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O ilegalismo popular

Michel Foucault
Até o início do século XIX, os ilegalismos populares existiam como possibilidade de
desenvolvimento do sistema capitalista. O fim dos ilegalismos populares tem ligação direta
com a eliminação da funcionalidade que tais práticas possibilitavam à nascente sociedade
capitalista. Para este fim, o aparato estatal concentrou as funções de penalização e
encarceramento, além de criar a noção de delinquente, o criminoso inimigo social, peste que
prejudica cada membro da sociedade.

O objetivo deste artigo é compreender a noção de ilegalismo popular nos desenvolvimentos


de Michel Foucault acerca do nascimento da sociedade punitiva. Para isso, a Aula de 21 de
fevereiro de 1973, d’A Sociedade Punitiva[1], será utilizada como base.

O anseio em entender o ilegalismo popular nasce através da conclusão de Foucault de seu


primeiro ponto de partida: há uma sociedade punitiva caracterizada através do funcionamento
corretivo e penitenciário do aparato estatal judiciário. Esta sociedade nasceu com a ascensão de
um sistema coercitivo heterogêneo nas sociedades moralizadoras e através das difusas ordens
régias e que tiveram seus instrumentos e pontos de aplicação transferidos para o aparato estatal
no fim do século XVIII. Já no início do século XIX, o Estado se encarregou do sistema
coercitivo que foi introduzido no sistema penal. Este, pela primeira vez, era também um sistema
penitenciário[2].

Foucault procura entender porque o processo lento de transferência de responsabilidades


coercitivas e punitivas ao aparato estatal se acelerou e desembocou em um sistema unificado.
Partindo da hipótese de que, até o fim do século XVIII, certo tipo de ilegalismo popular era
compatível e útil ao desenvolvimento da economia burguesa, tornou-se elemento incompatível e
passível de ser eliminado[3].

O ilegalismo popular tolerado pode ser entendido como uma forma de driblar leis que
impunham etapas para a realização de um fim através da criação de mecanismos diretos, menos
custosos e facilitadores ao livre-mercado. O exemplo de Foucault são os tecelões do Maine, no
oeste da França. Esta profissão rapidamente foi incorporada na sociedade capitalista, mas no
século XVIII ainda se situava entre o campo e a cidade. Haviam diversos regulamentos
advindos do controlador geral das finanças que estabeleciam procedimentos para a
comercialização dos produtos dos tecelões, artesãos com teares em suas casas, em sua maioria,
aos comerciantes que os distribuiriam ou os exportariam.

As ordenanças estabelecidas pelo controle definiam a qualidade dos diferentes tecidos,


comprimento de peças, a marca registrada do artesão em uma agência reguladora e etc. A
vigilância era feita por fiscais da região e cada operação de medida, de marcação e envio ao
mercado, era feita através de uma determinada cobrança. Para driblar a vigilância, comerciantes
e tecelões estabeleceram uma ilegalidade de mão-dupla:

Tanto o mercador, que devia comercializar, quanto o tecelão, que tinha fabricado, entendiam-
se diretamente, passando por cima dos regulamentos, para tentar esquivar-se deles. Firmavam
contratos antecipados, fora do mercado oficial; graças a esse entendimento direto, as duas
partes estavam diretamente em contato e estabeleciam entre si algumas relações comerciais
que de certa forma eram leis do mercado; por fim, o comerciante podia dar adiantamentos ao
tecelão, que assim podia adquirir novos instrumentos de produção. Dessa maneira, aos poucos,
o modo de produção capitalista injetou-se, inseriu-se num sistema propriamente artesanal,
graças a essa prática de dupla ilegalidade.[4]

Essa forma de ilegalismo era importante por quatro pontos:

1. Era um ilegalismo funcional, já que possibilitava o surgimento de uma relação de lucro


própria ao sistema capitalista.
2. Era um ilegalismo sistemático, por ser um modo de funcionamento da sociedade
inteira, em conjunto com outros tipos de ilegalismos. Era a junção do ilegalismo popular dos
tecelões, do ilegalismo dos comerciantes e, em conjunto a isso, o ilegalismo dos privilegiados,
“que escapavam à lei por estatuto, tolerância ou exceção” [5].

Portanto, no século XVII, haviam três tipos de ilegalismo que atuavam uns contra os outros:
popular, comercial, privilegiado. A isso se pode acrescentar um quarto, que fazia o sistema
funcionar: o do poder.[6]

Os representantes do poder eram percebidos como agentes arbitrários, no entanto, funcionavam


principalmente como árbitros do ilegalismo. Os representantes estabeleciam as articulações
entre cada tipo de ilegalismo.

3. Era um ilegalismo econômico e político: contribuía à favorecimentos econômicos e


ignorava instituições reguladoras.
4. Era um ilegalismo oscilante, já que a obediência à lei ainda era usada pelos artesãos
quando percebiam que eram explorados pela burguesia comerciante, e pediam proteção ao
poder régio. A obediência à lei era parte do jogo dos ilegalismos.

