municipalidade do Rio – e mesmo documentos de outra natureza, como
anúncios de fuga de escravos e relatos de cronistas – associavam a catego-
ria aos negócios com pescado. Em 1839, o fiscal da freguesia da Glória fa-
lava da “absoluta necessidade” de uma banca de peixe na Lagoa, no lugar
chamado Piaçaba, para que os moradores dali se livrassem “dos abominá-
veis atravessadores e pombeiros”, que “astuciosamente praticam continu-
adas tiranias contra os pescadores, mormente os pobres, que os trazem
em uma verdadeira escravidão”.26 Na Praia do Peixe – mais tarde, Praça
do Mercado e Praça das Marinhas – eles não podiam estacionar em qual-
quer local e por isso tantas vezes acabavam criando estratégias para enga-
nar fiscais e outras autoridades. Uma das saídas era, em associação com
pescadores, tirar licenças para pesca na Capitania do Porto mesmo sem
estarem efetivamente habilitados para o ofício. Em outros casos, muitos
arrendatários das bancas do interior do mercado compravam o produto
diretamente dos pescadores, vendiam em leilão aos pombeiros que, por
sua vez, os revendiam ao público.27 Como veremos mais adiante, esses
ardis acabavam provocando muitos conflitos e reclamações.
De qualquer maneira, ainda que os registros oitocentistas nem sempre
sejam coincidentes, é possível traçar uma pequena caracterização desses
trabalhadores. Na capital carioca, eles até comercializavam aves, frutas,
verduras ou lenhas, mas pareciam preferir o pescado. Em alguns pontos
da cidade, podiam armar barracas ou colocar seus cestos e tabuleiros. Só
que costumavam perambular por praças, ruas e vielas das áreas urbanas
e rurais, chegando mesmo a lugares bem distantes, como as freguesias do
Recôncavo ou do município de Niterói. Nessas andanças, também podiam
“seduzir” escravos para a liberdade ou para as vendas. Talvez o papel de
intermediários e revendedores – em geral traduzido como atravessado-
res – nessas pequenas negociações e a notória mobilidade espacial fossem
as principais marcas dos pombeiros no Rio. O que, de alguma forma, os
aproximava de seus velhos homônimos da África central e também de ou-
tras partes do Brasil.
Em Santa Catarina, na mesma época, os pombeiros percorriam os can-
tos dos mais distantes arrabaldes da velha Desterro (hoje, Florianópolis),
abastecendo com mantimentos necessários aqueles que não se desloca-
vam até a Praça do Mercado ou que, eventualmente, ficavam sem qual-
quer mercadoria. Na legislação baixada pela Câmara Municipal em 1850,
eles foram descritos como “pessoas que compram (ainda mesmo com
comissão) para vender, sejam quais forem os gêneros alimentares ou
25
AGCRJ, códice 58-3-33: Barracas na praia de D. Manoel e do Peixe (1829-1832), p. 25.
26
AGCRJ, códice 61-3-14: Comércio de peixe (1832-1839), p. 21.
27
AGCRJ, códices 61-3-16; 61-3-17; 61-3-18: Mercado da Candelária.
comestíveis, nacionais ou estrangeiros por lugares públicos, como sejam
ruas, praças, estradas, marinhas, e bordo de navios em portos de mar ou
rios, sem que por esse comércio pague algum outro imposto [...]”.28 Tanto
no Rio, como em Porto Alegre, Desterro ou Recife, encontramos escravos
e libertos envolvidos nesses “negócios de pombear” ao longo do século XIX.
Entre as imagens que restaram do antigo mercado da cidade do Rio
de Janeiro, temos uma foto de Marc Ferrez (1843-1923) que mostra a
rampa da Praça das Marinhas, local em que – apesar das proibições – os
pombeiros costumavam se instalar. Existe ainda uma série composta pelo
fotógrafo espanhol Juan Gutierrez (1859-1897), onde aparecem as ban-
cas e os negócios ali realizados em meio à balburdia do velho mercado da
Candelária.
28
CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco. Negros em desterro: experiências de populações de origem
africana em Florianópolis, 1860/1888. Tese (Doutorado)– Programa de Pós-Graduação em His-
tória, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2004. p. 82. Cf. SILVA, Haroldo
Sillis Mendes da. Carroceiros, quitandeiras, marinheiros, pombeiros e outras agências: trabalho e so-
brevivência de africanos e afrodescendentes em Desterro na década da abolição. Monografia de
bacharelado defendida junto ao Departamento de História da UESC, Universidade do Estado de
Santa Catarina, Florianópolis, 2001.
Figura 14 – Fotos do cais e da parte externa do Mercado da Candelária, por Juan Gutierrez
Fonte: CD-ROM “A Coleção fotográfica de Juan Gutierrez”
Original: Museu Histórico Nacional (originais em p&b)
Figura 15 – Fotos do cais e da parte externa do Mercado da Candelária, por Juan Gutierrez
Fonte: CD-ROM “A Coleção fotográfica de Juan Gutierrez”
Original: Museu Histórico Nacional (originais em p&b)
Dizem os pombeiros...
É sabido que a classe pobre só procura aos suplicantes por venderem eles
peixe miúdo e por baixo preço no alcance de todas, ao passo que nas ban-
cas internas da praça o preço do peixe é tão excessivo que nunca chega ao
alcance dos pobres. Além disso, o pescador só vende o peixe por atacado e
em leilão o que mais desprevenido deixa o consumidor de comprar o pei-
xe suficiente para seu consumo, o que obriga aos suplicantes arrematá-lo
para vender a varejo, não só aos fregueses que aí o procuram como para
poder servir à freguesia do município.31
30
AGCRJ, códice 61-3-16: Comércio de peixe (1851-1859), pp. 22; 24; códice 61-3-17: Comércio de
peixe (1860-1869), pp. 44-48.
31
AGCRJ, códice 61-2-26: Comércio de peixe (1886), p. 12.
A perseguição era tal que o fiscal da Candelária já havia tomado os pei-
xes que os pombeiros compravam para servir aos seus “fregueses das ruas”.
E pior do que isso: boa parte fôra vendida pelos guardas aos banqueiros
internos da Praça, para que eles pudessem revendê-los com grande lu-
cro. Como não podiam ficar na rampa nem comprar as mercadorias que
chegavam com os últimos pescadores, sentiam-se obrigados a recorrer à
municipalidade, tentando recuperar uma “concessão que há longos anos
gozam e que só agora são tão cruelmente vexados”.32
Petições e ofícios como esse eram bem comuns naquela época. Os pe-
quenos comerciantes, assim como outros trabalhadores da Corte, não
hesitavam em expressar seus protestos contra as decisões dos verea-
dores ou as ações de concorrentes que consideravam prejudicais a seus
interesses. Mesmo que o exercício da cidadania ainda fosse precário, a
população criava expectativas sobre seus direitos e encontrava caminhos
para reivindicá-los. Quando se considerava, ou se fazia crer, cumpridora
de seus deveres, a disposição para luta se tornava maior. Como destaca a
historiadora Juliana Teixeira Souza: na medida em que davam conta de
suas obrigações, esses trabalhadores urbanos desejavam que seus direitos
fossem reconhecidos e resguardados pelas autoridades. Em muitos casos,
recorriam diretamente ao imperador, a quem caberia zelar pela paz, pela
defesa e pelo proveito de todos os seus súditos.33
Em seu documento, os pombeiros garantiam que nunca haviam sofrido
“tantas injustiças” e, de quebra, também tentavam valorizar seu ofício.
