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Michel Foucault
Até o início do século XIX, os ilegalismos populares existiam como possibilidade de
desenvolvimento do sistema capitalista. O fim dos ilegalismos populares tem ligação direta
com a eliminação da funcionalidade que tais práticas possibilitavam à nascente sociedade
capitalista. Para este fim, o aparato estatal concentrou as funções de penalização e
encarceramento, além de criar a noção de delinquente, o criminoso inimigo social, peste que
prejudica cada membro da sociedade.
O ilegalismo popular tolerado pode ser entendido como uma forma de driblar leis que
impunham etapas para a realização de um fim através da criação de mecanismos diretos, menos
custosos e facilitadores ao livre-mercado. O exemplo de Foucault são os tecelões do Maine, no
oeste da França. Esta profissão rapidamente foi incorporada na sociedade capitalista, mas no
século XVIII ainda se situava entre o campo e a cidade. Haviam diversos regulamentos
advindos do controlador geral das finanças que estabeleciam procedimentos para a
comercialização dos produtos dos tecelões, artesãos com teares em suas casas, em sua maioria,
aos comerciantes que os distribuiriam ou os exportariam.
Tanto o mercador, que devia comercializar, quanto o tecelão, que tinha fabricado, entendiam-
se diretamente, passando por cima dos regulamentos, para tentar esquivar-se deles. Firmavam
contratos antecipados, fora do mercado oficial; graças a esse entendimento direto, as duas
partes estavam diretamente em contato e estabeleciam entre si algumas relações comerciais
que de certa forma eram leis do mercado; por fim, o comerciante podia dar adiantamentos ao
tecelão, que assim podia adquirir novos instrumentos de produção. Dessa maneira, aos poucos,
o modo de produção capitalista injetou-se, inseriu-se num sistema propriamente artesanal,
graças a essa prática de dupla ilegalidade.[4]
Portanto, no século XVII, haviam três tipos de ilegalismo que atuavam uns contra os outros:
popular, comercial, privilegiado. A isso se pode acrescentar um quarto, que fazia o sistema
funcionar: o do poder.[6]
Por isso a pergunta: por que, nessa cumplicidade de ilegalismos, chegou um momento em que
o ilegalismo burguês já não podia suportar o funcionamento do ilegalismo popular?
Retomemos o caso do tecelão, que em meados do século XVIII possuía seu tear, suas
ferramentas, sua matéria-prima, seu domicílio. Comparemos com o operário do porto de
Londres na segunda metade do século XVIII: nada lhe pertencia, [mas,] em compensação, ele
tinha diante de si, nas embarcações e nas docas, uma riqueza que Colquhoun avaliou em 70
milhões de libras por ano. Aquela fortuna estava ali, antes da comercialização e da
transformação, em contato direto com os operários do porto. Nessas condições, o furto daquela
fortuna assim exibida tornava-se inevitável, tudo aquilo estava “exposto aos furtos”, não só em
virtude da depravação de grande parte dos operários de todo tipo empregados a bordo, como
também pelas tentações representadas pela confusão inevitável num porto cheio de gente, e
pela facilidade de desfazer-se dos bens roubados.[7]
Esses furtos não aconteciam através da invasão de desempregados obstinados a roubar para
satisfazer necessidades que não eram contempladas em sua profunda falta de ocupação e,
portanto, renda. Os crimes eram praticados pelos trabalhadores do porto, eram de origem
interna, sustentados por uma malha de cumplicidades internas.
Esses sistema de roubo, ligado à presença das riquezas, era comparável ao do contrabando.
Mais do que a quantidade das riquezas roubadas, talvez fosse notável e preocupante a sua
forma: tinha-se, como efeito, toda uma atividade econômica coerente, subterrânea, parasitária.
E tem-se a impressão de que o velho ilegalismo popular, tolerado pela burguesia, em vez de
atacar como outrora os direitos e o poder que matinha os direitos, atacava então a
materialidade da fortuna burguesa.[8]
Ao sair do artesanato, o operário não tinha contato com a lei, mas com coisas que simplesmente
não eram deles, diferentemente da prática artesanal, em que o trabalhador detém grande parte
daquilo que lida no cotidiano de seu trabalho. A máxima contra o operário era “isto não é seu”.
“A partir do momento em que só tem uma riqueza diante de si, a única maneira de praticar o
ilegalismo é depredando-a”[9].
A partir disso:
O grande objetivo da burguesia não era eliminar a delinquência, mas traçar uma separação clara
entre o delinquente e o não-delinquente, com isso, eliminar o continuum do ilegalismo popular.
Considerações finais
O fim dos ilegalismos populares tem ligação direta com a eliminação da funcionalidade que tais
práticas possibilitavam à nascente sociedade capitalista.
O combate aos ilegalismo teve dois grandes instrumentos: um ideológico, que foi a teoria do
delinquente como inimigo social, imputado como inimigo de cada membro da sociedade.
Assim, o criminoso como monstro social, como perigo urbano que foi assumido principalmente
na literatura e entre teóricos da penalidade no século XVIII, serviu principalmente como fator
de eliminação dos ilegalismos populares. O outro instrumento foi prático: a instituição de
prisões. A prisão foi instrumento prático de confinamento dos indivíduos inseridos no grupo de
delinquentes, sempre reincidentes, claramente demarcados e fechados num sistema hermético
de encarceramento[10].
Referências
FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva. Curso no Collège de France (1972-1973). São
[1]
[10]
FOUCAULT, Michel. A Sociedade Punitiva… p.139.
Instagram: @poressechaopradormir
Pós-graduado em sociopsicologia pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo e editor
do Colunas Tortasg