Por isso a pergunta: por que, nessa cumplicidade de ilegalismos, chegou um momento em que
o ilegalismo burguês já não podia suportar o funcionamento do ilegalismo popular?
Retomemos o caso do tecelão, que em meados do século XVIII possuía seu tear, suas
ferramentas, sua matéria-prima, seu domicílio. Comparemos com o operário do porto de
Londres na segunda metade do século XVIII: nada lhe pertencia, [mas,] em compensação, ele
tinha diante de si, nas embarcações e nas docas, uma riqueza que Colquhoun avaliou em 70
milhões de libras por ano. Aquela fortuna estava ali, antes da comercialização e da
transformação, em contato direto com os operários do porto. Nessas condições, o furto daquela
fortuna assim exibida tornava-se inevitável, tudo aquilo estava “exposto aos furtos”, não só em
virtude da depravação de grande parte dos operários de todo tipo empregados a bordo, como
também pelas tentações representadas pela confusão inevitável num porto cheio de gente, e
pela facilidade de desfazer-se dos bens roubados.[7]

Esses furtos não aconteciam através da invasão de desempregados obstinados a roubar para
satisfazer necessidades que não eram contempladas em sua profunda falta de ocupação e,
portanto, renda. Os crimes eram praticados pelos trabalhadores do porto, eram de origem
interna, sustentados por uma malha de cumplicidades internas.

Esses sistema de roubo, ligado à presença das riquezas, era comparável ao do contrabando.
Mais do que a quantidade das riquezas roubadas, talvez fosse notável e preocupante a sua
forma: tinha-se, como efeito, toda uma atividade econômica coerente, subterrânea, parasitária.
E tem-se a impressão de que o velho ilegalismo popular, tolerado pela burguesia, em vez de
atacar como outrora os direitos e o poder que matinha os direitos, atacava então a
materialidade da fortuna burguesa.[8]

Ao sair do artesanato, o operário não tinha contato com a lei, mas com coisas que simplesmente
não eram deles, diferentemente da prática artesanal, em que o trabalhador detém grande parte
daquilo que lida no cotidiano de seu trabalho. A máxima contra o operário era “isto não é seu”.
“A partir do momento em que só tem uma riqueza diante de si, a única maneira de praticar o
ilegalismo é depredando-a”[9].

A partir disso:

1. Todas as formas socializadas de ilegalismo foram denunciadas e aqueles que praticava


tais formas de ilegalismo foram considerados como inimigos sociais. Antes, o praticante
possibilitava o funcionamento do sistema, depois, depredava o produto dos controladores do
sistema estabelecido.
2. Bandos de alcaguetes, infiltrados e dedos-duros foram inseridos nos grupos de
trabalhadores para destruir a prática do ilegalismo através da vigilância.
3. Uma disposição positiva foi inserida no funcionamento da lei: para além do “isto não é
seu”, o operário foi submetido a uma moralização que o adequava ao novo sistema de venda
da força de trabalho e inseria ao sistema penitenciário numa relação direta de aplicação feita
por uma classe para outra classe. A moralidade e a noção de “regeneração” foram inseridas
nas relações de produção.
4. Houve a separação na sociedade entre os delinquentes e os não-delinquentes e, com
isso, formas de reconhecimento e práticas sociais sobre ambos os grupos.

O grande objetivo da burguesia não era eliminar a delinquência, mas traçar uma separação clara
entre o delinquente e o não-delinquente, com isso, eliminar o continuum do ilegalismo popular.
Considerações finais
O fim dos ilegalismos populares tem ligação direta com a eliminação da funcionalidade que tais
práticas possibilitavam à nascente sociedade capitalista.

O combate aos ilegalismo teve dois grandes instrumentos: um ideológico, que foi a teoria do
delinquente como inimigo social, imputado como inimigo de cada membro da sociedade.
Assim, o criminoso como monstro social, como perigo urbano que foi assumido principalmente
na literatura e entre teóricos da penalidade no século XVIII, serviu principalmente como fator
de eliminação dos ilegalismos populares. O outro instrumento foi prático: a instituição de
prisões. A prisão foi instrumento prático de confinamento dos indivíduos inseridos no grupo de
delinquentes, sempre reincidentes, claramente demarcados e fechados num sistema hermético
de encarceramento[10].

Neste momento, também nasceu o antagonismo entre os operários e a delinquência. Os


delinquentes foram os primeiros a serem recrutados para a formação da polícia, que era utilizada
contra os trabalhadores em greves e revoltas políticas. Aqueles em que não foi possível inculcar
a ética do trabalho foram utilizados como ferramentas para repressão de trabalhadores. Os
ilegalismos, portanto, foram elementos instrumentais de desenvolvimento da sociedade
capitalista, mas, acima de tudo, elementos descartáveis quando sua prática já não representavam
uma aliança com a burguesia.

Referências
 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva. Curso no Collège de France (1972-1973). São
[1]

Paulo: Martins Fontes, 2015.

 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.129.


[2]

 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.130.


[3]

 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.131.


[4]

 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.132.


[5]

 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.132.


[6]

 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.136.


[7]

 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.136.


[8]

 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.136.


[9]

[10]
 FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.139.

Por Vinícius Siqueira

Instagram: @poressechaopradormir
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor
do Colunas Tortasg

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