Só que as disputas por aquele espaço da cidade eram bem antigas. Desde
meados do século XVII, negras de tabuleiro e vendedores ambulantes de
peixe reuniam-se à beira mar, nas proximidades do terreiro do Carmo,
mais tarde conhecido como Largo do Paço.34 Bem perto da Alfândega, en-
tre a rua do Mercado e o cais das Marinhas, formavam um pequeno e
ruidoso mercado – mais conhecido como Mercado da Praia do Peixe – que
crescia ao acaso, sem um alinhamento definido.35
Com o contínuo ajuntamento de novas bancas, o vice-rei Luiz
de Vasconcellos ordenou, em 1789, que as barracas de peixe fossem
32
AGCRJ, códice 61-2-26: Comércio de peixe (1886), p. 12.
33
SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações
na regulação do comércio de gêneros (1840-1889). Tese (Doutorado)– Programa de Pós-Graduação
de História da UNICAMP, Universidade de Campinas, Campinas, SP, 2007. p. 190-193.
34
Inicialmente terreiro do Ó – e depois da Polé –, a área ficou conhecida como terreiro do Carmo,
quando ali construíram a igreja e o convento dos carmelitas. Mais tarde, passou a ser chamada
de Largo do Paço e, em seguida, praça d. Pedro II. Com a proclamação da República, ganhou a
denominação de Praça XV de Novembro, que continua até hoje. Cf .GERSON, Brasil. História das
ruas do Rio. 5. ed. Rio de Janeiro: Lacerda, 2000. p. 26-32; FRIDMAN, Sergio; GORBERG, Samuel.
Mercados no Rio de Janeiro: 1834-1962. Rio de Janeiro: S. Gorberg, 2003. p. 2.
35
COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. 3. ed. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo:
Edusp, 1988. p. 60. Em 1638, a Câmara do Rio estabeleceu que os pescadores venderiam suas
mercadorias no trecho que compreendia a Praia de Nossa Senhora do Carmo até a porta do Go-
vernador, ou seja, entre a atual Praça XV e a rua da Alfândega. Cf. FRIDMAN, Sergio; GORBERG,
Samuel. Mercados no Rio de Janeiro: 1834-1962. Rio de Janeiro: S. Gorberg, 2003. p. 2.
reconstruídas com regularidade e simetria. Mas a “algazarra” dos ven-
dedores, a lama e os restos de frutas, legumes e peixes amontoados ali
não deixavam de desagradar autoridades e moradores da capital. Alguns
diziam que o “vozerio” era tal que perturbava as sessões no Senado da
Câmara, que ficava logo ao lado.36 Mesmo com os protestos e as determi-
nações para que os vendedores fossem removidos para outro local, um
novo mercado só começou a ser construído na década de 1830.37
Projetadas pelo arquiteto francês Grandjean de Montigny, as obras do
edifício da Praça do Mercado, também chamada de Mercado da Candelária,
iniciaram-se em 1834, mas só foram concluídas em 1841. O acesso a seu
interior era feito por quatro portões monumentais, um em cada lado,
conduzindo a ruas transversais que se cruzavam no centro, junto a um
chafariz de pedra lavrada. Outras ruas calçadas acompanhavam as quatro
faces, abrindo-se para elas tanto as lojas externas, como as do pavilhão
central. Ocupando todo um quarteirão, estava dividido em três áreas: o
centro, destinado para venda de hortaliças, legumes, aves e ovos; o lado do
mar, para peixe fresco, seco e salgado; e o lado da rua (voltado para a rua
do Mercado e o Largo do Paço), para cereais, legumes, farinha e cebolas.
Conforme o regulamento aprovado pela Câmara Municipal em 1844,
as 112 bancas e casas do prédio da Praça podiam ser alugadas a cada se-
mestre por “pessoas livres e capazes”.38 Entre os arrendatários, destaca-
vam-se portugueses, brasileiros e também africanos da “nação” mina.
Numa pesquisa preliminar nos códices sobre o Mercado, guardados no
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, e nas listas de locatários publi-
cadas anualmente no Almanak Laemmert entre o período de 1844 e 1889,
verifiquei que, durante mais de 20 anos, toda uma área do interior do
mercado estava ocupada por homens e mulheres procedentes da Costa da
Mina.39 Como o forro Luiz Laville, que arrendava a banca 41, uma peque-
na quitanda de verduras iniciada por sua mulher, a preta mina Felicidade
Maria da Conceição. Ou a liberta mina Emília Soares do Patrocínio que, ao
lado de seu marido, o também mina Joaquim Manuel Pereira, era locatá-
ria de três barracas para venda de aves e verduras e ainda possuía outros
três tabuleiros, com os quais suas escravas mercadejavam ali na Praça e
pelas ruas da cidade.40
36
AGCRJ, Ofício da Secretaria de Estado de Negócios para o Senado da Câmara de 21/04/1823.
37
FRIDMAN, Sergio; GORBERG, Samuel. Mercados no Rio de Janeiro: 1834-1962. Rio de Janeiro: S.
Gorberg, 2003. p. 12; COARACY, Vivaldo. Memórias da Cidade do Rio de Janeiro. 3. ed. Belo Hori-
zonte: Itatiaia; São Paulo: Edusp, 1988.
38
Almanak Laemmert,1844, p. 239. Cf. Regulamento da Praça do Mercado, apresentado em sessão da
Câmara Municipal de 17 de novembro de 1843 e publicado em edital no dia 20 de agosto de 1844,
transcrito em: FRIDMAN, Sergio; GORBERG, Samuel. Mercados no Rio de Janeiro: 1834-1962. Rio
de Janeiro: S. Gorberg, 2003. p. 14-23.
39
Em minha pesquisa de doutorado, em andamento no Programa de Pós-graduação em História
Social da USP, venho desenvolvendo tese sobre os africanos minas que trabalhavam na Praça do
Mercado e em seus arredores.
40
AGCRJ, códices 61-1-7; 61-1-9; 61-1-11; 61-1-12: Mercado da Candelária.
Na Praça das Marinhas, diante da doca contígua ao mercado, desem-
barcavam os gêneros da roça e o pescado que escravos e outros trabalha-
dores traziam em “canoas de ganho”, saveiros, faluas e demais embarca-
ções vindas das zonas suburbanas do Rio de Janeiro e das áreas rurais de
Niterói. De acordo com o fiscal da Candelária, o cais estava dividido em
“três lances e todos pelas frentes dos três chalets ali edificados”:
[...] à frente da área dos 1º e 2º chalets – olhando para o mar – lado direito
vai até o começo da Praça de D. Pedro 2º [atual Praça XV de Novembro];
lado esquerdo vai até o fim da rua do Ouvidor findando na rampa da Doca.
No centro dos dois primeiros chalets, em frente do portão de ferro – que
dá saída da Praça do Mercado para a Praça das Marinhas – acha-se coloca-
do um kiosque. Na frente da área do lado direito tem o porto denomina-
do da Pedra, [...] e nas imediações deste porto acham-se colocados alguns
chapéus de sol de quitandeiras, [...]. Na parte da área ao lado esquerdo tem
cinco portos em 40 m, denominados da Madama – da Ponte – do Barreto
– da Trindade – e do Gradim [todos para desembarque de gêneros tra-
zidos da freguesia de São Gonçalo, município de Niterói] e também em
seus arredores é ocupado por chapéus de sol nos idênticos casos daqueles
colocados no outro lance.41
48
SOUZA, Juliana Teixeira. A autoridade municipal na Corte imperial: enfrentamentos e negociações
na regulação do comércio de gêneros (1840-1889). Tese (Doutorado)– Programa de Pós-Graduação
de História da UNICAMP, Universidade de Campinas, Campinas, SP, 2007. p. 175.
49
ALENCASTRO, Luiz Felipe de. Proletários e escravos: imigrantes portugueses e cativos africanos
no Rio de Janeiro, 1850-1872. Novos Estudos Cebrap, São Paulo, n. 21, p. 30-56, jul. 1988; FARIAS,
Juliana B. Ardis da liberdade: trabalho urbano, alforrias e identidades. In: SOARES, Mariza de
Carvalho (Org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benin ao Rio de Janeiro. Niterói,
EdUFF. 2007. p. 238-246. Cf. FARIAS, Juliana B. Descobrindo mapas dos minas: alforrias, trabalho
urbano e identidades. In: FARIAS, Juliana. B.; GOMES, Flávio dos S.; SOARES, Carlos Eugênio
L. No labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional, 2005.
50
Jornal do Commercio, 3 de maio de 1872, p. 3; Diário do Rio de Janeiro, 3 de maio de 1872. Cf. CRUZ,
Maria Cecília Velasco. Virando o jogo: estivadores e carregadores no Rio de Janeiro da Primeira
República. Tese (Doutorado)–Programa de Pós-Graduação em Historia, Universidade de São Paulo,
São Paulo, 1998. p. 268; FARIAS, Juliana B. Descobrindo mapas dos minas: alforrias, trabalho ur-
bano e identidades. In: FARIAS, Juliana. B.; GOMES, Flávio dos S.; SOARES, Carlos Eugênio L. No
labirinto das nações: africanos e identidades no Rio de Janeiro, século XIX. Rio de Janeiro: Arquivo
Nacional, 2005. p. 128.
51
Jornal do Commercio, 3 de maio de 1872, p. 3; Diário do Rio de Janeiro, 3 de maio de 1872. Cf. Cruz,
Virando o jogo, p. 268; Farias, “Descobrindo mapas dos minas”. p. 128.
dezembro de 1885, pequenos lavradores do município neutro e da provín-
cia do Rio de Janeiro afirmavam, em mais um protesto, que
55
CORREIA, Armando Magalhães. O sertão carioca. Rio de Janeiro: Prefeitura da Cidade do Rio de Ja-
neiro, 1978. p. 64-65, 233-234. No glossário apresentado por Correia, pombear é “exercer a profis-
são de pombeiro, negociante que atravessa os sertões, comerciando com os indígenas. Vocabulário
africano, dado aos encarregados de effectuar a compra dos escravos, mediante troca por missanga
e ferramentas; introduzido entre nós nos tempos coloniais, derivando-se do radical pomba – kim-
bundu – mensageiro” (p. 273-274).
56
Para descrições desses pombeiros em Niterói, ver: LIMA, Kant de; PEREIRA, L. Pescadores de Itaipu:
meio ambiente, conflito e ritual no estado do Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 1971. Em Florianópo-
lis, também se costumava ver os pombeiros com balaios montados nas costas de jumentos e cavalos.
Mais característico, eram aqueles que lançavam mão de uma grossa e resistente vara, pendurando
nela dois balaios. “Eram tão populares que até hoje, ‘mofas com a pomba na balaia’ é uma expressão
utilizada para satirizar e desiludir pessoas apegadas a desejos impossíveis de serem realizados”.
SANTIAGO, Carina dos Santos. Um lugar chamado Figueira: experiências de africanos e afrodescen-
dentes nas duas últimas décadas do século XIX. Monografia de bacharelado apresentada ao Depar-
tamento de História, Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, 2005. p. 76.
Escravidão, tráfico e farinha:
a viagem redonda entre
o Rio de Janeiro e a Baía de Biafra
Nielson Rosa Bezerra
1
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos os
Santos dos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Corrupio, 1987; FLORENTINO, Manolo. Em costas ne-
gras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia da
Letras, 1997; ALENCASTRO, Luís Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico
Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
minoritárias” têm oferecido uma alternativa de reflexão sobre o tema.2
Seguindo essa nova tendência historiográfica, me debrucei sobre a im-
portância das rotas minoritárias para pensar as conexões entre o Rio de
Janeiro e a Baía de Biafra, situada no Golfo do Benim, entre a Nigéria e o
nordeste de Camarões.3
O presente capítulo tem por objetivo oferecer uma contribuição para os
estudos sobre o comércio de escravos, considerando as dinâmicas atlânti-
cas que permeiam essa rota. Do ponto de vista econômico é fundamental
entender as relações entre os portos da Baía da Guanabara e o porto de
Calabar, na Baía de Biafra. Do ponto de vista dos deslocamentos, o caráter
particular da chamada “viagem redonda”. A análise se baseia na viagem
do bergantim São José empreendida em 1810, um processo encontrado
no Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, que revela essas conexões atra-
vés do percurso dessa embarcação, onde a expressão “viagem redonda”
indica uma viagem de ida e volta, partindo e voltando ao Rio de Janeiro,
com paradas em Benguela e São Thomé. Por fim, essa viagem redonda
mostra ainda que os portos de parada são entrepostos comerciais para
vários produtos e não apenas para o comércio de escravos, com destaque
para a comercialização da farinha de mandioca produzida no Recôncavo
da Guanabara.
Segundo o historiador Chambers, cerca de 1,7 milhões de pessoas fo-
ram transportadas da Baía de Biafra por todo o curso do comércio escra-
vista atlântico, sendo que a grande maioria a partir do início do século
XVIII. Dali foram enviados para a América Inglesa, embora um grande nú-
mero também tenha sido remetido para Santo Domingos e Cuba. Dentre
os escravos embarcados na Baía de Biafra estavam os que ficaram conhe-
cidos como ibos, calabares e mokos. Ainda segundo ele, os povos ibos
constituíram um dos povos mais atingidos pelo comércio transatlântico.4
Apenas uma minoria dos africanos exportados pela Baía de Biafra teria
vindo para o Brasil. Isso faz da viagem aqui descrita, um caso extrema-
mente interessante para ser analisado, já que apesar de minoritária, tanto
a rota quanto a estratégia da “viagem redonda” se mostraram bastante
lucrativas como indica o desembarque no Rio de Janeiro de 272 escravos
trazidos “por encomenda ou aleatoriamente”.
2
SOARES, Mariza de Carvalho (Org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benin ao Rio
de Janeiro. Niterói: EdUFF, 2007.
3
Para uma visão mais completa do tema ver: BEZERRA, Nielson Rosa. Mosaicos da escravidão: iden-
tidades africanas e conexões atlânticas do Recôncavo da Guanabara (1780-1840). Tese (Doutora-
do)–Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.
cap. 4, p. 142-178.
4
CHAMBERS, Douglas B. Tracing Igbo into the African Diaspora. In: LOVEJOY, Paul (Ed.). Identy in
the shadow of slavery. London: Continuum, 2000.
O Porto de Calabar e o comércio de escravos na Baía de Biafra
5
LOVEJOY, Paul E.; RICHARDSON, David. The slave ports of the bight of biafra in the eighteenth
century. In: BROWN, Carolyn A.; LOVEJOY, Paul E. (Ed.). Repercussions of the Atlantic Slave Trade:
the interior of the bight of the biafra and the african diaspora. Trenton: Africa World Press, 2010.
6
BEHRENT, Sthephen D.; LATHAN, A.J.H.; NORTHRUP, David. The diary of Antera Duke, an eighte-
enth-century african slave trader. Oxford: Oxford University Press, 2010. p. 100.
ressignificação cultural assumindo a identidade “ibo” presente no Caribe
e na América do Norte; no Brasil eram identificados como “calabares”.7
Um interessante exemplo de reconstituição das experiências de es-
cravos no âmbito das conexões entre diferentes regiões das Américas e
as costas africanas é o caso de Mahommah Gardo Baquaqua. Analisando
sua biografia, Robin Law e Paul Lovejoy ofereceram uma importante
contribuição sobre a vida diária dos escravos, sobretudo no que se refe-
re às recorrentes ressignificação identitárias dos africanos submetido à
escravidão nas Américas. Essa biografia revela detalhes sobre a infância
de Baquaqua na África Ocidental, a sua escravidão e liberdade.8 De acor-
do com Paul Lovejoy, a biografia pode ser um importante recurso para a
história atlântica, pois não se trata apenas de uma história singular, mas
também da representação de uma história coletiva. A biografia poderia
ser um recurso ampliado na medida em que fosse possível aplicar este
método em diferentes situações.9
Outro estudo importante é a trajetória atlântica dos “príncipes” de
Calabar, foco principal da pesquisa de Randy Sparks, uma importante
contribuição para o entendimento do processo de integração dos afri-
canos com a história do mundo atlântico. O processo de ressignifica-
ção cultural e identitária de cada africano levado como escravo para as
Américas envolveu uma trajetória de trabalho e busca pela liberdade, fu-
gas, negociações, saudade da terra ancestral que podem ser percebidos
como o ponto alto da obra em questão. Segundo o autor, após a derrota
na guerra africana, os “príncipes” passaram pela escravidão no Caribe,
uma fuga para os Estados Unidos, a ajuda de missionários metodistas em
missão que lhes rendeu a passagem pela Inglaterra, até o retorno à África,
já adultos.10 A obra de Sparks oferece informações valiosas mas, por sua
natureza literária, traz problemas do ponto de vista historiográfico. Por
seu estilo narrativo, a obra apresenta problemas de compreensão, como
o fato de usar a expressão “príncipes” de Calabar numa sociedade onde as
linhagens baseavam num critério comercial e não nobiliárquico.11
7
BROWN, Carolyn A.; LOVEJOY, Paul E. The bight of biafra and slavery. In: . (Ed.).
Repercussions of the Atlantic Slave Trade: the interior of the Bight of the Biafra and the African
Diaspora. Toronto: Africa World Press, 2010.
8
LAW, Robin; LOVEJOY, Paul. The biography of Mahomah Baquaqua: his passage from slavery to
freedom in Africa and America. Princeton: Markus Wiener Publishers, 2007.
9
LOVEJOY, Paul. Biography as source material: towards a biographical archive of enslaved Africans.
In: LAW, Robin (Ed.). Source material for studing the slave trade and the african diaspora. [S.l.]: Centre
of Commonwealth Studies, University of Stirling, 1997. p. 119-140.
10
SPARKS, Randy J. The two princes of Calabar: na eighteenth-century Atlantic odyssey. Cambridge:
Harvard University Press, 2004.
11
Eu vivenciei esse problema, pois a obra de Sparks, por algum tempo foi a única fonte de informação
sobre Calabar que eu obtive acesso. Essa limitação, por algum tempo, me provocou uma longa con-
fusão sobre a história, a cultura e a sociedade da região. Agradeço ao Profesor Paul Lovejoy pela rica
contribuição ao conversar comigo sobre Calabar, Biafra e a disponibilização de bibliografia sobre o
tema.
A obra que melhor oferece um panorama da história e da sociedade na
Baía de Biafra e as diferentes conexões no âmbito da diáspora africana na-
quela região, é o valioso trabalho The Diary of Antera Duke, an Eighteenth-
Century African Slave Trader de Sthephen D. Behrendt; A.J.H. Lathan e
David Northrup, publicado em 2010.12 Esses autores contextualizaram o
diário de um mercador de escravos do Velho Calabar e suas relações com
os negociantes ingleses. Antera Duke, assim como o seu pai e o avô, era
um comerciante de escravos e aprendeu a se comunicar em inglês com
os comerciantes britânicos, o que o levou a escrever um diário, conser-
vado por anos em uma biblioteca, até ser publicado na década de 1950;
e recentemente analisado pelos autores em questão. Assim, o diário de
Antera Duke é a mais extensa fonte histórica sobre a história do Velho
Calabar preservada até os dias atuais. Antera fazia parte de uma linhagem
de comerciantes efik que emergiram no comércio atlântico ainda durante
o século XVII, esclarecendo que não havia uma organização nobiliárquica
naquela região, assim como o ocidente a compreende.13
Os portugueses foram os primeiros a visitar o rio Cross e iniciar práti-
cas comerciais na Baía de Biafra. Contudo, foram os capitães e mercadores
britânicos que iniciaram uma próspera sociedade com os mercadores efik
naquela região africana ao longo do século XVIII. As demandas africanas
por mercadorias atlânticas transformaram comunidades de pescadores
que viviam ao longo do rio Cross – no importante entreposto de mercado-
rias européias, asiáticas e africanas de Velho Calabar. Comerciantes desse
porto ofereciam diferentes mercadorias para o mercado transatlântico
como marfim, pau-brasil, óleos, pimentas, inhames e escravos.14
Como mostram Paul Lovejoy e David Richardson Bonny, era um dos
três portos mais importantes da Baía de Biafra. Entretanto tinha uma
péssima reputação entre os comerciantes, por conta de seus pântanos
infestados de mosquitos, doenças contagiosas e ar muito úmido. Vem
dessas condições ser conhecido pelos comerciantes ingleses como o “hor-
roroso buraco” (“the horrid hole”). Apesar desses problemas no século
XVIII, Bonny tornou-se a principal referência comercial da Baía de Biafra,
haja vista o crescimento e a consolidação das autoridades reais da “nova
cidade”. A existência de uma autoridade política centralizada facilitou as
negociações comerciais baseadas na proteção e na concessão de créditos.
Com isso Bonny acabou por superar o comercio até então concentrado no
porto rival, chamado Old Calabar pelos ingleses.15
Enquanto a ausência de crédito em Calabar obrigava que as vendas
tivessem por base apenas as cargas dos navios, limitando o volume de
12
BEHRENT, Sthephen D.; LATHAN, A.J.H.; NORTHRUP, David. The diary of Antera Duke, an eighte-
enth-century african slave trader. Oxford: Oxford University Press, 2010.
13
Ibidem.
14
Ibidem, p. 46-47.
15
LOVEJOY, Paul; RICHARDSON, David. This horrid hole: royal authority commerce and credit at
Bonny, 1690-1840. Journal of African History, London, v. 45, p. 363-394, 2004.
negócios à capacidade de carregamento das embarcações, os hábeis nego-
ciantes de Bonny usavam seus estoques e também a “promessa de lucros
futuros” para a obtenção de créditos, o que possibilitava o financiamento
de novas mercadorias e com o sucesso comercial e a manutenção do po-
der político na localidade. Em Bonny, a segurança de créditos dependia
de acordos pessoais entre os mercadores ingleses e os comerciantes de
Bonny. Apesar de sua má reputação, o porto estava preparado para atingir
uma posição predominante na Baía de Biafra.
Para os ingleses, era importante saber que haveria mercadoria à dis-
posição. Entretanto, não foi apenas a disponibilidade de escravos que as-
segurou o poder econômico de Bonny e nos arredores da Baía de Biafra:
sua capacidade de acumular créditos, ultrapassar seus próprios limites
geográficos e ambientais desfavoráveis, bem como a possibilidade de ofe-
recer boas condições para o comércio, como suprimentos para a “carga
de escravos” comercializada foram fundamentais.16 No caso do bergantim
São José aqui estudado, o suprimento era a farinha.
Embora permanecessem como áreas de influência comercial da
Inglaterra, nem Calabar, nem Novo Calabar, nem Bonny foram colônias
inglesas até o século XIX, o que facilitou as atividades de exportação de
escravos para as Américas em contrapartida ao consumo de mercadorias
vendidas pelos mercadores ingleses. Tampouco foi um dia colônia portu-
guesa. Era uma região independente, de influência inglesa. Muitas merca-
dorias inglesas utilizadas no comércio de escravos circulavam por aquela
região. Segundo Sparks, o comércio de armas de fogo inglesas dava des-
proporção nas lutas entre os grupos locais que disputavam espaço e poder
naquela região. Lovejoy e Richardson acentuaram que as relações entre
ingleses e Velho Calabar giravam em torno das “novas modalidades de
crédito” que mediavam o comércio na região. Além disso, as constantes
guerras eram um fator determinante para a contínua oferta de escravos,
bem como a necessidade de gêneros de difícil perecimento que serviriam
para alimentar tropas e prisioneiros de guerras escravizados e depois fei-
tos escravos para serem enviados para as Américas.
Após 1807, com a abolição da escravidão no Império britânico, mer-
cadores ingleses não abandonaram os negócios na Baía de Biafra. Talvez,
essa nova situação tenha aberto um espaço para novos e antigos parceiros
interessados em comercializar escravos naquela região. Esse pode ter sido
o caso dos comerciantes do recôncavo da Guanabara que chegaram até lá
com sua carga de farinha.
16
Ibidem.
A farinha, uma “mercadoria de partida”
para o comércio de escravos
17
Esclarece-se que a Baía de Biafra, ao longo de sua história no tráfico atlântico de escravos, tinha
três importantes portos: Calabar, também conhecido como “Velho Calabar”; Elem Calabari, tam-
bém conhecido como “Novo Calabar”; e, por último, Bonny. Neste texto, quando não for encontra-
da nenhuma distinção, estou me referindo ao primeiro deles. Ainda esclareço que esse critério foi
extraído da bibliografia internacional utilizada como referencia para este texto.
18
Neste processo e na documentação a ele juntada estão as informações aqui utilizadas para a elabo-
ração deste capitulo. Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, doravante AN-RJ. Inventários: Juízo de
órfãos. José Reginaldo de Mello e Velho. Caixa 1122. Processo 346. Magé, 1811-1830.
19
AN-RJ. Processo 346. Magé, 1811-1830, p. 14.
chamado “porto de Calabar” com objetivo de vender farinha e comprar
escravos.
Em sua petição, Manoel Lopes Ribeiro afirmava que os sócios de seu
genro voltaram ao Rio de Janeiro com os valores da venda dos mantimen-
tos em Calabar e ainda negociaram todo o “carregamento” do bergantim,
ou seja, os escravos adquiridos; e acusava o comerciante Manoel Antônio
Coelho de ludibriar seus netos no montante a receber. Em defesa do genro
e de seus herdeiros alegava que “[...] José Reginaldo era o principal sócio
que contribuiu para a contratação dos mantimentos que foram carregados
pelo bergantim e a compra dos gêneros pelos comerciantes de Calabar”.20
Informava ainda que os netos haviam recebido apenas a quantia de
900 mil réis, referentes a quarta parte da arrematação do bergantim em
hasta publica, nada mais tendo os herdeiros recebido porque o réu, ou
seja, o comerciante Manoel Antonio Coelho, não concordara em prestar
contas das despesas, das receitas e dos lucros da referida “viagem redon-
da”. Por fim, exigia que os cálculos dos valores fossem refeitos em juízo
e fosse apresentado o “cálculo da quantia e da conta exata referentes à
viagem, bem como a apresentação de todos os papéis relativos à mesma”.
Em sua defesa, o réu Antônio Manoel Coelho apresentou novas informa-
ções sobre o caso. Segundo ele, quando o bergantim retornou de Calabar,
os “oficiais do mar” fizeram inventário de todos os bens a bordo, e disso
existiam cópias que foram distribuídas aos interessados, inclusive aos re-
presentantes do sócio falecido e a quarta parte dos ganhos disponibiliza-
dos na ocasião correspondia à quantia de 900 mil réis. O montante teria
sido abatido da dívida que o falecido acumulara com a sociedade, faltando
ainda 1:600$000 (um conto e seiscentos mil réis), que não cobrou aos
herdeiros devido ao infortuito por que passavam.
Declarou ainda que assim que chegou ao porto do Rio de Janeiro, deu
ciência dos fatos e das contas do bergantim ao senhor Manoel Lopes
Ribeiro, pois sabia que esse responderia pelos herdeiros de seu sócio que
eram menores de idade. Naquela ocasião, segundo suas palavras, propôs
a partilha dos escravos para que cada parte fosse vendida de acordo com
as conveniências de cada um, porém, o senhor Ribeiro não aceitara a pro-
posta. Uns escravos foram vendidos a dinheiro e outros a prazo. Como
resultado dessa longa negociação foi apurada a importante quantia de
16:600$258 (dezesseis contos, seiscentos mil e duzentos e cinquenta e
réis), cabendo a cada um dos quatro sócios 4:152$564 (quatro contos,
cento e cinquenta e dois mil e quinhentos e sessenta e quatro réis), da
qual abatida a dívida de 1:664$750 acumulada pelo falecido, daria um
saldo líquido de 2:487$814 (dois contos, quatrocentos e oitenta e sete mil
e oitocentos e quatorze réis) a ser entregue aos herdeiros. Coelho esclare-
ceu ainda que a diferença entre o total e os valores pagos correspondia aos
escravos vendidos a prazo, montante que seria entregue aos herdeiros tão
20
Ibidem.
logo os pagamentos fossem integralizados. Dessa forma, o senhor Coelho
encerrava sua defesa declarando que eram injustas as acusações contra
ele.
Não existem “ilhas historiográficas”. Todas as histórias estão conec-
tadas de alguma forma. As pequenas propriedades que produziam fari-
nha no Recôncavo da Guanabara tinham o seu lugar no mundo atlântico.
Esse processo mostra, num nível de detalhes não descrito por qualquer
outra documentação já citada, a efetiva participação de um agricultor do
Recôncavo nos amplos mercados formados pelas relações entre Brasil e
África, através do pouco lembrado porto de Calabar na Baía de Biafra. A
defesa do senhor Antônio Manoel Coelho, comerciante experiente, resi-
dente na cidade do Rio de Janeiro, dá a dimensão da diversificação dos
investimentos realizados nessas viagens. Por certo, a grandeza dos lucros
obtidos foi possível por conta do baixo custo das “mercadorias de parti-
da”, conseguida através da associação com o agricultor e produtor de fari-
nha José Reginaldo de Mello e Velho e seu grupo de pequenos produtores
do Recôncavo.
A associação desses dois homens mostra como, juntos, eles garantem
uma “mercadoria de partida” barata e assim ultrapassam as fronteiras do
comércio local para arriscar a sorte no outro lado do Atlântico. A análise
isolada do processo não permite detalhar as condições da viagem nem
dos negócios realizados nos portos atlânticos em que a embarcação teria
ancorado. Todavia, a denúncia feita pelo sargento Manoel Lopes Ribeiro
traz informações valiosas sobre as articulações de seu genro com outros
produtores de farinha para prover de boa carga o bergantim São José
Diligente, justificando assim uma viagem tão longa e arriscada. O proces-
so permite ainda identificar o modo como José Reginaldo se relacionava
com os comerciantes de Calabar, indicando seu conhecimento prévio des-
se porto e de seus negócios.21
No códice 242 do Arquivo Nacional,22 identifica-se o registro de uma
viagem do Rio de Janeiro para Calabar/Bony com escalas em São Tomé
e Príncipe e Benguela, no ano de 1810. Contudo, ao examinar “viagem
redonda” do Bergantim São José Diligente, percebe-se que foi realizada
no sentido inverso, iniciando em Benguela, subindo depois até Calabar e,
por último, descendo para uma parada em São Tomé, de onde a embarca-
ção retornou ao Rio de Janeiro. Se houve equivoco no registro, essa pode
ter sido a viagem do bergantim Diligente, que nesse caso teria tido como
21
Segundo Lovejoy e Richardson, os três portos da Baía de Biafra guardaram uma certa ascendência
em períodos específicos dos séculos XVIII e XIX. No trabalho consultado, tais autores indicam que
o início do século XIX foi um período de ascendência do “Velho” Calabar e de Bonny. Em função
disso, assume-se que as informações encontradas na documentação original tratavam desses por-
tos. Ver: LOVEJOY, Paul E.; RICHARDSON, David. The slave ports of the bight of biafra in the
eighteenth century. In: BROWN, Carolyn A.; LOVEJOY, Paul E. (Ed.). Repercussions of the Atlantic
Slave Trade: the interior of the bight of the biafra and the african diaspora. Trenton: Africa World
Press, 2010.
22
AN, Diversos. códice 242. Rio de Janeiro, 1795-1811.
destino Bonny. Se não, outra embarcação teria, no mesmo ano, seguido o
mesmo rumo do Diligente, provalmente com os mesmos objetivos.
Segundo Luís Felipe de Alencastro, no século XVII o Recôncavo da
Guanabara fornecia em torno de 680 toneladas anuais de farinha de man-
dioca para Angola e à medida que a demanda por escravos aumentava,
crescia o consumo de víveres em Luanda, a farinha entre eles. Portanto,
a farinha constituía uma das peças de encaixe na economia do Atlântico
Sul, fosse na alimentação das tripulações dos tumbeiros fosse para ali-
mentar os escravos que estavam nos portos africanos a espera de serem
embarcados, fosse como suprimento das tropas que protagonizaram as
“longas guerras brasílicas” em Angola.23
A importância da farinha de mandioca na produção agrícola do Rio de
Janeiro remonta o século XVIII, pode ser constatada na Tabela 1, cons-
truída a partir de informações do Relatório do Marquês do Lavradio ao
vice-rei Luís de Vasconcelos:
23
ALENCASTRO, Luís Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico Sul, séculos
XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 251-256.
Trata-se sim, de perceber o aumento da complexidade que a economia do
Rio de Janeiro assume com o decorrer dos setecentos. Ela passa, lenta-
mente, a ser ponto de encontro de diferentes rotas de comércio interno
– leia-se dos diversos mercados regionais internos e das acumulações deles
derivadas –, um ponto fundamental para o comércio externo e, em par-
ticular, um entreposto na redistribuição colonial de produtos vindos do
reino e de outras partes do Império luso.24
24
FRAGOSO, João. A noção de economia colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões econômicas
do Império Português: 1790-1820. In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVEA,
Maria de Fatima (Org.). O antigo regime nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-
XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 333.
25
Já no século XVI era conhecida uma rota então chamada “viagem larga” entre Lisboa e Luanda que,
dependendo da época do ano e das condições meteorológicas, fazia as embarcações aportarem no
Brasil de onde pegavam correntes mais favoráveis até Angola. No início do século XVII, o eixo das
trocas comerciais entre o Brasil e Angola passava pelo Recife (a 35 dias de viagem de Luanda), por
Salvador (a 40 dias de viagem) e Rio de Janeiro (a 50 dias) (FRAGOSO, João. A noção de economia
colonial tardia no Rio de Janeiro e as conexões econômicas do Império Português: 1790-1820. In:
FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda; GOUVEA, Maria de Fatima (Org.). O antigo regime
nos Trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI- XVIII). Rio de Janeiro: Civilização Bra-
sileira, 2001. p. 249-251).
26
GOUVÊA, Maria de Fátima Silva. Poder político e administração do complexo atlântico português
(1645-1808). In: FRAGOSO, João; BICALHO, Maria Fernanda Batista; GOUVÊA, Maria de Fátima
(Org.). O Antigo Regime nos trópicos: a dinâmica imperial portuguesa (séculos XVI-XVIII). Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2001. p. 285-315.
que carregavam suas tradições e seus signos que foram base para a ressig-
nificação cultural que ocorreu nas Américas.27
No século XIX, a farinha de mandioca já era bem conhecida nos mer-
cados africanos. Um outro argumento que pode fundamentar a hipótese
do Rio de Janeiro ter sido, por muitos anos, um centro de distribuição
da farinha de mandioca produzida no Brasil para os mercados atlânticos,
decorre da informação de que os excedentes de farinha do mercado de
Salvador eram encaminhados para o Rio de Janeiro. Segundo Barickman,
na década de 1820 muitas embarcações oriundas das vilas produtoras de
farinha no sul do Recôncavo Baiano eram enviadas para o Rio de Janeiro e
Pernambuco.28 Na edição de 19 de janeiro de 1822, o jornal Correio Carioca
registrou uma grande quantidade de farinha entrando no porto do Rio de
Janeiro, proveniente de várias regiões do sul da província, como a Ilha
Grande, termo de Angra dos Reis e outros carregamentos vindos de ou-
tras províncias, como Santa Catarina.29 Certamente essas viagens já acon-
teciam antes e se multiplicaram com a chegada da Corte ao Rio de Janeiro
e o consequente aumento da população na cidade. Mas seria esse o único
motivo dessa transferência de farinha da Bahia para o Rio de Janeiro?
Quem seriam os consumidores desta farinha? A hipótese aqui levantada é
que parte dessa farinha deixava novamente o porto do Rio de Janeiro com
destino aos portos africanos, e que esse comércio tem sido menosprezado
pela historiografia e precisa ser melhor analisado.
Por trás de todos esses circuitos comerciais estava o interesse dos
comerciantes do Rio de Janeiro, em particular no comércio de escravos.
Sobre isso, Roquinaldo Ferreira afirma:
Esse baixo custo financeiro apontado por Miller pode ser também
identificado no Brasil quando os comerciantes usavam sua própria farinha
como “mercadoria de partida”, reduzindo assim os riscos e os custos do
negócio de escravos. Avançando nas conclusões de Miller – que se ocupou
apenas do comércio entre Luanda e Rio de Janeiro –, Roquinaldo Ferreira
vem estudando também as conexões entre comerciantes de Angola e da
Bahia. Na mesma direção, Luciene Reginaldo apresentou o impacto social
dos escravos da África centro-ocidental na população escrava de Salvador
e do Recôncavo Baiano. Em contrapartida, como desdobramento da pes-
quisa de Soares sobre os africanos chamados “minas”, na cidade do Rio
de Janeiro, uma coletânea recente reúne resultados de pesquisa de vários
historiadores ocupados com as relações comerciais entre o Rio de Janeiro
e a Baía do Benim, reforçando a necessidade de uma investigação combi-
nada das rotas majoritárias e minoritárias nos quatro principais portos
do Atlântico para o comércio de escravos no Brasil: de um lado, Rio de
31
VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de Todos
os Santos dos séculos XVIII e XIX. São Paulo: Corrupio, 1987; FLORENTINO, Manolo. Em costas
negras: uma história do tráfico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. São Paulo: Companhia
da Letras, 1997; ALENCASTRO, Luís Felipe de. O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlân-
tico Sul, séculos XVI e XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; SOARES, Mariza de Carvalho
(Org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: da Baía do Benin ao Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF,
2007.
32
MILLER, Joseph. A economia política do tráfico angolano de escravos no século XVIII. In: PANTO-
JA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sobra (Org.). Angola e Brasil: nas rotas do Atlântico Sul. Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 27.
Janeiro e Salvador, de outro os portos da Costa da Mina e da costa centro
ocidental.33
Todos esses trabalhos têm sido fundamentais para o avanço das in-
vestigações sobre as consideradas grandes rotas comerciais entre o Brasil
e a África na vigência do comércio atlântico de escravos, legal ou ilegal.
Todavia, de alguma forma, esses trabalhos inibiram as investigações so-
bre outras rotas do ponto de vista dos negociantes do Brasil que serviam
como alternativas ao comércio controlado por negociantes de maior por-
te. Em todos os casos têm sido deixados de lado pelos historiadores do
Brasil os portos da Baía de Biafra. É nesse espaço de rotas minoritárias –
face ao número global de escravos importados – que se situa a rota entre
o Rio de Janeiro e os portos da Baía de Biafra aqui estudada. Importante
destacar que não se trata de uma rota minoritária – se considerado o volu-
me de escravos exportados a partir de Bonny e Velho Calabar ao longo dos
séculos. Assim como no caso da rota da Baía do Benim, ela é minoritária
para o Rio de Janeiro.
33
SOARES, Mariza de Carvalho (Org.). Rotas atlânticas da diáspora africana: entre a Baía do Benim e
o Rio de Janeiro. Niterói: EdUFF, 2007.
O movimento das mercadorias negociadas ao longo da viagem pode
ser estabelecido a partir do próprio processo judicial estudado. Por de-
terminação da Justiça, foi a ele anexada uma declaração do réu, Manoel
Antônio Coelho, com a descrição de todas as despesas e receitas relativas
às negociações realizadas pela tripulação no período de 12 a julho e 31
de outubro de 1811. Também foram relacionadas todas as despesas com
manutenção, serviços públicos, mão de obra e suprimentos. Além disso,
foram registradas duas longas listas com todas as mercadorias levadas do
Brasil e vendidas na África, e vice-versa.
Para facilitar a leitura do registro contábil, organizei dois quadros com
as despesas e as receitas, com as respectivas listas das mercadorias con-
tidas num anexo ao processo, apresentado em defesa do réu. É claro que
a fonte analisada exige uma dose redobrada de crítica por ter sido produ-
zida pelo próprio réu, em sua defesa. Percebe-se em todo o processo uma
nítida intenção de diminuir a importância da viagem, bem como de seus
lucros. Todavia, mesmo com a ausência de informações ou a quase certa
alteração de valores, os dados apresentados são reveladores da complexa
atividade comercial realizada.
Note-se que até aqui não tinham sido incluídas as despesas e a revista
da compra dos escravos comprados no porto de Calabar, nem tampouco a
considerável quantidade de farinha aí vendida.
34
Para visualizar as paradas da “viagem redonda” aqui estudada ver mapa inserido neste capítulo.
35
Para isso, estou desenvolvendo o projeto “Escravidão, Tráfico e Farinha: um novo olhar sobre as
relações atlânticas entre Rio de Janeiro e Benguela, 1790-1830”, com financiamento do Programa
Nacional de Pesquisa da Biblioteca Nacional e do Ministério da Cultura (2010-2011).
Benguela era um dos mais importantes portos transatlânticos.
Fundada em 1617 entre os rios Katumbela e Kapondo, Benguela foi
sempre parada das rotas portuguesas para reparo de embarcações e su-
primentos, água em especial, mesmo antes de se tornar um importante
porto exportador de escravos. Somente Ajudá (Whydah, Uidá, Ouidah),
Luanda e Bonny superaram Benguela no cômputo geral da exportação de
escravos para as Américas.36 Mariana Cândido explorou os pontos de liga-
ção entre o comércio escravo, o movimento das fronteiras e a formação da
identidade em Benguela. Assim, procurou analisar o impacto do comércio
atlântico de escravos na região, procurando perceber as estreitas relações
entre os luso-africanos e os crioulos escravistas no processo de disponi-
bilizar escravos para as demandas atlânticas, a reconfiguração social im-
plicada por essas relações bem como os impactos do comércio atlântico
de escravos na sociedade de Benguela. Mariana Cândido também acen-
tua que as relações comerciais entre o litoral e o interior do sudeste de
Angola, identificando o sal, a geribita, os tecidos asiáticos, entre outras,
como as mercadorias preferidas nos mercados africanos para a aquisição
de escravos.37
Benguela ganhou dimensões mais precisas para os interesses do
Império quando foi tornada referência para a ocupação portuguesa ao sul
do rio Kwanza. Uma região de diferentes reinos que mantinham posturas
antagônicas tornou-se um lugar de grande quantidade de escravos que
passaram a ser adquiridos em feiras e repassados para comerciantes flu-
minenses. Não há dúvida de que Benguela era uma das principais fontes
de escravos encaminhados para o Brasil, sobretudo para o sudeste bra-
sileiro. Segundo Joseph Miller, os brasileiros começaram a exportar es-
cravos de Angola em grande escala a partir de 1710, quando ocorreu um
aumento de 2 mil escravos até 1730, chegando a um pico de 8 ou 9 mil
por volta de 1784-1795.38 A necessidade de escravos para serem empre-
gados nos mais variados setores da economia brasileira, as correntes ma-
rítimas e a proximidade geográfica com o porto carioca, a disponibilidade
de escravos nas feiras e mercados ao sul do rio Kwanza e o interesse por
determinadas mercadorias de origem fluminense, sem dúvida são razões
que podem explicar uma relação tão estreita. Ainda segundo Mariana
36
CÂNDIDO, Mariana Pinho. Enslaving frontiers: slavery, trade and identity in Benguela, 1780-1850.
PhD Dissertation in History. Toronto: York University, 2006.
37
Ibidem.
38
MILLER, Joseph. A economia política do tráfico angolano de escravos no século XVIII. In: PAN-
TOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sobra (Org.). Angola e Brasil: nas rotas do Atlântico Sul. Rio
de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 63. Segundo a historiadora angolana Rosa Cruz e Silva, “...
conduziu Benguela em direção ao portos brasileiros, milhares e milhares de homens, feitos embar-
car para um novo mundo, para responder em primeira instância às solicitações de uma economia
para a qual a mão de obra barata resgatada em África constituía a pedra basilar para o seu desen-
volvimento.”( SILVA, Rosa Cruz e. Benguela e o Brasil no final do século XVIII: relações comerciais
e políticas. In: PANTOJA, Selma; SARAIVA, José Flávio Sobra (Org.). Angola e Brasil: nas rotas do
Atlântico Sul. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1999. p. 127).
Cândido, os comerciantes brasileiros dominaram o comércio de escravos e
de outras mercadorias em Benguela. Muitas embarcações brasileiras fre-
quentavam o porto de Benguela, o que levou um fluxo intenso entre o
Brasil e aquela região centro-africana. As mercadorias e os interesses de
comerciantes brasileiros estimulavam os empreendimentos de sertanejos
e pombeiros que organizavam caravanas em direção ao interior da África
Central, onde muitos escravos eram adquiridos, entre outros lugares, nas
feiras de onde vinham a maioria dos escravos vendidos em Benguela com
destino aos portos brasileiros.39
Após Benguela e a Baía de Biafra, o bergantim São José Diligente fez
ainda uma parada na Ilha de São Tomé, obrigatória para registro alfan-
degário e apresenta uma novidade interessante já que além dos escravos,
também gêneros alimentícios foram despachado para o Brasil, sob a res-
ponsabilidade do capitão, indicando que devem ter sido adquiridos em
Benguela ou Calabar. A importância da passagem por São Tomé deveu-se
a reparos na embarcação e resolução de questões burocráticas e adminis-
trativas. Em São Tomé também embarcaram para o Rio de Janeiro outros
quatro passageiros, todos comerciantes. Essa variedade de transações e
serviços mostra que outras atividades orbitavam em torno do comércio
de escravos estreitando e reforçando os vínculos entre os portos do Brasil
e da África. Por fim, é importante ressaltar a predominância de produtos
manufaturados, sobretudo tecidos, comprados na costa africana, o que
demonstra que esses portos também eram lugares para a negociação de
mercadorias trazidas de outros lugares, Europa e Oriente, ampliando com
isso ainda mais as redes comerciais que atravessam o Atlântico.
O porto de Benguela era bem conhecido dos comerciantes de escravos
que atuavam na cidade do Rio de Janeiro. Já Calabar e Bonny fogem às
expectativas dos estudiosos do comércio de escravos destinados ao Rio de
Janeiro. Esparsas referências a escravos vindos de Calabar na cidade do
Rio de Janeiro no século XIX aparecem nos livros de batismo. Entre eles,
Soares cita o livro da Freguesia de São José onde constam 38 escravos
identificados como Calabar, sendo 12 mulheres. Também na Irmandade
de Santo Elesbão e Santa Efigênia, da mesma cidade, frequentada por
“pretos-minas”, foram encontrados sete calabares.40 Embora os motivos
que levaram esses comerciantes do Rio de Janeiro a escolherem o porto
de Calabar não fiquem claros nas fontes encontrados, uma das hipóteses
é a de que o motivo esteja associado à oferta dessas mercadorias ingle-
sas41 que, além dos escravos, interessavam aos comerciantes fluminenses,
39
Ver CÂNDIDO, Mariana Pinho. Enslaving frontiers: slavery, trade and identity in Benguela, 1780-
1850. PhD Dissertation in History. Toronto: York University, 2006. p. 126-131.
40
SOARES, Mariza de Carvalho. From Gbe to Yoruba: ethnic changes within the Mina Nation in Rio
de Janeiro. In: FALOLA, Toyin; CHILDS, Matt (Org.). The Yoruba Diaspora in the Atlantic World.
Bloomington: Indiana University Press, 2004. p. 236-237.
41
SPARKS, Randy J. The two princes of Calabar: na eighteenth-century Atlantic odyssey. Cambridge:
Harvard University Press, 2004.
haja vista que algumas delas foram adquiridas pelos comerciantes do
Recôncavo naquele porto centenas de peças de chitas, lenços e outros pa-
nos, outras centenas de tesouras, “lindezas”, barras de ferro, maços de
coral, barris de chumbo, navalhas, facas e facões foram trazidos da costa
africana. Além disso, mesmo não constando no despacho feito em São
Tomé quando do inventario da carga do São José Diligente, houve tam-
bém a importação para o Brasil de pistolas, canhões e pólvora adquiridos
no porto de Calabar.42
As grandes rotas atlânticas eram forjadas de acordo com as demandas
de cada viagem e suscitadas pelos diversos interesses dos muitos agentes
envolvidos nas costas africanas e brasileira. Desta forma, os mecanismos
do comércio atlântico de escravos se multiplicavam e, para o seu entendi-
mento, é preciso levar em consideração os diferentes sistemas de crédito,
a diversidade das estratégias africanas para atender à demanda por es-
cravos. Assim, as diferentes mercadorias negociadas ao lado dos escravos
nos portos atlânticos da África precisam ser melhor analisadas, entre elas
uma das mais importantes, como demonstrei neste capitulo, foi a farinha
de mandioca produzida no recôncavo do Rio de Janeiro.
42
AN. Inventários: Juízo de órfãos. José Reginaldo de Mello e Velho (Anexos). cx. 1122. Processo
346. Magé, 1811-1830.
Referências
I - Fontes
• Habilitações Matrimoniais.
• Livro de Óbitos e Testamentos da Freguesia da Sé, 1776-1784.
• Livro de Óbitos de escravos da Freguesia de Santa Rita,1812-1818.
• Livro de Óbitos de escravos da Freguesia de Santa Rita, 1824-1830.
• Livro de Óbitos de escravos da Freguesia de Santa Rita, 1820-1832.
• Códices 70, 73, 204, 403 (vols. 1 e 3), 410, 425, 424, 484.
• Inventários: Juízo de órfãos. José Reginaldo de Mello e Velho.
Caixa 1122. Processo 346. Magé, 1811-1830.
• Série documentos biográficos. Agostinho Hoffman, c 233,5.
• Série Marinha. Ministério/Secretaria de Estado. B2 – XM – 787.
EWBANK, Thomas. Vida no Brasil. v. 28. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte:
Itatiaia, 1976. (Coleção Reconquista do Brasil)
LEITHOLD, Theoder Von Leithold; RANGO, L.V. O Rio de Janeiro visto por
dois prussianos em 1819. São Paulo: Companhia Ed. Nacional, 1966.
LUCCOCK John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do
Brasil. v. 21. São Paulo: EDUSP; Belo Horizonte: Itatiaia, 1975. (Coleção
Reconquista do Brasil)
SOUSA, Gabriel Soares de. Tratado Descritivo do Brasil em 1587. São Paulo:
Companhia Ed. Nacional, 1971.
SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philip von. Viagem
pelo Brasil. São Paulo: Melhoramentos; Brasília, DF: INL, 1976. 2 v.
Almanak Laemmert
Diário do Rio de Janeiro
Gazeta de Notícias
Correio Carioca
Jornal do Commercio
O Cruzeiro
II. Bibliografia
ALVES, José Cláudio de Souza Alves. Dos barões ao extermínio: uma his-
tória da violência na Baixada Fluminense. Duque de Caxias: APPH-CLIO,
2003.
Azevedo Célia Maria de. Onda negra, medo branco: o negro no imaginário
das elites século XIX. Campinas, SP: Anablume, 1987.
BROWN, Carolyn A.; LOVEJOY, Paul E. The bight of biafra and slavery.
In: . (Ed.). Repercussions of the Atlantic Slave Trade: the interior
of the Bight of the Biafra and the African Diaspora. Toronto: Africa World
Press, 2010.
ENNE, Ana Lucia Silva. Lugar, meu amigo, é minha Baixada: memória, repre-
sentações sociais e identidade. Tese (Doutorado em Antropologia Social)–
Museu Nacional, Universidade Federal Fluminense, Rio de Janeiro, 2002.
GERSON, Brasil. História das ruas do Rio. 5. ed. Rio de Janeiro: Lacerda,
2000.
GOMES, Flávio dos Santos; NEGRO, Antonio Luigi. Além de senzalas e fá-
brica: uma história social do trabalho. Tempo Social: revista de sociologia
da USP, São Paulo, v. 18, n. 1, p. 217-240, 2006.
PIRES, Ana Flávia Cicchelli. Tráfico ilegal de escravos: os caminhos que le-
vam a Cabinda. Dissertação (Mestrado em História) – Programa de Pós-
Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2006.
GOMES, Flávio dos Santos; REIS, João José (Org.). Liberdade por um fio:
história dos quilombos no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Schwarcz Lilia M. O espetáculo das raças. São Paulo: Companhia das Letras,
1996.
SILVA, Luiz Geraldo. A faina, a festa e o rito: uma etnografia histórica sobre
as gentes do mar (sécs. XVII ao XIX). São Paulo: Papirus, 2001.
SOUZA, Jorge Luiz Prata de. Africano livre ficando livre: trabalho, cotidia-
no e luta. Tese (Doutorado em História)–Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999.
Autores